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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.46 São Paulo Sept./Dec. 2019

 

ENTREVISTA

 

Historiadora de vidas: a trajetória acadêmica e profissional de Vanessa Andrade de Barros

 

Life historian: the academic and professional career of Vanessa Andrade de Barros

 

Historiadora de vidas: la carrera académica y profesional de Vanessa Andrade de Barros

 

Historien de la vie: la carrière académique et professionnelle de Vanessa Andrade de Barros

 

 

Frederico Alves CostaI; Frederico Viana MachadoII

IMestre e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. Professor no Instituto de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL. Presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP). Coordenador do Núcleo de Psicologia Política da UFAL (https://nppufal.home.blog/). frederico.costa@ip.ufal.br
IIMestre e Doutor em Psicologia pela UFMG. Professor do Bacharelado em Saúde Coletiva e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas, Ações Coletivas e Saúde (LAPPACS/UFRGS). frederico.viana@ufrgs.br

 

 

Introdução

Vanessa Andrade de Barros graduou-se em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em 1979, fez uma Especialização em Administração de Recursos Humanos, pelo Centro Universitário Una, em 1980. Terminou o mestrado em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 1992, orientada por Luiz Antônio Antunes Teixeira, cuja dissertação foi intitulada "Relações de poder e o caráter subjetivo: um estudo de caso no Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de BH-Contagem".

Seu doutorado foi em Sociologia, na Université de Paris VII, concluído em 1998, sob orientação de Eugène Enriquez, com o título "De la réprésentation au pouvoir: une étude sur les trajectoires politiques des dirigeants syndicaux au Brésil" [Da representação ao poder: um estudo sobre as trajetórias políticas de dirigentes sindicais no Brasil].

Em 2011, fez pós-doutorado no Conservatoire National des Arts et Métiers-Paris, onde até hoje atua como pesquisadora convidada, mais especificadamente no grupo de pesquisa Psichosociologie du traval et de la formation: Anthropologie des pratiques. Também é membro titular do Centre International de Recherche, de Formation et d'Intervention en Psychosociologie – CIRFIP, professora convidada na Universidad Nacional de Córdoba e membro fundadora do Instituto DH: Promoção, Pesquisa e Intervenção e Cidadania. É líder do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos, registrado no diretório de grupos de pesquisa do CNPq.

Vanessa Barros realiza pesquisas na área da Psicologia Social Crítica do Trabalho, na qual se tornou uma referência no Brasil, com ênfase nos enfoques teórico-metodológicos da Psicossociologia do Trabalho e Ergologia, em interface com abordagens de Direitos Humanos. Atualmente tem dado uma especial atenção ao estudo de temas relativos ao sistema prisional e socioeducativo, defendendo uma posição abolicionista.

Aposentou-se em 2018 e atua como professora visitante na Universidade Federal da Paraíba, no Programa de Pós graduação em Psicologia Social, e segue como voluntária no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG. É pesquisadora produtividade 2 do CNPq, tem publicações importantes e orientou dezenas de estudantes de mestrado e doutorado.

No dia 18 de junho de 2019, na cidade de João Pessoa, Vanessa Barros nos recebeu para esta entrevista que aqui apresentamos. Vanessa Barros foi umas das professoras que trabalhou no Núcleo de Psicologia Política (NPP) da Universidade Federal de Minas Gerais, espaço privilegiado para nossa formação. Por sua trajetória, traz uma contribuição importante para a Psicologia Política, sobretudo, pela interface com a Psicologia do Trabalho. No NPP, Vanessa foi quem nos apresentou Jacques Rancière, autor que tem sido cada vez mais utilizado no Brasil.

Além disto, foi ela que nos apresentou a potencialidade do método da História de Vida (Barros & Silva, 2002) e propôs o projeto História de Vida e Ação política, iniciado em 2004 pelo Núcleo de Psicologia Política da Universidade Federal de Minas Gerais e seguiu sendo editado pelo Laboratório de Psicologia do Trabalho da UFMG. Atualmente é realizado também pelo Laboratório de Políticas Públicas Ações Coletivas e Saúde (LAPPACS/UFRGS)1

Buscamos construir esta entrevista com Vanessa recorrendo a recursos desta metodologia na qual ela se tornou mestre, a história de vida. Enfocamos a relação entre público e privado em sua trajetória acadêmica em conjunto com acontecimentos pessoais, que deixaram marcas, bem como a relação entre passado e presente.

Ao tratarmos de sua história de vida, elencamos elementos teóricos sobre a Psicologia do Trabalho em sua interface com a Psicologia Política, sobre sua concepção de Psicologia Política, bem como sobre contribuições destes campos de trabalho para a compreensão do contexto político atual, marcado pelo conservadorismo e pelo autoritaritarismo.

Entrevistador: Poderia começar contando um pouco da sua trajetória de formação acadêmica. Você tem uma trajetória bastante interdisciplinar, como foi seu processo de formação, desde sua graduação, suas pesquisas de Mestrado, Doutorado, e como você identifica a Psicologia Política entrando na sua história?

- Eu sempre morei no interior. Na minha época de estudante, do que hoje é o ensino médio, havia um curso chamado científico e outro chamado curso normal, que preparava para ser professora; eu fiz os dois simultaneamente. No curso normal eu tive uma professora muito importante, professora de sociologia, ela era muito, como é que eu vou dizer, muito entusiasmada com os conteúdos. Eu não me lembro dos conteúdos, mas me lembro dessa professora. Não me lembro o que na época se estudava para preparar uma pessoa para dar aula, para ser professora de ensino básico. Mas eu me apaixonei pela disciplina sociologia nessa época. Ela era também professora de Psicologia, que também me provocou forte identificação, o que me levou a fazer vestibular para Psicologia. Mas eu precisava trabalhar, eu morava no interior, eu não conseguiria me manter em Belo Horizonte, meu pai não tinha condições financeiras para me sustentar. Na UFMG, como até hoje, não havia curso noturno de Psicologia, então eu sequer tentei. Eu já fiz logo vestibular na PUC-Minas, para turma noturna. Minha formação na Universidade foi muito complicada, difícil mesmo, porque eu trabalhava o dia inteiro e estudava a noite. Eu fazia os estágios aos sábados! Eu não pude aproveitar, mas nem existia na época, pesquisa, extensão... Isso foi na década de 70, ditadura militar... Então foi uma formação bem precária, em condições muito precárias também, porque eu não tinha como me dedicar, além do que eu estudava no bairro Coração Eucarístico, morava perto, no [Bairro] Prado, mas eu trabalhava na avenida Catalão2, em frente ao Cemitério da Paz. Era muito longe! da minha casa até o meu trabalho e depois do meu trabalho até a Universidade. Eu chegava em casa tarde. Eu me lembro de poucas coisas da minha graduação, na verdade, porque não tinha mesmo como eu aprofundar, como eu me dedicar mais. As condições materiais eram muito desfavoráveis para uma formação de qualidade.

Entrevistador: E nesse sentido, da ditadura militar, como que você via isso em relação à formação? No Brasil a gente estava vivendo a crise da Psicologia Social, como isso aparecia nos debates?

- Não, isso não aparecia. Se aparecesse eu acho que eu me interessaria, eu me lembraria, mas não aparecia.. Não me lembro sequer de ter tido aula de Psicologia Social, pra você ter uma ideia, eu realmente não me lembro. O que eu me lembro, e que na época me pareceu importante, era uma disciplina chamada Psicologia da Indústria, que tinha bons professores. Uma disciplina chamada Treinamento, tinha um professor que era psicólogo na Petrobras e ele era ótimo professor. Era tudo muito fechado, nada crítico. Me lembro também, de um professor que teve de fato uma grande importância em minha formação: o Luiz Flávio [Luis Flávio Silva Couto]3, lembra dele?

Entrevistador: Sim, da Psicanálise.

- Ele foi meu professor de Psicanálise, justamente, Introdução à Psicanálise. Excelente professor, razão pela qual eu sempre fui muito identificada com a Psicanálise desde essa época. Mas em termos de uma formação crítica, uma formação política, não tive na universidade. Por outro lado, na cidade4 onde meus pais moravam tinha um exército, tem ainda até hoje, a Escola de Sargento das Armas [ESA]. O exército vivia de prontidão. Quando eu morava lá eu não entendia o que era aquilo, ficar de prontidão. Nós morávamos em um bairro onde moravam também muitos militares, e o meu pai tinha amigos militares, porque era mecânico de automóveis, ele consertava os carros tanto da ESA quanto de militares, carros particulares. Mas ele também tinha amigos que eram comunistas. Uma cena que eu me lembro muito era de meu pai levando umas caixas e colocando no alto de um armário lá em casa. Escondeu essas caixas com uns cobertores e falou que ninguém podia mexer naquilo. Eu achei legal que ele não fez isso na surdina. Eu me lembro de estar presente eu e minha mãe, meu pai falando "olha, eu vou guardar isso aqui, é pro Fulano!" Eu esqueci o nome do amigo dele, mas era um amigo que frequentava nossa casa: "ninguém mexe e se alguém perguntar se eu trouxe alguma coisa vocês falam que não viram". Eu achei isso legal, mas eu fiquei curiosa, queria saber, lógico! E ele falava, "é coisa que nem eu sei, mas o Fulano me pediu para guardar e eu vou guardar". Um dia, eu saindo do colégio estadual onde estudava, passou um caminhão. Em cima do caminhão tinham umas pessoas que eram importantes na cidade, e elas estavam amarradas por cordas na carroceria do caminhão. Isso foi muito impactante para mim porque um dos que estavam lá era um advogado muito importante! Ele tinha uma fama de não perder nenhuma causa, de pegar sempre causas populares... Ele era um advogado bom para o povo. Ele bebia, bebia... Então as pessoas falavam que ele atendia os pobres porque só os pobres procuravam por ele. Mas ele ganhava as causas, não sei se diziam isso porque ele bebia, enfim, mas vê-lo naquela posição foi muito impactante. Além dele tinham outros, tinham professores do Colégio, um de meus professores estava lá em cima desse caminhão também, e tinham mulheres que eu não conhecia, mas estavam lá, e eles estavam amarrados por cordas, e eu fiquei muito chocada. Era um caminhão descaracterizado, não era um caminhão do exército. Eu cheguei em casa, contei isso para o meu pai, e ele falou: "é, talvez o Fulano venha buscar as caixas dele que estão aqui, mas eu vou lá na casa dele falar que é para vir de noite, já que isso está acontecendo". Eu queria saber o que estava acontecendo, porque eu não entendia, eu não sabia, não era falado, havia um silêncio na cidade.

Entrevistador: Você tinha quantos anos?

- Eu vim para Belo Horizonte com 18, então devia ter 15 anos, por aí. Pelo fato de ser uma cidade controlada pelos militares ninguém falava nada, mas essas cenas eram escancaradas. Esse caminhão passando em frente ao Colégio Estadual! em plena luz do dia!, aquilo ficou. Até hoje eu lembro da cena. O mais impressionante é isso, eu fecho os olhos, eu lembro da cena, eu lembro do rosto do advogado e do meu professor. Então, quando eu vim para Belo Horizonte já trazia uma curiosidade sobre a situação e uma marca. Eu tinha um colega que me apresentou sua amiga, uma pessoa bem esclarecida politicamente. Ela começou a falar comigo, mas era difícil para eu entender, muito difícil, porque eu não tinha uma base que me permitisse traduzir para alguma coisa mais compreensível o que dizia, e se falava tão mal dos comunistas, se falava muito mal dos comunistas.

Entrevistador: E a formação na época também não te permitiu isso?

- Não, não, absolutamente nada! Mas quando eu vim para Belo Horizonte, fazer cursinho pré vestibular, eu conheci pessoas que pouco a pouco foram me inserindo no campo das discussões políticas. Eu morei com a minha prima e com a prima dela, que era muito amiga do irmão de um deputado do MDB, parceirasso do Ulisses Guimarães. Ele mancava de uma perna, dizia que tinha sofrido um acidente, mas mais tarde a gente soube que foi pancada dos militares. Ele foi preso, foi espancado e ficou com a perna comprometida. Ele ia lá para casa e ficava conversando sobre política e levava..e isso que era legal - ele levava discursos gravados do Ulisses Guimarães. A gente ficava ouvindo, mas muita coisa eu não entendia (risos). Não entendia, mas queria continuar ouvindo, e nós passávamos bons momentos ali, tomando cerveja e o fulano falando de política o tempo inteiro, e falava sempre do irmão dele e do Ulisses Guimarães. A gente ouvia Ulisses Guimarães em casa. Então, teve isso daí que de alguma maneira fermentou algumas curiosidades que eu já trouxe do interior.

Entrevistador: Interessante você falar isso, dessa sua curiosidade de descobrir o que era aquilo, daquelas pessoas presas, descobrir o que acontecia com essas pessoas, com esses comunistas que eram tão mal falados. Há um intervalo longo entre sua graduação e o mestrado... E você vai estudar sindicalismo, muito interessante isso, porque em um momento você está dizendo "vim do interior, não sabia o que eram aquelas caixas, não entendia o que era aquele momento político", mas você vai estudar exatamente um ator político que foi de extrema importância no processo de redemocratização. Como foi isso?

- É... há uma continuidade entre minha formação acadêmica e profissional que levou a essas escolhas teóricas (risos). Na graduação havia uma separação em Psicologia Clínica, Educacional e Industrial, eu fiz Industrial e fui trabalhar. E trabalhei durante muitos anos. A empresa onde eu trabalhava financiou para mim um curso de especialização em Administração de Recursos Humanos e, nesse curso, eu tive um professor que também era professor da FACE [Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG]. E ele sempre me dizia: "você precisa fazer Mestrado" - eu nem sabia o que era mestrado - "você é uma aluna de Mestrado, você é uma pesquisadora, as perguntas que você faz na aula mostram que você é uma pesquisadora". Eu ficava com vergonha de perguntar para ele o que era pesquisadora (risos). O nome dele era Lucio Flavio Arnaut de Moraes. Eu ficava pensando: "o que será que era ser uma pesquisadora?"

E tive também nesse curso um professor da disciplina Negociação Coletiva, e foi aí que eu descobri o sindicalismo. Ele fez uma simulação em sala de um julgamento de uma greve. Porque nós estudávamos justamente Movimento Sindical, estávamos em 1979. O novo sindicalismo já estava com grande protagonismo nas lutas do ABC paulista, ainda não tinha chegado em Belo Horizonte. A primeira greve de operários durante a ditadura na Cidade Industrial já tinha acontecido em 68, mas eu não tinha acesso, eu nem sabia disso! Esse professor dividiu a sala em trabalhadores, patrões e jornalistas que iriam fazer a cobertura e indicou o jornalista que ficaria do lado dos patrões, o que seria do lado dos trabalhadores e um jornalista neutro (risos).

Entrevistador: Impossível esse jornalista!

- Impossível... Quando ele propôs esse exercício eu já fiquei querendo ser trabalhadora, mas no dia dessa simulação eu encontrei, antes de ir para aula, um amigo muito querido, que eu não via há algum tempo, e que falou para mim "vamos tomar uma cerveja e depois eu te deixo lá"... Com isso eu cheguei atrasada, atrasada e meio 'tocada' (risos), aí só tinha sobrado a vaga de jornalista neutro (risos). Justo a de jornalista neutro! (risos). Bom, teve lá a negociação e nós, os jornalistas, fizemos a cobertura. Só que os jornalistas não cobriam nada dos trabalhadores, tava tudo errado ali, e eu comecei a cobrir, mas com uma clara posição de defesa dos trabalhadores! O professor falava: "você não pode, porque você é neutra". Eu falei: "professor, não tem jeito de ser neutra". Mas eu falei da minha experiência ali, eu não sabia que não tinha como ser neutra... Eu era muito alienada!, embora com curiosidades, com questões, mas eu não sabia...

Entrevistador: O debate político não passava nem pela sua formação nem pela vivência cotidiana com sua família...

- De jeito nenhum. Eu falava pra ele: "não tem jeito de ser neutra", mas é porque eu não conseguia ser neutra (risos). Desde essa época eu aprendi que não tinha jeito de ser neutra, não existe essa posição! Então, essa experiência na sala de aula me fez gostar do Movimento Sindical, e aí o que acontece, eu fiquei desempregada, porque com a crise econômica estavam mandando todo mundo embora... Mas antes disso teve uma cena importante, muito importante, quando eu trabalhava em uma empresa metalúrgica, a Randazzo Amortecedores. Eu era psicóloga. Comecei como estagiária, durante muito tempo, depois fui promovida a psicóloga. Eu era responsável por fazer recrutamento, seleção e treinamento dos trabalhadores, o que me colocava em contato muito próximo com eles, muito direto; além disso eu participava de todos os Programas Assistenciais da empresa, todos. E havia vários: Auxílio Funeral, Auxílio Nascimento, Auxílio Formatura. Eu participava de tudo o que a empresa organizava: festas, excursões, casamentos, São João, eu dançava quadrilha com os trabalhadores. Eu me interessava genuinamente pelo trabalho. Eu ia muito no chão de fábrica e estava sempre em contato com eles. A primeira vez que eu fui ao Caraça foi com os trabalhadores da Randazzo. Essa proximidade com eles foi muito, muito boa! eu gostava muito disso. Em uma ocasião recebi uma lista com nomes de trabalhadores que tinham que ser demitidos por que eram comunistas. E eu joguei fora essa lista. Eu cheguei pra trabalhar tinha um envelope em cima da minha mesa com meu nome. Eu abri e só tinha uma lista com o nome dos trabalhadores e escrito embaixo: "esses trabalhadores são perigosos e devem ser demitidos, favor providenciar". E tinha nome de trabalhadores muito queridos, eu falei: "mas que absurdo!, trabalhador perigoso para quem?" Falei sem pensar, foi no impulso, eu rasguei a lista, rasguei em pedacinhos bem pequenininhos e ainda queimei, botei dentro do lixo e queimei os pedacinhos de papel. Muito tempo depois eu soube que era a tal de uma chamada na época Lista Negra - olha o nome da lista! - e que tinham psicólogos infiltrados em algumas empresas justamente para dar emprego a esses que eram demitidos em razão da Lista. Como era uma empresa relativamente pequena, o diretor tinha uma proximidade muito grande com todos os trabalhadores, ele participava das atividades também, jogava bola com eles. Comigo ele tinha um carinho muito especial. Ele conversava muito comigo e falava da dificuldade e do medo que ele tinha de vender a fábrica, porque a situação estava difícil e ele teria que demitir muita gente. Como de fato aconteceu, a COFAP (SP) comprou a fábrica, que mudou de nome, e muita gente foi mandada embora. Mas eu não era demitida porque o diretor gostava de mim. Estava me sentindo muito desconfortável, porque eu não admitia ninguém, não recrutava ninguém, não treinava ninguém, eu ficava à toa lá. Então, pedi para ser demitida.

No ano anterior havia acontecido um início de greve na empresa. Pouco antes de eu sair, chegando para trabalhar, deparei com os funcionários do lado de fora, todos! Perguntei: "o que está acontecendo aqui?" Segui caminhando em direção ao portão. Naquela época eu era loira, bem loira, e eles começaram a gritar "ah o cabelo de milho, não deixa o cabelo de milho entrar, fecha aí, segura, ela não vai passar!". Uma forma que eu achei violenta na época, eu fiquei muito assustada, eu não esperava de jeito nenhum. Consegui entrar na empresa no carro do diretor que também chegava naquele momento. Aprendi sobre as contradições ali, e sobre luta de classes também. Eu participei das negociações, mas ficava muito dividida nessas negociações, porque de fato eu conhecia os dois lados, e não sabia que posição tomar. Mas eu também não tive que tomar nenhuma posição, porque eu participava como espectadora apenas, tinha o Sindicato Patronal, tinha o Sindicato dos Trabalhadores, a direção da empresa, e eu ficava só assistindo as cenas!

Entrevistador: A negociação.

- A negociação. Isso foi pouco antes de eu pedir pra ser mandada embora. Ficando desempregada, eu comecei a dar aulas em um curso de Secretária (risos). Minha disciplina era Introdução à Administração no curso de Secretária Executiva. O nome do curso era Diretriz, funcionava ali na rua Espírito Santo [em Belo Horizonte]. Era um curso grande, tinha muitos alunos, e tinha todo tipo de disciplinas e a minha era considerada uma das disciplinas mais difíceis, porque também era mais técnica. Eu entendia um pouco de administração porque tinha feito o curso de especialização. Nesse curso eu tinha uma colega que fazia Mestrado em Administração. Ela me contou sobre o curso de Mestrado e eu falei "ah... agora eu sei o que é isso" (risos). Ela me disse que eu poderia começar a assistir umas aulas [no mestrado], que eu poderia ir lá e conversar com o professor. E assim fiz, comecei a cursar uma disciplina com o professor Fernando Coutinho Garcia, que foi um divisor de águas na minha formação. No ano seguinte me candidatei a uma vaga no processo seletivo, passei e tive bolsa, o que permitiu ficar em dedicação exclusiva. A FACE funcionava na rua Curitiba, e em frente funcionava o Tribunal de Justiça. Todas as manifestações, greves eram julgadas ali. Era muito fácil participar, bastava atravessar a rua, e o Fernando trabalhava com sindicalismo, com Movimento Sindical, ele tinha contatos com sindicalistas e apoiava os movimentos. No Mestrado o Fernando tinha contato com os trabalhadores, sindicalistas, e eu me envolvi muito com o novo sindicalismo em Minas. Conheci o João Paulo Pires de Vasconcelos, que era o Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de João Monlevade, em uma das aulas do Fernando. João Paulo foi fazer uma palestra para os estudantes. De fato, o novo sindicalismo em Minas começa com o Sindicato dos Metalúrgicos de João Monlevade; no sindicato BH-Contagem era um pelego que estava à frente. Os trabalhadores mais ativos no movimento ainda não tinham conseguido tirar o pelego. E o sindicato de João Monlevade teve uma força enorme, obteve muitas conquistas, conseguiu bancar greves longas, romper com o paternalismo da Belgo Mineira e politizar os trabalhadores. Quando ocorriam as greves o julgamento acontecia no Tribunal de Justiça, prédio em frente, íamos aos julgamentos e ficávamos sempre muito indignados com o ritual; especialmente no julgamento das greves dos trabalhadores da Belgo Mineira vinham muitos trabalhadores com seus familiares, a rua se enchia de gente... O meu grupo de pesquisa, coordenado pelo Fernando - não era na verdade um grupo de pesquisa instituído com o funcionamento atual, era o Fernando e os alunos, os orientandos dele - participava de tudo e houve uma greve em especial que nós discutimos com o João Paulo, que foi uma greve que eles construíram cada passo criteriosamente para cumprir os requisitos para a greve ser considerada legal. A legislação vigente na época impunha uma série de condições para a greve ser considerada legal e, até então, todas eram julgadas ilegais, mas nessa greve, em especial, os trabalhadores conseguiram cumprir todas as cláusulas condicionantes. No julgamento nós estávamos lá, era uma sala pequena muitas pessoas ficavam de pé, e muita gente na rua, nós ficávamos na sala torcendo muito, escutando cada argumento das partes. O advogado da empresa apresenta a proposta de não conceder nenhuma das reivindicações; a empresa negava todas as reivindicações; ela só não conseguiu negar a legalidade da greve. O juiz, por sua vez, não poderia votar contra a legalidade porque o sindicato havia cumprido todos os condicionantes, mas nenhuma reivindicação foi atendida, sequer aquela reivindicação básica de manter as conquistas anteriores, que era de praxe. E o advogado da empresa continua, "data venia, não sei o quê, não sei o quê, mas como nenhuma reivindicação foi atendida a greve não pode ser considerada legal". Havia essa cláusula! Todos ficamos muito arrasados... depois dessa greve veio o começo do fim, os patrões se fortaleceram, ainda vivíamos na ditadura, muita repressão, mas ainda demorou o fim, só que se recuperar disso...

Entrevistador: Era difícil.

- Foi muito difícil! Mas havia lideranças muito importantes! O João Paulo era uma liderança muito valorizada, muito forte, poderosa! Outro dirigente forte, do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Ipatinga, era o Leonardo. Ali no Vale do Aço foi o berço mesmo do novo sindicalismo em Minas e estas lideranças criaram a CUT/MG, que teve o João Paulo como seu primeiro presidente. Em Contagem, o Sindicato dos Metalúrgicos BH-Contagem era dirigido por um grupo que foi colocado lá pela ditadura militar, como interventor, estava lá há anos e no período chamado de abertura eles convocavam eleições, mas manipulavam (risos), ganhavam todas, não tinha jeito. E as empresas demitiam os trabalhadores que participavam das chapas de oposição que se apresentavam, assim como os trabalhadores que apoiavam, também eram demitidos e tinha muita briga. Não me lembro exatamente em qual eleição que foram com pedaços de pau e houve uma briga muito feia. Mas, finalmente, apoiados pelos metalúrgicos de João Monlevade, um grupo forte se organizou para tomar o Sindicato legalmente! Para concorrer às eleições era necessário ter um vínculo com o setor metalúrgico e todos estavam demitidos, então eles abriram uma serralheria (risos), mas eles não sabiam administrar, não sabiam nada. E a serralheria faliu. O Ignácio Hernandez conta isso no livro Memória Operária, no volume 2 [Hernandez, 2004], onde ele relata as greves de BH-Contagem. Mas na eleição seguinte eles conseguiram se organizar bem, se fortalecer, o momento político já estava mais favorável, e com uma campanha muito linda que foi feita, apoiados na época pelos metalúrgicos de João Monlevade, pela CUT/MG recém eleita e pela Convergência Socialista, uma tendência política dentro do PT. Duas lideranças de São Paulo se mudaram para Contagem justamente pra organizar essa chapa. Então venceram, com o apoio de Monlevade, da CUT/MG, de São Paulo, não dos Metalúrgicos de São Paulo, mas da Convergência.

Entrevistador: Da Convergência.

- De São Paulo, porque o sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo ainda era dirigido pelo Joaquinzão, um pelego que se eternizou nesse Sindicato. O apoio da Convergência era o José Maria de Almeida e o Oraldo Soares Paiva. Quem estava na cabeça da chapa era o Paulo César Funghi. O Paulo foi um trabalhador metalúrgico muito influente na época. Essa chapa então ganha e consegue transformar um Sindicato que era assistencialista num Sindicato de luta, num Sindicato muito poderoso, muito forte, que junto com trabalhadores de João Monlevade, de Ipatinga, a UTE (atualmente Sindiute) fizeram a diferença na luta dos trabalhadores de Minas Gerais. Houve um fortalecimento muito grande dessas Organizações todas. Como eu participei muito desse momento na época e estava muito envolvida com tudo, eu quis para minha dissertação falar sobre esse momento que o Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos passa de uma gestão pelega de anos para uma gestão que a gente chamava na época de sindicalismo autêntico (risos). Os autênticos passam a ter o poder ali, e aí a minha dissertação foi sobre essa história. Na verdade eu contei essa história de uma forma que... como é que eu vou explicar? Eu quase fiz história de vida sem saber que estava fazendo história de vida, porque as entrevistas que eu fiz com o Zé Maria, com o Oraldo, com o próprio Paulo Funghi, com o João Paulo, de Monlevade, eram entrevistas de história de vida, mas eu não tinha nenhum recurso, nenhum elemento, e nem imaginava o que isso era. Tudo muito intuitivo. Pedia para eles contarem a história e ouvia atentamente, sem muitas perguntas. Interessante que me lembrei agora de minha infância, que foi permeada por contações de histórias; acho que foi lá que aprendi a ouvir atentamente, buscando sentidos.

Entrevistador: E estava na Administração.

- Estava na Administração, exatamente! Estava na administração, mas o Fernando era muito crítico, trazia leituras, muitos autores de outras áreas, que me mudaram totalmente. Minha formação em psicologia foi muito conservadora, mas muito mesmo! Tanto minha formação na graduação e no pós Lato Sensu, quanto na minha prática profissional. Embora uma prática crítica, ainda assim eu trabalhava na empresa, eu era amiga do diretor.

Entrevistador: Entrou no carro dele pra passar na greve.

- Entrei no carro do diretor pra passar na greve, né? Mas o Fernando não, vamos pensar... O primeiro autor que o Fernando botou na minha mão e falou "leia!" foi Braverman, Trabalho e Capital Monopolista [Braverman, 2012], aí eu me tornei marxista (risos), porque até então...

Entrevistador: É nesse momento que a gente pode dizer que você tem uma inserção na política, na discussão política?

- Sem dúvida, foi aí! Embora eu não soubesse, mas era! Eu me atrevo a dizer que tinha já uma base de Psicologia Política porque eu tratava as questões sociais, o Movimento Social, mas a minha formação era em Psicologia, então eu tinha um olhar de Psicologia Social eu acho, não era um olhar administrativo de organização dos Movimentos, mas de compreender as dinâmicas políticas no interior do Movimento. Então, já era Psicologia Política, embora eu não soubesse. Porque eu não fiz... a minha dissertação eu nem tenho mais, faz tanto tempo. Não foi uma dissertação de Administração, de jeito nenhum, me lembro que eu usei Freud, usei Totem e Tabu, O futuro de uma ilusão, Moisés e o monoteísmo, enfim, eu trabalhei com as obras sociais de Freud. Então já havia essa dimensão psicopolítica mesmo. Em minha banca de defesa da dissertação estava o José Newton [José Newton Garcia de Araújo]5 e foi aí que eu me aproximo do José Newton e da Psicossociologia. Tive um professor da Economia, Antônio Maria da Silveira, que foi um professor muito querido, me ensinou muito sobre a filosofia econômica, Marx... enfim.

Durante o meu Mestrado, tive uma experiência muito reveladora: eu e o Fernando escrevemos um artigo que foi publicado numa revista espanhola. Nossa! Eu achei aquilo o máximo. Foi maravilhoso quando o Fernando chegou com a revista e estava lá o meu nome, aí eu falei "tenho que fazer mais isso". Só que não tinha estímulo. Na FAFICH [Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG] eu fiquei muito envolvida com a Extensão e com Pesquisa, sempre no Movimento Sindical, levando os alunos para conhecer o movimento dos trabalhadores, as fábricas. Meu envolvimento maior sempre foi com o movimento operário metalúrgico. Eu já tinha laços de amizade com essas lideranças e com esses Movimentos. Logo que entrei na universidade conheci também o Movimento dos Catadores, me envolvi muito com os catadores. Me envolvi muito com a população de rua também, por causa da Cristina Bove, que era amiga do João [João Batista Moreira Pinto]6, na época meu namorado e que me inseriu, vamos dizer assim, nesse campo dos Direitos Humanos e Sociais. A dissertação do João é "Direito e os Novos Movimentos Sociais", uma dissertação muito crítica. Então ele ampliou, vamos dizer assim, o meu contato com os Movimentos, que era só Sindical e só Metalúrgico, para outros. Comecei a trabalhar também com trabalhadores da construção civil, Sindicato da Construção Civil, com catadores e população de rua, sempre com esses públicos mais vulnerabilizados, mas organizados em sindicatos e associações. Isso é que era muito bom, um grande aprendizado, trabalhava pela organização dos movimentos, pelo seu fortalecimento e trabalhava junto, em uma perspectiva de não hierarquia, produzindo juntos; isso veio muito do contato com o João, ele já tinha essa trajetória de pesquisa/ação com os Movimentos, buscando construir protagonismos, formas de luta. De toda essa experiência vem o tema de minha dissertação.

Entrevistador: A partir do encontro com o José Newton que você se aproximou da França?

- Aí eu me aproximo da França, eu já estava na UFMG. Antes eu era professora na PUC, no curso de Administração de Empresas onde lecionei TGA - Teoria Geral da Administração, mas com uma visão muito crítica, que era a visão que eu tive no Mestrado. Braverman era leitura obrigatória, Marglin, "Para que servem os patrões" [Marglin, 1989], isso foi uma outra referência importante. Marx, lógico. Eu fazia uma crítica muito grande aos processos tayloristas e fordistas, e isso no curso de Administração da PUC. De manhã eu lecionava para os filhos de empresários e à noite para os trabalhadores. Sempre em uma perspectiva questionadora, que levasse os alunos a compreenderem os processos de exploração do capitalismo e a importância da organização dos trabalhadores. Bom, aí surgiu o concurso na UFMG, era um concurso para professor auxiliar, eu não tinha defendido ainda a minha dissertação, mas a vaga só exigia graduação. Me lembro que o tema de minha prova didática era horroroso... Não me recordo exatamente qual era, mas eu me lembro o autor que eu usei para preparar a aula, o José Henrique de Faria, que era um professor de administração muito crítico; seu livro "O Autoritarismo nas Organizações" [Faria, 1985] foi minha salvação nessa prova. Minha impressão era de que a banca não tinha gostado de minha aula, mas fui aprovada!, comecei a trabalhar. Os professores do setor de Psicologia do Trabalho, que aliás me receberam muito bem, com muita consideração e carinho mesmo, eram a Ana Lúcia Teixeira Barbosa e a Marina Machado Tavares. Eu perguntei a elas "mas como que eu vou dar aula de Psicologia da Indústria se eu trabalho com Movimento Sindical?" Elas falaram "então você fala sobre Movimento Sindical, não tem ninguém aqui que fala sobre isso, eu não falo, a Marina não fala, tem uma professora que talvez falasse, mas ela está na França em Doutorado", que era Beth Antunes [Maria Elizabeth Antunes Lima]7.

Eu conheci o José Newton nessa época e logo depois eu defendi a dissertação e o convidei para minha banca. A ida para a França foi uma surpresa: o programa de pós graduação em Psicologia da FAFICH havia assinado o acordo CAPES/COFECUB com a França que, entre outras coisas, previa a ida de dois professores para fazer doutorado pleno em Paris. Assim, eu e o professor Ricardo Augusto Alves de Carvalho, que entrou para a universidade no mesmo concurso que eu, fomos convidados a ir pela professora Marília Mata Machado, responsável pelo acordo.

A maioria de professores da área de Psicologia Social já tinha feito doutorado, e o convênio era com a área de Social. Diante do convite, eu disse: "claro que eu quero". Nesse processo de ir pra França nós fomos entrevistados por um professor francês que veio para avaliar os candidatos à bolsa, e se o programa tinha mesmo condição de levar pesquisadores para o doutorado. Quem me entrevistou foi o André Levy, que eu conhecia de leituras, e fiquei muito emocionada. Ao final da entrevista ele disse que tinha gostado muito de minhas propostas e que quem iria me orientar seria o Eugène Enriquez, e eu quase caí pra trás! Primeiro porque eu havia trabalhado com o livro da "Horda ao Estado" [Enriquez, 1990] na minha dissertação de Mestrado, era o que eu conhecia do Enriquez, e eu amava, eu achei maravilhoso esse livro.

Entrevistador: Então, no momento da dissertação você já estava envolvida com a Psicossociologia francesa?

- Eu estava envolvida, mas não sabia que era Psicossociologia francesa.

Entrevistador: Você já tinha leitura?

- Sim, eu não me lembro, eu acho que também foi o Fernando Coutinho que me apresentou o Enriquez, "da Horda ao Estado", e também já tinha lido alguma coisa do André Lévy.

Entrevistador: E como foi que essa tradição francesa foi ganhando importância na sua carreira acadêmica, na sua história?

- Quando fui para França trabalhar com Enriquez eu passei por situações interessantes: durante um curso com o Enriquez ele disse para a turma toda que ele ia me tratar por você porque eu era professora, uma colega dele, mas esse tratamento não seria o mesmo para os demais estudantes. Foi a primeira experiência clara de hierarquia, que até então eu não havia notado; eu não reparava essa dimensão na minha vida. Na Randazzo não reparava, existia, é claro, na própria PUC com os alunos não existia, na FAFICH muito menos, no Movimento Sindical também não existia. Não existia no sentido de que eu não me colocava em uma posição de saber mais pelo fato de ocupar cargos ou possuir título. Eu fui conhecer hierarquia lá, na Universidade, e isso me provocou um choque. Na universidade de Paris 7, onde estudei, eu fui dispensada de cursar o DEA pelo fato de já ter mestrado, então não precisaria cursar disciplinas, mas para ter maior contato com os professores e conteúdos cursei algumas matérias. Fui aluna da Jacqueline Barus-Michel, um nome importante na Psicossociologia. Eu tive um professor chamado Numa Murard, que me colocou muito próxima também dos Movimentos Sociais lá na França, especialmente o Movimento das Prostitutas. Fui aluna do Vincent De Gaulejac, que me introduziu no universo da pesquisa em história de vida. Quando eu tive aula com o Vincent, descobri que o que eu fazia era legítimo - "é isso que eu fiz no mestrado e não sabia"-; foi interessante, foi uma descoberta, então a importância foi essa, de legitimar uma prática que eu já tinha, acho que isso foi uma das coisas mais importantes, e o conhecimento. Sim, o conhecimento e o interesse por essa perspectiva epistemológica que vem da psicanálise, da política. Então eu tinha que escolher um campo, eu tinha que escolher um tema pra fazer uma tese e eu não tinha a menor ideia. Quando na disciplina do Vincent eu descobri que o que eu fiz podia ser feito e que eu poderia fazer melhor, e como aluna e orientanda do Enriquez – seu campo preferencial de estudos sempre foi o poder - eu queria estudar o poder. Onde eu iria estudar o poder senão no Movimento Sindical? No Mestrado estudei a Conquista e Manutenção do Poder na história do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de BH-Contagem. Não estudava com o Enriquez, mas já era o tema poder. O título da tese do Doutorado foi "Da representação ao poder: um estudo sobre trajetórias de vida de dirigentes sindicais no Brasil". Esta tese foi publicada em livro na França, pela editora Septentrion.

Eu estudei o poder na trajetória política daquelas pessoas que no momento de minha pesquisa ocupavam postos importantes na administração pública, na administração do país, do Estado e da cidade, mas que tinham começado a sua vida na militância de base, não institucional. Eu queria compreender a trajetória da base ao sindicato e dali para outras instâncias institucionais de poder. Como essa pessoa, que hoje está ali, por exemplo, o Célio de Castro, como essa pessoa que hoje está no governo da cidade começou sua trajetória? Algumas lideranças eu já conhecia e queria conhecer melhor a história, uma delas foi o Oraldo, que na época ocupava um cargo importante no partido e escutei história de vida do Oraldo. Outra história foi a da Cida [Maria Aparecida de Miranda] de Unaí, que na época ocupava um posto da Secretaria Estadual de Abastecimento, e que era uma referência, era um nome importante no Movimento Sindical rural, e eu achei ótimo, que era uma mulher. Outras pessoas foram indicadas e aceitaram participar de minha pesquisa. Eu escutei histórias de vida deles todos buscando entender justamente como se dava a transformação da pessoa, se é que se dava uma transformação, dos seus valores, nas suas práticas, na sua ideologia quando elas ocupavam posições de poder. Por isso eu não queria uma visão institucional, não queria que já começasse na instituição, mas antes, como é que foi essa trajetória.

Entrevistador: No meu tempo de graduação, no NPP, tinha o História de Vida e Ação Política, então, foi lá que eu conheci a história de vida, que foi introduzida por você. Pensando o método história de vida, da história oral, como você compreende a importância dele para o trabalho em Psicologia Política?

- Um comentário antes de responder sua pergunta. Na França, a Jacqueline Barus-Michel, era amiga do Alexandre Dorna, e conhecendo meu trabalho, um dia ela falou "ah, você faz Psicologia Política", eu perguntei: "faço?", "faz, eu vou te apresentar um amigo que é...", não me lembro que lugar que ele ocupava, mas ele era editor da revista8. Nos conhecemos finalmente, mas desde essa época eu não entendia muito o que ele escrevia. Eu tentei ler alguns artigos dele, mas não fazia eco no que eu trabalhava, no que eu pensava, inclusive sobre os Movimentos, então eu não tive uma aproximação grande com o Dorna, mas mantivemos um relacionamento amigável durante a minha estadia lá na França. Ele me convidou uma vez para ir em Caen, onde ele morava, para eu falar sobre o meu trabalho com os Movimentos Sindicais. Quando eu voltei do Doutorado eu quis oferecer essa disciplina de Psicologia Política. Eu considerava importante e não havia nada a esse respeito na Psicologia da FAFICH. A Beth Antunes já tinha voltado do seu doutorado, e nós já tínhamos transformado a Psicologia da Indústria em Psicologia do Trabalho, já tínhamos marcado a nossa diferença nesse campo em relação às demais perspectivas, mas eu queria alguma coisa diferente também, eu queria poder passar o conhecimento que eu tinha dos Movimentos Sociais para os alunos e eu não sabia onde; foi então que ofereci essa disciplina como optativa.

Em relação à história de vida, eu acho que a história de vida é um instrumento muito potente para que a gente possa compreender a história social concretamente, como ela se dá concretamente, não por meio de conceitos, não pela lógica normativa que regula as relações, mas como as relações de fato acontecem no mundo do trabalho, em qualquer mundo. No mundo do trabalho, no mundo político, não que sejam diferentes, mas numa atuação política mais direta. Na direção de Sindicatos e Organizações de Trabalhadores e Associações e no mundo do trabalho - foi o que eu consegui na minha tese, que venho conseguindo eu acho até hoje, ter essa compreensão das bases materiais da existência como constituidoras dos processos de subjetivação. Compreender a produção social dos sujeitos. Pela história do sujeito você compreende a base material de existência e as dinâmicas psicossociais que dela fazem parte e que nela, por ela, apesar dela se constroem.

Entrevistador: Pensando que você traz a disciplina Psicologia Política para a UFMG, você insere na verdade essa discussão como uma disciplina no curso de Psicologia... A Maritza Montero argumenta, em um artigo da Revista de Psicologia Política (Montero, 2009) que para pensar a Psicologia Política é importante delimitar o que é esse campo. Se você tivesse que delimitar esse campo, a Psicologia Política, como que você o conceberia?

- Na verdade quando o Marco [Marco Aurélio Máximo Prado]9 chegou, ele assumiu essa disciplina de Psicologia Política e eu comecei a construir um campo próprio que era trabalho e política, vamos dizer assim. Justamente pela minha formação e por essa interface entre trabalho e política eu não sei te dizer sobre um campo específico para Psicologia Política. Eu acho que tem uma transversalidade e que ela é importante, mas eu tenho dúvidas, eu não tenho ainda uma ideia bem formulada sobre um campo específico da Psicologia Política, porque, na minha concepção, as disciplinas são transversais e no campo da Psicologia Social a interdisciplinaridade e a transversalidade dos saberes é imprescindível. Então, estabelecer um campo específico pode perder em complexidade; por exemplo, na própria Psicologia do Trabalho, embora, historicamente, a Psicologia do Trabalho se constitua como um campo, eu não o concebo assim; em minha prática, minhas pesquisas, esse campo do trabalho é permeado por várias outras disciplinas e delas necessita para nos aproximarmos da complexidade que o trabalho possui. Na verdade, o trabalho é um pretexto pra eu estudar o que acontece no mundo, por isso que eu não sei dizer da Psicologia Política, como seria esse campo exclusivo. Mas dentro da minha história eu diria que é o campo dos Movimentos, que é o campo do dissenso, pegando o [Jacques] Rancière. Mas que é igualmente da Psicologia Social, da Psicologia do Trabalho, da Sociologia, etc...

Entrevistador: Porque se a gente pensa na sua formação, a Psicologia do Trabalho tem um papel muito importante, e ao mesmo tempo você tá trabalhando, ainda mesmo sem saber, lá na dissertação, com Psicologia Política, então essas duas áreas vão se articulando a todo momento na sua trajetória.

- Exatamente! E exatamente por isso eu não consigo pensar fora, isso que eu falo da concretude, eu tenho dificuldade de pensar fora dessa experiência minha com a política transversalizando tudo que eu faço, daí eu acho isso importante. Mas por outro lado eu entendo também que na medida em que não se delimita se fragiliza, não tem visibilidade.

Entrevistador: A Associação Brasileira de Psicologia Política nasce, de certa forma, para delimitar um pouco o campo. As pessoas já faziam Psicología Política, o Leôncio estudando comportamento eleitoral há muito tempo, o Salvador comportamento político há muito tempo... Como se dá sua presença na Associação? Você chegou a ser secretária da diretoria, como você chega nesse espaço?

- Eu chego por meio do Marco, quando o Marco cria o NPP e eu passo a participar, era natural a minha participação no NPP, eu acho que eu e ele chegamos a dividir a disciplina Psicologia Política.

Entrevistador: Eu fiz com vocês dois.

- Conosco. E depois ficou só com o Marco, porque eu queria marcar mesmo o meu lugar ali no trabalho, pra mim era importante fortalecer esse campo no curso de Psicologia e foi quando, junto com algumas alunas - dentre elas Aline Pacheco Silva, Carolyne Reis Barros que hoje é professora de Psicologia do Trabalho no curso de Psicologia da UFMG -, criamos o Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão em Psicologia do Trabalho-Labtrab10. Foi quando eu ainda estava no NPP que aconteceu o Congresso, o primeiro Simpósio que eu participei foi aquele de Bauru.

Entrevistador: Sim, foi o Terceiro Simpósio Brasileiro de Psicologia Política.

- Na FAFICH também teve alguma coisa?

Entrevistador: Acho que antes de ter a Associação os estudantes fizeram um Colóquio de Psicologia Política na UFMG.

- Isso, isso, e eu participei, eu participei de uma mesa, eu me lembro disso. Acho que o Marco nem estava lá ainda. Foi, a Nathália Alves e o Augusto Gallery.

Entrevistador: Acho que a Cássia [Cássia Beatriz Baptista]11

- Eu me lembro da Nathália e do Augusto, me lembro bem deles, da Cássia eu me lembro vagamente, eu lembro da Cássia no Grito dos Excluídos. Eu e o João estávamos no Grito dos Excluídos e encontramos a Cássia, que era minha aluna na época, e eu observei: "que legal, tem aluna aqui". Depois a Malu [Maria Luzia Nogueira]12 me conta que a Cássia falou para ela: "que legal, tem uma professora aqui"; ela disse que aquilo foi muito novo pra ela, que nunca tinha visto professor em manifestação, e parece que ela participava ativamente. Mas, enfim, eu participei desse Simpósio, depois no NPP eu fui em Bauru, e adorei aquela experiência, conhecer as pessoas. Ali eu conheci o Sandoval [Salvador Antonio Mireles Sandoval]13, conheci o Enock [Enock Pessoa]14, o Alessandro [Alessandro Soares Silva]15. Eu não conhecia ninguém, então esse Colóquio, vamos dizer assim, fortaleceu a minha participação, e na Associação, quando o Cornelis [Cornelis Johannes Van Stralen]16 assumiu a presidência, eles me convidaram e eu aceitei, mas foi turbulenta essa gestão, foi complicada, eu nem me lembro muito bem como foi que acabou essa gestão.

Entrevistador: Vocês organizaram o quarto Simpósio, que depois de Bauru foi o da UFMG.

- Que o Dorna participou.

Entrevistador: Que o Dorna foi.

- O Dorna foi, eu me lembro que eu o convidei, nós organizamos, foi legal, me lembro que foi muito bom. Mas depois eu saí do NPP e saindo do NPP eu ainda participei de um grupo na ANPEPP [Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia], que tinha a Lúcia Rabello [Lúcia Rabello de Castro]17, o Marco, que foi a reunião de Florianópolis.

Entrevistador: Que era o GT de Psicologia Política.

- O GT de Psicologia Política, exatamente, participei ali.

Entrevistador: Você entrou no GT de Psicologia Política, então, depois que você já estava inserida no NPP?

- Depois do NPP, o NPP foi o berço, vamos dizer assim, de uma vinculação institucional que não existia até então.

Entrevistador: Desde as primeiras discussões do GT de Movimentos Sociais da ANPEPP, desde os anos 80 e 90, um elemento muito importante da discussão no GT era a inserção da Psicologia Política nos cursos de graduação e pós-graduação. Desde lá já se discutia o desafio da inserção da Psicologia Política na graduação e na pós-graduação. E aí, numa pesquisa que eu fiz recentemente, eu fui ver quem na Psicologia brasileira que discutia temas políticos afirmava a Psicologia Política como área de atuação, e dos quase 200 pesquisadores que selecionamos, apenas onze identificavam a psicologia política no lattes (Costa, 2018). Nós olhamos todos os professores, em todos os programas de pós-graduação brasileiros em Psicologia e em Psicologia Social.

- Eu quero até saber quem são esses.

Entrevistador: A gente tem quase 20 anos de Associação e a gente tem esse quadro. É mesmo um desafio ainda para Psicologia Política se inserir na graduação e na pós-graduação. O que você acha que leva a essa dificuldade de inserção desse debate da Psicologia Política na Universidade, em termos de inseri-la como disciplina na graduação, na formação no Brasil?

- Eu acho que são poucos os professores, pelo menos nos lugares que eu conheço, que têm essa identificação com a Psicologia Política e que não têm, vamos dizer assim, um campo seu próprio que lhe permita difundir a Psicologia Política, oferecer disciplina de Psicologia Política. Acho que esse é um ponto, porque vários professores trabalham em uma perspectiva política, são identificados, mas transversalmente, não como campo principal.

Entrevistador: Uma discussão Psicopolítica.

- É, nos seus trabalhos, mas o que prevalece é o objeto e não o campo, tenho essa impressão.

Entrevistador: Uma coisa que nestes debates se colocava, e aí é muito legal a sua trajetória, que é completamente interdisciplinar, é de se tratar de um campo interdisciplinar, um campo que ainda que introduzido no Brasil via Psicologia Social - em outros países está na Ciência Política, na Sociologia, não necessariamente na Psicologia - é um campo historicamente muito marcado pela interdisciplinaridade. Assim, um debate que muito se fez é que nossas formações são muito disciplinares! Os nossos cursos são muito disciplinares! Então, isso dificultava também a inserção de uma disciplina obrigatória de Psicologia Política nos cursos. Como você vê essa discussão da interdisciplinaridade na formação?

- Pra mim é essencial. Não tem como construir uma boa formação de outro modo; é necessário sair das caixinhas, ser tudo junto e misturado! Não vejo outra maneira de formar, porque é formar, não é capacitar pra usar uma técnica, para ser especialista. Tenho o maior medo dos especialistas (risos). Não é isso! Formar é outra coisa, não é normatizar, não é ensinar as normas que regulam determinadas disciplinas, um campo, teorias e metodologias que não se colocam historicamente, que não construam interfaces. É justamente você conseguir fazer as interfaces disciplinares na sua reflexão, você trazer para sua reflexão, para suas análises e para sua prática esses campos diversos, é isso que possibilita, eu acho, o pensamento que te oferece mais recursos para você entender o que você está pesquisando, buscar entender o mundo em sua complexidade Então, essa formação interdisciplinar é mais do que desejável, é necessária.

Entrevistador: Pensando, Vanessa, que você traz que a Psicologia Política está muito atravessada pela Psicologia do Trabalho, se você fosse falar desse campo da Psicologia do Trabalho, que você tem mais envolvimento, que perspectivas teóricas hoje você pensa como fortes, como você enxerga a Psicologia do Trabalho hoje?

- Olha, a Psicologia do Trabalho é um campo em permanente tensão com a Psicologia Organizacional. A Psicologia Organizacional a gente costuma dizer que ela é muito envergonhada, então, ela quer sempre ficar colada na Psicologia do Trabalho, a POT [Psicologia Organizacional e do Trabalho]. Eu me filio à Psicologia Social Crítica do Trabalho, que é a mesma perspectiva que professores que eu admiro muito estão envolvidos, em diferentes campos: no trabalho propriamente dito, mas na saúde coletiva, na saúde do trabalhador, nos Movimentos Sindicais, nas associações, nas marginalidades. Então, é uma Psicologia que tem uma base materialista e que dialoga e está em interface com diferentes disciplinas, mas raramente com aquelas disciplinas gerenciais porque é uma incoerência situar organizacional e trabalho juntas, uma vez que o conflito inerente ao capitalismo é o conflito capital e trabalho, e a organizacional é uma psicologia adaptativa, que não interroga os dispositivos de exploração/opressão postos em prática pelo capital. A Psicologia do Trabalho, com a qual eu me identifico não é a Psicologia do capital, não é a Psicologia gerencial, por isso é sempre tensa essa relação. Mas temos que marcar essa posição, que é epistemológica, teórica e metodológica. Nós conseguimos dar esse passo, nós, um grupo grande de pesquisadores que têm igualmente uma perspectiva interdisciplinar e, no meu caso, cada vez mais eu me aproximo de reflexões e estudos do campo dos Direitos Humanos, porque cada vez mais o mundo do trabalho é permeado por violações sistemáticas de todo tipo. Então, essa interface é obrigatória! O fato de ter realizado um pós-doutoramento com Dominique Lhuilier no Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), em Paris, e ter me aproximado também de Yves Schwartz me possibilitou um aprofundamento dos estudos referentes às abordagens clínicas do trabalho e abriu mais uma interface de pesquisa em Psicologia do Trabalho, especialmente no diálogo com a Psicossociologia do Trabalho e Ergologia. Trata-se de uma interlocução que tem se mostrado muito valiosa para sustentar nossas reflexões e nos orientar em campo.

Entrevistador: E aí nesse sentido, pensando no contexto atual do país, com o fortalecimento da direita, que agendas de pesquisas você acha que são importantes, que temas de investigação que você consideraria como temas importantes para serem estudados no nosso contexto brasileiro?

- Nossa, hoje eu acho mais do que nunca, tem que se estudar os meandros do poder, os bastidores, como essa é uma ação política no sentido do exercício do poder, em todas as suas dimensões de assujeitamento: de classe, raça, gênero. De fato, nós precisamos estudar, em profundidade, o exercício do poder - e as resistências, claro, mas enquanto formas de poder também -, como isso tem se dado em todas as suas manifestações. Eugène Enriquez tem um livro que eu considero muito atual: As Figuras do Poder [Enriquez, 2007]. Estudar as figuras do poder é essencial atualmente, em todos os campos, porque você tem essas figuras do poder que são diversas, com uma prática diferenciada, em todos os campos sociais. Então, estudar essa forma... o poder mortífero. E os processos de subjetivação neoliberais e punitivistas que estão em cena. Eu acho que o Enriquez é muito atual!, sobretudo nesse momento que a gente vive. Uma vez eu ouvi dele em uma conferência sobre totalitarismo algo assim: "a besta só está dormindo, esperando o momento propício para retornar". Ele faz um alerta, que é o que a gente vê acontecendo, a volta da besta em todos os espaços, não só no Brasil, essa extrema-direita, é isso, a besta do fascismo.

Entrevistador: Neste sentido, é interessante pensar sua trajetória: que vai do estudo do sindicalismo, movimento que teve importante papel na luta pela redemocratização do país, que sofreu de maneira intensa com o fortalecimento do neoliberalismo, então quando a gente pega o sindicalismo na história brasileira dos anos 90 a gente tem o neoliberalismo enfraquecendo! muitas...

- Massacrando! os Sindicatos.

Entrevistador: Massacrando os Sindicatos... e depois você vai se inserir num debate de Direitos Humanos, com a prostituição, com os catadores de material reciclável, com o sistema prisional, que você tem estudado muito... Qual a importância para você destes temas no momento que você começou a estudá-los e a importância de estudá-los no contexto brasileiro atual?

- Na verdade estudar o trabalho é um pretexto para chegar nas Instituições e nas Organizações da sociedade, especialmente aquelas violadoras. Então, de fato, eu fui me afastando do Movimento Sindical, na medida em que ele foi se transformando, enfraquecendo, onde as pautas do movimento também se transformaram. Os Sindicatos ficaram enfraquecidos também pela adesão dos trabalhadores às políticas gerenciais, pela transformação do mundo do trabalho trazida pelas novas tecnologias, pelos acordos que muitas direções acabaram fazendo com as empresas, por um certo peleguismo disfarçado, pela precarização do trabalho, etc, etc. O Sindicato tentando se adequar às transformações do capital perde o rumo. Como eu já estava também envolvida em outros movimentos, em outras lutas, eu segui esse caminho dos Movimentos emergentes, os Movimentos que tinham outras propostas de transformação e lugares onde eu via essa face mortífera do poder de que fala Enriquez muito nitidamente! E fui cada vez me envolvendo mais com essas Instituições como, por exemplo as prisões. Então, estudar o trabalho nas prisões é um pretexto para entender o funcionamento dessas Instituições que são Instituições que funcionam da maneira que as conhecemos hoje desde o século XVII... Eu tenho uma curiosidade muito grande pra entender essas Instituições nos seus diferentes contextos históricos. Ela vai se transformando, mas agora o que a gente tem observado é que está havendo um retorno às prisões como locais de punição exclusivamente, de segregação. Já não se tem mais, nem por cinismo, uma justificativa da pena como ressocialização, como reeducação... as prisões viraram agora depósito daquelas subclasse que o Robert Castel chama de "inúteis para o mundo", que Agamben [Giorgio Agamben] nomeia "os matáveis", enfim, que Engels já falava, em 1845 dessa categoria de seres supérfluos em "A situação da classe operária na Inglaterra" [Engels, 2008]. Enfim, é isso, esse momento é o momento em que uma grande parcela da população não tem mais utilidade, e o que se faz com ela? Prende. Então, é isso, o que eu acho importante é compreender a relação entre os sistemas punitivos e o sistema de produção de cada momento histórico, porque cada sistema econômico descobre um sistema punitivo que lhe seja característico (Rusche & Kirchheimer, 2004). Isso eu acho que é Psicologia Política, então, eu preciso colocar no meu Lattes (risos).

Entrevistador: Esse é um tema complexo, uma pergunta difícil que a gente tem tentado responder sem saber muito como responder. O que você acha que propiciou o fortalecimento da direita no Brasil? O que tem propiciado o fortalecimento da direita na Europa? Temos vivido um quadro complexo de queda de governos de esquerda na América Latina, que buscaram construir projetos mais igualitários de sociedade... O que você acha que contribuiu para esse fortalecimento da direita nesses últimos tempos?

- Essa é a pergunta mais difícil! Eu realmente não sei dizer, mas eu concordo com algumas análises que falam de uma construção não do cidadão de direitos, mas do cidadão consumidor. O que aconteceu na Argentina e no Brasil também. Esse cidadão consumidor quando perde um pouco de seu poder de consumo, quando pelas tramas do mercado financeiro ele percebe que está voltando para um lugar de onde ele não queria voltar, vamos dizer assim... Quem promete que vai melhorar de vida, o discurso é esse... O discurso da direita é muito poderoso nesse sentido de tranquilizar as pessoas, de garantir às pessoas um modo de vida, mas mesmo que não se concretize, resta a esperança, a crença e aí entra também o poder das igrejas neopentecostais. Eu acho que temos que estudar muito sobre ideologia, ilusão religiosa para poder compreender, eu não tenho elementos para fazer essa análises, só estou dizendo que concordo com essas análises que Enriquez já fazia em seu livro "Da horda ao Estado".

Entrevistador: Como você traz o estudo do trabalho como um pretexto para entender os mecanismos do poder nas Instituições, nesse sentido, talvez seja importante a Psicologia do Trabalho, a Psicologia Política nesse momento histórico para pensar o resgate da democracia, para pensar um outro projeto de sociedade.

- Isso é essencial, porque quando a gente consegue, por meio de um trabalho no qual o trabalhador se apropria do seu poder, do seu saber, ele vira outra pessoa, ele se desloca da situação de subalternidade na qual foi colocado, ele sai de uma situação de impotência e de culpabilização pessoal. O que a gente busca muito nas nossas intervenções... eu trabalho sempre com pesquisa-intervenção, não é separado, é justamente trabalhar junto com os trabalhadores para que eles se reapropriem de uma posição de construtor do mundo, de importância, de autonomia, porque assim ele consegue sair dessa posição de dependência, de subalternidade, de medo, porque ele sabe do seu poder, ele sabe que ele é um construtor do mundo, que ele faz parte desse mundo e tem uma parte importante nesse mundo; seria uma busca pela emancipação, mesmo que essa noção gere muitas controvérsias. Então, o estudo do trabalho nesse sentido é essencial, eu vejo assim.

Entrevistador: Para a gente já ir caminhando para o final, pensar a nossa trajetória significa pensar uma relação entre passado e presente. Como você percebe a importância de sua trajetória acadêmica e pessoal? Trajetória que começou lá no interior, na ditadura, vendo aqueles sujeitos amarrados no caminhão, que marca até hoje sua história, sua subjetividade; que passa por uma jovem que não sabia muito bem o que estava vivendo na ditadura, na Universidade, no Sindicato, quando trabalhava na empresa, mas vai estudar sindicalismo, um ator muito importante; e depois vai estudar outras pautas de direitos humanos muito importantes. Então, como você percebe a importância dessa trajetória no seu pensamento atual, nas suas ações atuais, como que você vê essa relação na sua história entre o passado e o presente?

- Eu acho sempre que eu sou uma pessoa existencialmente muito melhor, cada vez que eu reflito especialmente sobre minha carreira acadêmica (risos). Mesmo agora, conversando com você sobre detalhes que eu nem me lembrava mais, eu vejo uma pessoa que se sente responsável pelo mundo, por contribuir, por fazer alguma coisa para ajudar a mudar o mundo (risos), por estar nessa luta. Eu me sinto mais fortalecida, com mais elementos, recursos, conhecimento, reconhecimento mesmo para estar de uma forma mais qualificada nas lutas nas quais eu sempre estive (risos). Eu acho que é isso, essa trajetória me qualifica como pessoa, como militante, como profissional, e quando eu vejo essa enorme quantidade de aluno/as que eu formei é muito bom, porque eu vejo que essa turma toda está aí, com os mesmos valores que me conduziram, o valor da liberdade, da igualdade, da horizontalidade. Então, eu acho que é isso, essa trajetória me qualifica para a luta, e, especialmente, nesse momento.

Entrevistador: E se a gente pensa essa trajetória acadêmica e vê hoje, por exemplo, um enfrentamento pela existência da Universidade é muito legal ver uma trajetória que formou muita gente, que formou muita gente nessas utopias da igualdade, da liberdade, da horizontalidade, que introduz um pensamento psicopolítico num momento em que na UFMG isso ainda não existia como disciplina. Então, assim, muito te agradecer pela entrevista e dizer que na nossa formação você teve um papel muito importante.

- Oh meu querido, mas é isso... Um artigo que eu acabei de escrever com o Zé Newton, eu quis fazer as considerações finais, eu nem mostrei pra ele, quis fazer uma consideração abolicionista, bem abolicionista! Porque tem que acabar com essas instituições de segregação, que marcam a diferença, que oprimem, que destroem as pessoas e, aí, a gente tem que lutar muito para Universidade se manter, porque é na Universidade que a gente consegue fazer isso. Se não fosse meu lugar na Universidade eu não conseguiria publicar um artigo onde eu falo contra a existência das prisões. Então, a gente tem é que ficar nessa luta para formar cada vez mais alunos assim iguais a você e toda essa turma que participou do NPP, que construiu e continua na luta no Labtrab, e fortalecer a Universidade porque é o lugar que nós podemos fazer, não deixar nos calar de jeito nenhum.

Entrevistador: Que mensagem você deixaria para os leitores da Revista Psicologia Política, para os sócios da Associação Brasileira de Psicologia Política, para as pessoas que ainda não estão na Associação?

- Não sei (risos), essa é a mais difícil de todas! Essa eu vou pular, eu tenho que pensar (risos), não posso falar qualquer coisa. Porque eu acho, muito honestamente, eu acho que esse negócio de mensagem uma coisa muito desigual. Eu não tenho que falar para as pessoas isso ou aquilo, eu acho que eu tenho é que mostrar que a gente, especialmente nós da Universidade pública, temos que lutar e temos que partir para a briga mesmo e de diferentes formas, das formas que forem possíveis e necessárias. Então, vamos dizer assim, chamando isso de mensagem, é pela defesa intransigente da Educação, da Universidade pública gratuita e de qualidade, é isso, a gente tem que estar envolvido nessa luta permanentemente.

Entrevistador: Muito obrigado!

- Obrigada a você, foi ótimo, uma honra. (risos).

 

Referências

Barros, V. (1992). "Relações de poder e o caráter subjetivo: um estudo de caso no Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de BH-Contagem". Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Administração (Conceito CAPES 4). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG.         [ Links ]

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Recebido em: 27/08/2019
Aprovado em: 24/10/2019

 

 

1 O projeto tem como objetivo trazer para o ambiente universitário, narrativas autobiográficas emblemáticas do cenário político e social, propiciando momentos de debate e reflexão sobre a passagem público/privado. O projeto coloca em diálogo, no espaço acadêmico, as experiências de ativistas e militantes de movimentos sociais que tiveram importantes atividades de mobilização social e de organização política no Estado do Rio Grande do Sul. Até o presente momento já publicou sete vídeos que estão disponíveis em: https://www.youtube.com/channel/UCUKFMPem_tajp-soeoPEL1w/videos.
2 Atual Avenida Carlos Luz.
3 Luis Flávio Silva Couto, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais.
4 Vanessa Barros nasceu na Cidade de Três Corações, onde residia com os pais neste momento de sua vida.
5 José Newton Garcia de Araújo, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais..
6 João Batista Moreira Pinto, professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e professor licenciado da Escola Superior Dom Helder Câmara.
7 Maria Elizabeth Antunes, professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais.
8 Les C@hiers de psychologie politique: http://lodel.irevues.inist.fr/cahierspsychologiepolitique
9 Marco Aurélio Máximo Prado, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
10 Em 2016 este laboratório passou a se chamar Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos.
11 Cássia Beatriz Baptista, professora da Universidade Federal de São João Del Rei.
12 Maria Luzia Nogueira, professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
13 Salvador Antonio Mireles Sandoval, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e ex professor da Universidade Estadual de Campinas.
14 Enock Pessoa, professor da Universidade Federal do Acre.
15 Alessandro Soares Silva, professor da Universidade de São Paulo.
16 Cornelis Johannes Van Stralen, professor aposentado pela Universidade Federal de Minas Gerais, também foi entrevistado por nós para a Revista Psicologia Política (Costa & Machado, 2018).
17 Lúcia Rabello de Castro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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