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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.spe São Paulo dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Comportamento legislativo e financiamento eleitoral: o caso do desastre da samarco

 

Legislative behavior and electoral financing: the samarco disaster case

 

Comportamiento legislativo y financiamiento electoral: el caso de desastre de samarco

 

Comportement législatif et financement électoral: le cas de la catastrophe de samarco

 

 

Roberta Carnelos ResendeI; Igor AmaralII

IResende é doutora em Ciência Política, pesquisadora CAPES, bolsista do Programa Nacional de Pós-doutorado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo/RS, Brasil / roberta_carnelos@yahoo.com.br
IImestrando em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo/RS, Brasil / igor.amaral@live.com

 

 


RESUMO

O presente estudo centra-se na ocorrência dos desastres socioambientais, que estão intimamente relacionados às decisões administrativas e à priorização de resultados econômico-financeiros feitas pelos tomadores de decisão das grandes empresas. O objetivo do artigo é analisar o comportamento dos deputados estaduais do Espírito Santo em um momento crítico, qual seja, o desastre da barragem de Mariana, provocado pela Samarco/Vale/BHP. Busca-se, especificamente, apresentar um panorama geral da produção legislativa, e observar de que maneira o comportamento destes parlamentares pode estar associado às doações de campanha realizadas pelo grupo empresarial causador do desastre. Foram analisadas as 25 proposições apresentadas pelos deputados acerca do caso em análise, entre os anos de 2015 e 2019. Os resultados encontrados sugerem relação entre comportamento legislativo e financiamento de campanha. Os políticos financiados buscaram, sobretudo, interromper as investigações e solicitar o retorno das atividades da Samarco.

Palavras-chave: Comportamento legislativo; Financiamento eleitoral; Assembleia Legislativa do Espírito Santo; Desastre de Mariana; Samarco.


ABSTRACT

This research focuses on the occurrence of socio-environmental disasters, which are closely related to administrative decisions and the prioritization of economic and financial results made by decision makers of large companies. The purpose of the paper is to analyze the behavior of state representatives of Espírito Santo in a critical moment, namely the Mariana dam disaster, caused by Samarco / Vale / BHP. Specifically, it seeks to present an overview of legislative production, and to observe how the behavior of these parliamentarians may be associated with campaign donations made by the business group that caused the disaster. We analyzed the 25 propositions presented by the deputies about the case under analysis, between 2015 and 2019. The results suggest a relationship between legislative behavior and campaign financing. The funded politicians sought, above all, to interrupt the investigations and to request the return of Samarco's activities.

Keywords: Legislative behavior; Electoral financing; Legislative Assembly of Espírito Santo; Mariana's disaster; Samarco.


RESUMEN

El presente estudio se centra en la ocurrencia de desastres socioambientales, que están estrechamente relacionados con las decisiones administrativas y la priorización de los resultados económicos y financieros realizados por los tomadores de decisiones de las grandes empresas. El propósito del paper es analizar el comportamiento de los representantes estatales de Espírito Santo en un momento crítico, a saber, el desastre de la presa Mariana, causado por Samarco / Vale / BHP. Específicamente, busca presentar una visión general de la producción legislativa y observar cómo el comportamiento de estos parlamentarios puede estar asociado con las donaciones de campaña realizadas por el grupo empresarial que causó el desastre. Analizamos las 25 propuestas presentadas por los diputados sobre el caso bajo análisis, entre 2015 y 2019. Los resultados sugieren una relación entre el comportamiento legislativo y el financiamiento de campañas. Los políticos financiados buscaron, sobre todo, interrumpir las investigaciones y solicitar el regreso de las actividades de Samarco.

Palabras clave: Comportamiento legislativo; Financiamiento electoral; Asamblea Legislativa de Espírito Santo; El desastre de Mariana; Samarco.


RÉSUMÉ

Cette étude se concentre sur la survenue de catastrophes socio-environnementales, étroitement liées aux décisions administratives et à la hiérarchisation des résultats économiques et financiers des décideurs des grandes entreprises. L'objectif de l'article est d'analyser le comportement des représentants de l'État d'Espírito Santo à un moment critique, à savoir la catastrophe du barrage de Mariana, causée par Samarco / Vale / BHP. Plus précisément, il cherche à présenter un aperçu de la production législative et à observer comment le comportement de ces parlementaires peut être associé aux dons de campagne effectués par le groupe d'entreprises qui a causé la catastrophe. Nous avons analysé les 25 propositions présentées par les députés sur le cas sous analyse, entre 2015 et 2019. Les résultats suggèrent une relation entre le comportement législatif et le financement des campagnes. Les politiciens financés ont surtout cherché à interrompre les enquêtes et à demander le retour des activités de Samarco.

Mots-clés: Comportement législatif; Financement électoral; Assemblée législative d'Espírito Santo; La catastrophe de Mariana; Samarco.


 

 

Introdução

No dia 5 de novembro de 2015, por volta das 16h 20, a barragem de Fundão, na unidade de Germano, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, entrou em colapso e rompeu-se. Operado pela empresa Samarco, o tanque de resíduos de mineração expeliu mais de 80 milhões de toneladas de lama na Bacia do Rio Doce. Caso fosse dividido, cada brasileiro receberia aproximadamente 450 quilos de rejeitos da mineração, conforme afirmam Zonta e Trocate (2016). Ocorre que essa carga de dejetos foi toda depositada numa limitada área dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Dezenove pessoas, entre membros das comunidades atingidas e funcionários da Samarco e de empresas contratadas, morreram e pelo menos 500 mil pessoas foram afetadas direta ou indiretamente.

Ao longo de 650 quilômetros, um estrago inaudito foi causado. A quebra da barragem de Fundão causou um rastro de destruição, social, ambiental e econômica, nas comunidades onde passou. E não fora só isso, os atingidos pela lama que escoou tiveram diferentes tipos de violações de direitos básicos. Estudo feito pela Comissão de Direitos Humanos da casa parlamentar apontou que tais violações foram "desde o acesso à água potável às atividades econômicas dos agricultores familiares, até a própria reativação econômica das comunidades; pessoas com problemas de moradia" (Relatório, 2016, p. 6). Conforme o Homa (2015), o desastre impactou e impactará a saúde de milhares de pessoas ao longo de toda a bacia do Rio Doce, com efeitos a curto, médio e longo prazos.

Para além das condições materiais de sobrevivência, no que diz respeito aos danos sociais, psicológicos, de saúde, dentre outros, estes se apresentam como agravos de ordem incomensurável: depressão, síndrome do pânico, alcoolismo, outras doenças como casos de pioras em doenças respiratórias, conjuntivite, coceira, alergias, queimaduras em contato com o rejeito. (Homa, 2015, p. 9)

Mesmo ficando a centenas de quilômetros do local onde houve o rompimento, o estado do Espírito Santo, região a qual este estudo se debruça, também foi atingido. As cidades de Baixo Guandu, Colatina e Linhares foram as que registraram maiores prejuízos e, consequentemente, demandaram a ação do Estado, seja do Executivo ou do Legislativo (Relatório, 2016). Assim como em Minas Gerais, o estado também teve severos danos ambientais (tais como poluição de águas e desabastecimento hídrico), socioeconômicos (prejuízos no turismo e na pesca, perda de emprego, entre outros), e na área da saúde (depressão, alcoolismo, dengue e outras doenças). A realidade das pessoas atingidas, na emergência do desastre e nos períodos sequentes, esteve estruturada no conjunto de relações sociais totalmente desfeitas e esgarçadas.

Embora a Samarco seja responsável por reparar os danos causados, como determinou o Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC)1 firmado entre o Estado e as empresas administradoras da barragem, o Poder Público permanece sendo o principal indutor e garantidor das ações de mitigação dos prejuízos acarretados à população atingida. De acordo com Edis Milaré (2011, p. 220), é de responsabilidade do poder Legislativo, ou seja, dos representantes do povo, organizar as grandes linhas das políticas públicas de proteção e mitigação dos desastres ambientais. Já ao poder Executivo, cabe a execução destas políticas. Por meio do Legislativo, as ações de proteção ao meio ambiente e as suas vítimas, em caso de tragédias socioambientais, tem a sua oportunidade de responder aos desastres racionalmente, na ação da faculdade para legislar a respeito dos temas de interesse da coletividade.

O objetivo deste trabalho é analisar o comportamento dos deputados estaduais do Espírito Santo em um momento crítico, qual seja, o desastre provocado pelo rompimento da barragem de rejeitos do Fundão. É importante destacar que o comportamento parlamentar pode ser investigado a partir de diversas perspectivas, tais como a presença dos deputados no plenário, a participação nos debates, os discursos, a frequência de apresentação de contas, entre outros. Nesta pesquisa, o comportamento parlamentar é analisado, exclusivamente, pelo viés das propostas legislativas apresentadas, pois consideramos que a principal prerrogativa destes representantes é de legislar, e que, portanto, as proposições constituem-se em um importante instrumento de captação da atividade legislativa.

O artigo possui dois objetivos específicos. O primeiro é apresentar um panorama geral da produção legislativa dos deputados acerca do caso em análise, buscando observar quem são e o que propuseram estes parlamentares. A literatura sobre comportamento legislativo tem se concentrado em análises institucionais que objetivam, sobretudo, compreender a relação entre executivo e legislativo em sistemas presidencialistas e parlamentaristas. Há um número reduzido de trabalhos que analisam a atividade parlamentar, no sentido de mapear o que os deputados produzem em termos de conteúdo (Amorim & Santos, 2003; Ricci, 2003; Taylor-Robson & Diaz, 1999). Este recorte possibilita observar, de alguma maneira, como se dá a relação entre a atuação parlamentar e suas bases eleitorais, e, no nosso caso, como se dá esta relação em contextos críticos. O segundo objetivo é observar de que maneira o comportamento destes parlamentares pode estar associado às doações de campanha realizadas pelo grupo empresarial causador do desastre. Neste ponto, considerando que os financiadores selecionam os candidatos que irão apoiar/investir tendo em vista os objetivos de afetar o resultado eleitoral e/ou influenciar na atuação pós-eleitoral dos candidatos (Mancuso, 2012, 2015; Pereira & Mueller, 2003; Speck, 2011), buscamos observar se os deputados que receberam recursos da Samarco na campanha eleitoral de 2014 procuraram blindar, de alguma maneira, a empresa.

O universo empírico da pesquisa é composto pelas 25 proposições que foram apresentadas à Assembleia Legislativa do Espírito Santo, entre 05 novembro de 2015, data da ocorrência do rompimento da barragem, e 28 de setembro de 2019, e que versam, direta ou indiretamente, sobre o desastre. Os dados foram coletados junto aos sites do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES), e da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES), e processados pelo software SPSS. O artigo está organizado em três partes, além desta introdução e das considerações finais: primeiramente apresentamos uma revisão da literatura sobre comportamento legislativo e financiamento eleitoral; na sequência detalhamos os dados e procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa; e, por fim, são apresentados os resultados e a discussão das análises.

 

1. Comportamento legislativo e financiamento de campanha no Brasil

O poder legislativo pode ser entendido como um conjunto de órgãos coletivos composto por membros eleitos pelo povo, que tem como objetivo exercer as funções de representação, legislação, legitimação da ação governamental, controle, juízo político e constituinte. A função legislativa visa a formação de leis, a partir das pautas que devem ser submetidas ao escrutínio dos parlamentares eleitos. Neste sentido, o Legislativo assume protagonismo na vida política, na medida em que tem que estar em condições de exercer, mediante leis, intervenções com impacto na situação da comunidade, ou seja, as leis devem ir além da esfera estritamente normativa, promovendo mudanças na realidade social.

O papel desempenhado pelo Legislativo na condução de políticas públicas é decisivo, pois representa a legitimação, o controle político, a fiscalização e a vigilância sobre a atividade governamental e canal de comunicação entre os que detêm o poder político e os governados, tornando efetiva a participação do Parlamento na condução política do governo. O Legislativo é a caixa de ressonância das aspirações populares, espaço de debate público e garantia de vigência da democracia (Silva, 2010).

De acordo com Farias (2000, p. 57), a Constituição Federal de 1988 foi a primeira das cartas constitucionais brasileiras a sistematizar a questão do meio ambiente, tornando-se um documento com fortes valores ambientais. O tema segue mesma lógica atinente às demais matérias constitucionais: enumeram-se os poderes da União e dos Municípios, restando aos Estados-Membros os poderes remanescentes que não lhes tenham sido negados. Esse entendimento é importante já que é na competência para legislar que se expressa o poder político, importante eixo da autonomia das unidades federativas, ao menos em tese, a capacidade de estabelecer leis sem subordinação hierárquica e intromissão das demais esferas de poder (Farias, 2000, p. 58).

Nesse viés, à União foram reservadas competências exclusivas e privativas, sendo que, na competência privativa, há possibilidade de delegação aos Estados, mediante Lei Complementar. Neste modelo, segundo Farias (2000), foi conferido à União certo exercício em plenitude, visto que poderá editar leis sobre todos os aspectos (gerais e específicos) das matérias ambientais, levando, assim, a circunscrever a competência que remanesce para os Estados (e indiretamente para os Municípios). Neste cenário, os Estados poderão exercer competência legislativa suplementar para atender às suas peculiaridades, não podendo, sob nenhuma hipótese, contrariar as prerrogativas estabelecidas pela União. A legislação determina que, em situações específicas, como na emergência do rompimento da barragem de Fundão, a Assembleia Legislativa, atue na produção de Políticas Públicas para a mitigação do problema. Para executar essas ações, o Poder Legislativo conta com uma sistemática de trabalho, o qual é chamado de Processo Legislativo.

Dito isto, o objetivo desta seção é apresentar uma síntese do debate acerca da relação entre executivo e legislativo no Brasil, e, na sequência, aborda-se a literatura sobre financiamento de campanha, adentrando nos estudos sobre a relação entre financiamento e comportamento político.

1.1 A relação entre executivo e legislativo

No Brasil, desde a redemocratização, com a consequente revitalização da atividade parlamentar, o poder Executivo brasileiro continua desempenhando um papel preponderante na produção legislativa, sendo o autor da maior parte das proposições transformadas em normas jurídicas (Figueiredo & Limongi, 2001; Santos, 1997). A transição da ditadura para a democracia caracterizou-se por um processo altamente centralizado. Esse movimento, que iniciou com os militares, foi incluindo, paulatinamente, novos grupos políticos. Tal transição teve a incumbência de promover um novo sistema político que respondesse às novas demandas de um arcabouço político-social mais complexo do que aquele que viveu na breve democracia que ocorreu durante a República Populista, de 1945 a 1964. Neste sentido, Figueiredo e Limongi (2001) observam que:

O quadro institucional que emergiu após a promulgação da Constituição de 1988 está longe de reproduzir aqueles experimentos vivenciados pelo país no passado. A carta de 1988 modificou as bases institucionais do sistema político nacional, alterando radicalmente o seu funcionamento. Dois pontos relativos ao diagnóstico resumido acima foram alterados sem que a maioria dos analistas se desse conta destas alterações. Em primeiro lugar, em relação à Constituição de 1946, os poderes legislativos do Presidente da República foram imensamente ampliados. Na realidade, (...) a Constituição de 1988 manteve as inovações constitucionais introduzidas pelas constituições escritas pelos militares com vistas a garantir a preponderância legislativa do Executivo e maior presteza à consideração de suas propostas legislativas. Da mesma forma, os recursos legislativos à disposição dos líderes partidários para comandar suas bancas foram ampliados pelos regimentos internos das casas legislativas. (Figueiredo & Limongi, 2001, p. 47)

Nesse sentido, então, o Executivo dispõe de múltiplos recursos institucionais para fazer valer suas preferências frente ao Parlamento, sendo eles: poderes legislativos proativos, que permitem legislar e estabelecer um novo status quo, (poder de urgência, Medida Provisória); poderes legislativos reativos, que permitem bloquear a legislação (vetos parciais ou totais); e poder de iniciar legislação exclusiva ou concorrente (Pereira, 2000).

Seja na esfera Federal, Estadual ou Municipal, o Executivo é o "centro de gravidade" do sistema democrático da política brasileira (Avelar & Cintra, 2004). Essa situação ocorre em função da estrutura do presidencialismo dentro do sistema brasileiro no âmbito federal. É esta estrutura que, em grande medida, se replica e influencia no arranjo das instituições subnacionais, como observam os autores. Àquilo que se refere ao modelo de presidencialismo vigente no Brasil pós-ditadura, a relação entre Executivo e Legislativo no nível federal é marcada por instrumentos de intervenção do governo nos trabalhos legislativos, com a finalidade de agilizar o processo decisório e impor a agenda do Executivo (Figueiredo & Limongi, 2001). Para Gurgel (2008), a influência exercida pelo poder Executivo, principalmente no que tange à função exclusiva de iniciar legislação orçamentária, encontra refração nas demais esferas subnacionais, Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas, e também cria estímulos para os legisladores apoiarem a agenda governamental nos vários níveis federativos.

Amorim, Cox e Mccubbins (2003) utilizam o termo "cartel de agenda parlamentar", para definir essa dinâmica e caracterizar a relação estabelecida entre Poder Legislativo e Executivo. Esse poder vem com a capacidade de impor a inclusão e exclusão de certas decisões. Segundo os autores, "agenda cartel" pode ser entendida como um grupo de agentes em posse de duas propriedades-chave: eles mantém coletivamente uma parcela do controle dos cargos relevantes a uma determinada assembleia, ou seja, o monopólio de um recurso legislativo, e o cartel estabelece um procedimento para que se decida sobre quais propostas terão acesso à sessão plenária (Amorim, Cox, & Mccubbins, 2003, p. 552).

A estrutura institucional existente na Federação é, decisivamente, um meio balizador para compreender o sistema político em nível estadual. Todavia, o peso das regras informais, a trajetória institucional e a dimensão dos recursos que cada ator político ostenta são importantes dispositivos a serem observados no balanceamento do jogo político nas esferas subnacionais. Embora a estrutura de intervenção dos poderes seja visível em nível nacional e replicada no nível dos estados, as interações políticas são específicas de cada contexto, como mostraram os estudos de Santos (2001); e Tomio e Ricci (2010, 2012)2. Fato que não pode ser desconsiderado na relação entre Executivo e Legislativo. Isso nos demonstra que não há um padrão de interação único entre Executivo e Legislativo em todos os três níveis da organização do Estado brasileiro (Santos, 2001; Tomio & Ricci, 2010).

Ao estudar os Executivos estaduais, Abrucio (2002) observou que estes, particularmente, dispõem de poderes políticos e prerrogativas constitucionais que os tornam um centro gravitacional do sistema político subnacional com um poder de atração ainda maior que o Executivo no âmbito federal. A este fenômeno o autor denominou "ultrapresidencialismo estadual". Domingues (2001) em pesquisa sobre a 13ª legislatura (1995 a 1998) observa características do ultrapresidencialismo estadual na Assembleia Legislativa do Espírito Santo. Olhando para a produção legislativa, o autor observa que a relação entre Executivo e Legislativo em nível subnacional deve considerar não só a força do Executivo, mas também a fraqueza das assembleias legislativas tanto em termos técnicos informacionais quanto na sua capacidade de organizar a agenda.

A compreensão do verdadeiro sentido das relações entre Executivo e Legislativo só pode ser estabelecido se atentamos não apenas para as evidências de força do Executivo, mas também para as de fraqueza do Legislativo. O particularismo das iniciativas de lei dos deputados, sua baixa qualidade técnica e política expressa na alta taxa de mortalidade desses projetos no interior da própria Assembleias Legislativas, a incapacidade da Assembleia em defender dos vetos do governador os projetos por ela aprovados, juntamente com a fragilidade do sistema de comissões permanentes e a concentração de poderes na Mesa Diretora, todos esses elementos indicam, a nosso ver, a fraqueza da Assembleia Legislativa do Espírito Santo. (Domingues, 2001, p. 102)

O autor conclui o estudo indicando que, ao observar a carreira de deputado estadual com um degrau para ascensão política, a pouca experiência dos deputados surge como um entrave para maior resolubilidade da produção legislativa.

1.2 Financiamento eleitoral no Brasil e comportamento político

O desenvolvimento da agenda de estudos sobre financiamento de campanha no país tornou-se viável a partir da aprovação da Lei 8713/1993, que permitiu as doações eleitorais de pessoas jurídicas e determinou que os candidatos prestassem contas à Justiça Eleitoral, e da posterior decisão desta de divulgar as prestações de contas. Tais estudos intensificaram-se nos anos 2000, sobretudo por conta dos vultuosos e crescentes montantes empregados pelas empresas privadas nas campanhas eleitorais, principal fonte de recursos dos candidatos (Lemos, Marcelino, & Pederiva, 2010; Mancuso, 2012).

De acordo com Mancuso (2015), na campanha eleitoral de 2010, por exemplo, as empresas privadas foram responsáveis por quase 75% dos recursos investidos nos candidatos, sendo que apenas 15 empresas concentraram 32,5% do investimento empresarial total desta eleição - o grupo Vale foi a quinta maior doadora, despendendo mais de 58 milhões de reais. No entanto, a concentração de recursos eleitorais em poucas empresas de grande porte pode afetar valores democráticos importantes, como a igualdade política distorcendo-a em favor dos grandes financiadores- e a competição política -enviesando-a em favor dos concorrentes mais bem financiados. Tal cenário pode levar a uma série de problemas, dentre os quais destacam-se a troca de favores ilícitos entre financiadores e financiados e a perda de legitimidade dos representantes (Mancuso, 2015; Speck 2007). David Samuels (2003) já havia destacado, em estudo anterior, que, no Brasil, as doações de campanha seguem singularidades. Em geral, candidatos recebem doações de poucas empresas, as quais repassam altos montantes de dinheiros. Desta forma, surge um "oligopólio do financiamento", o que acarreta num processo onde a desigualdade social se infla, já que os mais pobres passam a ter menos influência no processo político (Samuels, 2003, p. 60).

As empresas financiam campanhas, ou, investem em candidatos, segundo Mancuso (2015), tendo em vista: acesso ao financiamento de bancos públicos, obtenção de contratos com o governo, desempenho econômico das empresas, interesses na política econômica, benefícios tributários e benefícios em geral. Conforme o autor, os interesses dos doadores ocorrem na busca de vantagens mútuas ou a barganha, já que as doações são vistas como trocas de recursos eleitorais por benefícios, "os benefícios visados pelos doadores podem ser de diversos tipos, tais como acesso aos tomadores de decisão, celebração de contratos com o poder público, obtenção de regulamentações favoráveis, realização de gastos públicos que favoreçam seus interesses, entre outros" (Mancuso, 2015, p. 9).

Para realizar as ações de defesa dos seus interesses, segundo Mancuso (2004), as empresas definem suas Agendas Legislativas. É diapositivo que eles reúnem seus interesses ante o Poder Público, já que o sucesso ou insucesso de seus negócios, conforme o autor, depende das decisões tomadas pelos agentes políticos. Na prática, as empresas definem cinco passos para a defesa de sua agenda na produção Poder Público, a saber: acompanhamento, análise, tomada de posição, orientação e pressão (Mancuso, 2004, p. 12). Desta forma, quando o Poder Público está movimentando alguma pauta que seja do interesse de determinado nicho de negócio, as empresas acompanham o comportamento dos agentes políticos, analisam os impactos que aquela decisão pode ter em sua atividade, definem pela contrariedade ou adesão, de forma coletiva orientam as demais industrias e, finalmente exercem a pressão no setor público.

A pressão política pode ocorrer em diversos estágios da produção legislativa: no estágio de discussão dos projetos nas duas Casas do Congresso Nacional, no de votação dos projetos nas comissões ou no plenário, no da sanção (ou veto) presidencial, ou ainda no estágio da votação pelos parlamentares de eventuais vetos do presidente. A pressão política em defesa dos interesses do empresariado industrial é exercida algumas vezes "por dentro" do processo de produção legislativa, o que ocorre quando os tomadores de decisão convidam oficialmente as entidades que representam os interesses do setor industrial para participar de audiências públicas ou reuniões de trabalho e apresentar sua posição. Outras vezes a pressão política é realizada "por fora" do processo normal de produção legislativa, nos casos em que os contatos com os tomadores de decisão não ocorrem em encontros oficiais e em que a iniciativa é tomada, em geral, pelos representantes da indústria. (Mancuso, 2004, p. 13)

No que se refere especificamente à literatura sobre financiamento eleitoral no Brasil, Mancuso (2015) argumenta que esta pode ser dividida em três vertentes: (a) a que aborda a relação entre investimento e desempenho eleitoral - os resultados eleitorais são tomados como variável dependente e o investimento eleitoral é tomado como variável explicativa principal; (b) a que estuda os determinantes do investimento eleitoral - os trabalhos procuram as variáveis explicativas para o investimento eleitoral, que se torna então a variável dependente; e (c) a que trata da relação entre investimento e concessão de benefícios para os investidores - o investimento eleitoral é tomado como variável explicativa principal, porém, a variável dependente passa a ser os resultados alcançados pelos financiadores.

As duas primeiras vertentes comportam a maioria dos estudos desta agenda, e, nesse sentido, há relativo consenso no que se refere às hipóteses de que quanto maior o investimento financeiro em campanhas maior o número de votos (Silva & Cervi, 2017) e de que os políticos já inseridos no governo tendem a arrecadar mais recursos do que os demais (Cervi, 2010; Samuels, 2001). No entanto, não são numerosos os trabalhos enquadrados na terceira vertente, nem tampouco consensuais no que se refere à retribuição dos eleitos para com seus investidores. É nesta vertente que este trabalho se insere, pois busca observar como o financiamento eleitoral pode influenciar no comportamento dos atores políticos.

Os estudos desta vertente analítica focam no Executivo, havendo poucos trabalhos sobre o Legislativo, apesar de sua importância, e com achados não consensuais (Mancuso et al., 2019). Os trabalhos de Cruz (2015), que buscam compreender a relação entre financiamento e a agenda ruralista na Câmara dos Deputados, e de Carvalho (2017), que avalia a relação entre doações de planos de saúde e atuação parlamentar, são alguns dos poucos exemplares disponíveis, mas que não encontram evidências estatísticas da relação entre financiamento e comportamento parlamentar. Mancuso et al., (2019), suspeitam. que a ausência de relação nestes estudos se deva ao fato de os autores não diferenciarem as proposições positivas e negativas ao setor, ou seja, de não levarem em consideração a natureza das proposições. Assim, para contornar este percalço, os autores trabalham com outro desenho, duas variáveis dependentes em pesquisa sobre o efeito do financiamento da indústria nas proposições legislativas, e encontram evidência de que o financiamento é uma variável relevante para explicar o comportamento de parlamentares em relação a setores econômicos específicos.

O esforço deste trabalho vai ao encontro da abordagem metodológica de Mancuso et al. (2019), na medida em que leva em consideração a natureza das proposições apresentadas pelos parlamentares acerca do desastre da Samarco, ou seja, se proposições positivas ou negativas no que se refere aos objetivos do setor mineiro. No entanto, difere deste pois trata-se de um estudo de caráter descritivo, em função do pequeno número de casos em análise.

 

2. Dados e Metodologia

Para entender o comportamento dos deputados estaduais do Espírito Santo frente ao desastre, mapeamos as proposições por eles apresentadas à Assembleia Legislativa do Espírito Santo, de 05 de novembro de 2015 à 28 de setembro de 2019, que possuem relação direta ou indireta com este desastre ambiental. Para selecionar as proposições, foram utilizados os seguintes termos de busca: "barragem", "fundão", "rompimento", "Mariana", "tragédia", "Samarco", "Rio Doce", "Colatina", "Linhares"3. A primeira base de dados organizada possibilitou a elaboração de panorama geral da produção legislativa dos deputados, ou seja, permitiu identificar como os deputados se comportaram frente ao desastre. Assim, nosso universo de análise é composto pelas 25 proposições que foram apresentadas pelos deputados estaduais no período em análise. Também levantamos o tipo de proposta (Projeto de Lei, requerimento de informação etc.), a data de apresentação, o autor ou autores, e o status atual ou situação da proposta (aprovada, arquivada etc.). Em relação ao "tipo de proposta", optamos por organizá-los em dois grandes grupos (projetos de lei e demais proposições), pois desta forma é possível separar os projetos (que visam, de alguma maneira, questões mais substantivas, tais como a alteração/inclusão de regras) de solicitações diversas (como requerimentos de informações, por exemplo). Quanto ao conteúdo, em função do número reduzido de casos, optou-se por apresentar síntese das propostas. No que se refere ao status da proposta, organizamos em três grupos: arquivada, aprovada e em andamento.

A partir dos proponentes/autores das proposições, organizamos uma segunda base de dados, na qual cada um dos deputados é um caso. O partido político e as propostas apresentadas são também nossas variáveis, além do "financiamento de campanha". Dessa forma foi possível observar se o comportamento destes parlamentares estava relacionado com as doações de campanha realizadas pelo grupo Vale. Tendo em vista a data da ocorrência do desastre (novembro de 2015), recorremos aos recursos recebidos pelos deputados na campanha das eleições de 2014, e limitamos nossa análise às propostas apresentadas até 2018, quando termina o pleito destes políticos. Cabe aclarar que tivemos duas importantes modificações na legislação no que se refere ao financiamento de campanha: o fim das doações de pessoas jurídicas a campanhas políticas determinada pelo Supremo Tribunal Federal em 2015, e a aprovação, pelo Congresso Nacional em 2017, do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, conhecido como fundo eleitoral, que utiliza recursos públicos a serem destinados para campanhas. Pessoas físicas seguem habilitadas para doar, desde que não ultrapasse 10% do rendimento bruto alcançado no ano anterior à eleição, e 10 salários mínimos para cada cargo ou chapa majoritária em disputa, somadas as doações. Por fim, precisamos fazer mais um destaque: nas eleições para deputado estadual no Espírito Santo, escopo de interesse deste trabalho, o grupo Vale, administrador da Samarco, empresa que operava a barragem de Fundão e responsável legal pelo crime ambiental, se utilizou de seis empresas para realizar doações aos candidatos - Vale Energia, Vale Manganês, Vale Mina do Azul, Minerações Brasileiras Reunidas, Mineração Corumbaense Reunida e Salobo Metais. Assim, quando falamos em doações do grupo Vale, nos referimos ao somatório dos recursos advindos destas empresas. Estabelecemos o total das doações recebidas pelos deputados, autores das proposições, na campanha eleitoral de 2014 (receita total), o total das doações recebidas da Vale, e a proporção entre estas duas (doação total/Vale).

Os dados foram coletados junto aos sites do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)4, do Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)5, e da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES)6, e processados pelo software Statistical Package for the Social Sciences - SPSS.

 

3. Resultados e Discussão

Neste momento, apresenta-se um panorama geral da produção legislativa dos deputados estaduais do Espírito Santo acerca do caso do rompimento da barragem na região de Mariana - MG, e, na sequência busca-se observar se o comportamento dos parlamentares pode estar associado aos recursos recebidos na campanha eleitoral de 2014 do Grupo Vale.

O que propuseram os deputados estaduais do Espírito Santo acerca do desastre?

As propostas foram apresentadas, majoritariamente, no ano de 2019. Neste sentido, o rompimento da barragem de rejeitos no município de Brumadinho, Minas Gerais, em janeiro de 2019, também de responsabilidade do grupo Vale, que resultou na morte de 249 pessoas e 21 desaparecidos7, pode ter motivado o retorno da discussão do desastre de Mariana. Foram 2 propostas protocoladas em 2015, 7 em 2016, 2 em 2017, 1 em 2018, e 13 em 2019.

A maioria das proposições foram apresentadas individualmente (19 das 25), e apenas 6 foram propostas coletivas. No que se refere à situação atual das propostas, 12 estão em andamento, 11 foram arquivadas, e apenas 2 foram aprovadas (7899/2019 - Requer a criação da Comissão Especial de Acompanhamento e Apuração dos atos da Fundação Renova e suas mantenedoras Vale/Samarco/BHP, em relação ao rompimento da barragem de rejeitos de minério que atingiu o Rio Doce; e 3936/2019 - Instituir a Semana Estadual em Memória e Solidariedade aos Atingidos pelo Desastre de Mariana e suas Consequências Socioambientais).

Das 25 proposições apresentadas no período, apenas 3 são Projetos de Lei: (a) Estabelece obrigatoriedade de contratação de seguro contra rompimento ou vazamento de barragens, no âmbito do Estado (2643/2016- status: arquivada); (b) Dispõe sobre a proibição de utilização de barragens de rejeitos no Estado do Espírito Santo (386/2019- status em andamento); (c) Dispõe sobre a fiscalização das barragens no Estado do Espírito Santo e dá outras providências (463/2019- status: em andamento). Cabe destacar, também, que não houve qualquer solicitação de realização de audiência pública, ou seja, de criação de espaços de escuta e diálogo com a população atingida.

Por fim, o Quadro 1 apresenta os conteúdos das proposições analisadas. É interessante notar que 16%, ou seja, 4 do total de 25 propostas, solicitam o retorno das atividades da Samarco, e 12% solicitam fim da das apurações em torno das responsabilidades da empresa, ou seja, 28% das proposições favorecem deliberadamente a Samarco. Cabe salientar, ainda, que 20% das propostas se referem à solicitações de realização de estudos científicos, 16% de propostas que versam sobre fiscalização e controle das barragens, e também 16% de pedidos de informação ao Executivo ou órgãos fiscalizadores, tais como o IDAF - Instituto de defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo.

O comportamento dos deputados pode estar associado ao dinheiro recebido na campanha eleitoral de 2014 do Grupo Vale?

Neste momento, passamos a observar o comportamento dos deputados da ALES e sua relação com as doações de campanha realizadas pelo grupo Vale. Das 25 proposições acima mapeadas (2015-2019), ficamos apenas com 11 (2015-2018), e estas foram apresentadas por 28 parlamentares, sendo que 10 receberam recursos da Vale, e 18 não receberam. Por isso, primeiro apresentaremos as proposições daqueles que receberam recursos (Quadro 2), e, na sequência, aquelas apresentadas pelos parlamentares que não receberam qualquer montante deste grupo (Quadro 3).

É possível observar, no Quadro 2, que os deputados financiados pelo grupo Vale se mobilizaram, sobretudo, para tentar embargar a criação de comissão especial que teria como finalidade apurar as responsabilidades da Samarco, e, também, para requerer o retorno das atividades da Samarco na região. Este resultado sugere algum nível de coerência no que se refere ao comportamento deste grupo8 de parlamentares que recebeu apoio financeiro do grupo Vale nas eleições de 2014, o que se aproxima em alguma medida dos achados de Mancuso et al (2019) no estudo sobre a relação do financiamento de campanha pelas indústrias e as proposições legislativas. Também, conforme destaca a literatura, as empresas investiriam recursos em campanhas com o objetivo de eleger o candidato, mas também influenciar na sua atuação pós-eleitoral (Mancuso, 2012, 2015; Pereira & Mueller, 2003; Speck, 2011).

Em relação aos partidos políticos dos deputados, estes são predominantemente filiados ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro), mas trata-se de um grupo bastante heterogêneo neste aspecto, com diversas siglas/ideologias partidárias (PT, PSB, PV, PRP, PMN). Por fim, é possível constatar que há disparidade dos montantes destinados às campanhas políticas e diferentes níveis de participação da empresa nos totais obtidos candidatos na disputa eleitoral no Espírito Santo10. O deputado Hércules Silveira, por exemplo, que obteve quase metade do total dos recursos para a campanha eleitoral de 2014 do grupo Vale, foi autor de quatro propostas, sendo que três delas solicitavam o fim da comissão especial que apurava as responsabilidades da Samarco.

O Quadro 3 apresenta os deputados que não receberam recursos do grupo Vale na campanha eleitoral de 2014, mas que apresentaram propostas à ALES em torno do desastre. No que se refere à filiação partidária dos parlamentares, observamos um quadro ainda mais diverso que o anterior, com a presença de 12 siglas partidárias. Em se tratando do perfil das propostas apresentadas, de maneira geral, este não se diferencia daquele observado entre os proponentes financiados. É interessante notar que a pauta sobre a retomada dos trabalhos da mineradora no estado também esteve no centro da atenção dos não beneficiados pela empresa. Se olharmos a partir de uma dimensão mais ampla, podemos suspeitar que este dado pode indicar uma espécie de unificação de interesses entre parlamentares não financiados e aqueles beneficiados pelos recursos da mineradora acerca da necessidade da retomada do emprego de diversos cidadãos. Uma interpretação possível é a de que a empresa, ao deixar de operar no Espírito Santo, o que culminaria com a demissão de seus funcionários, geraria uma série de problemas econômicos e sociais ao Estado e aos Municípios (redução da renda e do consumo, aumento da pobreza etc.) e, para evitar esta situação, que somaria aos outros prejuízos causados pela lama, os deputados se mobilizaram tendo em vista a retomada das atividades da Samarco, o que beneficia tanto a empresa quanto a sociedade em geral.

No entanto, quando olhamos individualmente, percebemos que há deputados que se comportaram de maneira diferente, pois não foram autores de propostas que beneficiam a empresa (ao contrário do que fora observado no grupo financiado), mas sim de conteúdos que versam, principalmente, sobre a necessidade de apurar as responsabilidades da empresa: Doutor Rafael Favetto, Edson Magalhães, Luiz Durão e Cláudia Lemos.

Por fim, cabe destacar que a ALES chegou a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar os crimes cometidos pela empresa na ocisão do rompimento da barragem. Assinada pelos deputados, não financiados, Da Vitória, Janete de Sá, Marcelo Santos, Nunes e Sérgio Majeski a criação da comissão foi aprovada, em votação, pelos deputados Hércules, Padre Honório, Jamir Malini, Janete de Sá, Euclério Sampaio, Eliana Dadalto, Nunes, Da Vitória e Esmael de Almeida. No entanto, observa-se que não houve avanços na produção investigatória da Comissão. Menos de um ano após a aprovação da criação da CPI, um requerimento assinado por diversos deputados, inclusive aqueles que votaram pelo início da mesma, pôs fim à comissão. Nessa toada, os deputados financiados pela mineradora se articularam para barrar o prosseguimento da CPI que buscava punir a empresa. Metade deles, votaram a favor do fim da comissão. O grupo também atuou para não só interromper a investigação dos possíveis crimes cometidos pela empresa, mas também para a retomada das atividades da Samarco no estado, paralisadas pela Justiça.

Cabe ainda ressaltar que fora criada uma Comissão de representação, que teve como membros os deputados Da Vitória, Eliana Dadalto, Dary Pagung, Guerino Zanon, Enivaldo dos Anjos, Jante de Sá, Erick Musso, Raquel Lessa, Rafael Favatto, Gildevan Fernandes, Rodrigo Coelho, Nunes, Bruno Lamas, Luzia Toledo e Almir Vieira. A comissão visitou os locais atingidos pela lama e também ouviu especialistas, gestores municipais e vítimas do rompimento. Membros da Renova ou mesmo da Samarco não foram ouvidos pela comissão. O laudo conclui que houve inúmeros prejuízos ao estado, mas não dá encaminhamentos sobre possíveis responsabilizações da empresa.

 

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi analisar o comportamento dos deputados estaduais do Espírito Santo frente ao desastre da barragem de Mariana, provocado pela Samarco/Vale/BHP. Apresentamos um panorama geral da produção legislativa, e observamos de que maneira o comportamento destes parlamentares pode estar associado às doações de campanha realizadas pela empresa causadora do desastre. Constatamos que mais de um quarto do total das propostas apresentadas se referem a pedidos de interrupção das investigações e retorno das atividades da Samarco. Se, por um lado, as solicitações de retorno das atividades da empresa podem sugerir uma preocupação mais ampla dos deputados com a retomada do emprego e geração de renda na região, por outro, os pedidos de "retirada de requerimento de criação de uma CPI para apurar responsabilidades da Samarco pelo acidente" não parecem ter relação com o processo de mitigação do desastre ou aumento do bem-estar da população atingida.

Nossa análise apresentou indicativos da relação existente entre o comportamento dos parlamentares e financiamento de campanha, assim como o estudo de Mancuso et al. (2019), que focou na relação entre doações da indústria e proposição de leis. No entanto, também observamos preocupação semelhante, embora em menor intensidade, entre os deputados que não receberam recursos da empresa - isto deverá ser explorado em trabalhos futuros. O número reduzido de casos desta pesquisa não possibilitou, nesta etapa, ultrapassar a esfera descritiva dos dados, mas aponta para a necessidade de ampliação deste estudo, no sentido de agregar a produção legislativa de outros Estados e/ou da Câmara dos Deputados, ou mesmo a elaboração de estudos comparados, tendo como foco para outros desastres provocados pela negligência de grandes empresas. São também promissores estudos que busquem observar mudanças no padrão de comportamento dos parlamentares, ou seja, que analisem dois períodos diferentes - antes e depois do desastre, por exemplo.

De todo modo, este artigo contribui para a agenda de estudos legislativos no Brasil e, principalmente para os estudos sobre financiamento eleitoral. Primeiro, contribui não apenas por incorporar uma dimensão pouco abordada nesta literatura, que é a produção legislativa ou a análise sistemática do comportamento dos parlamentares, mas também por observar este comportamento frente a um momento crítico, qual seja, um desastre ambiental. Segundo, contribui com os estudos sobre financiamento de campanha, na medida em que buscou investigar sua influência no comportamento político, ou seja, a relação entre investimento e concessão de benefícios para os investidores, vertente de estudo ainda pouco explorada pela literatura.

 

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Recebido em: 05/10/2019
Aprovado em: 05/12/2019
Agência de Fomento: Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA), no âmbito da chamada 6/2016, "Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce".

 

 

Realizada pela UFES, CEBRAP, IESP e Unisinos.
1 O TAC, chamados de "via extrajudicial", é um instrumento utilizado com frequência para tratar de conflitos ambientais. Foi introduzido na legislação brasileira no início da década de 1990, sendo facultado aos órgãos públicos (PROCON, IBAMA, entre outros), a possibilidade da resolução de conflitos por intermédio destes acordos.
2 De modo geral, os estudos que se propõem a atestar a centralidade do Executivo no processo decisório em nível estadual (Santos, 2001; Tomio & Ricci, 2010, 2012), mostram que a taxa sucesso dos projetos apresentados pelos Executivos estaduais no período da redemocratização gira em torno de 80%, alcançando 100% em alguns casos (Tomio & Ricci, 2010). Índice de sucesso semelhante é observado no Congresso Nacional, onde cerca de 75% dos projetos apresentados pelo Executivo são aprovados. A série histórica apresentada por Tomio e Ricci (2012) mostra que no estado do Espírito Santo, desde a década de 80, as taxas de sucesso das propostas apresentadas pelo Executivo são ascendentes. Ao contrário da taxa de sucesso do Executivo acima de 80%, os projetos de lei apresentados pelo Legislativo no mesmo período não alcançaram 60%.
3 É importante salientar que dentro destes critérios de pesquisa haviam outras três propostas, mas que, em função de não ser de autoria dos deputados, não serão incorporadas à análise: uma de autoria do Ministério Público do Trabalho (Ofício 4162/2015, comunicando que terminou a instauração de procedimentos de investigação tendo como representadas Arcelor Mittal Brasil S.A., Samarco Mineração S. A. e Vale S. A.), e duas do Governador do Estado (PLC 4466/2017 - estabelece o Programa Estadual de Segurança e Eficiência de Barragens -PESB- e dá outras providências; e Requerimento 0/19 - solicita informações sobre os laudos e pareceres, produzidos nos últimos 10 anos, sobre a estabilidade e segurança da barragem de "Duas bocas", localizada no Município de Cariacica)
4 Recuperado de http://inter01.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2014/.
5 Recuperado de http://www.tre-es.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2014/eleicoes-2014.
6 Recuperado de http://www3.al.es.gov.br/spl/
7 Recuperado de https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/oito-meses-apos-rompimento-de-barragem-bombeiros-encontram-corpo-em-brumadinho.shtml.
8 Embora não seja escopo deste artigo analisar cada um dos parlamentares de maneira individual, é importante notar que uma análise desta natureza poderia esclarecer alguns casos, como por exemplo, o do Doutor Hércules Silveira, que recebeu do grupo Vale quase 50% do total de recursos recebidos na campanha eleitoral de 2014, e apresentou, além de três proposições solicitando o fim da comissão especial que apura responsabilidades da Samarco, uma proposta de fiscalização e controle (2643/2016- Estabelece obrigatoriedade de contratação de seguro contra rompimento ou vazamento de barragens, no âmbito do Estado).
9 A título ilustrativo, neste grupo, houve apenas uma proposta depois da mudança da regra sobre financiamento de campanha: de autoria de Bruno Lamas, a proposição 386/2019 dispôs sobre a proibição de utilização de barragens de rejeitos no Estado do Espírito Santo. É interessante notar que este deputado, que havia recebido 45 mil reais do grupo Vale para as eleições de 2014, foi autor de três propostas que solicitava o fim da comissão que apuraria as responsabilidades da Samarco, e que, no pleito seguinte, apresenta proposta de teor bastante distinto quando comparado àquelas anteriores.
10 No estado do Espírito Santo, a empresa seguiu a mesma premissa aplicada no âmbito nacional. Ao analisar os quase R$ 80 milhões doados pela Samarco em todo o Brasil em 2014, a metade destes, R$ 43 milhões, foram para os dois partidos (PT e MDB) (Zonta & Troncate, 2016, p. 191). Isso, entre outras alternativas, se dá ao fato que ambos os partidos concorriam à reeleição ao Executivo estadual capixaba. No caso do Espírito Santo, o MDB era o favorito na disputa, através do governador eleito Paulo Hartung.

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