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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.spe São Paulo Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

A interação entre a sociedade civil e o ministério público do trabalho do estado do espírito santo: um estudo a partir do desastre da samarco

 

The interaction between civil society and the labour public minister of the state of espírito santo: a study on the samarco disaster

 

La interacción entre la sociedad civil y la fiscalía del trabajo del estado de espírito santo: estudio sobre el desastre de samarco

 

L'interaction entre la société civile et le ministère public de l'état d'espírito santo: une étude sur la catastrophe de samarco

 

 

Rodrigo DreschI; Monika DowborII

IGraduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo IMED-CETRA. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela UNISINOS / rodrigo@fse.adv.br
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pesquisadora do Núcleo de Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) / mdowbor@gmail.com

 

 


RESUMO

Em novembro de 2015, o Brasil sofreu o maior desastre socioambiental de sua história, conhecido como desastre da Samarco. Um arranjo institucional especial foi criado para mitigar os danos envolvendo diversos órgãos públicos entre os quais verificou-se atuação do Ministério Público. Neste artigo, com base na literatura que trata da judicialização das políticas públicas pelo Ministério Público, nos perguntamos sobre o papel do Ministério Público do Trabalho (MPT) no encaminhamento e resolução de problemas e conflitos relacionados ao trabalho no contexto de desastre. A análise de dados obtidos nas audiências realizadas no inquérito civil instaurado pelo MPT no Estado de Espírito Santo mostra o protagonismo compartilhado entre o MPT e as organizações da sociedade civil.

Palavras-chave: Ministério Público; Sociedade Civil; Desastre; Samarco; Judicialização.


ABSTRACT

In November 2015, Brazil suffered the greatest social and environmental disaster in its history, known as Samarco's disaster. A special institutional arrangement was created to mitigate the damage involving several public agencies and among them the Public Minister was actively involved. In this article, based on the literature that deals with the judicialization of public policies by the Public Minister, we ask ourselves about the role of the Labour Public Minister (MPT) in the referral and resolution of problems and conflicts related to work in the context of disaster. The analysis of data obtained in the hearings held in the civil inquiry instituted by the MPT in the State of Espírito Santo shows the shared protagonism between the MPT and civil society.

Keywords: Public Minister; Civil Society; Disaster; Samarco; Judicialization.


RESUMO

En noviembre de 2015, Brasil sufrió el mayor desastre social y ambiental de su historia, conocido como el desastre de Samarco. Se creó un arreglo institucional especial para mitigar los daños, en el que intervinieron varios organismos públicos, entre ellos el Ministerio Público. En este artículo, basado en la literatura que trata de la judicialización de las políticas públicas por parte del Ministerio Público, nos preguntamos sobre el papel del Ministerio Público (MPT) en la remisión y resolución de problemas y conflictos relacionados con el trabajo en el contexto del desastre. El análisis de los datos obtenidos en las audiencias de la investigación civil instituida por el MPT en el Estado de Espírito Santo muestra el protagonismo compartido entre el MPT y la sociedad civil.

Palabras claves: Ministerio Público; Sociedad Civil; Desastre; Samarco; Judicialización.


RÉSUMÉ

En novembre 2015, le Brésil a subi la plus grande catastrophe socio-environnementale de son histoire, connue sous le nom de catastrophe de Samarco. Un arrangement institutionnel spécial a été créé pour atténuer les dommages, impliquant divers organismes publics, y compris le Ministère Public. Dans cet article, sur la base de la littérature qui traite de la judiciarisation des politiques publiques par le Ministère Public, nous nous interrogeons sur le rôle du Ministère Public du Travail (MPT) dans le traitement et la résolution des problèmes et conflits liés au travail dans le contexte d'une catastrophe. L'analyse des données obtenues lors des audiences tenues dans le cadre de l'enquête civile ouverte par le MPT dans l'État d'Espírito Santo montre le protagonisme partagé entre le MPT et les organisations de la société civile.

Mots-clés: Ministère public; Société civile; Catastrophe; Samarco; Judiciarisation


 

 

Introdução

O desastre que consistiu no rompimento da barragem de Fundão, pertencente à empresa Samarco, no município de Mariana (MG), e no derramamento de lama tóxica ao longo de 500 km do Rio Doce atingiu a vida de centenas de milhares de pessoas e afetou o meio ambiente de forma violenta e perene. Esse crime socioambiental foi tratado, à semelhança de vários outros (casos de desastres de IBERPAR de 2003, Chevron de 2013 e Hydro Alunorte de 2018), por meio do acordo extrajudicial entre o Estado brasileiro e as empresas responsáveis por ele. O Termo de Ajuste de Conduta (TAC), assinado entre as partes em março de 2016, definiu que os efeitos causados pelos dejetos decorrentes do rompimento seriam mitigados por uma fundação de direito privado constituída pelas empresas, a Fundação Renova, e sob o controle do Estado na figura de uma nova instituição denominada Comité Interfederativo (CIF). A vida humana e o meio ambiente atingidos pelo desastre seriam objetos de planejamento e implementação de ações pela Fundação Renova na forma de 42 programas desde que autorizados e fiscalizados pelo CIF. Assim, os atingidos, ao invés de direcionar suas demandas e reivindicações às agências do Poder Executivo no nível municipal ou estadual, foram confrontados com novo conjunto de relações e procedimentos incarnados neste modelo de governança.

É no contexto dessas relações e no caso de desastre que nos perguntamos, neste artigo, de que maneira se estabelecerem as interações entre aqueles que buscam seu direito ao trabalho e renda, atingido em cheio pelo desastre, e o Ministério Público do Trabalho (MPT), de modo a contribuir para a compreensão sobre os canais de acesso ao Estado disponíveis aos atingidos para demandarem seus direitos. O Ministério Público tem se tornado presente também em casos de conflitos socioambientais, na medida em que intermedeia a assinatura de Termos de Ajuste de Conduta, que são formas extrajudiciais de resolver o conflito e a responsabilização pelo crime (Viegas, Pinto, & Garzon, 2014). Ademais, sua atuação como ator que interfere na produção de políticas públicas, fenômeno denominado de judicialização das políticas públicas, torna a pergunta sobre seu papel no caso da mitigação de violação dos direitos das comunidades, grupos e indivíduos relevante. Em que medida o MP assume protagonismo neste caso? A sociedade civil o procura, reconhecendo nele ator capaz de interferência nos processos que dizem respeito a direitos violados e reparação de danos?

Partindo da revisão da literatura sobre a judicialização das políticas públicas, entendida como a crescente utilização do sistema de justiça nos casos em que a atuação dos poderes Legislativo e/ou Executivo é percebida por autores políticos e sociais como falha, omissa ou insatisfatória, o artigo analisa como se deram as interações entre a sociedade civil e o Ministério Público de Trabalho do Espírito Santo (Procuradoria de Colatina) através de documentos obtidos de um inquérito civil instaurado pelo citado órgão - atas de audiências1 -, relacionados ao período imediatamente posterior ao desastre, até abril de 2019. Foram escolhidas as atas de audiências para a pesquisa, uma vez que são os documentos que expressam, de forma mais clara e objetiva, como se deu essa relação.

A pesquisa soma-se ao conjunto de trabalhos que têm investigado o protagonismo do Ministério Público em nosso país, tanto por sua atuação na área criminal quanto por sua atuação - quase política - na defesa de direitos sociais e direitos coletivos. Os primeiros estudos neste último sentido foram realizados por Rogério Bastos Arantes (1997, 2019) e Júlio Aurélio Vianna Lopes (1998, 2003). Além disso, as teorias que tratam da judicialização das políticas públicas pelo Ministério Público demandam testes empíricos, fato apontado por diversos autores que tratam do tema, como Débora Alves Maciel (2002, 20062), André Koerner (Maciel & Koerner, 2002) e Luciano Da Ros (2009).

É crescente a preocupação, tanto no mundo acadêmico como na sociedade civil, com o fenômeno que foi denominado de judicialização da política (Vianna et al., 1999). Apresentado, inicialmente, como uma busca da intervenção do Judiciário para decidir questões relativas às disputas da política institucional, transcendeu esses limites para incluir a busca de soluções no sistema judicial de problemas cotidianos relacionados à produção das políticas públicas e a garantia de direitos sociais básicos (Lopes, 2005). Assim, paulatinamente, o debate sobre a concretização dos direitos humanos deixa de ser tratado como uma relação entre indivíduo, sociedade e Estado, representado nos Poderes Executivo e Legislativo, para incluir o Ministério Público e o Poder Judiciário.

A judicialização de políticas públicas se expandiu a partir da década de 1990, principalmente com a promulgação da Constituição de 1988. A Carta Magna de 1988 (Brasil, 1988) não só afirmou tendências já existentes, como ampliou sobremaneira as possibilidades de intervenção do Ministério Público na política em busca da garantia dos direitos sociais. A dita amplificação modificou a fronteira anteriormente existente entre o sistema político e o sistema judicial, uma vez que entregou a uma instituição vinculada à justiça a atribuição de zelar pelo patrimônio público e pela efetividade dos serviços públicos (Arantes, 2000).

A partir do aumento do poder do Ministério Público e das diversas questões surgidas desde a década de 1990, as Ciências Sociais e, mais particularmente, a Ciência Política passaram a dar mais atenção ao assunto. Nessas áreas, especificadamente, existem três correntes que abordam o tema (Da Ros, 2009).

A primeira ressalta o papel negativo da atuação do Ministério Público defronte à sociedade civil. Os autores enquadrados nesta perspectiva veem o Ministério Público fundamentalmente como um órgão tutelar, que busca, ao representar a sociedade civil, substituí-la, avocando-se único titular verdadeiramente capaz de defender seus interesses e de agir em prol de um bem público que transcenda as motivações particulares, potencialmente presentes na atuação direta destes grupos - considerando a sociedade brasileira como sendo hipossuficiente. Nessa linha, destacam-se os estudos de Rogério Bastos Arantes (1999, 2019), bem como os de Fábio Kerche (2007, 2018) e Júlio Aurélio Vianna Lopes (1998, 2003).

Em flagrante contraste com a vertente acima mencionada, surgiu uma segunda corrente. Destacam-se os estudos decorrentes da parceria firmada entre a Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), coordenados por Luiz Werneck Vianna (Vianna & Burgos, 2002, 2005). Se a visão anterior se apresentava pessimista em relação à atuação do Ministério Público, esta parece bastante otimista no que se refere às interações entre a sociedade civil e o Ministério Público.

Por fim, pode-se identificar um terceiro conjunto de autores que adota uma visão alternativa aos dois grupos anteriormente expostos, observando tanto as potencialidades como as limitações da atuação do Ministério Público no Brasil contemporâneo. Neste universo de análise, importa mencionar especialmente os trabalhos de Débora Alves Maciel (2002, 2006) e aquele resultante de sua parceria com Andrei Koerner (Maciel & Koerner, 2002). Os autores ressaltam a necessidade de trabalhos menos generalizantes e, portanto, mais específicos e aprofundados sobre as diversas instâncias e formas de atuação do Ministério Público, evitando a construção de imagens totalizantes e lineares sobre ele.

Alinhando-nos com a terceira corrente em termos da necessidade da produção de pesquisas empíricas, ainda que bebendo das análises das duas outras, criamos as seguintes questões norteadoras para a investigação: houve o protagonismo do Ministério Público do Trabalho depois do desastre da Samarco? O que pode se depreender da análise de sua atuação sobre as organizações da sociedade civil e seu uso do MP como canal de reivindicação? Essas duas perguntas têm como pano de fundo a busca da compreensão sobre as interações socioestatais que levam à mitigação de danos causados às pessoas pelo desastre.

Com o intuito de analisar a relação entre o Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo e a sociedade civil, através do acesso a um inquérito civil instaurado por aquele órgão, foram analisadas as atas de todas as 42 audiências realizadas neste procedimento administrativo que foi fundado para verificar os danos causados pelo desastre de Mariana - dentro da competência do Ministério Público do Trabalho -, e que possibilitaram a verificação de quem foram os requerentes das audiências, os convidados, os assuntos tratados e as deliberações tomadas.

 

As teorias sobre a judicialização das políticas públicas pelo Ministério Público e o papel da sociedade civil

A questão da judicialização das políticas públicas através do Ministério Público tem se tornado objeto de estudo na academia nas diversas áreas, tais como Direito, Sociologia e Ciência Política. Segundo Arantes (2000), é na evolução recente do Ministério Público que podemos encontrar o melhor exemplo das potencialidades, limites e contradições que marcam o chamado duplo fenômeno: judicialização da política e politização da justiça. A judicialização da política teve um grande avanço na década de 1990, principalmente com a promulgação da Constituição de 1988. A Carta Magna de 1988 não só afirmou tendências já existentes, como ampliou sobremaneira as possibilidades de intervenção do Ministério Público na política em busca da garantia dos direitos sociais. A dita amplificação modificou a fronteira anteriormente existente entre o sistema político e o sistema judicial, uma vez que entregou a uma instituição vinculada à justiça a atribuição de zelar pelo patrimônio público e pela efetividade dos serviços públicos (Arantes, 2000).

O Ministério Público, que anteriormente era ligado ao Executivo, adquiriu autonomia funcional, passando a ser independente de todos os Poderes do Estado e a deter atribuições bastante reforçadas de representante da sociedade. Essa mudança de status fez com que o Ministério Público fosse capaz de atuar como um relevante ator político.

A história do Ministério Público mostra que algumas de suas prerrogativas foram adquiridas antes da Constituição de 1988. O Código de Processo Civil de 1973 determinou que o Ministério Público devesse atuar em todas as causas que houvesse interesse público o que, segundo Arantes (2002), já demonstra o início do afastamento do Poder Executivo. Mas é somente na década 1980 que a instituição sofre as modificações mais importantes. Destaca-se, nesse sentido, a Lei n. 6938/1981) de Política Nacional de Meio Ambiente, que incluiu novos instrumentos processuais e deu legitimidade ao Ministério Público para proposição de ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao meio ambiente (Carvalho & Leitão, 2010). Por fim, a Lei nº 7.347 de 1985 foi uma grande vitória para o MP, por estabelecer ação civil pública por meio da qual ele se tornou fiscal da lei nas ações propostas pelas associações civis e introduziu-se o prazo mínimo de existência legal da associação.

Em resumo, a Lei 7.347/85 não constituiu incentivo particular à organização da sociedade civil com vistas à atuação no processo judicial, pois só reconheceu os setores previamente organizados e, quanto aos não organizados, ele sinalizou que o caminho mais racional seria bater às portas do MP. O projeto do MP agravou esse problema quando duplicou a exigência de prazo mínimo de existência legal, de seis para um ano, para as associações que quisessem usar a ACP. (Arantes, 2002, p. 71)

Além disso, o Ministério Público obteve a importante função de fiscalizar o cumprimento das leis e os próprios políticos, passando a fazer parte da sua alçada a função de representante da sociedade. Ou seja, foram garantidos ao Ministério Público papéis importantes dentro do cenário político nacional e tais papéis podem ser exercidos de maneira autônoma (Carvalho & Leitão, 2010).

Com o aumento do poder do Ministério Público, as Ciências Sociais e a Ciência Política passaram a dar mais atenção ao assunto. Nessas áreas, especificadamente, construíram-se três correntes diversas que tratam da judicialização das políticas públicas pelo Ministério Público (Da Ros, 2009). A corrente representada por Rogério Bastos Arantes (1999, 2019), Fábio Kerche (2007, 2018) e Júlio Aurélio Vianna Lopes (1998, 2003) entende como negativa a atuação do Ministério Público representando a sociedade civil. Isso porque os autores indicam que uma forte atuação do Ministério Público em demandas sociais e coletivas acaba abafando as demandas da sociedade civil, tornando-a, ou entendendo-a, como hipossuficiente.

Segundo Da Ros (2009), a visão do voluntarismo político do órgão, a orientação ideológica de seus membros e a busca do papel politizado da instituição seriam informados por uma visão da sociedade civil brasileira essencialmente incapaz de defender seus próprios interesses, o que seria duramente agravado por instituições políticas (Executivo e Legislativo) insatisfatórias no cumprimento de seu papel representativo. Na visão das analistas, decorrem do protagonismo do Ministério Público na defesa dos interesses públicos e difusos a desmobilização de ação da sociedade civil, tornando-a dependente da instituição, bem como a ameaça à independência da própria instituição diante da sua politização.

A ideia, em suma, é que temos uma sociedade civil fraca, desorganizada e incapaz de defender seus direitos fundamentais. Além disso, frequentemente, é o próprio poder público quem mais desrespeita esses direitos. Dessa equação resulta a proposta, de natureza instrumental, de que 'alguém' deve interferir na relação Estado-sociedade em defesa desta última. Instrumental no sentido de que não é para sempre: pelo menos no momento imediato 'alguém' tem que tutelar os direitos fundamentais do cidadão até que ele mesmo, conscientizado pelo exemplo da ação de seu protetor, desenvolva autonomamente a defesa de seus interesses. (Arantes, 2000, pp. 129-130)

Conforme Arantes (2000), ainda, a decepção com o funcionamento do regime representativo, nos marcos de uma sociedade civil supostamente frágil, conduz as tentativas de contornar a esfera pública em busca da efetividade dos direitos. Esse é um dos elementos que compõem o universo ideológico do voluntarismo político dos promotores e procuradores de hoje, embora também remonte a uma antiga tradição de pensamento político.

Em artigo recente, Arantes (2019) ressalta que a expansão e atuação do Ministério Público na área de políticas públicas está razoavelmente sedimentado, mas a ideologia do voluntarismo político cumpre um papel importante como combustível da ação dos procuradores. Isso faz parte de uma corrente de pensamento político no Brasil que sempre criticou o artificialismo de nossas instituições políticas representativas e cultivou o sonho de um poder neutro, externo ao mundo da política e com autonomia suficiente para tutelar a sociedade hipossuficiente.

Através deste discurso, então, o Ministério Público tornou-se o grande órgão intermediário das relações entre Estado e sociedade civil, alternando significativamente os marcos da representação política e passando a ser considerado como uma espécie de quarto poder. O Ministério Público, dessa forma, tem se destacado nas diversas dimensões da vida social e política que receberam tratamento legal na forma de interesses e de direitos difusos e coletivos (Arantes & Moreira, 2019).

Fabio Kerche (2007, p. 276), por sua vez, critica, através de outro fundamento, a "intromissão do Ministério Público" na agenda das políticas públicas, principalmente pelo fato de não ocuparem cargos eleitos pelo sufrágio e por não terem compromissos com o orçamento público:

Em outras palavras, se a lógica das eleições fosse levada ao extremo, todo político buscaria maximizar os ganhos da sociedade através de políticas públicas, não por altruísmo, mas sim porque garantiria a reeleição agradando a todos os eleitores. No entanto, são as limitações orçamentárias que impedem a completa realização dessa opção racional, aspecto que não necessariamente entra no leque de preocupações dos integrantes do Ministério Público brasileiro. Ou seja, na democracia, a escolha de prioridades é realizada por políticos eleitos diretamente pelos cidadãos. Quando essa escolha é feita não pelo embate político, mas transformada em questão jurídica ou técnica, perde-se uma dimensão importante da participação e interferência popular. Assim, a judicialização da política - a transformação de questões tradicionalmente tratadas pelos Poderes Executivo e Legislativo em ações judiciais - caminha juntamente com a negação da política presente nos discursos que desconfiam de partidos e políticos e depositam fé nos técnicos de bancos centrais, agências reguladoras e toda a sorte de instituições com pouca possibilidade de interferência da soberania popular. (Kerche, 2007, p. 270)

Em contrapartida aos argumentos de Arantes e Kerche, estudos conduzidos por Luiz Werneck Vianna e Marcelo Baumann Burgos (Vianna & Burgos, 2002, 2005) demonstram otimismo com a atuação do Ministério Público. Esses autores projetam no Ministério Público uma função de proteção das minorias, advogando a existência de um potencial virtualmente transformador - ou revolucionário - da realidade social a partir da atuação da instituição. Da Ros (2009) lembra que os estudos dessa vertente ressaltam o papel legitimador das denúncias e das representações oferecidas ao Ministério Público, destacando:

a importância da instituição como novo locus de representação política (ainda que puramente funcional), possibilitando que denominam ser uma soberania complexa, ofertando mais canais de diálogo entre, por um lado, os grupos de interesses e movimentos sociais e, por outro, o próprio Estado. (Da Ros, 2009, p. 40)

Os autores da segunda vertente indicam que, através dessa representação do Ministério Público, surgem as possibilidades de significativas transformações sociais, ainda que gradativas e operacionalizadas pela via judicial, com inegáveis efeitos multiplicadores sobre a arena política.

Para Luiz Werneck Vianna e Marcelo Baumann Burgos (2005), é da interação entre Ministério Público e sociedade civil que emergem as possibilidades de transformação social; entretanto, isso se dá por força da pressão exercida por grupos sociais. Para os autores, atualmente, as opiniões e reinvindicações da sociedade civil não encontram mais caminhos através da política, pois a agenda do Legislativo está sob o domínio do Executivo, o qual impõe os seus objetivos estratégicos.

É, portanto, pelo encontro com a sociedade que a tradição republicana brasileira, malgrado a hegemonia neoliberal dessas últimas duas décadas, tem procurado conservar e reelaborar, a partir de sua matriz de origem, a sua difícil reprodução. Todo esforço, no entanto, terá pouco alcance, ou poderá ser perdido se a agenda do justo e da solidariedade social, que começa a tomar forma topicamente nos institutos da representação funcional, quase sempre por iniciativa da sociedade civil, não encontrar comunicação com a representação política, em especial nos partidos políticos, no Parlamento e na ação do Executivo, a quem cabem traduzir, de modo universalista, essas expectativas e pretensões que vêm da cidadania. (Vianna & Burgos, 2005, p. 802)

Segundo os autores, a dificuldade tem sido manter os poderes políticos permanentemente às voltas com o que identificam como os "constrangimentos sistêmicos" a que estariam obrigados, irrigados pelos princípios e valores da Constituição. À falta disso, a atuação do Ministério Público, especialmente através das ações civis públicas, tem-se constituído em um lugar em que as regras jurídicas têm merecido uma interpretação à luz dos princípios e valores constitucionais, ampliando o sistema de defesa da cidadania e, em alguns casos, até favorecendo a aquisição de direitos novos.

Ou seja, os autores entendem que a sociedade não tem suas reinvindicações ouvidas e muito menos atendidas por parte dos políticos, em função da configuração das relações de poder entre os Poderes Executivo e Legislativo. A forma mais simples e eficaz da sociedade civil fazer suas reinvindicações serem escutadas e efetivadas seria, portanto, através do Ministério Público, concluindo que tem um caráter extremamente positivo no que se refere às políticas públicas que possam ser alcançadas pelo meio de tal instrumento.

Por fim, os estudos de Débora Maciel e Andrei Koerner (Maciel & Koerner, 2002) discorreram sobre a necessidade de trabalhos menos generalizantes, ou seja, mais específicos e aprofundados sobre as formas de atuação do Ministério Público, a fim de se evitar visões genéricas e lineares sobre ela. Ao invés disso, os autores advogam ser o Ministério Público brasileiro uma espécie de órgão de mediação entre vários setores da sociedade civil e do Estado, sendo capaz, por sua posição estratégica na arquitetura institucional, de promover coordenação entre vários grupos de interesses e movimentos sociais sem se tornar, contudo, insensível a eles. Claramente, um aspecto positivo nesta vertente é de que a análise da postura é muito menos normativa em sua leitura sobre a atuação do Ministério Público, não o condenando e tão pouco endossando as suas atitudes.

Luciano Da Ros (2009) sustenta que as três vertentes possuem diferenças e confluências entre si, sendo impossível desconsiderar qualquer uma das três. Isso porque cada pesquisa trabalhou com casos empíricos diferenciados e porque o Ministério Público não possui uma organização interna que padronize a representação da sociedade. Segundo o autor, trata-se de buscar contextualizar de forma mais adequada e aprofundada a atuação do Ministério Público frente aos interesses que afirma representar da sociedade civil. Cabe, também, acrescentamos, averiguar quando e de que maneira as organizações da sociedade civil procuram o MP quando estão em busca dos seus direitos. O caso apresentado almeja contribuir para essa discussão, ao focar uma configuração sui generis, a saber, do desastre e no qual o provedor de serviços é um ente privado a quem cabe execução de serviços demandados pelo Estado.

 

As interações entre o Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo e a sociedade civil no caso do desastre da Samarco

É à luz dessa revisão da literatura sobre o papel do MP na produção de políticas públicas e o impacto de sua atuação sobre a sociedade civil é que analisaremos de que maneira ele agiu mediante a violação dos direitos no desastre de Samarco, buscando entender mais especificamente as interações entre o MP do Trabalho e a sociedade civil que, neste caso, é constituída pelas associações de pescadores. Para isso, realizamos uma pesquisa nos autos de um inquérito civil instaurado pelo Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo (Procuradoria de Colatina), de onde foram retiradas as atas de 42 audiências realizadas, no período entre novembro de 2015 (logo após o desastre) até abril de 2019. Este inquérito civil reúne todos os fatos investigados e relatados ao Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo (Procuradoria de Colatina) com relação ao desastre da Samarco, e as 42 audiências representam todas as audiências realizadas nos autos do inquérito civil no período citado.

O Ministério Público do Trabalho faz parte da estrutura do Ministério Público da União junto com o Ministério Público Federal, Ministério Público Militar e Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. O Ministério Público da União, junto com os Ministérios Públicos Estaduais, por sua vez, forma o Ministério Público (lato sensu). As diferenças entre os diversos Ministérios Públicos se dão em razão da competência com relação à matéria a ser tratada, mas pela estruturação fica evidente que há dois deles que são especializados, a saber, o Militar e o do Trabalho. No caso deste último, a especialização vem se construindo desde o nascimento ao desenvolvimento da Justiça do Trabalho brasileira a partir dos anos 1930; e há quem sustente (Vianna, 1978) forte tradição do trabalhismo no MPT com o compromisso de institucionalizar a intervenção direta no conflito coletivo, dentro do cenário laboral. O desafio para a tradição dentro do Ministério Público do Trabalho surgiu com o processo de redemocratização iniciado ao final dos anos 1970 e consolidado na nova Constituição de 1988, quando todo sistema jurídico passa a ser integrado ao funcionamento do próprio sistema democrático. Como mecanismo eficiente para lidar com esse novo cenário o Ministério Público do Trabalho, sob a lógica do profissionalismo, passou a usar mecanismos como a Ação Civil Pública e o Inquérito Civil para garantir direitos de trabalhadores, ou seja, passou a utilizar as novas ferramentas disponíveis para influenciar a política sob novo registro. Constata-se que seus dirigentes se não têm apenas uma sólida e reconhecida formação jurídica no assunto, mas ampliam sua ação para além dos muros da instituição, não diferindo, portanto, do outras partes do MP. Para além disso, destaca-se atualmente seu papel na defesa de direitos associados ao combate ao trabalho escravo no Brasil, que entrou na agenda institucional das políticas públicas a partir de pressões de organismos internacionais e após denúncias de movimentos sociais (Artur, 2016).

No que tange ao inquérito civil, por meio do qual analisaremos o MPT em suas interações com a sociedade civil, este é regulado pela Lei Federal nº 7347/1985 e, em geral, é instaurado quando o procurador tem indícios fortes de que um direito coletivo, um direito social ou individual indisponível (relativo ao meio ambiente, à saúde, ao trabalho, ao patrimônio público, por exemplo) foi lesado ou sofre risco de lesão, podendo o fato narrado ensejar futura propositura de ação civil pública. Ou seja, o inquérito civil é um procedimento administrativo investigatório, de caráter inquisitivo, instaurado, presidido e, se for o caso, arquivado pelo próprio Ministério Público. Seu objetivo consiste, basicamente, em coletar elementos de convicção para as atuações processuais ou extraprocessuais. Em regra, o inquérito civil precede o ajuizamento de processos, como uma ação civil pública ou uma ação de caráter penal (mecanismos comumente utilizados pelo Ministério Público) e serve para investigar o fato e/ou possibilitar a resolução.

Dentro do inquérito civil, existem mecanismos que possibilitam interações da sociedade civil com o Ministério Público. Um deles se dá através de petições (requerimentos) encaminhados para os autos do inquérito civil. Esses documentos escritos são anexados no inquérito civil, e cabe ao Procurador do Trabalho se manifestar/despachar o requerimento/pedido existente. Outro mecanismo consiste nos requerimentos realizados oralmente na própria sede do Ministério Público do Trabalho. Ambos podem ser utilizados por qualquer interessado no procedimento, seja sociedade civil, sejam empresas, ou a própria empresa infratora, por exemplo. Por fim, entre os canais de interação disponíveis encontram-se audiências com o Procurador do Trabalho, em que as partes são ouvidas e podem trazer suas demandas e respostas. Podem ser convocadas pelo próprio MPT ou pelos atores da sociedade civil ou empresas. Não se trata de audiências públicas no sentido estrito da palavra, pois não são cumpridos os requisitos formais de uma audiência pública: a audiência fica aberta para qualquer pessoa que queira participar e não existem regras que estabeleçam a formalidade da audiência dentro do Inquérito Civil, cabendo ao Procurador do Trabalho conduzir da forma como entender necessário e convidar a participar das audiências as partes que ele considerar interessante para a elucidação dos fatos. Foram elas o material escolhido para analisarmos as interações entre o Ministério Público do Trabalho e a sociedade civil, pois trazem informações que permitem a análise de quem tomou a iniciativa de convocá-las, quem foram os convidados a debater, se compareceram os demais interessados e quais foram os assuntos tratados e suas resoluções.

Antes de adentrar a análise propriamente dita das audiências realizadas no inquérito civil, é necessário iluminar a situação de pescadores que perderam seu meio de vida por causa do desastre, tendo em vista que o desastre e a poluição/destruição do Rio Doce retiraram a possibilidade de realizarem sua atividade laboral em relação à recuperação dos seus direitos. Os pescadores que estão localizados perto ou nas cidades de Colatina e Linhares estão organizados em sindicatos, associações e colônias de pescadores. Ainda se verificou a existência de uma federação de pescadores de nível estadual. O contato dos pescadores com o Ministério Público do Trabalho, em especial nas audiências, se dava através do presidente da entidade representativa, sejam sindicatos, associações ou colônias. Em alguns momentos, os futuros beneficiários das demandas levadas ao Ministério Público do Trabalho compareciam na audiência juntamente com o representante oficial da entidade.

Em entrevista realizada com o Presidente da Associação de Pescadores de Regência (distrito de Linhares), foi-nos dito que nem todos os pescadores são associados, pois preferem trabalhar de forma individual e não coletiva; e, que no momento pós-desastre, diversos pescadores tiveram dificuldades de serem reconhecidos como pescadores pela Samarco/Renova, pois ou não tinham registro de pescador ou não possuíam registro na associação. Ademais, o representante da associação ressaltou que muitas mulheres de pescadores, que trabalhavam junto no dia a dia da pesca não foram reconhecidas como beneficiárias e que os contrapontos ao trabalho de mitigação realizado pela empresa infratora diziam respeito ao cadastro de pescadores atingidos, reconhecimento da condição de pescador e reconhecimento de que a região de determinados pescadores também deveria ser reconhecida como atingida.

Durante a sua fala, o Presidente da Associação de Pescadores de Regência não citou qualquer contato com o Ministério Público do Trabalho e, de fato, esta associação não esteve presente nas audiências analisadas. Contudo, foi possível observar que as demandas levantadas por ele condizem com as demandas levadas por pescadores ao Ministério Público do Trabalho, conforme a análise feita a seguir.

Apesar da grande dificuldade de contato com o procurador Bruno Gomes Borges da Fonseca,3 que é único responsável pelo inquérito civil ora analisado (com exceção dos períodos em que está de férias), obtivemos acesso ao inquérito civil; porquanto, se trata de um procedimento acessível eletronicamente mediante um certificado digital de advogado. Nos autos do inquérito, verificou-se, como dito anteriormente, a realização de 42 audiências entre o Ministério Público do Trabalho e a sociedade civil, com a presença intermitente de representantes do Governo (estadual e municipal) e da empresa infratora. Essas 42 audiências representam todas as audiências realizadas nos autos do inquérito civil entre novembro de 2015 e abril de 2019. As atas das audiências se mostraram um material fértil para entender como se dão as interações entre o Ministério Público do Trabalho e outros atores, com o objetivo de verificar se o protagonismo no inquérito era unicamente do MP ou se a sociedade civil possuía voz e se usava o MP como espaço para reivindicar os seus direitos. Para tanto, criamos um banco de dados para analisar quem foram os requerentes das audiências, quem foram os convidados, quais foram os assuntos tratados e quais foram as deliberações proferidas nas audiências.

Com relação aos requerentes das audiências, podemos constatar que o Ministério Público do Trabalho não foi nem de longe o único requerente. Entre as 42 audiências, 16 foram requeridas pelo próprio MPT, enquanto variadas entidades da sociedade civil tais associações e sindicatos4 , as requereram 19 vezes, o que indica que elas o enxergam e o usam como canal de intermediação de conflitos. Outras 2 audiências foram requeridas por indivíduos, 1 pela empresa infratora, 1 por uma entidade de classe patronal/empresarial, 1 por um representante da FUNAI e 2 por representantes de Governo (Ministério do Meio Ambiente de Aracruz - ES e um vereador de Colatina). Dentro destas entidades de classe dos trabalhadores, quase todas as audiências foram requeridas por entidades específicas de pescadores, que tiveram sua atividade laborativa ceifada com a contaminação do rio e do mar. Com relação à periodicidade do requerimento de audiências, podemos constatar que a frequência de ocorrência foi contínua no que diz respeito ao Ministério Público do Trabalho e as organizações da sociedade civil, ou seja, os requerimentos começaram imediatamente após o desastre, novembro de 2015, e permaneceram acontecendo até os meses analisados em 2019.

Este dado sobre a iniciativa de requerentes indica que a sociedade civil percebe o Ministério Público do Trabalho como um canal para as suas reinvindicações. Ao mesmo tempo em que fica evidente que o MPT também atua como protagonista na medida em que mais que um terço de iniciativas dessas audiências coube a ele.

No que diz respeito aos convidados das audiências (Tabela 1), percebeu-se a presença de entidades patronais apenas na primeira audiência realizada em março de 2015, convocada pelo Ministério Público do Trabalho, que se mostrava preocupado com a possibilidade de diminuição de emprego em face da contaminação da água. O mesmo assunto continuou sendo tratado até a nona audiência, em fevereiro de 2016, com a presença das entidades de classe dos trabalhadores, em especial, dos pescadores. A descontinuidade da presença das entidades patronais indica que as audiências do MPT não se constituem para elas espaço relevante de resolução de conflitos e de encaminhamento de demandas. Em apenas 6 das 42 audiências analisadas, estavam presentes como convidados representantes do governo. Em 22 oportunidades, algumas entidades de pescadores (associações, colônias e sindicatos) compareceram como convidadas, e a empresa infratora Samarco/Renova compareceu 13 vezes como convidada.

Conforme se verifica da tabela acima, as entidades de pescadores foram as que mais apareceram como convidadas das audiências realizadas. A Samarco/Renova também apareceu em um número considerável de vezes, lembrando que ambas apareceram concomitantemente 9 vezes. Verifica-se, também, que as entidades patronais somente foram convidadas uma vez a participar e representantes do governo apenas 6 vezes.

Realizando uma análise cruzada entre os requerentes e convidados das audiências, surgiram os seguintes dados relevantes: das 16 audiências requeridas pelo Ministério Público do Trabalho, 10 contaram como convidados com entidades de trabalhadores e empresa infratora juntos; em 1 oportunidade, compareceram como convidadas entidades patronais e, nas outras 5 oportunidades, houve uma variação entre representante do governo, empresa infratora e entidades de trabalhadores. Já no que tange às audiências requeridas pelas organizações da sociedade civil, num total de 19, 14 não contaram com a presença de convidados, estando presentes apenas o Ministério Público do Trabalho e o próprio requerente. As outras 5 audiências contaram com a presença de outras entidades de trabalhadores e, em apenas 1 dessas 5 audiências, esteve presente a empresa infratora.

 

Tabela 2

 

Subtrai-se, da tabela acima, a partir de uma análise cruzada entre requerentes e convidados, que as audiências requeridas pelas organizações da sociedade civil, especialmente entidades vinculadas à atividade pesqueira, contavam quase sempre apenas com a presença do Ministério Público, pois, nestas audiências, eram encaminhadas as demandas da sociedade civil. Já as audiências requeridas pelo Ministério Público do Trabalho contavam com a presença de convidados e, muitas vezes, da empresa infratora. As audiências requeridas pelo Ministério Público do Trabalho parecem estabelecer um canal de comunicação entre as partes envolvidas, ou seja, sociedade civil, empresa infratora e algumas vezes membros do governo. No caso das audiências requeridas pelas organizações dos pescadores, pela ausência de outros atores, presume-se que aquelas as enxergam mais como canal para o encaminhamento das suas reivindicações.

Com relação aos assuntos tratados nas audiências (Tabela 3), a manutenção da atividade laborativa só foi tema nas primeiras três. O abastecimento de água se manteve como assunto até a décima audiência, em fevereiro de 2016, e o tema de longe mais frequente tratava das questões ligadas ao cadastro e indenização: o de cadastro de impactados apareceu em 23 das 42 audiências; o de cadastro de auxílio financeiro emergencial e programa de indenização da Samarco/Renova esteve presente nas 5 das 42 audiências; a discussão em torno do que poderia ser considerada como região atingida foi tratada em 7 das 42 audiências; a discriminação no critério para indenização das mulheres pescadoras foi abordada em 4. Entre outros assuntos, apareceu 10 vezes o problema de comunicação entre atingidos e a empresa infratora, as dúvidas sobre o fornecimento de seguro defeso por parte do INSS apareceram em 6 audiências realizadas.

A tabela demonstra que o tema mais abordado nas audiências tratava do cadastro e reconhecimento de pescadores como atingido pela empresa infratora. Destaca-se, ainda, a dificuldade de comunicação da sociedade civil com a empresa infratora/fundação Renova, que foi assunto deliberado diversas vezes nas audiências. E há de se ressaltar que existe uma frequência muito baixa no que diz respeito ao debate sobre o retorno às atividades laborativas dos atingidos.

A tabela 4 indica a frequência de assuntos relacionada aos requerentes das audiências. O assunto mais recorrente, quando o requerente da audiência era a sociedade civil, dizia respeito aos problemas com cadastro de pescadores junto à empresa infratora/fundação Renova. Já com relação às audiências requeridas pelo Ministério Público do Trabalho, os assuntos foram variados, não havendo algum assunto que pudesse ser destacado.

Essa distribuição de assuntos mostra que não há alinhamento de demandas entre ambos os atores requerentes, o Ministério Público do Trabalho e as entidades representantes de pescadores. Estas focam claramente na demanda de cadastro que é pré-requisito para se tornar beneficiário de programas da Fundação Renova, ou, dito de outra maneira, ter seus direitos reparados. As demandas apresentadas correspondem também aos programas de responsabilidade da Fundação, conforme prevê o Termo de Ajustamento de Conduta de março de 2016. Segundo o site da Renova (2019), o primeiro programa foi definido como:

O cadastramento de pessoas físicas e jurídicas (apenas micro e pequenas empresas), famílias e comunidades, contendo o levantamento dos impactos sociais, culturais, econômicos ou ambientais e, posteriormente, a condução de monitoramento socioeconômico das famílias e municípios afetados. Além disso, destina-se a desenvolver estudos para identificar e avaliar os impactos socioeconômicos com base em requisitos de direitos humanos.

Já o segundo programa citado, conforme se pode verificar no site da Fundação Renova (2019), refere-se ao:

auxílio financeiro emergencial à população impactada que tenha tido comprometimento de sua renda em razão de interrupção de suas atividades produtivas ou econômicas em decorrência do rompimento, até o restabelecimento das condições para retomada das atividades produtivas ou econômicas.

Por fim, encontramos o resumo da definição do terceiro programa:

ressarcir pessoas e micro e pequenas empresas que tenham sofrido danos materiais ou morais, bem como perdas referentes às suas atividades econômicas, em consequência direta do rompimento da barragem de Fundão, de forma rápida, sem a burocracia e os custos de uma ação judicial. (Fundação Renova, 2019)

Os assuntos levados pela sociedade civil, conforme vimos na análise dos assuntos tratados nas audiências, indicam que os programas da Fundação Renova não estão sendo implementados de maneira satisfatória e que a sociedade civil enxerga no Ministério Público do Trabalho um canal de intermediação válido e capaz com atuar em seu nome e em defesa de seus direitos. Enquanto os atores da sociedade civil fazem suas reivindicações para que fossem encaminhadas pelo MPT e cobradas dos infratores por meio de instrumentos legais sem querer ouvir a Fundação Renova, o Ministério Público do Trabalho claramente aproveita as audiências para que sejam espaços de diálogo e escuta ao convidar para elas ambas as partes do conflito.

No que diz respeito às deliberações do Ministério Público nas audiências, não se observou qualquer sanção direta à empresa infratora. Foram proferidas deliberações em 38 audiências realizadas, restando apenas 4 audiências em que não houve deliberações. Mesmo que o Ministério Público do Trabalho tivesse o poder e a possibilidade de aplicar sanções por desobediência, ou estabelecer multa à empresa infratora, a opção sempre foi por estabelecer prazos e diálogo sem ameaças de atos cominativos. Os fatos mais comuns nas deliberações foram a designação de nova audiência, que ocorreram em 13 oportunidades, o encaminhamento da ata para a força-tarefa do Ministério Público, que aconteceu em 12 oportunidades e a intimação da empresa infratora para se manifestar sobre os assuntos tratados na audiência, que aconteceram em 14 oportunidades. Essas deliberações, algumas vezes, ocorreram concomitantemente.

Conquanto a análise do presente escopo se deu apenas com relação às atas das audiências realizadas nos autos do procedimento do inquérito civil, não foi possível auferir se a empresa infratora e/ou a Fundação Renova cumpria as determinações do Ministério Público do Trabalho, tampouco se a entidade investigadora em algum momento determinou o cumprimento de uma medida sob pena de sanção.

Os dados acima apresentados demonstram que o Ministério Público do Trabalho, no caso do desastre da Samarco, não era o único protagonista da ação ocultadas aos atores institucionais e da sociedade civil que é o requerimento da audiência. Houve um protagonismo duplo no qual as entidades de pescadores aproveitam as audiências como canal de reinvindicações e queixas em relação à Renova, demandando os encaminhamentos da alçada do MPT, enquanto este convocava as audiências com a presença de ambas as partes, criando, intencional ou não intencionalmente, espaços de escuta das partes.

Observou-se, na leitura dos autos, que a sociedade civil não tinha facilidade de contato direto com a empresa que causou o dano e nem tão pouco com a Fundação Renova que é responsável pelos programas de mitigação dos danos causados, tal acesso se dava através da audiência com a presença da empresa infratora ou através de determinação do procurador para que a empresa se manifestasse sobre eventual demanda da sociedade civil. Ou seja, o contato da sociedade civil com o Ministério Público do Trabalho, neste caso, serviu para dar voz à sociedade civil e para fortalecer as demandas junto ao responsável pelas políticas mitigatórias.

Nesse sentido, importa citar a fala do Presidente da Colônia de Pescadores Z6 de Linhares - ES, em audiência ocorrida no Ministério Público do Trabalho (Procuradoria de Colatina), em 08 de janeiro de 2019:

Tivemos muito resultado no MPT. Sempre tivemos resultado no MPT. Depois do que foi conquistado no início, nada mais acontece. Nossa vida acabou. Há muita confusão nas comunidades em razão da desorganização da Renova. Somente conseguimos acesso no MPT. Poucas autoridades nos recebem. (fala contida na ata da audiência realizada em 08 de janeiro de 2019, no Ministério Público do Trabalho, Procuradoria de Colatina, nos autos do Inquérito Civil nº 000321.2015.17.003/7)

 

Considerações finais

Este estudo de caso partiu da posição fomentada por Débora Maciel e Andrei Koerner (2002), que apontavam para a necessidade de trabalhos menos generalizantes, mais específicos e aprofundados sobre as formas de atuação do Ministério Público, a fim de se evitar visões genéricas e lineares sobre ela. A análise do conteúdo das 42 audiências ocorridas no Ministério Público do Trabalho de Colatina, no período entre novembro/2015 até abril/2019, deixou claro que as iniciativas de resoluções de problemas por meio do MPT partiam tanto da sociedade civil quanto do Ministério Público do Trabalho. Isto é, a análise deste caso apontou para o protagonismo no uso do MPT enquanto espaço de encaminhamento de demandas foi compartilhado com a sociedade civil: as entidades de pescadores reconhecem e buscam no MPT um caminho para escuta e apresentação das suas demandas, e o Ministério Público se mobiliza e abre seu espaço para discutir como reparar e compensar os direitos violados.

As audiências requeridas pelas entidades dos pescadores, em regra, contavam apenas com a presença do Ministério Público do Trabalho, enquanto as audiências requeridas por esta entidade contavam com a presença tanto da sociedade civil, quanto da empresa infratora. Percebeu-se, portanto, que a forma de atuação do Ministério Público do Trabalho trouxe a constituição de espaço de mediação entre os atingidos e a empresa infratora, o que aproxima esse achado do visão de Koerner e Maciel (2002). Para as entidades de trabalhadores, o MPT se configurou como um canal acessível para apresentação das suas demandas. O conteúdo das audiências, por sua vez, mostra que ambos os atores buscam resolver problemas concretos relacionados com as políticas públicas. No caso investigado, trata-se de programas não (suficientemente) implementados pela Fundação Renova, um ente privado encarregado de mitigar os danos causados pelo desastre sob a fiscalização do Estado. Isso nos indica que o MPT neste caso é visto e atua como ator na judicialização de políticas públicas. Vale ressaltar que no caso do desastre os atingidos enfrentam não só as dificuldades de terem seus direitos compensados e/ou reparados, mas também se deparam com o funcionamento de um novo modo de modelo de governança cujo desenho foge dos tradicionais canais de provisão de serviços bem como das conhecidas formas de pressão e reivindicação. Pela quantidade de audiências requeridas ao MPT, pode se depreender que este constitui canal conhecido e reconhecido de mediação entre setores da sociedade civil, Estado e aqueles a quem este delegou a provisão de políticas públicas.

 

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Recebido em: 11/10/2019
Aprovado em: 03/12/2019
Agência de fomento: Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA), no âmbito da chamada 6/2016, "Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce".

 

 

1 Atas de audiências do Inquérito Civil nº 000321.2015.17.003/7 da Procuradoria Regional do Trabalho da 17ª Região - Procuradoria do Trabalho no Município de Colatina.
2 Maciel, D. A. (2006) "A reconstrução institucional do Ministério Público no processo político da redemocratização". In III Congresso Latino-Americano de Ciência Política, Campinas, SP. Mimeo.
3 O procurador Bruno Gomes Borges da Fonseca, segundo o currículo lattes, é procurador do trabalho desde 2007, foi coordenador da Procuradoria do Trabalho de Colatina entre 2012-2018 e é professor da Faculdade de Direito de Vitória e Doutor em Direitos e Garantias em Direitos Fundamentais pela mesma faculdade.
4 Associação de Pescadores Renovo do Vale, SINDIPAR, Colônia de Pescadores, Sindicato de Pescadores de Baixo Guandu, Federação de Pescadores do Espírito Santo, Colônia de Pescadores Z5 Vitória, Colônia de Pescadores de Colatina, Colônia de Pescadores de Baixo Guandu, Associação Barra Nova Sul, Colônia de Pescadores Z-6 Linhares, Associação de Pescadores de Lorena Renovada.
5 A tabela só listou assuntos que apareceram com uma frequência maior ou igual a 3.

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