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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.spe São Paulo dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Campos de ação estratégica e os recursos de poder do sistema de gestão de recuperação de direitos na bacia do Rio Doce

 

Strategic fields of action and power resources of the rights recovery management system in the Rio Doce basin

 

Campos estratégicos de acción y recursos de poder del sistema de gestión de recuperación de derechos en la cuenca del Río Doce

 

Les champs d'action stratégique et les ressources de puissance du système de gestion du recouvrement des droits dans le bassin du Rio Doce

 

 

Larissa Galdino de Magalhães Santos

Doutora em Ciência Política, Unicamp. Pós-doutora em Sociologia, rede de pesquisa Com Rio Com Mar - Capes. Pós-doutoranda em Ciências Sociais Computacionais, Fundação Getúlio Vargas / larissagms@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

rompimento da barragem de Fundão, pertencente às empresas Samarco, BHP Billiton e Vale provocou o maior desastre socioambiental do país. A lama de rejeitos de minérios de percorreu a extensão do Rio Doce até o mar, causando diversos danos ambientais, sociais, econômicos e culturais. Este estudo analisa as estratégias de ação das comunidades atingidas no território capixaba, e as instâncias do sistema de governança do desastre para compreender quais os recursos e interações potencialmente avançam na luta por seus direitos. Em vista disso, o artigo explora aspectos jurídicos do desastre através dos dispositivos extrajudiciais que organizam a gestão da recuperação e reparação dos danos. A teoria dos campos é operacionalizada para compreender o cenário de negociação, estratégias de cooperação, coalização e contestação que foi desencadeado entre os atingidos, autoridades e agentes do mercado. A investigação foi realizada através do estudo de caso, grupos de discussão, e observação participante da tecnologia social Com Rio Com Mar Opinião Popular criada como apoio e suporte aos atingidos, e da atuação da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo.

Palavras-chave: Campos, Recursos, Instâncias, Resolução negociada, Atingido, Barragem.


ABSTRACT

The breach of the Fundão dam, belonging to Samarco, BHP Billiton and Vale companies, caused the biggest social and environmental disaster in the country. The ore tailings sludge ran the length of the Rio Doce to the sea, causing various environmental, social, economic and cultural damages. This study analyzes the strategies of action of communities affected in the state of Espírito Santo, and the instances of the disaster governance system to understand which resources and interactions potentially advance in the struggle for their rights. In face of the article explores the legal aspects of the disaster through the extrajudicial arrangements that organize the management of recovery and damage repair. Field theory is operationalized to understand the negotiation scenario, cooperation strategies, coalition and contestation that was unleashed among the affected, authorities and market agents. The investigation was conducted through case study, discussion groups, and participant observation of the social technology Com Rio Com Mar Popular Opinion created as support and support to those affected, and the performance of the Public Defender's Office of the State of Espírito Santo.

Keywords: Fields, Resources, Instances, Negotiated resolution, Reached, Dam.


RESUMEN

La ruptura de la presa Fundão, perteneciente a las compañías Samarco, BHP Billiton y Vale, causó el mayor desastre social y ambiental en el país. El lodo de relaves minerales se extendía a lo largo del río Doce hasta el mar, causando varios daños ambientales, sociales, económicos y culturales. Este estudio analiza las estrategias de acción de las comunidades afectadas en el estado de Espírito Santo, y las instancias del sistema de gobernanza de desastres para comprender qué recursos e interacciones potencialmente avanzan en la lucha por sus derechos. En vista de esto, el artículo explora los aspectos legales del desastre a través de los arreglos extrajudiciales que organizan la gestión de la recuperación y reparación de daños. La teoría de campo se operacionaliza para comprender el escenario de negociación, las estrategias de cooperación, la coalición y la contestación que se desató entre los afectados, las autoridades y los agentes del mercado. La investigación se realizó a través de un estudio de caso, grupos de discusión y observación participante de la tecnología social. Opinión popular creada por Com Rio Com Mar como apoyo y apoyo a los afectados, y el desempeño de la Oficina del Defensor Público del Estado de Espírito Santo.

Palabras clave: Campos, Recursos, Instancias, Resolución negociada, Alcanzada, Presa.


RÉSUME

La rupture du barrage de Fundão, appartenant aux entreprises Samarco, BHP Billiton et Vale, a provoqué le plus grand désastre socio-environnemental du pays. La boue de rebuts de minerais a parcouru l'étendue du Rio Doce jusqu'à la mer, causant divers dommages environnementaux, sociaux, économiques et culturels. Cette étude analyse les stratégies d'action des communautés touchées sur le territoire capixaba, et les instances du système de gouvernance du désastre pour comprendre quelles ressources et interactions pourraient progresser dans la lutte pour leurs droits. Cet article explore donc les aspects juridiques de la catastrophe à travers les dispositifs extrajudiciaires qui organisent la gestion de la réparation et de la réparation des dommages. La théorie des champs est mise en place pour comprendre le scénario de négociation, les stratégies de coopération, la coercition et la contestation qui a été déclenchée parmi les touchés, les autorités et les acteurs du marché. La recherche a été réalisée par l'étude de cas, des groupes de discussion, et l'observation participante de la technologie sociale Com Rio Com Mar Opinião Popular créée comme soutien et soutien aux touchés, et de l'action du Défenseur Public de l'Etat de l'Esprit Saint.

Mots clés: Champs, Recours, Instances, Résolution négociée, Touché, Barrage.


 

 

1. Introdução

Logo após o desastre do Rio Doce foram feitos arranjos institucionais intermediados por termos de ajustamento de conduta e ação civil pública.1 Dentre as ações, destaca-se a Ação Civil Pública (2015) que resultou no Termo de Transação Acordado, com criação da Fundação Renova e do Comitê Interfederativo.2 E a segunda Ação Civil Pública (2015) com o objetivo de averiguar o valor das compensações e reparações, bem como a perícia dos danos socioambientais e socioeconômicos, e principalmente a participação dos atingidos, resultando no Termo Ajustamento Preliminar e seu aditivo,3 e Termo de Ajustamento de Conduta Governança4 (Prado, 2018).

A composição destes processos suscitou críticas e mobilizações diversas. O planejamento de recuperação integral dos danos e reparação dos direitos estabelecidos pelos termos de conduta foi contestado desde seu primeiro formato por organizações da sociedade civil, atingidos e atores do sistema de justiça. Dentre os motivos do conflito sobre os termos e o sistema de gestão definido, destaca-se especialmente a falta de espaços de participação dos atingidos nas instâncias de tomada de decisão sobre o desastre, e que desencadeou a mobilização de organizações sociais e movimentos sociais, comunidades atingidas e tradicionais, setores da academia, com o apoio do Ministério e Defensoria Pública.

Analisar o conflito no em torno dos termos de ajustamento de conduta e de seus arranjos institucionais permite examinar a estratégia de ação dos atores. Neste artigo, avançamos o olhar sobre a constituição, sobre os termos legais e a disputa pelos recursos de poder. Para tanto, apresento o circuito de constituição dos termos utilizando as ferramentas analíticas da teoria dos campos de ação estratégica (Fligstein & Mcadam, 2012) para discutir os fenômenos produzidos por atores sociais.

No estado do Espírito Santo, agricultores familiares, comunidades urbanas e rurais, pescadores artesanais e povos indígenas dos municípios de Colatina, Baixo Guandu, São Mateus, Linhares, e das áreas de Aracruz, Fundão e Serra que foram afetados pela lama e pela pluma de rejeitos, têm se organizado em várias instâncias, tanto em comissões e fóruns quanto em movimentos sociais. Vale enfatizar que estes são municípios fundamentais para as atividades e pesca e turismo do Espírito Santo (Fiocruz, 2019).

Mesmo sem a oitiva dos atingidos quando da elaboração do primeiro termo de ajustamento de conduta, os programas de recuperação e reparação foram iniciados pela Fundação Renova sob a fiscalização do poder público. E somente em 2018, com a formalização do sistema de governança do desastre (TAC Governança) que os atingidos foram inseridos no processo.

O poder para formulação e execução dos programas de recuperação e reparação foi acessado, distribuído e determinado pelos termos de ajustamento de conduta.5 Os termos elaboraram e definiram as estruturas, instâncias e regras do sistema de gestão do desastre. Com as modificações, instâncias decisórias, fiscalizatórias, técnicas, propositivas e consultivas foram aperfeiçoadas e introduzidas para viabilizar a participação dos atingidos, dos especialistas, dos atores do campo do estado, das empresas e sociedade civil, no sistema de gestão para repactuar os programas e acompanhar a execução.

Porém, diversas negociações foram dadas entre as famílias atingidas, a empresa/Fundação e o poder público. Nesse campo de resolução negociada onde se encontram os termos de ajustamento de conduta, os atores não são iguais, cada qual localizando distintamente, e interagindo através de dinâmicas moldadas por valores e normas diferentes. Além disso, as instituições inseridas no campo de resolução negociada têm relações com outros campos aninhados, portanto são processos de negociação desiguais e transformados (Silva & Bussinguer, 2019). Essa reflexão tem como referência a Teoria dos Campos de Ação Estratégica de Neil Fligstein e Doug McAdam (2012).

A disputa sobre os recursos de poder estabelecidos pelos termos oportunizou a utilização de estratégias nas margens do sistema de gestão de desastre instituído. Os atingidos cooperando com atores hábeis - sistema de justiça e movimentos sociais, passaram a utilizar canais institucionais para obter acesso e poder sobre a repactuação dos programas e outras medidas necessárias.

Considerando os dois termos de ajustamento de conduta - TTAC e TAC Gov6, dois processos de negociação são relevantes para averiguar a hipótese de que dispositivos extrajudiciais são instrumentos importantes para recuperação e reparação dos direitos dos atingidos. Primeiro, quando analisamos os termos legais em que foi constituída a negociação do primeiro termo (TTAC) não há espaço para que o atingido seja protagonista no processo de resolução negociada. A disputa pelos recursos de poder levou a constituição de outros termos, cujo novo processo inclui arranjos de participação para os atingidos, contudo há aspectos de mútua constituição entre os arranjos de gestão do desastre e as estratégias institucionalizadas apoiadas nas habilidades dos atores do sistema de justiça. Por meio da análise do funcionamento dos termos e das ações dos atingidos, notamos a constituição de uma margem de ação impulsionada pela governança de negociação do conflito.

Há evidências de que as habilidades e estratégias dos atores, bem como as regras dos termos (como unidade de governança instituída) impactam no funcionamento do primeiro termo e do segundo termo, sob a ótica dos atingidos. Isso quer dizer que enquanto as instituições de governança do desastre não amadurecem, o processo se dá as margens, ademais, como uma margem institucionalizada.7

Embora as instâncias de repactuação dos programas sejam instituições estão em fase de maturação, os dados e a observação do campo mostram que se constituem uma margem de ação via Defensoria e Ministério Público, que é capaz de avançar com as demandas dos atingidos.8

Esse é um fenômeno que contraria a aparência da governança, cuja prerrogativa do arranjo foi de inclusão de vias de participação dos atingidos, mas as estratégias, até agora, se revelam distintas do que se poderiam esperar, abarcando um sentido mais amplo de justiça. Por outro lado, revela a tensão que viabiliza a margem de ação por fora do sistema de gestão do desastre, alinhada aos atores do Estado. A instituição da margem nos diz que o desenho de resolução do conflito, baseado em dispositivos extrajudiciais e sistemas de gestão evoluem menos do que ações jurídicas menos formalizadas das quais os canais são institucionalizados.

 

2. Campo de resolução negociada na bacia do Rio Doce no Espírito Santo: termos de ajustamento de conduta e unidade de governança constituída

Campos são ordens sociais onde atores munidos de recursos variados buscam obter vantagens (Fligstein & Mcadam, 2012). A dinâmica dessas arenas é limitada por atores individuais ou coletivos que interagem a partir de um entendimento mútuo e regras válidas para ação. Todos os campos possuem agentes ou grupos que trabalham pela manutenção da ordem, agem como árbitros vigilantes impondo regras (Acserald & Bezerra, 2007). Mas os campos são locais de disputa entre dominantes com maiores recursos para influenciar a manutenção do campo, e desafiantes, com menos recursos e uma visão alternativa do campo.

O fenômeno de negociação das resoluções do desastre reflete em estratégias de ação entre os atores, seja para contestar, cooperação e formar coalizões capazes de convergir na mobilização dos atingidos. A teoria de Fligstein e McAdam (2012) oferece recursos para examinar a construção das estratégias, disputas por recursos de poder, posição e hierarquia nos dois circuitos de construção dos termos: (a) do TTAC, e (b) do TAC Gov.9

O conceito-chave de unidade de governança é útil para analisar as regras que definem os recursos, posição e hierarquia dos atores na negociação, logo explora as disputas entre os atores, especialmente dentre as instâncias de gestão do desastre. O conceito de atores habilidosos é conveniente para compreender quais atores e quais recursos são mobilizados no campo de negociação resultando em vantagens para os atingidos.

Pouco se sabe sobre as estratégias dos atingidos. Primeiro porque as análises (Milanez et al. 2018; Santos, & Milanez, 2017) privilegiam os repertórios de ação e as relações de poder das empresas. Além do debate incipiente, autores (Milanez et al., 2018, p. 8) apenas mencionam "relações de poder, tanto internas quantos externas, entre os agentes dominantes e dominados", ... "Portanto, em nossa perspectiva, a estratégia é entendida como um padrão de fluxos de ações", sem aprofundar na complexidade da estrutura de governança do desastre, e o processo de negociação que se forma no entorno dessa, na luta pelos direitos dos atingidos.

Somado à complexidade da estrutura de gestão do desastre, algumas instâncias ainda estão em fazem de implementação destacando-se: estratégias desenhadas por fora do circuito dos termos a margem, tais como audiências públicas, mesas de diálogo elaboradas em coalização com agentes públicos, especialmente do Ministério Público e Defensoria Pública, e movimentos sociais, Movimentos de Atingidos por Barragens, mas também, o processo natural de institucionalização do arranjo do sistema de gestão do desastre, correspondente ao ciclo de vida e temporalidade própria de amadurecimento das instâncias (Lavalle, Voigt, & Serafim, 2016).

A partir das estratégias dos atingidos, podemos analisar as habilidades dos atores em promover a cooperação com outros, contestar regras e ações, ou ainda, formar coalizões para reproduzir regras e ações a favor de seus interesses.

Este estudo foi realizado através de análise documental, observação participante, e grupos de discussão no projeto Com Rio Com Mar Opinião Popular, que é uma tecnologia social de governança participativa dos públicos atingidos na bacia do Rio do Doce no Espírito Santo. Junto ao painel de participação popular, foram realizadas oficinas de capacitação com temáticas dos programas de recuperação e reparação de danos como suporte às lideranças das comunidades atingidas. Durante as oficinas, quatro até o presente momento, foram realizados grupos de discussão, idealizados pela autora, para debater os seguintes pontos: quais as ações da comunidade, quais as estratégias de mobilização dos atingidos e para quais autoridades são direcionadas as estratégias dos atingidos. Além disso, houve a participação nas mesas de diálogo realizadas pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo durante outubro de 2018 a setembro de 2019.10

Os resultados apontam que as estratégias dos atingidos: (a) foram elaboradas com diferentes atores, seja de contestação, cooperação ou coalização; (b) as estratégias e as interações diferem-se, mesmo entre as comunidades atingidas; (c) as estratégias dos atingidos não se dão apenas nas estruturas no sistema de gestão do desastre, mas, por vezes aciona outros atores institucionais, desempenhando novos repertórios menos formalizados, especialmente; (d) as instâncias do sistema de gestão do desastre estão num processo de institucionalização natural, portanto não é conveniente pressupor que não são ferramentas viáveis; (e) o processo legal não é linear e deve ser entendido no contexto político e relações de poder predominantes, que fazem parte de um jogo estratégico maior que envolve atores em litígios de luta sociopolítica, de estratégias ampliadas que incluem pressionar políticas, reformas e mudança social.

2.1. TACs e as estratégias para reparação dos direitos em contextos de rupturas sociais

O conflito entre as empresas, o Estado e os atingidos, realça o papel das organizações e movimentos dos agentes de sistema de justiça, na elaboração dos repertórios de ação, nas formas de engajamento das comunidades afetadas como sujeitos de direitos. Ou seja, na formatação do campo estratégico de ação dos atingidos.

No que se referem à elaboração dos termos de ajustamento de conduta, os atingidos foram inicialmente alijados do processo de construção do primeiro e segundo termo e seu aditivo, e posteriormente, passaram a enfrentar o desafio de funcionamento das instâncias no sistema de gestão do desastre.

Sob esta ótica, a abordagem da teoria dos campos estratégicos (Fligstein & Mcadam, 2011, 2012), oferece lentes analíticas para acolher as divergências e estratégias entre os atores, emergência e transformações entre os campos. Ao longo dos circuitos de construção dos termos de ajustamento de conduta, no âmbito do campo de resolução negociada, de um lado estão os atores dominantes do campo das empresas e partes do campo do Estado, e de outro, os desafiantes do campo dos atingidos e movimentos aliados, mobilizaram diferentes capacidades e recursos para organizar a gestão do desastre, bem como os programas de reparação e recuperação de acordo com seus interesses.11

Dentre as formas de negociação previstas nos termos, temos que: primeiro, o programa de negociação acordada, cláusula presente no TTAC, e que previa a negociação direta entre atingidos e empresa, com a garantia de assistência jurídica, mas que na prática não funcionou; segundo, a repactuação das ações, projetos e programas através do sistema de gestão e as instâncias criadas com o TAC Gov; terceiro, o novo repertório, às margens destes outros processos, e que emerge da tensão impulsionada pelo arranjo de governança instituído, e o alinhamento dos atores do sistema de justiça com o campo de atingidos.

O Termo de Transição de Ajustamento de Conduta (TTAC) foi celebrado em decorrência do rompimento da Barragem de Fundão em Mariana, no âmbito da Ação Civil Pública de 2015. Foram convencionadas as medidas reparatórias de caráter imediato. Para viabilizar o cumprimento das medidas foi criada a Fundação Renova, responsável pelo custeio e execução dos programas, e o Comitê Interfederativo, para definir as prioridades de execução, monitoramento e fiscalização sob as ações da Renova.

De mesmo modo, o Termo de Ajustamento de Conduta Governança (TAC Gov) que data de 2018 e vincula-se à Ação Civil Pública de 2016, instituiu a implementação das instâncias de participação, consulta, fiscalização e suporte técnico aos atingidos para revisão dos programas da Fundação Renova. O TAC Gov garantiu ainda, a repactuação do primeiro acordo, o TTAC, através dos estudos elaborados por experts, conforme definido nos acordos preliminares, o Termo de Ajustamento Preliminar e o Termo Aditivo, ambos de 2017.

Neste cenário de conflitos e ruptura social que se inserem os termos e o cumprimento de obrigações entre as partes, diferentes atores em seus respectivos campos apropriam-se do funcionamento dos TACs, munidos de recursos e habilidades, criando novas estratégias e coalizões.12

Um campo de ação estratégica é construído pelas práticas sociais, que incluem a definição das regras relevantes, recursos e a habilidade dos atores em influenciar vis à vis (Fligstein, 2007, 2012). Estabelecidos em suas posições sociais, os atores influenciam ou restringem as ações dos outros atores e campos que estão lutando (Fligstein & Mcadam, 2012).

Uma vez que o desastre figura uma ruptura na ordem social (Fligstein & Mcadam, 2011, 2012), novos arranjos surgem, e novas estratégias são estabelecidas considerando a ordem sociológica das interações entre atores e campos (Toyama, 2015). O campo de atingidos emerge com o desastre e carrega consigo características aspectos da posição subalterna do dominado, perante a lógica neoextrativista13

Por outro lado, atores são socialmente ativos e capazes de produzir mudança na ordem social e em seus próprios campos através dos padrões de interação (Fligstein & Mcadam, 2012). Mesmo em um campo emergente, como no caso dos atingidos, os atores podem cooperar uns com os outros e traçar estratégias, ainda que existam contestações e competições. Isso implica nas estratégias condicionadas a partir da implementação da gestão do desastre, onde a habilidade social de determinados atores é componente central nas transformações do campo dos atingidos.

Logo, a construção dos termos de ajustamento de conduta e o mosaico de instâncias de gestão do desastre manifestam fenômenos sociopolíticos complexos, na interface entre a mobilização política, a estrutura de oportunidades, estratégias, interesses e recursos.

Entre o primeiro termo (TTAC) e no último termo (TAC Gov) indicamos duas estratégias, permeadas por relações de contestação, cooperação e coalização entre grupos diversos, movimentos sociais, agentes estatais e agentes do sistema de justiça. As estratégias relacionadas desde a instituição do TTAC operam as margens dos termos, pois não obedecem às normas específicas, mais flexíveis. Contundo, opera através de canais institucionalizados de justiça14. Já as estratégias relacionadas ao TAC Gov passam pela complexidade das instâncias de gestão, das capacidades, habilidades e posições dos atores dentro do sistema, refletindo em padrões decisórios, institucionalização e o ciclo de vida das instituições.

Os processos de constituição em que se baseiam os termos de ajustamento de conduta é uma arena de disputa de repactuação dos programas entre atingidos, mercado e Estado, configurando o campo de resolução negociada. Este é um campo historicamente minado interesses políticos e econômicos, sobrepondo o respeito ao patrimônio público e ao meio ambiente.

Nos anos que antecederam o desastre, uma série de incentivos às políticas neoextrativistas e "comoditização" do minério se fizeram presentes. Muitas vezes, negligenciando avaliações precisas sobre a segurança, os impactos e a capacidade estrutural das empresas, e especialmente, anulando as limitações e condicionantes ambientais para o funcionamento dos grandes complexos (Milanez, Wanderley, & Souza, 2017). Estes são os aspectos que norteia o campo do Estado e que toca em partes do campo de resolução negociada.

Já o campo do mercado, experimentou a nova onda de desenvolvimento no início dos anos 2000, com a intensificação de exportação de commodities, como o minério de ferro. Todavia, com desvalorização do minério no mercado internacional, as empresas "enxugaram" os gastos, eliminando atividades legalmente exigidas para seu funcionamento - como a segurança das barragens, e que colocavam a população em risco perante os potenciais danos da mineração.

Esta conjuntura de fatores conduz a outro diagnóstico relativo às populações impactadas, o racismo ambiental. Usualmente a escolha das localidades dos empreendimentos é feita de acordo com o menor custo, ou seja, áreas situadas nas periferias e povoadas pela população em vulnerabilidade. A escolha tem a intenção de insulamento das comunidades impactadas que não fazem parte de grupos economicamente e politicamente dominantes (Wanderley et al., 2016).

Observe que tanto os campos do Estado como o campo do mercado possuem interesses e estratégias mais próximos, por isso quando encenam ações no campo de resolução negociada estabelecem repertórios de ação que os mantenha na posição dominante, com relação aos demais atores. Este posicionamento reflete diretamente no formato do primeiro termo de ajustamento de conduta e na emergência do campo de atingidos.

Diante do cenário impreciso sobre a complexidade do acidente e da celeridade do ponto de vista jurídico-legal, optou-se pela assinatura do termo de ajustamento de conduta. Entretanto a escolha pelo dispositivo confirma a tendência do Estado brasileiro pela opção de soluções extrajudiciais vinculadas ao sentido de justiça eficiente, harmônica, pacífica, e que preconiza a negociação e acordo (Viégas et al., 2015), atrelado ao modelo capitalista industrial de desenvolvimento (Carvalho & Almeida, 2018).

De certa forma, a permissividade do Estado se deve à construção de uma relação promíscua entre governos e empresas mineradoras. Ela está relacionada, em grande parte, ao tráfico de influência que era potencializado pelas doações empresariais às campanhas eleitorais, admitidas até a reforma eleitoral de 2015. ... Essa prática se reproduzia em todas as esferas federativas e em ambos os poderes (Executivo e Legislativo), tornando seus agentes defensores dos interesses do capital privado e comprometendo a atuação do poder público na defesa da sociedade. Com o cenário político cuidadosamente controlado pelas empresas. (Milanez, Wanderley, & Souza, 2017, p. 29)

2.2. Transformações no campo da resolução negociada

O campo de resolução negociada toca em partes do campo de atingidos, subcampo das organizações da sociedade civil, entidades, movimentos sociais, mas também toca, no campo do mercado, no subcampo mineradoras, e nos subcampos estatais, como o subcampo do judiciário.

Este "contato" em si são relações de interação, de cooperação, coalização e contestação, envolvidos num jogo de interesses, e dele carece a solução, a negociação, o acordo dado no campo da resolução negociada. Os termos de ajustamento de conduta foram os mecanismos para estabelecer as regras e leis para solução do conflito, portanto caracterizam-se unidades de governança constituídas (Fligstein & Mcadam, 2012). Contudo os mecanismos também foram alvo de negociação entre os atores, influenciando na configuração dos próprios campos, atores e nos padrões de interação. As unidades de governança envolvem a distribuição dos poderes, recursos e decisões entre os campos, podendo haver assimetrias de poder.

Uma vez que o modo de governança é também uma característica particular de um campo de resolução negociada, ou seja, disposto a estabelecer "acordos" capazes de planejar, formular e programar políticas e cumprir funções, a unidade governança é um importante ator coletivo no processo. Nele, atores têm autoridades para resolver litígios e reconfigurar regras dentro de um campo (Acserald & Bezerra, 2007), logo é plausível assumir que, sendo estas as funções da unidade de governança (Fligstein & Mcadam, 2012), esta é uma condição privilegiada e dotada de capacidades num campo de resolução negociada.

Teoricamente, os termos de ajustamento de conduta dão sentido ao caráter disciplinador da unidade de governança (Fligstein & Mcadam, 2011, 2012), melhor dizendo, são os termos que estabelecem os ditames jurídicos que institui as regras, posições, recursos e hierarquias pelas quais as decisões se fazem.

O próprio campo da resolução negociada é também modificado com circuito das negociações dos termos. Principalmente, pela atuação de atores do campo da justiça e subcampos estatais que atuam como "empreendedores" institucionais, "disputando entre si a autoridade/perícia para arbitrar os conflitos especificamente ambientais" (Acserald & Bezerra, 2007, p. 13). Assim, os atores do subcampo estatal, Ministério Público e Defensoria Pública, atuaram na unidade de governança constituída, munidos de suas habilidades e capacidades de propor, decidir, fiscalizar, diagnosticar e legitimar as regras do jogo que produziram os termos de ajustamento de conduta.

Para embasar a associação entre as transformações no campo da resolução negociada de modo a enfatizar as negociações na unidade de governança e os termos de ajustamento de conduta, apresentamos quatro cenários:

Primeiro quadrante: o cenário de choque e ruptura da ordem social ilustra o momento do desastre, em que o campo do mercado entra em crise diante dos episódios de contenção estimulados pelas ações judiciais, mobilizações sociais, negociações sobre para recuperação dos danos e reparação dos direitos, bem como a emergência no campo de atingidos, especialmente no que se refere à bacia do Rio Doce no Espírito Santo;

Segundo quadrante: cenário remete ao campo da resolução negociada estruturado de acordo com o TTAC destaca a instituição do processo de gestão da recuperação e reparação do desastre através do termo. O termo foi marcado pela exclusão dos atingidos das instâncias de poder, bem como das negociações. Em vista disso, os atingidos ficaram deslocados de qualquer posição capaz de mobilizar recursos nas arenas de distribuição de poder sobre as políticas de recuperação e reparação. Os atores do mercado mantiveram-se na posição de incumbentes neste primeiro cenário do campo de resolução negociada e muito próximos de atores estatais, que legitimaram as regras da unidade de governança cujo processo de elaboração e implementação dos programas foi destinado à Fundação Renova e o Comitê Interfederativo. Note que a unidade de governança repartiu posições, regras e respectivos recursos através da elaboração do termo, somente entre os atores do Estado e do mercado.

Terceiro quadrante: cenário de aplicação do Termo de Ajustamento Preliminar e de seu aditivo, e que se refere à instituição das condições da perícia e assessoria técnica ao Ministério Público, do diagnóstico dos dados socioambientais e socioeconômicos das dimensões do desastre e daquilo que já havia sido realizado nos programas de reparação. Contudo, o novo termo além de não abrir espaços de interação com os atingidos, definiu os termos de perícia para melhoria do sistema de gestão interna, ou seja, priorizando a lógica estabelecida pelos atores do mercado, representantes dos interesses das empresas.

 

Figura 1

 

Com as críticas ao esvaziamento do diálogo com a população atingida, o termo aditivo adicionou condições de participação ao eixo socioeconômico, enfatizando as relações territorializadas, as negociações coletivas e entidades por escolha livre. No tocante às instâncias consultivas foi criado o Fórum de Observadores para promover o controle sobre as perícias.

cenário foi um avanço para população atingida, principalmente pela instituição das assessorias locais, somado ao impulso de transparência das ações, acessibilidade às informações, e a criação de um fórum independente para fiscalizar a atuação das entidades. Todavia, os espaços ainda estão submetidos ao "tempo" do sistema de gestão, processo natural de institucionalização (Lavalle, Voigt, & Serafim, 2016). A tendência é que os atingidos continuem criando estratégias na margem do processo de negociação dos termos.

Quarto quadrante: cenário do TAC Gov finalizou a sequência de termos relativos às ações civis públicas, uma vez que implica na realização de perícias, tratou de incluir novas instâncias com a participação dos atingidos no sistema de revisão dos programas. De fato, o fluxo instituído para revisão das ações, projetos e programas enfatiza múltiplos caminhos de repactuação e que resulta nas políticas públicas de recuperação e reparação. Além das instâncias anteriormente criadas, foram adicionadas as comissões locais, as câmaras técnicas e a câmara regional, mudanças no conselho curador, e conselho consultivo da Fundação Renova.

Atualmente o campo de resolução negociada experimenta certa estabilidade15. Portanto, atores habilidosos negociam e interagem nos circuitos dos termos e as margens deles. Esses atores habilidosos são dotados de capacidades, recursos, e da leitura com relação às ações dos outros, elaborando assim, um enquadramento com objetivos, interesses e identidade, que mobiliza outros atores (Fligstein, 2007).

Os atores diversos se encontram, dotados de recursos e níveis de habilidades diferentes diante de algo que está em jogo, são eles: (a) dominantes (ou incumbentes): empresas, Fundação Renova e alguns agentes do Estado; (b) desafiantes: atingidos, movimentos e organizações sociais, agentes do sistema de justiça e dos órgãos governamentais; (c) e as unidades de governança (ator coletivo): conjunto de atores diversos cuja função atribuída é de organizar o cumprimento dos termos, ou seja, técnicos, representantes governamentais e sociais, atingidos, experts, agentes do sistema de justiça, e que compõem as instâncias de participação e repactuação dos programas de reparação e recuperação do desastre.

Muito embora as estratégias entre os atores do mercado, Estado e atingidos deveriam utilizar o sistema de gestão do desastre, existem outras estratégias para acessar o poder decisório sobre a revisão do TTAC entre os atingidos.

2.3. Definindo as estratégias de ação nas margens no sistema de gestão do desastre

O processo de reparação do desastre foi instituído em 2016 com a criação da Fundação Renova e do Comitê Interfederativo quando da assinatura do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta. Coube ao ente privado à promoção dos 42 programas de reparação e compensação. Todavia este acordo teve como essencial problema a desconsideração da participação do atingido nos poderes decisórios, como supracitado.

Em vista disso, o TAC Gov, assinado em 2018, previa o aprimoramento das estruturas de gestão do desastre, constituída anteriormente pelo TTAC. O novo termo passou a garantir a participação dos atingidos nos procedimentos de recuperação através das instâncias.

Todavia as mudanças nos termos não foram processos isentos de interesses e de estratégias. O campo dos atingidos e outros atores em cooperação e coalização estabeleceram estratégias pela luta dos direitos sociais, reparação e recuperação, tanto via Fundação Renova e Comitê Interfederativo, como as margens do sistema de gestão e suas instâncias.

Isso porque, esses processos extrajudiciais que visam à criação de consenso, também podem reproduzir desigualdades e viabilizar injustiças (Acselrad & Bezerra, 2010). Por este ângulo, esses instrumentos - do ponto de vista dos campos estratégicos, podem facilitar a manutenção do status quo interessantes aos atores dominantes (incumbentes).

Os atores do campo do mercado também mantiveram estratégias que fogem às instâncias do sistema de gestão, como as negociações no nível local, onde os acordos são potencialmente particularizados, ignorando as implicações do desastre em longo prazo. Isto é, parte da estratégia dos atores incumbentes para desmobilizar a organização coletiva, e dificultar o acesso efetivo dos atingidos ao poder de tomada de decisão, pelo acúmulo de instâncias e barreiras cognitivas, repletas de diferentes atores e estratégias.

Observando o campo de resolução negociada em torno do desastre e a repactuação dos programas, existe uma variedade de interpretações sobre o que acontece no campo, e por isso, atores têm estratégias diferentes. Existem agentes com menos poder e mais poder, e esse poder tem relação com as habilidades sociais, recursos e instâncias de negociação do campo. Há um compartilhamento sobre as regras do campo, e que refletem sobre o formato das instâncias, as decisões e acordos que fazem sentido na interação entre os agentes. O quadro interpretativo das estratégias construídas é estabelecido perante a reflexão das ações de outrem e que podem utilizar outros caminhos que não as instâncias para acessar poder.7

Os dados mostram que enquanto as instâncias do sistema de gestão do desastre estão em processo de maturação, as estratégias de ação dos atingidos continuam ocorrendo nas margens do processo. Por isso, a seguir, analisa-se (a) estratégias "nas margens dos termos", ou seja, que acessam outras instituições e atores através de coalizões e cooperações; (b) e as estratégias desenhadas dentro do sistema de gestão do desastre. O cerne é explicar quais as evidências que impedem os atingidos em avançar com suas demandas utilizando as estratégias via sistema de gestão; e por outro lado, como estratégias mais flexíveis utilizam canais institucionalizados com relativo sucesso.

 

3. Estratégias de ação na margem dos termos de ajustamento de conduta

De acordo com a Constituição (artigo 134) cabe a Defensoria Pública a orientação jurídica, e o compromisso com promoção dos direitos coletivos e individuais, seja no grau extrajudicial ou judicial. Logo, não se altera por instrumento público ou particular a execução de intervenções pelos agentes públicos, mesmo no caso de termos de ajustamento de conduta.

Desde agosto de 2016, através da Portaria nº 518, o Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (NUDAM) da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo assumiram as atribuições das atividades relacionadas ao Grupo de Trabalho SOS Rio Doce.

O grupo de trabalho foi criado em caráter emergencial, por meio de Ato Normativo nº 003 de 13 de novembro de 2015. O grupo foi organizado pelos próprios defensores e iniciou visitas às áreas e comunidades impactadas. Num processo de inovação institucional, os defensores iniciaram o processo de escuta com os atingidos tendo em vista que os mesmos não foram envolvidos no acordo celebrado (TTAC).

fica desde já esclarecido que a Defensoria Pública cumprirá seu papel constitucional de promover acesso à Justiça aos mais necessitados, inclusive impugnando, se necessário, qualquer cláusula que cause prejuízo às vítimas da tragédia, informando desde logo que utilizará todos os recursos disponíveis para a proteção dos mais vulneráveis, até mesmo levando o caso a Cortes Internacionais de proteção a direitos humanos, se for o caso. (DEF/ES, 2016, grifo nosso)

Observa-se que desde 2016, o Nudam, dando continuidade ao trabalho do grupo de trabalho, lança mão de recursos, organizado sob o escopo de estratégias para garantir a defesa dos direitos dos atingidos. Dentre as ações estratégicas, destacam-se (DEF/ES, 2016).16

• O núcleo acompanha cerca de 160 ações que foram propostas pelo Grupo SOS Rio Doce, no município de Linhares;

• Atua com outras instituições, como a composição do Grupo Interdefensorial do Rio Doce (GIRD), junto da Defensoria da União e do Estado de Minas Gerais;

• Organizar e mobilizar os atingidos através de reuniões locais e presença nas comunidades, orientando sobre a defesa dos direitos;

• Promove atividades educacionais sobre direitos, através de reuniões desburocratizadas nas comunidades, permeadas pelo processo de conscientização dos direitos, de modo a reforçar vínculos de confiança com a comunidade e conduzi-las ao centro das discussões.

• Realiza votações e atas com as considerações dos atingidos em todas as reuniões, através da deliberação sobre as ações que poderão ser desenvolvidas junto da Defensoria Pública;

• Atua estrategicamente na defesa dos direitos humanos, para que as comunidades da Bacia do Rio Doce no Espírito Santo sejam reconhecidas e acessem os direitos de auxílio financeiro, indenizações, compensações, entre outros importantes.

As ações e estratégias desenvolvidas, tanto pelo antigo Grupo SOS Rio Doce, quanto pelo Núcleo de Defesa Agrária e Moradia realçam a mobilização política, para além da tendência de avanço do sistema de justiça na defesa dos direitos sociais. As estratégias iniciaram-se desde a constituição do TTAC.

Além das atividades já listadas, outros instrumentos menos formais foram utilizados pelo Nudam, tais como: notas técnicas, notas de recomendação, audiências públicas, formação de comissões locais, mesas de diálogo e mesas de negociação.17

Essas são formas de intervenção e suporte jurídicos menos institucionalizados, sendo desburocratizadas têm a vantagem de reforçar a coesão das estratégias, o enquadramento e repertório produzido pelos atores habilidosos em coalizão, defensores e lideranças das organizações da sociedade civil e movimentos sociais (Fligstein & Mcadam, 2011, 2012).

É, portanto, uma combinação de institutos do suporte jurídicos menos formalizados, mas capazes de promover resultados formais. Além disso, os institutos ganham corpo porque estão baseados na combinação da mobilização política dos defensores da direção da promoção dos direitos sociais e lawfare, quando se usa o direito pra criar efeitos similares aos tradicionais, mas pelas ações políticas.

Ainda que os documentos que embasam as intervenções sejam do tipo de "título extrajudicial", se o acordo celebrado for diante de um defensor e as partes, tem, portanto valor de título executivo, de acordo com a Constituição Federal, o que denota caráter de avanço resolutivo para as estratégias estabelecidas.

Importa ressaltar que atualmente esses recursos são utilizados pelos defensores junto das comunidades. Algumas vezes são levadas às instâncias do sistema de gestão do desastre construído pelo TAC Gov, ou acionam diretamente na Justiça o jurídico da Fundação Renova. Esses recursos, institutos do suporte jurídicos menos formalizados, são combinados durante as atividades de educação em direitos, reuniões de mobilização promovidas pelas comunidades assistidas, cuja organização é feita pelos atores habilidosos do campo de atingidos e reforçada pelo suporte jurídico dos defensores.

Esses são recursos estratégicos baseados na legal mobilization, cujo protagonismo é na ação dos usuários, portanto o direito mobilizado como:

Recurso de interação política e social..., nesse sentido, a mobilização do direito é uma atividade política por meio da qual a autoridade pública das normas é convertida pelos agentes em forma relevante de participação nos sistemas democráticos. (Maciel, 2011, pp. 99-100)

As lideranças das comunidades atingidas, que são atores cujas habilidades são capazes de promover a coesão e um quadro cultural comum e compartilhado, atuam como porta-vozes das estratégias dos atingidos, obtidas durante os grupos de discussão das oficinas do Com Rio Com Mar Opinião Popular. O discurso grupal indicou como principais ações, estratégias e autoridades que estão nas margens do sistema de gestão do desastre.

Oficina 118

Grupo 1
Recorrer à audiência pública para aprovar opções para a comunidade. [...] E elaborar documentos públicos para as secretarias municipais, MP (Ministério Público) e órgãos estaduais que fiscalizam.

Grupo 2
Cobrar respostas e a execução dos projetos da Renova, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Comitê Interfederativo.

Grupo 3
Mobilizar a comunidade para criar um plano de ação. Participar dos conselhos municipais com [pelo] plano de ação. Sensibilização da mídia e visibilidade.

Acionar o legislativo local, secretarias e organização da sociedade civil.

Grupo 4
Tem que nivelar as demandas das diferentes comunidades. Explicar para o atingido que não tem definição das demandas. [...] Tem que dividir mais as experiências. [...] Parcerias com a sociedade civil. [...] Parceria com a rádio que é um recurso pouco usado. Acionar a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Ministério Público Estadual, ONGs, poder judiciário, Sistema Único de Saúde, dioceses, SAAE (serviço municipal de abastecimento de água) e fórum.

Avaliações gerais entre os grupos:
Provocar os municípios. Em Linhares tem um comitê intersetorial. Como cobrar junto à conta da Lama? A maioria das autoridades e representantes municipais participa nos espaços da câmara técnica e do CIF.
Reavivar o Fórum Rio Doce.
A Defensoria Pública parece que foi mais presente durante toda luta.

Reunião local com lideranças municipais da Oficina 2
Desafio muito grande, mas eu nem falo em movimento social, porque estamos inseridos em vários. O governo está afastado dos atingidos, já nem existem as "peixarias".
O povo colatinense é acomodado, e isso dificulta a mobilização.
Tem que provocar os representantes da bacia do Rio Doce. O secretário de meio ambiente municipal, onde está?
Fazer vídeo para divulgar sobre a contaminação com um depoimento de cientistas para mobilizar.
Existem lutas em comum, as lutas não precisam ser individualizadas. O problema da água atinge todos [...] e acabo o rio.
O meu filho fica na escola e toma água contaminada. Como vou mobilizar os pais? Eu compro água mineral.

Reunião local com lideranças municipais da Oficina 3
Chegar aonde a gente quer [...] que é um direito da nossa comunidade. Se continuar assim, Barra Sul acaba. E os pescadores do lugar?
Estamos esperando a Samarco até hoje.
A gente não foi reconhecido. E ainda temos dificuldade para vender o peixe que pode estar contaminado. A gente come também, porque não tem como comprar. A gente sabe que está contaminado.
Eu busco informações para trazer para a comunidade. E muitas vezes os pescadores não veem a reunião participar. Então a gente não se junta para lutar pelo nosso direito.

Oficina 4

Grupo 1
Pesquisa independente com a participação dos movimentos sociais. Assessoria técnica para cobrança. Transparência nos processos.
Acionar as secretarias do executivo, as comissões permanentes do legislativo, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e órgãos governamentais.

Grupo 2
Comunicação direta com as lideranças via whatsapp e chamadas oficiais pela câmara técnica sobre todas as ações relativas ao turismo promovidas pela Fundação Renova.
Acessar o judiciário e direcionar as prefeituras sobre os programas.

Grupo 3
Produção de documentos como protocolos para embasar judicialmente a ação civil pública, e acessar diferentes autoridades. Acessar o legislativo federal para criar leis.
Autoridades para levar os documentos e denúncia: Defensoria, CIF, Ministérios Público, Ministério da Pesca, Defensoria e legislativo federal.
Autoridades para acessar e apoiar: GT Pesca, CPP, Sindicatos e associações.
(COM RIO COM MAR OPINIÃO POPULAR, 2019)

Os discursos das lideranças, enquanto empreendedores institucionais refletem a contestação às formas tradicionais de interpretação do conflito e a necessidade de criar novos cursos de ação. A ação coletiva perpassa a coesão dos grupos dentro do campo dos atingidos, na medida em que as identidades coletivas devem ser motivadas para estratégias efetivas.

Os ativistas com ideias semelhantes aprendem uns com os outros, e também influenciam as estratégias dos oponentes. Os atores mudam as táticas conforme as estruturas de oportunidades e utilizam a lei nas estratégias que envolvem processos judiciais, mas o uso da lei não o litígio em si. É perceptível o uso de estratégias mais amplas, como campanhas, mobilizações, lobby e que são alavancas para a luta sociopolítica.

As estratégias de contestação indica a mobilização de recursos e práticas para reafirmar a organização do campo dos atingindo, uma vez que as estratégias estão diretamente relacionadas às ações locais, incluindo ações diretas de cobranças das autoridades locais. Um elemento comum no discurso das lideranças é a percepção sobre os atores do sistema de justiça como "aliados" na produção de documentos, na cobrança aos poderes locais e dos demais entes governamentais.

O caso Rio Doce, pela sua magnitude, é um exemplo deste comportamento do Estado com o indivíduo. O estabelecimento do sistema CIF e da Fundação Renova à revelia das comunidades afetadas, somado ao caráter refratário do TTAC à participação social7, estabeleceu o "impactado" como um objeto de estudo, um dado a ser coletado Por isso, deve se evitar a todo custo o estabelecimento de rotinas demasiadamente burocráticas para atendimento e a tomada unilateral de decisões, pois a indisposição para ouvir e compreender as demandas, o afastamento do indivíduo das estratégias para a conquista de direitos e do processo decisório dá ao Poder Público e à instituição, seja Defensoria Pública, Ministério Público ou Poder Judiciário, contornos autoritários, reproduzindo preconceitos e desigualdades no caminho do acesso à Justiça. ... Além disso, é importante fomentar o protagonismo das comunidades atingidas na construção das ações necessárias para defender os seus direitos. (Portella, 2019, pp. 5-9)

As estratégias baseadas em lawfare enfatiza o uso intencional de ações que envolvem os direitos e as instituições legais como parte de uma luta contínua e contenciosa sobre o comportamento do Estado. Logo as ações de litígio só se tornam lei quando enquadradas numa estratégia ampla, capaz de provocar uma mudança normativa que visa a transformação social.

O discurso grupal nos conduz a outra dimensão relativa às habilidades dos atores em unir os grupos, ajudar e reorganizar as preferências. O processo de agregação das preferências é presente, mas ainda carece de assumir vida própria. Assim, novas coalizões e cooperações poderão se estabelecer no âmbito dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Pois à medida que novos quadros ganham "defensores no campo", a estrutura de emergência do campo dos atingidos e o repertório de ações, regras e interesses tende a reforçar a estrutura do campo (Fligstein, 2007).

O contato direto e a construção de vínculos com o destinatário final das medidas judiciais ou extrajudiciais revelam-se não só necessárias por um imperativo legal, mas também como estratégia de atuação para maior efetividade das medidas a serem empreendidas. A experiência no caso Rio Doce tem fortalecido a ideia de que trabalhar a mobilização dos afetados é pressuposto para qualquer trabalho de defesa dos direitos humanos de comunidades impactadas, seja por desastres ou por grandes empreendimentos. A DPES construiu nos territórios capixabas, em conjunto com a DPU e MPF, vínculos com comissões locais, associações, sindicatos, lideranças e movimentos sociais e grupos acadêmicos, de modo que pudesse adquirir uma visão mais fidedigna dos problemas dos territórios e de suas demandas. (Portella, 2019, p. 8, grifo nosso)

Conforme realçado acima, estratégias de lawfare incluem litígios motivados por objetivos de transformação social, para além de um processo judicial individual, em que atores estão envoltos em lutas sociopolíticas num tempo prolongado, e que permite explorar os processos de politização em várias áreas políticas.

3.1. Estratégias de ação e o TAC Gov: processos de negociação e as instâncias do sistema de repactuação dos programas de recuperação e reparação19

O modelo de governança instituído pelo TAC Gov pressupõe outro espaço para delimitação das estratégias. Isso porque as arenas são instâncias formatadas por regras, funções e fluxos. Como sistema de gestão do desastre atua sob o escopo do corpus da unidade de governança - atores habilidosos alocados nas pelas instâncias; e cujos recursos variam conforme o sistema de revisão das ações, projetos e programas de recuperação e reparação.

As posições dos atores são definidas de acordo com as regras e estrutura organizacional mantida pela unidade de governança situada num campo de resolução negociada do conflito. Consequentemente, os atributos do campo servem para mostrar como diferentes atores, em diferentes posições, portanto, possuidores de determinados recursos e habilidades, agem engenhosamente perante o que está em jogo.

O processo de negociação pautado entre as instâncias e as interações entre os atores é pautado nas seguintes concepções: (a) cada instância tem suas regras mantidas pela unidade de governança; (b) cada instância tem uma função e desempenho na estrutura do sistema de gestão do desastre; (c) cada ator alocado dentro da instância ocupa determinada posição relacionada aos recursos acessíveis; (d) a distribuição dos atores entre incumbentes e desafiadores, mais poderosos e menos poderosos depende de qual a instância que ele ocupa no campo; (e) a combinação dos elementos anteriores reflete na estratégia de ação do ator entre as instâncias que dão acesso ao poder sobre as políticas públicas.

Sobre a concepção das regras, função e desempenho das instâncias do sistema de gestão do desastre, temos que:

Fundação Renova: organização criada pelo TTAC cujo objetivo é a reparação e compensação dos danos. A fundação deve cumprir os 42 programas estipulados pelo TTAC, apoiando-se nas instâncias criadas pelos termos e aditivo. Apesar do alargamento do processo de negociação, com a participação dos atingidos nas diversas instâncias, as capacidades de atuação da organização governamental são, principalmente de custeio de todos os processos, e implementação e execução das políticas, e ainda de proposições e adequações na articulação com as câmaras.

Conselho curador: é uma instância interna da Fundação, responsável pelo acompanhamento dos programas, aprovando as proposições da Diretoria Executiva da Fundação, bem como a execução do programa de compliance, através de auditoria externa e independente, de natureza contábil e financeira, de modo a fiscalizar a execução dos programas e da Fundação.

Conselho consultivo: o conselho também é instância interna da Fundação criada como um espaço representativo da sociedade civil dentro da organização privada cujo objetivo é opinar sobre os planos e indicar propostas de solução sobre os danos.

Diretoria executiva: prestação de informações sobre as atividades da Fundação, levando ao conhecimento da justiça as dúvidas e reclamações dos atingidos.

Fórum dos Observadores: acompanha os trabalhos das assessorias técnicas e avalia os diagnósticos produzidos, bem como, pode apresentar críticas e sugestões ao trabalho da fundação, mas de forma consultiva.

Comitê Interfederativo: detém as atribuições de orientar, acompanhar, monitorar e fiscalizar as condições dispostas nos termos e a atuação da Fundação articulada com as demais instâncias e atores. No que se refere à revisão dos programas, cabe ao comitê a deliberação sobre as deliberações e a divulgação dos relatórios dos auditores e técnicos. Assim, o comitê é a principal instância de interlocução com os atores acompanhando e validando todos os processos de negociação, o que está diretamente relacionado ao controle e a tomada de decisão sobre o escopo dos programas da Fundação.

Câmaras regionais: de natureza propositiva, as câmaras podem formular propostas de revisão dos programas através de encaminhamento ao comitê e articular discussões com as assessorias técnicas.

Câmaras técnicas: são instâncias técnicas e consultivas que auxiliam o comitê no acompanhamento, avaliação e execução dos programas. Portanto, a prioridade é a discussão técnica visando soluções para as divergências relativas às ações, projetos e programas.

Assessorias técnicas: são instâncias técnicas formadas por experts para auxiliar a população atingida na qualificação de demandas.

Comissões locais: são as instâncias de interlocução dos atingidos, formadas voluntariamente nos territórios, e que avaliam os programas e formulam, mediante as notas técnicas, sugestões para atuação do comitê e das câmaras nos programas relativos à sua abrangência.

O TAC Gov determinou um processo único de revisão dos programas visando à reparação integração e recuperação dos danos do desastre. O processo de repactuação está pautado nas regras, funções e desempenho das instâncias do sistema de gestão. A unidade de governança como espécie de ator regulador do campo, supervisiona a interlocução entre os atores, e as negociações complementares dos processos participativos. Note que o campo é espaço de um jogo desigual, e que as mudanças introduzidas no sistema de gestão do desastre com o TAC Gov também é parte da decisão dos incumbentes.

Mas se isso é verdade, mudança social requer uma teoria que localiza dinâmica nas ações das elites que lidam com instituições que, por boas razões, as elites muitas vezes decidem que precisam ser mudadas.

Mas se isso é verdade, mudança social requer uma teoria que localiza dinâmica nas ações das elites que lidam com instituições que, por boas razões, as elites muitas vezes decidem que precisam ser mudadas.

Ainda que o Conselho Curador e Consultivo, e a Diretoria sejam instâncias internas à Fundação, nestas arenas ocorrem processos de negociação sobre os programas de recuperação e reparação. Por isso caracterizam-se estes locais com determinada autoridade, ou seja, recursos que exercem algum poder de decisão sobre o sistema de repactuação.

Destarte, as diversas instâncias previstas nos termos possibilitam que os atores possam mobilizar recursos e capacidades. Isso porque as instâncias estão num formato de político-institucional que permite articulações e cooperações, processos decisórios, consultivos ou técnicos, e que incluem uma relação sistemática entre os atores para que os objetivos sejam alcançados. A governança é configurada pela reunião de atores diversos, dotados de capacidades e habilidades, que utilizam os recursos das instâncias para legitimar suas respectivas estratégias.

O diagrama de recursos das instâncias do sistema de gestão serve para classificar o domínio de cada instância no sistema de revisão dos programas. O ator habilidoso e posicionado em determinada instância goza de seus recursos, e define um enquadramento de ação. Atores com maiores recursos e habilidades são dominantes, assim, atores presentes em mais instâncias têm acesso aos recursos.

 

Figura 2

 

Recursos são indispensáveis para entender o poder e as relações conflitivas (Edwards, & Mccarthy, 2004). Quando o recurso é combinado com a regra, se torna fonte de poder. As instâncias do sistema de gestão do desastre possuem suas regras, possuem recursos, e são fontes de poder sobre as políticas públicas formuladas através dos programas de reparação e recuperação.

Os recursos das instâncias do sistema de gestão estão organizados da seguinte forma: a capacidade dos atores - habilidade social, de utilizar as regras e os recursos no cenário que indica o status de poder, como dominante ou desafiante (Fligstein, 2007). Os atores sociopolíticos que participam do sistema de gestão do desastre disputam os recursos com outros, segundo suas estratégias de ação.

Assim os incumbentes são aqueles que atuam num maior número de instâncias, e, portanto, mobilizam os recursos mais importantes no que se refere o poder sobre as políticas públicas. Por exemplo, a Fundação é a única instância com o recurso de custeio, logo os atores que acessam essa instância terão domínio do recurso e um repertório diferente se comparado aos demais. Por outro lado, a comissão local detém recursos de controle, avaliação, articulação e proposição, contudo depende da estratégia dentro das instâncias de tomada de decisão para obter sucesso.

Esta correlação conduz a consideração de que o sucesso da estratégia para acessar o poder sobre os programas de recuperação e reparação depende da habilidade do ator em negociar dentro do sistema, das regras que definem as funções das instâncias, as posições dos atores nas instâncias e a hierarquia entre as instâncias.

Esta lógica é válida também para as estratégias de lawfare nas margens do sistema de gestão. A depender das características da matéria em litígio, os atores podem pautá-la diretamente no Comitê Interfederativo, Câmara Técnica ou até mesmo no Fórum dos Observadores, dependendo das negociações junto aos outros aliados no sistema. Por exemplo, a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo não tem representantes oficiais ocupando as instâncias, entretanto estabelece as estratégias junto aos atores do Ministério Público, que por sua vez ocupam as cadeiras e tomam ciência das decisões e pautas em cada instância do sistema de gestão.

Conforme analisamos as estratégias com os agentes do sistema de justiça, defensores, algumas discussões são levadas às instâncias em caráter de visibilidade ou denúncia, formando uma campanha estratégica de litígio. Portanto, a forma de entrada nas instâncias, é parte de uma estratégia do campo dos atingidos que margeia o sistema de gestão, mas que potencialmente impacta nas decisões do sistema de gestão.

Estabelecidas as regras do campo que organizam o sistema de gestão e as respectivas posições entre os atores para acessar os recursos, a estratégia de ação é complementada pela distribuição dos atores. As posições são fixas, mas as portas de entrada são flexibilizadas pelas ações elaboradas baseadas em recursos menos formalizados.

O fluxograma abaixo sobre o sistema de gestão de desastres e a hierarquia dos atores, indica a alocação dos tipos de atores - mercado, Estado, técnicos e atingidos, em determinada posição nas instâncias que refletem o acesso aos recursos mobilizados. A distribuição desigual entre os atores nas diversas instâncias resulta no acesso diferenciado de poder sobre os programas. O status e papel de cada ator são mantidos pela unidade de governança.

A composição das instâncias, pelos atores dentro do sistema de gestão do desastre pode ser observada em dois clusters de interações entre os atores. A presença de atores do mercado, do Estado, técnicos e atingidos pode ser verificado de acordo com a variação do tamanho das legendas, que são representativas do quantitativo de atores na dada instância.

No cluster 1, existe a proeminência dos atores do mercado em todas as instâncias. Os demais atores dividem sua atuação, especialmente nos conselhos. Já no cluster 2, estão as instâncias criadas para aprimorar a participação efetiva dos atingidos e facilitar os processos de negociação para repactuação dos programas.

Seria esperada a proeminência dos atingidos nestas arenas, entretanto, a presença reforçada de atores do Estado e atores técnicos, seja das empresas contratadas para perícia, ou de assessores contratados para apoiar os atingidos, ou até mesmo os setores da academia. A literatura sobre as instituições de participação confirma que a "desigualdade de recursos materiais e simbólicos ... constituíam empecilhos incontornáveis para uma efetiva participação" (Lavalle, Voigt, & Serafim, 2016, p. 615).

De fato são espaços com tendência para tornaram-se instâncias especializadas dificultando a interação com os atingidos. Em termos numéricos, a presença de atingidos nas instâncias do cluster 2 é na média de dois atingidos para as câmaras. Com relação ao todo do sistema, foi adicionado três atingidos para o CIF ou representantes, e mais sete atingidos ou representantes para o Conselho Consultivo. Note que estas são instâncias consultivas e técnicas, e que tendem a minar a participação efetiva dos atingidos.

Os múltiplos fluxos entre as instâncias são dados de acordo o sistema de revisão das ações, projetos e programas, mas também conforme o fluxo dos acordos estabelecidos entre os atores representativos e a possibilidade das negociações nas margens do sistema. O fluxograma abaixo sobre o sistema de gestão de desastres e a hierarquia dos atores, indica a alocação dos tipos de atores - mercado, Estado, técnicos e atingidos.

 

Figura 3

 

 

Figura 4

 

Observe o processo de repactuação dentro do TAC Gov obedecem dois fluxos: (a) primeiro as comissões locais conseguem acordar junto da Fundação Renova as mudanças, com o apoio das assessorias e câmaras técnicas; (b) segundo, caso não haja acordo local, as comissões provocam as Câmaras, cuja atribuição é incluir e propor revisões diretamente ao Comitê Interfederativo.

Pelo fluxo, as comissões locais são instâncias com caráter de proposição e negociação. Entretanto, o crivo sobre o acordo depende da Câmara Técnica e regional. Logo, as comissões locais não têm poder de decisão. O segundo fluxo reforça o aspecto de provocação das comissões locais, sem, contudo, produzir efeitos vinculantes.

O processo de repactuação é único, mesmo em casos que as comissões locais solicitem ações que não tenham sido contempladas nos programas criados pela Fundação Renova. Ou seja, os atingidos precisam acessar pelo menos três ou quatro instâncias, assessoria técnica, câmara técnica, câmara regional e comitê para modificar as políticas, por consequente, acessar a distribuição de poder.

O TAC Gov também promove a acessibilidade ao sistema de revisão para a Fundação Renova, resguardando que as prioridades não serão modificadas. Porém o fluxo de repactuação da Renova é diferente. A Fundação submete somente ao Comitê Interfederativo a nova proposta para avaliação e revisão. Mas não está claro como essas mudanças são pactuadas com os atingidos e se são de fato. O único fluxo (direita do quadro) indica um número menor de barreiras para que os atores do mercado acessem a instância de avaliação e decisão do conflito.

Esses fluxos servem para demonstrar como as instâncias possuem caráter específico junto aos atores que requerem a revisão. Melhor dizendo, a trajetória do ator na condução da estratégia de ação entre as instâncias do sistema permite compreender o acesso sobre as políticas públicas.

A negociação para os atingidos denota um custo maior de acesso do que para os atores do mercado, se comparar os fluxos. Proporcionalmente, os atingidos deveriam ter mais recursos para lidar com as diferentes instâncias, mas o sistema de gestão do desastre dispõe somente das assessorias e câmaras técnicas independentemente da resolução rumo ao acordo ou contestação.

Esse cálculo estratégico sobre os custos e recursos nas instâncias é feito pelos atores do campo dos atingidos quando constroem as ações junto dos atores do sistema de justiça. Já a negociação em cada instância é compreendida pela combinação dos elementos descritos acima: habilidades, posições e regras.

Para apontar se o sistema de gestão do desastre baseado no TAC Gov tem potencial de promover a reparação integral dos direitos e recuperação dos danos, eu analisei a relação entre as habilidades dos atores e suas respectivas posições no campo, as instâncias e suas funções no sistema, as regras organizativas mantidas pela unidade de governança, através da pesquisa de campo com os grupos da pesca na região metropolitana de Vitória.

 

4. Caminhos possíveis: do sistema de governança as margens do processo pela luta de direitos

Para compreender as estratégias que se estabelecem, seja via sistema de gestão, seja via coalizões e cooperações com atores hábeis, analisamos dois casos específicos de comunidades de pesca na bacia do Rio Doce no Espírito Santo.

A partir da análise documental, observação participante e discurso de grupos relacionados às formas de interação entre os atingidos e os demais atores no campo de resolução negociada.20

O exame e o fluxo de interações indicaram a tendência de reprodução do campo do mercado como dominante sobre o campo de atingidos, principalmente nas estruturas do sistema de gestão. Primeiro porque as instâncias atravessam o processo natural de institucionalização, que depende do amadurecimento das decisões, dos atos de gestão e regulação, que pode durar em média oito anos, como no caso dos conselhos (Lavalle, Voigt, & Serafim, 2016). Por isso, não podemos avaliar o funcionamento efetivo das instâncias sem considerar o tempo de "maturação" dedicado à criação de rotinas e padrões de decisão (Lavalle et al., 2016).

As instâncias se tornaram altamente burocratizadas e técnicas e potencialmente podem dificultar a participação efetiva dos atingidos, cujo papel é de mera consulta ou representação. Mas também dos próprios representantes, porque o ciclo de vida das instâncias é "vagaroso e oscilante (Lavalle et al., 2016, p. 632)", sendo que os representantes podem se sentir consumidos pelos atos administrativos, comprometendo o próprio amadurecimento da instância (Lavalle et al., 2016).

Entretanto, podemos considerar que dado o desenho institucional, fixado pela unidade de governança - atores coletivos que construíram os termos de ajustamento de conduta, os atingidos estão mal posicionados, mobilizando recursos "menos" poderosos para repactuar os programas.

Portanto, a unidade de governança - conjunto do ordenamento das instâncias, tende a replicar as regras que favorecem o status do incumbente - atores dominantes, no caso do rompimento da barragem. Todavia, é preciso considerar que a gestão está dando seus primeiros passos, faltando à efetivação das assessorias locais aos atingidos.

Avaliar as estratégias de ação pelo TAC Gov seria explorar um processo inacabado, que atualmente depende do funcionamento efetivo das assessorias técnicas em nível local. Contudo, o desenho institucional das instâncias da gestão reflete a presença de obstáculos para estratégias elaboradas pelos atingidos diante dos fluxos de ação, recursos, posições, hierarquias e funções.

Podemos considerar que o poder de ação do campo de atingidos via sistema de gestão ainda é baixo, uma vez que não possuem posições de autoridade dentro do processo decisório das políticas de recuperação e reparação. Observamos que, as instâncias direcionadas para sua efetiva participação são consultivas ou propositivas, e aqueles espaços em que os atingidos ou representantes estão aptos a negociar as políticas estão permeados por especialistas técnicos, atores do mercado ou atores do Estado. Adicionalmente, o fluxo de negociação percorrido pelos atingidos, os coloca em instâncias cujo desempenho é baixo em recursos e poder.

Esse cenário revela relativo sucesso dos atores do mercado, ao implantar o desenho institucional do sistema de gestão do desastre, ocupando as posições de autoridade tanto na definição das regras constituídas nos termos de ajustamento de conduta - unidade de governança, quanto das instâncias. E é justamente na unidade de governança que fornece vantagem adicional aos atores do mercado perante os atingidos, pois é a unidade é ator coletivo que define as regras de resolução do conflito, viabilizando a reafirmação do status quo dos incumbentes através de melhores posições na distribuição de poder sobre os programas de recuperação e reparação.

Porém, sob o ângulo das estratégias que percorrem a margem do sistema de gestão, ou seja, a perspectiva é diferente de relativo sucesso. Através da atuação no Com Rio Com Mar Opinião Popular (CRCM OP), este estudo acompanhou os seguintes grupos: Associação de Pescadores de Jacaraípe (ASPEJ), município de Serra, e o Sindicato de pescadores artesanais, aquicultores, marisqueiros, criadores de peixes e atividades afins na área da pesca (SINDPESMES), com sede em Vitória, Espírito Santo.21

As narrativas de luta travadas pelos atingidos no que se refere o processo de repactuação, confirmam a dimensão das interações sociopolíticas que impactam na repactuação dos programas, seja via as estruturas do TAC Gov ou nas estratégias de baseadas em lawfare.

O caso dos grupos da pesca ilustra as diferentes estratégias legais e táticas, baseadas em coalizões e cooperações entre atores habilidosos, que servem como "vias alternativas e complementares para os atores sociais que buscam transformar a sociedade em diferentes direções (Gloppen, 2018, p. 8)". Além disso, as estratégias que correm às margens do sistema de gestão e suas instâncias buscam modificar medidas reguladoras, legislativas e as normais institucionalizadas pelos dispositivos extrajudiciais.

Dentre os atores envolvidos nos litígios da luta sociopolítica dos atingidos, as estratégias impulsionadas pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo é um típico caso de legislação de baixo - lawfare (Gloppen, 2018). Primeiro, porque o foco está em formas de mobilização legal e políticas em que leis e direitos são as ferramentas de contestação. Atores do Estado e da política envolvem-se na oposição em casos em que eles têm competência formal ou informal, mas que não envolvem somente o litígio, mas em estratégias mais amplas e que podem se beneficiar do litígio.

Assim, as estratégias de litígio incrementam as estratégias das lutas sociopolíticas, exercendo pressões aos atores políticos, fornecendo documentação, fazendo mobilizações de rua, para gerar atenção, credibilidade e narrativas persuasivas. Concluímos que caso no Rio Doce a mobilização legal refere-se ao campo dos atingidos utilizando estratégias intencionais, que envolvem direitos e instituições legais como parte de uma luta ampliada, onde o litígio é parte do gatilho e repertório de mobilização.

As instituições de Justiça possuem um papel fundamental no caso Rio Doce. Acionadas por todo o território atingido, compreendido como uma vasta extensão de mais de 500 quilômetros que cruza dois Estados, dezenas de Municípios e desemboca no mar, seguindo o seu curso pelo norte e pelo sul do litoral capixaba (Felippe et al., 2016), passaram, ao longo dos anos, a serem vistas como atores fundamentais para promover a defesa do meio ambiente e das comunidades atingidas. Sete instituições de Justiça, formadas por Ministérios Públicos e Defensorias Pùblicas5, passam a atuar, cada a qual com a sua experiência, estratégias e princípios de atuação. Não necessariamente convergentes, frise-se. Esta atuação é também importante tendo em vista que nova violação de direitos humanos, derivadas da execução inadequada dos programas socioeconômicos e socioambientais pela Fundação Renova e da omissão do Poder Público, foram diagnosticadas nos territórios atingidos. (Portella, 2019, p. 3)

Importante, enfatizar que as mobilizações também se diferem, conforme o grupo, mesmo dentro de um mesmo campo. No caso dos grupos da pesca, a ASPEJ e o SINDPESMES, as demandas são diferentes.

O primeiro grupo reclama o reconhecimento enquanto atingindo, uma que o marco legal pelo qual a Fundação Renova utiliza para definir a atividade da pesca é a legislação do seguro-defeso. Todavia esta legislação restringe as atividades à aqueles com dedicação exclusiva. Em adição, a Fundação Renova exige que os pescadores tenham Registro geral da Pesca como carteira profissional, porém o documento não é mais emitido pelo governo desde 2012. Diante das denúncias e morosidade nos processos, o acionamento da justiça tem sido o caminho viável encontrado pelos grupos. A estratégia definida pela ASPEJ foi à elaboração de um documento de "autoreconhecimento" através do trabalho da comissão local, junto da Defensoria Pública do Estado. Com o documento, a tática é acionar judicialmente a Fundação, criando uma mesa de negociação.

Já para o grupo do SINDPESMES, que foi reconhecido por sua atividade produtiva, e não como território impactado, a estratégia para garantia dos direitos de danos morais também é o acionamento da justiça, em parceria com a Defensoria Pública do Estado. Contudo, a Fundação Renova pede a apresentação do mapa de bordo de todas as embarcações quando da época da chegada da lama de rejeitos de minério. A posição reticente da Fundação Renova também se deve ao fato de o sindicato realizar protesto com o Movimento de Atingido por barragens. De todo modo, o processo de negociação continua em mesas de negociação com a Defensoria.22

Como as assessorias técnicas estão em fase de formalização, as reuniões das comissões locais comunidades atingidas não possuem uma regularidade idealizada no sistema de gestão do desastre. Para que a Câmara Técnica seja provocada pelas demandas das Comissões Locais é preciso que as Assessorias estejam instituídas. As assessorias técnicas não estão funcionando, as câmaras regionais, de fato, não funcionam, e acabam promovendo a inovações no âmbito do sistema de justiça através das negociações, até mesmo fora do previsto no sistema de gestão do TAC Gov.

As práticas de inovação, como uma espécie de ativismo nas instituições. Para garantir o encaminhamento da reparação integral, os agentes jurídicos têm-se dirigido às comunidades atingidas elaborando estratégias diferenciadas e lançado mão de recursos jurídicos menos tradicionais, ainda sim, eficientes até o momento.

As mesas de negociação, por exemplo, estão baseadas nos documentos produzidos em colaboração com os agentes da justiça, onde os programas implementados pela fundação são questionados perante as demandas e problemas da população atingida, com depoimentos, fotos, relatos e memórias. As mesas buscam alcançar as soluções negociadas a partir dos interesses manifestados pelos atingidos e diante da Fundação Renova, além de potencialmente tratar permanentemente o conflito (Braga, 2002),

A compreensão de poder como posse de recursos permite abordar a estratégia dos atores nas diferentes instâncias ao exercer seus recursos, institucionais, organizacionais ou técnicos sobre o fluxo de alternativas, negociações e interações que determinam o resultado de uma política. Essa perspectiva nos conduz a constatação básica entre os atores que circulam num campo estratégico: os atores têm acesso diferenciado ao poder decisório, pois a distribuição do poder está relacionada à capacidade dos atores em empreender as políticas (Fonseca, 2013).

Por isso, argumentamos que o poder dos atores habilidosos ao alavancar estratégias é dado de acordo com sua posição de autoridade no processo de decisão, e com a posição dos demais atores, ou seja, sua posição de acordo com as instâncias de gestão, ou nas margens da estrutura, acionando outros canais e autoridades. Não basta ter habilidades, o ator precisa estar bem posicionado numa instância, e acessando recurso de poder que lhe confere relativa vantagem nas negociações.

 

5. Considerações finais

A análise do campo de resolução negociada utilizando os conceitos da Teoria dos Campos Estratégicos de Ação viabilizou alguns avanços sobre a atual conjuntura dos atingidos e o sistema de gestão do desastre.

Primeiro à medida que termo de ajustamento de conduta, TAC Gov consolida o sistema de gestão do desastre como uma estrutura de governança, tende a reproduzir dentro do campo a posição dominante dos atores do mercado apoiados no Estado. Contudo, é preciso cautela nas avaliações, já que as instâncias passam pelo processo de maturação.

Segundo, que a estrutura de gestão dos programas de recuperação e reparação foi definida pelos termos de ajustamento de conduta, portanto é uma unidade de governança constituída. A unidade de governança se torna o ator mais proeminente no campo, uma vez que é a arena de negociação e acesso ao poder sobre os programas de recuperação e reparação, mas também desempenha e guarda as regras sobre a organização do campo e as interações entre os atores. Portanto, a unidade de governança exerce um papel crucial no TAC Gov, e detém a autoridade sobre as regras, a hierarquia entre as instâncias e as posições relativas dos atores dentro do sistema de gestão do conflito.

Terceiro, que as estratégias elaboradas nas margens se apoiam em mecanismos menos formalizados, mas são estabelecidas em coalizões com instituições formais do Estado, como o núcleo da Defensoria Pública do Espírito Santo. Ou seja, são as estratégias de um grupamento que utiliza as regras jurídicas para criar efeitos similares àqueles que são buscados nas ações políticas, como contestação, por exemplo.

É uma espécie de "legislação de baixo" (Gloppen, 2018) onde atores da sociedade civil utilizam arenas legais para desenvolver estratégias de litígio, lobby, e manifestações diversas baseadas na luta por direitos, e para transformações sociais.

Logo, quando as ações estratégicas são combinadas dentro das instâncias do sistema de gestão, com outros espaços e institutos menos formais do direito, a lei no sentido lawfare é utilizada como estratégia de direitos, cujo instrumento central é promovido por um objetivo político de contestação, por uma variedade de atores da luta sociopolítica empregando estratégias legais, que em logo prazo flerta com a transformação social.

Ainda que o desenho institucional do sistema de gestão do desastre, em prática, potencialmente dificulta o acesso dos atingidos ao poder aos grupos desafiantes, em tese, é uma janela de oportunidades. Porque, a arena também leva os atores a inovarem os repertórios, com as mesas de negociação, e outras formas de litígio descritas no artigo. O papel da unidade de governança vai muito além da garantia de regras no campo.

Este artigo contribui para analisar as estratégias dos atingidos, e também para discussão sobre a mobilização de direitos combinada com litigância em espaços institucionalizados. As ações nas margens do sistema de gestão confirmam que transformações sociais, desafios e mudanças podem ocorrer dentro das estruturas institucionais. Novas pesquisas sobre o caso do Rio Doce devem explorar como inovações feitas de baixo, podem provocar reformas de cima.

Ainda que a opção pela criação por instâncias de mediação para construir acordos ou modificar os programas possa parecer uma estratégia de enfraquecimento do poder de negociação dos atingidos, não podem avaliar o caráter dos processos deliberativos. Por outro lado, o desgaste e a espera pela implantação das assessorias técnicas, o conteúdo técnico das instâncias e as exigências burocráticas discrepantes da realidade, tendem a levar as negociações para um espaço individualizado, desfavorecendo as questões primordiais em coletividade.

As instituições nos parecem capazes de pressionar a Fundação. Os agentes da justiça tem ampliado a discussão e envolvido efetivamente os atores afetados, dando atenção às demandas específicas dos vários grupos, e têm sido essencial para empoderar os atingidos perante os desequilíbrios de acesso ao poder que tem sido a marca da Fundação Renova.

 

Referências

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Recebido em: 23/11/2019
Aprovado em: 17/12/2019
Agência de fomento: Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA), no âmbito da chamada 6/2016, “Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce”.

 

 

1 Com o rompimento da barragem foram despejados na bacia cerca de 50 milhões de metros cúbicos de minério, composto por resíduos de alumínio, manganês, cromo e mercúrio.
2 Em janeiro de 2017, o Ministério Público Federal, a Samarco, Vale e BHP Billiton, assinaram o Termo de Ajustamento Preliminar, que no âmbito da ação civil pública visou estabelecer as condições para perícia e assessoria técnica ao próprio ministério na realização dos diagnósticos dos dados socioambientais e socioeconômicos.
3 Com as críticas ao segundo termo, em novembro de 2017, o Ministério Público Federal, Ministério Público de Minas Geral, e as empresas, assinaram um Termo Aditivo de Ajustamento Preliminar cujo objetivo foi direcionado ao eixo socioeconômico.
4 O Termo de Ajustamento de Conduta Governança foi elaborado visando contornar a homologação do TTAC, com o objetivo de repensar e reformular o sistema de gestão do "Acordão" visando maior transparência, controle social e o protagonismo dos atingidos.
5 O princípio jurídico que dá termo a resolução negociada está inserido na legislação ambiental brasileira (Medida Provisória nº 2.163-41/2001), organizando as "normas" entre os campos que entram em conflito no campo socioambiental.
6 TTAC (2016) e TAC Gov (2018) são as abreviaturas relativas aos termos abrangentes no caso do desastre da barragem de Fundação e a bacia do Rio Doce. A seguir o funcionamento será tratado.
7 A unidade de governança é um terceiro tipo de ator no campo, além dos incumbentes que mantem o status quo, e os desafiantes da ordem social dada. A unidade de governança atua como reguladora das regras do campo a serem seguidas, e que usualmente são definidas pelos incumbentes. Articulando o conceito empiricamente, os termos de ajustamento de conduta reproduzem a função da unidade de governança constituída, fazendo com o campo de resolução negociada do conflito funcione sem mais problemas. Contudo, permanece um objetivo subjacente de sustentar as vantagens dos operadores históricos, ou seja, as empresas e determinados atores do estado. Portanto, a unidade de governança como termos não são alavancas de "troca de papeis hierárquicos" entre os atores, mas proporciona a redução e atritos, e no caso do Rio Doce, possibilitou a construção de estratégias de ação nas margens do processo através da coalizão dos atingidos com atores do sistema de justiça.
8 É importante notar a polissemia do termo governança, pois existe uma espécie de confluência perversa que denota exatamente a crise discursiva das experiências democráticas (Dagnino, 2004). Fligstein e McAdam (2012) utilizam o conceito de unidade de governança como a referência ao ator coletivo que vela pela manutenção das regras num campo. Contudo, o último termo de ajustamento de conduta do desastre estabeleceu a estrutura de governança do conflito e também foi alcunhado de termo de ajustamento de conduta de governança. Portanto, neste artigo quando se tratar da estrutura de governança relativa ao TAC Gov utilizarei a denominação de sistema de gestão do desastre para evitar ambiguidade.
9 Circuito é utilizado como metáfora para elencar a trajetória dos termos de ajustamento de conduta. Ainda que os termos de ajustamento de conduta sejam negociações voluntárias entre compromissadas e compromitentes, a definição dos termos também são objetos de luta no campo da resolução negociada. Por esta razão o houve termos complementares ao primeiro.
10 A técnica de grupos de discussão permite a formação de um discurso grupal, que é convocado com o objetivo da pesquisa (pensar as ações, estratégias e autoridades relativas às temáticas/demandas/comunidades) e que são definidos pelo pesquisador. Ë um "processo de reagrupação" (Callejo, 2001; Ibáñez, 2003). O grupo, portanto atua como um dispositivo de produção de textos de acordo com os objetivos colocados. Estes textos são suporte ao discurso e representações sociais. O discurso é uma construção do analista a partir da análise das condições (diálogo) e textos produzidos. Os grupos produziam cartazes com os três questões e apresentavam uns aos outros para debate junto da equipe do Com Rio Com Mar Opinião Popular.
11 Comunidades da Foz do Rio Doce no Espírito Santo não foram reconhecidas no primeiro termo de ajustamento de conduta como atingidos. Fóruns, o Movimento de Atingidos por Barragens e os pescadores organizaram-se para exigir o reconhecimento das comunidades na foz sul e norte do rio. Importante enfatizar que estas foram mobilizações durante a tramitação dos termos e das ações civis públicas.
12 As cláusulas 255 e 258 inscritas no TTAC previa a possibilidade de recorrência ao Poder Judiciário para resolver questões relativas ao acordo, ou seja, o previa a necessidade de sua própria revisão.
13 A literatura indica que neoextrativismo no Brasil leva a duas dimensões: primeiro, sobre a forte participação da indústria de extração mineral para exportação pauta de exportação; segundo, a associação ao marco legal ambiental e os impactos negativos gerados no local (Santos & Milanez, 2014)..
14 O Programa de Negociação Acordada, cláusula 37 do TTAC instituiu a garantia de assistência jurídica gratuita aos atingidos, especialmente a população em vulnerabilidade. Entretanto o programa apresentou inúmeros problemas. A Fundação Renova considerou que aquele atingido que participasse do Programa de Auxílio Financeiro Emergencial deveria ter abatido os valores da suposta assistência jurídica. Porém seu abandono é uma pista para as estratégias de litígio elaboradas entre o campo de atingidos e atores do sistema de justiça. Este imbróglio gerou uma Recomendação Conjunta número 10, de 26 de março de 2018, entre Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Ministério Público do Estado do Espírito Santo, o Ministério Público do Trabalho, a defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (MPF, 2018).
15 De acordo com Fligstein e McAdam (2011, 2012) a estabilidade de um campo não está relacionada ao consenso entre os atores. A estabilidade é um jogo em andamento, as respostas ocorrem, mas envolvem as limitações das regras, cujas ações não geram ameaças abruptas às posições entre os atores dominantes que mantêm o status quo, e os atores desafiantes.
16 Os documentos e relatos sobre as atividades desempenhadas pelo NUDAM estão disponíveis na página do núcleo. Disponível em: http://www.defensoria.es.def.br/site/index.php/civel-nucleo-especializado-de-defesa-agraria-e-moradia/.
17 Durante a participação no Com Rio Com Mar Opinião Popular a autora participou como pesquisadora de campo, e acompanhou as comunidades da pesca no litoral capixaba. Por meio da observação participante e etnografia, a mesma, examinou a atuação dos defensores em inúmeras reuniões e espaços junto das comunidades.
18 A numeração das oficinas não corresponde ao número dado pela equipe do Com Rio Com Mar Opinião Popular. A organização é para fins de facilitar o entendimento.
19 O TAC Gov. é um dispositivo extrajudicial de resolução alternativa do conflito. Argumento que a solução do conflito definido por este termo reestruturou o modelo de governança (TTAC) compreendendo a estrutura administrativa, política, econômica, social, ambiental e legal, colocadas em prática, de modo a alcançar os resultados pretendidos pelas partes interessadas. O termo em si faz parte de coletânea de aspectos estruturais do modelo, portanto está contido no escopo do conceito de unidade de governança. Para informações sobre as definições de governança, ver: IFAC. Good governance in the public sector: Consultation draft for an international framework, 2013.
20 Em virtude da participação na rede de recuperação da Bacia do Rio Doce Com Rio Com Mar, a autora combinou a pesquisa de pós-doutoramento com as atividades de apoio e implementação da tecnologia social participativa, Painel de Opinião Popular, como suporte e estímulo para informar, sensibilizar, conscientizar e empoderar os cidadãos atingidos perante a gestão dos assuntos públicos.
21 A observação participante junto aos grupos de atingidos que participam do CRMC OP foi entre outubro de 2018 e agosto de 2019, nas arenas extrainstitucionais e através da própria tecnologia social.
22 As denúncias estão divulgadas nos jornais de circulação local, como o Século Diário, ou no site do Movimento de Atingidos por Barragens.

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