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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.spe São Paulo dez. 2019

 

ENTREVISTA

 

Minerodependência, prevenção, aprendizado: entrevista com Pedro Jacobi

 

 

José SzwakoI; Adrian Gurza LavalleII; Monika DowborIII

IDoutor em Ciências Sociais, bolsista prociencia, professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), Rio de Janeiro, Brasil. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), Rio de Janeiro, Brasil / zeszwako@iesp.uerj.br
IIDoutor em Ciência Política, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento; professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil / layda@usp.br
IIIDoutora em Ciência Política, pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDAC-CEBRAP) e professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Porto Alegre, Brasil. Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Porto Alegre, Brasil / mdowbor@gmail.com

 

 

Apresentação

A trajetória de Pedro Jacobi segue de perto o ritmo de questões e agendas temáticas de importância incontornável no Brasil pós-transição e no mundo atual.

Com intensa produção acadêmica, Pedro R. Jacobi iniciou sua trajetória pesquisando movimentos populares urbanos, termo próprio da época dos anos 1970 e 1980, analisando-os pelo prisma de chaves analíticas que só ganhariam destaque bem mais tarde, tais como a permeabilidade entre movimentos e Estado e os efeitos dessas relações sobre instituições, políticas públicas e ação coletiva. No final dos anos 1980, Jacobi incorpora aos seus estudos a cidade e a questão urbana e a partir dos anos 1990, meio ambiente, sustentabilidade, educação ambiental, sustentabilidade, resíduos sólidos entre outros temas que passam a concentrar a atenção do pesquisador, sempre atento às relações com a participação e a democracia. E este eixo ambiente-sociedade, conjugado por temas que se impõem pela sua relevância e urgência a cada tempo, permanece inquietando e movendo o pesquisador até hoje.

Professor da Universidade de São Paulo desde 1988 na Faculdade de Educação até 2018, e desde 1995 no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (PROCAM/IEE), onde atualmente é Professor Senior, Jacobi faz parte da Direção da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (ANPPAS) e coordena também a Revista Ambiente e Sociedade. Tendo extensamente pesquisado e orientado pesquisas sobre governança urbana e de águas, gestão de resíduos sólidos e escassez hídrica, sua prática acadêmica não permaneceu ao longo de toda sua trajetória alheia à prática política.

O conhecimento acumulado há décadas sobre as relações entre Estado e atores da sociedade civil, especialmente na área do meio ambiente, nos motivou a explorar a visão deste pesquisador e ativista sobre a tragédia do Rio Doce, ocorrida pelo rompimento da barragem do Fundão em Mariana. em novembro de 2015. Nos interessavam, principalmente, suas perspectivas e análises em relação ao alcance das soluções institucionais dadas para a indenização, mitigação e recuperação de danos, às possibilidades de ações coordenadas entre atores públicos e privados e, ainda, à capacidade de sociedade civil de enfrentar, ou não, os efeitos da mineração e de suas contradições.

Contra leituras 'catastrofistas', o diagnóstico de Pedro Jacobi sobre desastres e crimes ambientais, como os de Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019, alia realismo e crítica: o que se pode realmente fazer para antecipar os efeitos advindos de episódios como estes? Esta é a questão que, como pesquisador e como militante, se coloca. Para ensaiar uma resposta complexa para dilemas e cenários igualmente complexos, Jacobi nos leva às múltiplas dimensões, sujeitos e saberes aí implicados: mobilização, cultura de prevenção, responsabilização e accountability são algumas das pistas que inspiram uma alternativa.

Ao público leitor, apenas um aviso sobre o contexto do encontro para a entrevista: nossa conversa com Pedro Jacobi se deu no dia 14 de outubro, portanto, um mês após os primeiros vazamentos de petróleo na costa do nordeste brasileiro. Como se poderá notar, esse episódio, ele próprio indissociável de ambos, do contexto global de risco ambiental e do contexto político nacional de oposição clara ao ambientalismo e às pesquisas científicas, permeou toda a conversa de maneira tácita e, às vezes, explícita.

Em tempo, deixamos aqui nossa dívida e gratidão com Pedro Roberto Jacobi, com os editores do Dossiê 'Desastre, políticas e sociedade civil' e com a Revista Psicologia Política.

Boa leitura.

Entrevistadores: Para começar, gostaríamos de ouvir um pouco sobre como aconteceu a mudança na sua agenda de pesquisa que, nos anos 1980, se iniciou com movimentos sociais e participação e foi, ao longo dos 1990, para meio ambiente chegando, mais recentemente, ao tema dos recursos hídricos.

PJ: Eu comecei no grupo da ANPOCS.Comecei a fazer meu doutorado em 1978 e escolhi o tema dos movimentos sociais urbanos e trabalhei com a mobilização em sistemas de água e saúde, que era aquela que tinha mais visibilidade pública. Desde a graduação me interessava pelo tema de movimentos sociais. Já vinha lendo Manuel Castells, Jordi Borja, Fui fazer meu mestrado em Harvard em planejamento urbano regional, que foi uma opção alternativa à minha ideia inicial que era de fazer uma pós-graduação em economia política no Chile com Ruy Mauro Marini, mas aí teve o golpe... Fiz meu mestrado em Harvard com temas vinculados à participação social, movimentos e sem fazer trabalho de campo. Eu fiz com material disponível de teses, livros, de artigos sobre bairros. Daí, preparei um projeto de doutorado, que foi orientado pelo professor Henrique Rattner. De fato eu já estava no CEDEC no grupo de movimentos sociais urbanos. Eu fui convidado pelo meu então cunhado José Álvaro Moisés. Me envolvi com a temática dos movimentos sociais urbanos a partir de 1977 ou 1978. Em 1980 fui convidado pelo Moisés para ficar como coordenador do grupo de movimentos sociais urbanos da Anpocs, que coordenei primeiro junto com a Lícia Valladares durante vários anos e depois com a Ana Clara Torres Ribeiro do IPPUR.

Nesse momento, eu trabalhava os temas dos movimentos sociais urbanos lá no CEDEC com Lucio Kowarick, Vera Telles, Irlys Barreira no Ceará... Tinha a Ruth Cardoso e o grupo do CEBRAP, a gente tinha muito interlocução com ela, pensava muito diferente, mas tinha uma excelente interlocução.

No decorrer do grupo de movimentos sociais da Anpocs, me procuraram Lúcia Ferreira, Leila Ferreira, Daniel Hogan, Eduardo Viola, Julia Guivant e José Augusto Padua - para consultar sobre a possibilidade do grupo de movimentos sociais acolher sessão do tema de movimentos ecológicos. Esse foi o momento no qual eu comecei a tomar gosto pelo tema.Ou seja, após essa inserção do tema como sessão no GT de movimentos sociais, foi aprovada a constituição do grupo de Ecologia Política na ANPOCS. Vai, então, se constituindo esse GT sobre movimento ecológico ambientalista. E o NEPAM se constitui em 1987 sob a liderança de Daniel Hogan.

Entrevistadores: Então essa conexão com meio ambiente já tinha se dado antes da virada para os anos 1990...

PJ: Em 1991 fui convidado pelo Stockholm Environment Institute para fazer uma pesquisa sobre as relações entre o meio ambiente e a cidade. Foi uma pesquisa sobre percepções ambientais em São Paulo, pesquisa feita também em Jacarta e Accra, e publicada em livro em 1995.Há depois disso minha livre-docência em 1995, também na temática. E, a partir de1995, fui convidado por um aluno para orientar sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental vinculado à época à pró-reitoria de pós graduação e atualmente ao Instituto de Energia e Ambiente da USP.Nesse momento se deu meu engajamento mais substantivo no tema. Em 1997 começamos a editar a revista Ambiente e Sociedade1 e, em 2000 criamos a ANPPAS, Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, que comemora seus 19 anos.

Entrevistadores: Então vem sendo um processo contínuo...

PJ: É um processo constante. Entre 2001 e 2002, fui convidado por uma pesquisadora francesaa trabalhar em um projeto de negociação de conflitos em torno da água no periurbano de São Paulo. Trabalhamos nessa época, eu e meus orientandos com o Instituto Polis. Depois disso, participei do projeto Marca D´Água, com Rebecca Abers e Margaret Keck. Teve também um projeto com o Canadá chamado Bacias Irmãs. Além de alguns projetos e pesquisas internacionais em que já comecei a trabalhar com temas de governança de água. Em especial, coordenei o Projeto Alfa da Comunidade Européia sobre Governança da Água, que agregou dez universidades da Europa e América Latina , além das redes de cooperação de pesquisa, teve vários encontros no Brasil, no Chile, na Bolívia, na França e na Holanda - e teve também três livros publicados e em três línguas. Foi um trabalho de fôlego, que resultou em um networking muito interessante com colegas com quem ainda convivo bastante.

Entrevistadores: Você foi então se especializando progressivamente na água. E, para você, como surgiu o interesse no desastre do Rio Doce?

PJ: Exato. Eu tenho envolvimento com a temática ambiental. Além da universidade, eu sou membro do conselho brasileiro do Greenpeace. Já é a terceira vez que participo do conselho do Greenpeace, do qual já fui conselheiro em épocas bem complicadas. E desde 2011 sou presidente do conselho do ICLEI, uma associação global de "Governos Locais pelaSustentabilidade"2 que trabalha com prefeituras no mundo, são mais de 1.700 cidades filiadas.Participo do "Instituto 5 Elementos", e já fui presidente do Conselho. Então, tenho uma vivência e história de ambientalista, e passa pelo meu envolvimento e motivação para participar de organizações da sociedade civil. Mas o Rio Doce e Mariana, tudo isso passou pela reverberação, pelo envolvimento e porque, de fato, eu trabalho com temas ambientais diversos, principalmente, água, resíduos sólidos, poluição do ar e atualmente clima. Orientei várias teses sobre resíduos, e tenho diversas publicações sobre o tema resíduos sólidos, e destaco um na Revista de Estudos Avançados, com minha mulher Gina Rizpah Besen, temos um texto bem referenciado sobre isso3

Entrevitadores: Realmente, um caráter duplo de ambientalista e pesquisador...

PJ: É, sempre fui um professoruniversitário que me envolvi em política. Estive envolvido sempre com o PT, desde as primeiras gestões. Então, a universidade era um espaço para ensino e produção de conhecimento, mas eu sempre me envolvi com as questões sociais e ambientais cada vez mais, porque a gente precisa estar cada vez mais presente nisso. Atualmente colaboro com a coalizão "Ciência e Sociedade"4, que tem se manifestado particuladamente com muitas assinaturas de professores e pesquisadores para defender a ciência dos ataques de de setores do governo. Cito como exemplo os ataques ao INPE, o que está acontecendo com os cortes de recursos no CNPq e CAPES, e o problema das queimadas que foram denunciadas e contestadas pelo governo, e agora o desastre do derramemento de petróleo em muitas praias do Nordeste. Mas, só para colocar mais uma coisa importante: depois daquele projeto Alfa, me envolvi mais com a temática da aprendizagem social, do diálogo com a sociedade a partir dotrabalho com colegas holandeses:sempre nessa ideia de produzir e difundir conhecimento.

Entrevistadores: E aproveitando sua expertise em todos esses anos, vamos pensar no episódio do Rio Doce, que fez 4 anos em novembro. Embora já tenhamos alguma perspectiva do que ocorreu em termos da dimensão da catástrofe, gostaríamos de ouvi-lo sobre como você avalia o impacto do rompimento da Barragem do Fundão?

PJ: Um aspecto que acho muito importante, após o rompimento, foi a articulação da comunidade científica. Foi muito forte! O pessoal veio da USP e outras universidades paulistas, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, do Espírito Santo - para diagnosticar os impactos. A mídia deu muito destaque aos impactos que foram catastróficos.

Temos que levar em conta que foram duas das maiores mineradoras do mundo: Vale do RioDoce e a BHP Billiton. Trata-se de crime ambiental em Mariana, mas também em Brumadinho - ali se viu de forma direta e imediata. Foi muito impressionante o grau de destruição. Mariana é exemplar da cobiça de empresas que querem levar até o limite sua capacidade de armazenamento, e não foi por acaso que aconteceu. O desmoronamento ocorreu por excesso de material acumulado na barragem do Fundão e se acentuou em virtude do processo de elevação doaterrode contenção, pois o reservatório já chegava a seu ponto limite, não suportando mais o despejo dos dejetos da mineração. Os subdistritos de Bento Rodrigues, que se localizam quase 2,5 km vale abaixo, e Paracatu de Baixo, foram quase completamente inundados e destruídos pela enxurrada de lama que se seguiu após o desastre na barragem. Outros vilarejos e distritos situados no vale do rio Gualaxo também foram atingidos pela enxurrada.

E o povoado de Bento Rodrigues existia bem antes da mineração. O desastre aconteceu uma semana antes da COP de Paris5. Eu lembro que o prefeito de Mariana foi para Paris para falar disso, pois a cidade dependia dos empregos desta indústria. Trata-se de uma combinação altamente complexa do que significa a minerodependência do estado de Minas Gerais. Vários colegas já vêm pesquisando isso há bastante tempo: tem o Francisco Milanez da UFJF que estuda esta realidade há vários anos; há também a Andrea Zhouri, que pesquisa sob a ótica da justiça ambiental; e o Luis Henrique Sanches, da Poli-USP, que é especialista em impacto ambiental.

Então, no caso de Mariana: a Samarco é uma fonte de emprego para muitas pessoas da cidade. Agora, o que se observa é um deficit de medidas preventivas. Tenho algumas teses e algumas supervisões de pós-doutorado na temática dos desastres: a palavra-chave aqui é prevenção. Mas qual o nível de prevenção? Uma sirene tocando? Tal como no desastre de Petrópolis. Como diversas vidas foram salvas? Com a ajuda de uma sirene num automóvel de um morador da cidade.. E aqui em São Paulo e o caso das enchentes do Pirajussara? Vidas foram salvas com uma sirene tocando ali no bairro, no bairro Pirajussara mesmo. Fizemos até um filme: "Pirajussara - Bacia do Concreto"6

Então, a história se repete: é um desastre anunciado. Não há uma cultura de prevenção. Ou seja, a lógica da prevenção é mínima. A professora Norma Valencio da UFSCAR, que trabalha muito nesse tema, mostra exatamente o quanto tudo isso está associado a lógica de ganância, de lucro.

O que me deixa assim muito incomodado com essa história toda é, por exemplo, a Renova. Ao que parece, a Renova serve mais para empurrar esse processo de indenizações de forma muito lenta, e isto afeta as famílias para uma volta à normalidade, ou seja, é muito cruel. Assim, é por isso que digo que, na minha interpretação, é crime ambiental. É muita crueldade, é muito perverso o que está acontecendo. E muito cruel psicologicamente com essas pessoas como, também no caso de Brumadinho. Não é apenas uma questão econômica. Os afetados pelo desastre de Mariana até hoje não têm lugar definitivo de moradia, não é verdade? E as indenizaçoes têm tido um ritmo muito lento de resolução.

E, ao mesmo tempo, fica essa questão: quais serão os empregos dessas pessoas se Samarco não continuasse operando? O mesmo se coloca para se a Vale não continuasse a funcionar em Brumadinho?

Isso porque o Estado é hoje minerodependente. Então, a pergunta é: o que poderia se fazer de mudança, qual shift econômico que poderia ocorrer, em um estado que se tornou tão dependente. Ou se não haverá esse shift, quanto é preciso que a sociedade esteja muito mais mobilizada, porque o que eu entendo é que mesmo em Mariana não havia muita mobilização, ou havia?

E, em Brumadinho, a coisa é talvez mais grave porque os próprios funcionários morreram por causa de você colocar o restaurante e administração em localização passível de ocorrer um problema. Em Mariana foi a população de um bairro rural, mas a maior parte dos mortos em Brumadinho são funcionários.

Então de certa forma, se imagina que 'nunca aconteceu' ou 'nunca aconteceria', e acontece. E essa é a grande questão: a lógica de prevenção tem que ser muito mais forte. E é enorme a quantidade de situações semelhantes de Minas Gerais e no Brasil mas ninguém tem controle. A fiscalização da Agência Nacional de Mineração é muito limitada pela falta de recursos disponibilizados para tal finalidade. Ou seja, a situação é muito preocupante e pode se repetir. Mariana teve efeitos ambientais muito mais graves do que Brumadinho. Na minha leitura, conversando com o pessoal que está estudando Brumadinho, o pessoal do GESTA da UFMG7, a mobilização que isso provocou fica muito localizada territorialmente e a organização da sociedade, hoje preocupada com incêndios e amanhã com outra coisa, se dilui muito.

Então, é muito preocupante, porque a população da região rural de Mariana está muito isolada e depende de si mesma. E a atuação da Renova tem sido muito decepcionante. Quanto tempovai demorar para indenizar adequadamente? Quanto tempo vai levar, se é que a existe a palavra indenização justa quando se perde a vida.

Entrevistadores: Sobre a Renova, uma dúvida recorrente que temos é sobre o caráter singular ou não dela, como instituição implementada para gerir o desastre: o quanto ela seria uma criação única, do ponto de vista de constituir uma fundação privada de interesse público para gerir um desastre? Você sabe se existe algum modelo parecido, alguma Renova em outro lugares.

PJ: Não, eu não conheço. Não é um tema que conheço adequadamente. O Conselho é composto por representantes dos atingidos e organizações da sociedade civil. No Brasil estamos vivendo o desmonte de conselhos de políticas públicas... Então, está se vivendo um momento em que se esvazia totalmente a capacidade de promover mais resistência. O próprio Greenpeace esteve um tempomais presente nisso, mas com esse novo governo estamos todo mundo andando assim sobre uma fina camada de gelo, para não correr o risco de afetar a atuação essencial das ONGs na defesa dos direitos humanos.

De qualquer modo, as ONGs locais são pequenas e com a capacidade de reverberação pequena. Eu não sei o quanto o trabalho de outros grupos de pesquisa tem tido repercussão maior, da militância de acadêmicos. Sem dúvida que são questionadores, denunciadores, mas como isso se coloca para que uma mídia sustente o tema. E essa também é uma questão: como a mídia mantém ou não o tema junto à população? Por exemplo: o quanto a vida de Mariana se normalizou, de certa maneira, para a maior parte da população que não sofreu diretamente os efeitos, mas que sofreu a interrupção das atividades da Samarco? Então o lado econômico obviamente está pesando muito.

Eu entendo que a atividade de mineração não vai acabar, não vai parar. Estamos cada vez mais dependendo de avanços tecnológicos, dependentes de minérios que fazem parte: se, por exemplo, o mundo for cada vez mais dependente de energia provida por baterias, precisaremos cada vez mais de lítio e de outros componentes.

Voltando, então, a grande questão, sobre como se gera na sociedade uma cultura de prevenção e como se fortalece? Tenho tido bastante contato, devido às pesquisas sobre prevenção de desastres, com o pessoal da Defesa Civil. Eles são muito comprometidos, mas sua capacidade operacional é bastante limitada.

E, agora, como a cultura de prevenção acontece? E, por exemplo, em conversas como a que vocês tiveram com a participação da população8, que se estimula essa cultura. Isso porque agente percebe é que o brasileiro é muito solidário pós-desastre. Mas quanto ao pré-desastre, no geral o cidadãos não são orientados adequadamente pelo poder público. Não existe um cultura estruturada de prevenção face aos riscos. Diferente de outros contextos, não existem tornados, tufões nem furacões - o que promove uma cultura de prevenção. As pessoas estão preparadas para enfrentar estes fenómenos naturais, existe uma rotina organizada, e se preparam para isso. Quando acontecem as grandes tempestades no Caribe, as autoridades mobilizam centenas de milhares de pessoas, como foi recentemente no Texas para se proteger de um furacão nível máximo que se aproximava da região costeira. A nossa cultura é extremamente frágil quando entra a prevenção. Eu vejo que este desastre tem lições e deve trazer lições realmente aprendidas.

Entrevistadores: Você fala em lições a serem aprendidas. Numa entrevista, você mencionava que o rompimento da barragem do Fundão pudesse servir como uma oportunidade; em que sentido seria uma oportunidade?

PJ: No sentido de as pessoas, comunidades e grupos organizados tenham mais preocupação com a prevenção, com a corresponsabilização, de se confrontar as autoridades para saber dos riscos potenciais e reais. Na hora da audiência pública, por exemplo, para expandir uma mineradora - isso aconteceu recentemente em Conceicão do Mato Dentro em Minas Gerais, no caso da mineradora Anglo American -, houve mobilização da população. Na América Latina, com exceção talvez das comunidades indígenas, que são mais aguerridas, uma parte dos movimentos sociais é facilmente cooptável. Vimos isso ocorrer com parte dos movimentos sociais durante governos do PT, o que redundou no seu esvaziamento. De uma maneira ou de outra, acaba se esvaziando a potência do questionamento e da mobilização.

Enfim: é prevenção pois alguém, em algum momento, deveria ter sinalizado para a população de Bento Rodrigues que existia risco possível de rompimento de uma barragem. Se essa palavra pode ser usada, a oportunidade se dá no sentido de não ser totalmente pessimista, vamos dizer assim, pois mesmo com o desastre é necessário que surjam respostas. Em New Orleans as respostas surgiram. Então têm que surgir as respostas. Agora a questão é a escala da resposta.Nas cidades ocorrem com frequência episódios de deslizamentos por causa das chuvas, mas em muitos casos se verifica uma diminuição em decorrência da redução do volume de chuvas, como é o caso da Região Metropolitana de São Paulo. Mas, com o aumento dos eventos extremos, que podem ser da escassez ou do excesso, esse quadro vai se modificar também enormemente!

Oportunidade, primeiramente, para dotar de capacidade aparelhando melhor a Defesa Civil e para ter um trabalho muito mais sólido de comunicação social e também um trabalho de organização da sociedade para resistir a esses 'afagos', como eu chamaria, que a melhoria econômica traz com a expansão da mineração. Calculando, seria isso. Agora depois que acontece o desastre, você vai controlar o reservatório? No caso de Brumadinho, ficou muito claro que houve uma questão de fragilização geológica. Até onde se pode claramente garantir que não haverá um risco? É possível um máximo? Porquehá um limite, mas o limite é justamente se esse modelo de armazenamento é um modelo que pode permanecer por muito tempo em regiões próximas das áreas urbanizadas. E além disso, obviamente que em Mariana estamos falando das perdas da população de pescadores, da agricultura, da despesas extras das pessoas com compra de água. Assim oportunidade, para mim, é basicamente uma oportunidade cultural, social, de pressão e enquanto mobilização da sociedade.

Entrevistadores: É uma equação muito complexa...

PJ: Muito! Para mim, a questão se coloca assim: não deixará de existir mineração. No caso dos países nos quais estão as sedes das grandes empresas, Canadá e Austrália, há uma mobilização maior - há no Canadá principalmente em relação à extração de areias betuminosas que tem grande efeito destrutivo de recursos naturais, e também nos EUA. Então, por mais motivação e por mais apoio e mobilização que haja, as nossas organizações não-governamentais são muito ativas, mas sua capacidade de mobilização é bastante limitada. São fundamentais, mas seu alcance com raras exceções tem muitas dificuldades de promover reversão de açoes que colocam a natureza e as pessoas em risco..

Em relação à política da água no Brasil, do ponto de vista formal, esta é moderna: baseada no tripé; descentralizar, integrar e participar. Entretanto na prática são 200 comitês de bacias, alguns mais e outros menos ativos. Muitossão tutelados pelos próprios governos estaduais. E a transparência para a sociedade se dá através dos canais existentes, notadamente os sites. Se você quer se informar, a transparência é muito limitada, principalmente a transparência quanto aos investimentos. Observa-se um forte problema de accountability.

A transparência e a accountability no geral no Brasil são muito precárias, tanto nas ações de governo quanto nos investimentos públicos. Precisaria existir em Minas Gerais, um site e uma instância de governo que permitisse acesso da população às atividades das empresas de mineração de forma que se pudesse avaliar se existem riscos ou empresas que atuam de forma responsável em relação às barragens e outras atividades. Eu penso que transparência é algo absolutamente fundamental em nossa sociedade.

É necessário, ainda, porque é a única forma de poder que o Estado teria para se defender frente a empresas, quando acontece um episódio desses. A fiscalização é muito precária, e os dados disponibilizados após Brumadinho revelaram um numero irrisório de funcionários para acompanhar a quantidade de reservatórios do Estado, e muito pior ainda no quadro do país.

Entrevistadores: Como você vê a trajetória e a mobilização do ambientalismo?

PJ: Olha, no geral, o alcance atual do movimento ambientalista é bastante limitado, apesar do enorme esforço dos ambientalistas e das organizações. No Congresso Nacional, se verifica a presença de alguns membros de organizações desenvolvendo atividades junto a políticos, pois neste momento existem vários projetos de lei que colocam riscos de retrocesso de políticas que têm sido fundamentais para reduzir desmatamento e temas associados com licenciamento ambiental. Houve momentos emblemáticos que fortaleceram o ambientalismo: a Rio 92 e Rio+20. Mas as organizações ambientalistas são poucas, e com exceção de algumas organizações internacionais, boa parte são microorganizações locais. Eu acho que o movimento ambientalista é ainda frágil, muito frágil. Tínhamos nomes emblemáticos e que deram força: Chico Mendes e própria Marina Silva, que atuou como ministra do governo Lula e depois saiu por não conseguir implementar suas propostas. Foi peça fundamental na criação do partido Rede, com foco centrado em temas vinculados com sustentabilidade, participou de duas campanhas presidenciais, mas o partido tem muitas dificuldades de se fortalecer.

Havia mais espaço, e nessa trajetória houve vitórias importantes. O Greenpeace teve sua importância, teve vitórias importantes. Houve, por exemplo, a interrupção da hidrelétrica no Alto Rio Tapajós. Isso é importante e foi fruto de organização de movimento. Houve algumas campanhas ambientalistas que foram realmente importantes. No Brasil, o ambientalismo não é um movimento que está na opinião pública como deveria estar - talvez, no caso do clima, isto venha a tomar mais força.

Entrevistadores: Como você percebe a relação entre Estado e mercado, pensando governança ambiental e as empresas...

PJ: A mineração não é só uma área blindada, é um dos um dos grandes atores da agenda econômica nacional. E mais: para consumo internacional. No nível das prefeituras, há em geral muito pouco envolvimento com a temática ambiental. Quando a gente vê boas práticas em algumas cidades brasileiras, é porque a prefeitura ou o prefeito se compromete muito mais, se compromete com algumas iniciativas como cálculo e redução de emissões.

As prefeituras, em geral, se envolvem muito pouco não só com ambiente, mas inclusive muito pouco com a temática da água, que é no geral de responsabilidade estadual. Tende a haver mais envolvimento quando a responsabilidade é de uma autarquia municipal. Em relação à Defesa Civil, também é muito frágil nas prefeituras. Na saúde, por exemplo, sempre se lida com a prevenção em termos de vacina ou com o pós-desastre.

Então, de fato, nessas cidades minerodependentes, não apenas em Minas Gerais, o poder econômico dos atores empresariais é muito forte e obviamente tem muitos acordos, para usar esta palavra; acordos em nível local e regional que desconhecemos e que fazem com que eles sejam muito blindados.

A questão, então, é: qual governança existe? Se você não tem fiscalização, você não tem governança. Se o departamento de recursos minerais está sucateado e esvaziado, qual governança você tem? Assim, a Vale e as grandes empreiteiras são aquelas que pautam parte da agenda econômica do país e que tem todo o lobby delas também no Congresso.

Em outra dimensão, há o tema do licenciamento. Agora querem flexibilizar licenciamento, isso é trágico. Hoje querem convencer a opinião pública de que é um órgão como o IBAMA que impede o garimpo legal, que ele dificulta a mineração. É muito preocupante. Ocorre que quando essas empresas se instalaram era território livre de regulamentação. A partir de um certo momento, as regras passaram a ser muito mais claramente definidas, colocando limites a uma atividade econômica exercida com tão pouco controle pelo governo.

Com tudo isso, o que eu posso realmente dizer é que isto poderia ter sido evitado. Entendo que precisa haver na sociedade uma cultura de prevenção e uma cultura de informação que permita que a sociedade se organize, se mobilize e traga reivindicações. Vamos supor que tivesse que existir uma queda de braço entre Bento Rodrigues e a Samarco. Sem haver o episódio, como seria isso? Quem estaria do lado da população de Bento Rodrigues? Quem estaria do lado da Samarco? Mas se a Samarco oferecesse uma alternativa à população, considerando que poderia um risco, provavelmente seria possível uma negociação. Penso que este é um caminho que deve ser trilhado para evitar novos casos como estes.

De qualquer forma, o desastre ambiental acontece hoje em dia, assim como está acontecendo com o derramemento do petróleo agora9: Não se descobre de onde vem, quiseram buscar vários culpados... Então, a palavra 'desastre', no sentido de provocado por fenômenos naturais, é real. Mas nesses casos de Mariana e Brumadinho e do derramamento de petróleo, não se trata desastres - e que fique claro, que a população veja isso. A palavra aqui é crime ambiental.

Entrevistadores: Essa questão permanece polêmica: não só como responder ao episódio, mas, sobretudo, como nomeá-lo...

PJ: A palavra chave aqui é responsabilidade. No caso de Brumadinho, o presidente da Vale passou paulatinamente a ser responsabilizado pelo ocorrido, a partir das suas falas. Em Brumadinho foi tão acintoso que eles tiveram que investir fortemente em infraestrutura e várias formas de resposta da empresa para atenuar o alcance do crime provocado. No caso de Mariana, até onde se nota, a atuação da Renova, tem sido muito lenta para garantir a indenização dos afetados. Já do ponto de vista da prevenção, se a Samarco diz 'não sabíamos dos riscos', é mais grave ainda! O que se coloca aqui é justamente que os acionistas também se responsabilizem por reduzir impactos socioambientais na sua cadeia de produção. E isso é prevenção: investir e arcar com os custos de políticas empresariais de prevenção.

Por que estas empresas lucram tanto? Os acionistas podem decidir ter ou não ter um pacote de mecanismos de prevenção; podem ao menos serem persuadidos disso. Ou, então, como se reverte uma lógica de lucratividade impune? Ao mesmo tempo em que as empresas têm uma tensão entre curto prazo e jogo econômico, elas precisam atuar fortalecendo também uma lógica para garantir segurança que repercuta na lógica de lucros prevalecentes, algo que as empresas e seus acionistas não levam muito em conta. Para mim, é o caminho do futuro daquilo que podemos chamar de investimento em práticas econômicas sustentáveis. As empresas precisam, portanto, mudar essa cultura de ganhar ou ganhar. Principalmente as empresas cuja ação é inegavelmente predatória. Onde você vê uma serra, uma floresta, um bosque, agora é cascalho.

Entrevistadores: E qual seria, a seu ver, o papel da ciência e da universidade neste cenário?

PJ: Um ponto fundamental, a meu ver, é que as áreas das ciências sociais poderiam estar muito mais envolvidas com os temas ambientais. Mesmo aqui na USP, geógrafos e sociólogos pouco dialogam entre si. Eu dialogo e trabalho seguidamente com climatólogos, engenheiros, geólogos, biólogos e oceanógrafos, e tenho sido convidado para participar em projetos conjuntos. Temos que dialogar muito, porque eles lidam com métricas e nós os sociólogos com narrativas, discursos e estatísticas. É necessário juntar as peças. Isso é fundamental especialmente porque estamos no século XXI. Aposto muito nas trocas e diálogos.

E temos que produzir um conhecimento que sirva não para "catastrofizar" nem criar pânico. Mas precisamos mostrar que os processos têm uma complexidade inerente. Inclusive com efeitos para a própria produção da ciência entendida como pós-normal, como na nossa publicação10, uma concepção de ciência que amplia a comunidade de pares.

Se reconhecemos que o cenário é complexo e que, no caso de Samarco, 90% da população depende da empresa, não há como chegar e dizer para que feche. Então é necessário dizer: "Vocês não precisam fechar, mas precisam fazer investimentos, avançar em determinadas melhorias. Precisa convencer seus acionistas e trabalhar numa perspectiva que se reflita também em nível internacional". Esses casos são sempre complexos: por exemplo, no caso da SABESP, que é uma companhia mista, o acionista deve ter ficado preocupado com as estiagem de 2014-2015, pois a falta de água, gerou uma significativa redução da receita, e isto repercutiu nos lucros da empresa.

Entrevistadores: Você poderia fazer um apanhado de todos esses dilemas que discutimos aqui?

PJ: De tudo isso, uma questão importante que fica é a aprendizagem social, aprendizagem de boas práticas, no sentido de fortalecer tanto a mobilização como a prevenção. Questão importante também é, sem dúvida, a responsabilidade. Existem empresas que são responsáveis pela inércia. Talvez pudéssemos usar outra palavra: crime ou inércia... De alguma maneira, é necessário uma palavra que sirva como contraponto, que deixe claro que não se trata de algo "natural". Pois, tanto em Mariana como em Brumadinho, a informação fica por conta da mídia e dos jornais e a população tem pouco acesso à informação E, certamente, existe a questão da minerodependência. Há alternativas à mineração? Uma alternativa seria uma mineração mais rigorosa e respeitosa, uma mineração mais associada à prevenção do risco. Sejam quais forem as respostas, tudo isso vai demandar mobilização da população e dos movimentos sociais e, ainda, contrapontos não restritos às cidades e aos estados mais diretamente dependentes.

 

Referências

Jacobi, P. & Besen, G. R. (2011). Gestão de resíduos sólidos em São Paulo: desafios da sustentabilidade. Estudos Avançados, 25(71),135-158. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142011000100010        [ Links ]

Jacobi, P., Toledo, R. & Giatti, L. (Orgs.). (2019) Ciência Pós-normal: ampliando o diálogo com a sociedade diante das crises ambientais contemporâneas. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública/USP https://doi.org/10.11606/9788588848375        [ Links ]

 

 

Recebido em: 23/12/2019
Aprovado em: 27/12/2019
Agência de Fomento: Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA), no âmbito da chamada 6/2016, "Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce".

 

 

1 Veja: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1414-753X&lng=pt&nrm=iso
2 Veja: http://sams.iclei.org/
3 Cf. JACOBI & BESEN (2011).
4 Veja: http://cienciasociedade.org/missao-e-atuacao/
5 COP ou, como também é chamada, 'COP21' foi a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada em 2015 em Paris.
6 Veja: https://www.youtube.com/watch?v=ZNt5BefGQGM.
7 Cf. http://www.fafich.ufmg.br/gesta/pesquisa.html
8 Veja: https://www.comriocommar.com.br/projeto
9 O entrevistado se refere às manchas de petróleo espalhadas, desde setembro de 2019, por praticamente toda a costa dos estados do Nordeste e parte do Sudeste brasileiros.
10 Veja Jacobi, Toledo e Giatti (2019).

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