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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.47 São Paulo jan./abr. 2020

 

ARTIGOS

 

Uma história do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), a participação do psicólogo e possibilidades de atuação1

 

A history of the Unified Social Assistance System (SUAS), the participation of the psychologist and possibilities of performance

 

Una historia del Sistema Unificado de Asistencia Social (SUAS), la participación del psicólogo y las posibilidades para actuar

 

Historique du Système d'Assistance Sociale Unifié (SUAS), participation du psychologue et possibilités d'action

 

 

Patrícia Araújo de OliveiraI; Edna Maria Severino Peters KahhaleII

IGraduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012) e mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2019). Atualmente atua em Centro de Referência de Assitência Social - CRAS. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia, Política Públicas e atuação do psicólogo no Sistema ùnico da Assistência Social (SUAS) / aoliveira.patricia@gmail.com
IIGraduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1975), mestrado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (1986) e doutorado em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo (1993). Atualmente é pesquisadora, professora associada e coordenadora do LESSEX (Laboratório de Estudos de Saúde e Sexualidade), Nucleo de Psicossomática e Psicologia Hospitalar da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Lider do grupo CNPq "Psicossomática e Psicologia Hospitalar" certificado pela universidade. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Distúrbios Psicossomáticos, atuando principalmente nos seguintes temas: adolescência, psicologia sócio-histórica, sexualidade, atendimento psicoprofilático e saúde da mulher / ednapeterskahhale@gmail.com

 

 


RESUMO

Será feita uma contextualização histórica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), explorando as aproximações com o Sistema Único de Saúde (SUS), considerando as origens, semelhanças nos seus princípios e diretrizes, assim como as particularidades de cada política. Busca-se compreender a importância da inserção do Psicólogo no SUAS e identificar as potências da atuação desse profissional na proteção social básica, no Centro de referência de Assistência Social (CRAS). Por fim, é explorada a possibilidade de atuação que tem como base o Cuidado, tomando como referência as tecnologias desenvolvidas por Ayres: acolhimento, vínculo, responsabilização e a possibilidade de (re)construção da identidade a partir da proposta de promoção da autonomia.

Palavras-chave: Políticas Públicas; Serviços de Assistência Social; Psicólogo; Atenção Primária à Saúde; Programas Sociais.


ABSTRACT

A historical contextualization of the Unified Social Assistance System (SUAS) will be presented by exploring the approaches with the Unified Health System (SUS). In doing so, its origins, similarities in its principles and in the main guidelines will be considered as well as the particularities of each policy. The article seeks to comprehend the importance of the Psychologist in the SUAS context, and to identify the potentiality of this professional in basic social protection at the Reference Center for Social Assistance (CRAS). Finally, the study explores the possibility of action based on Care, taking as a reference the technologies developed by Ayres: reception, bonding, accountability, and the possibility of (re)construction of identity based on the proposal to promote autonomy.

Keywords: Public policies; Social Work Services; Psychologist; Primary Health Care; Social programs.


RESUMEN

Se presentará una contextualización histórica del Sistema Unificado de Asistencia Social (SUAS), que explorará los enfoques dentro del Sistema Único de Salud (SUS), considerando sus orígenes, las similitudes en sus principios y las principales directrices, así como las particularidades de cada política. También se enfoca en comprender la importancia del psicólogo en el contexto SUAS e identificar la efectividad de este profesional en la protección social básica, en el Centro de referencia para asistencia social (CRAS). Finalmente, el estudio explora la posibilidad de acción basada en el cuidado, tomando como referencia las tecnologías desarrolladas por Ayres: recepción, vinculación, responsabilidad y la posibilidad de (re) construcción de identidad basada en la propuesta para promover la autonomía.

Palabras-clave: Políticas Públicas; Servicio Social; Psicólogo; Atención Primaria de Salud; Programas Sociales.


RÉSUMÉ

Une contextualisation historique du système unifié d'assistance sociale (SUAS) sera présentée, explorant les approches au sein du système de santé unifié (SUS), en tenant compte de ses origines, des similitudes dans ses principes et les principales lignes directrices, ainsi que des particularités de chaque politique. Il s'attache également à comprendre l'importance du psychologue dans le contexte SUAS et à identifier l'efficacité de ce professionnel en protection sociale de base, dans le Centre de référence pour l'assistance sociale (CRAS). Enfin, l'étude explore la possibilité d'action basée sur Care, en prenant comme référence les technologies développées par Ayres: accueil, lien, responsabilité et possibilité de (re) construction d'identité sur la base de la proposition de promotion de l'autonomie.

Mots-clés: Politiques publiques; Travail social; Psychologue; Soins de santé primaires; Programmes sociaux.


 

 

Origens do SUAS e aproximações com o SUS

As políticas nacionais de Assistência Social e Saúde foram elaboradas a partir de lutas e contradições, o que pode refletir nas atuações de alguns profissionais até os dias de hoje. Será feita uma contextualização histórica do SUAS, dialogando com a política do Sistema Único de Saúde (SUS), pois consideramos que existem proximidades nas suas origens, assim como diferenças e particularidades de cada uma.

Para Pereira (2007), a Assistência Social está presente no Brasil desde o Período Colonial, porém, na sua avaliação, era ditada por valores e interesses morais, religiosos ou com clientelismos, populismos e práticas com interesses eleitorais. Dessa forma, havia o predomínio do assistencialismo, que a autora prefere chamar de "desassistência" (p. 64), pois afirma que "a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos não constituía o alvo dessas ações ditas assistenciais." (Pereira, 2007, p. 64). Desse modo, a atuação era baseada no favorecimento de alguns poucos eleitos, não sendo um direito da população.

As raízes da política de Assistência Social no Brasil datam da República Velha, ou Primeira República, com Ataulpho de Nápole de Paiva, juiz da Corte de Apelação do Rio de Janeiro que defendia que deveria ser dada assistência a indigentes impossibilitados de trabalhar (Spozati, 2011). A política continuou a ser construída na ditadura do Estado Novo, com o Conselho Nacional de Serviço Social e com a Legião Brasileira da Assistência (LBA2); no período da Ditadura Militar, com a criação do Ministério da Previdência e da Assistência Social (Spozati). Finalmente, no governo do então presidente José Sarney, a assistência social é considerada política pública pelo plano nacional de desenvolvimento (Spozati, 2011).

A atual política da Assistência Social foi instituída na Constituição Federal de 1988, compondo, com a Saúde e Previdência, o conjunto da Seguridade Social. Segundo Spozati, nesse momento, a Assistência Social passa a ser acessível a toda população, retirando seu caráter meramente compensatório aos trabalhadores registrados. A Constituição Federal de 1988 é considerada um marco para os movimentos de descentralização e democratização das políticas sociais. Segundo Degenszajn (2008), ela foi capaz de impulsionar uma nova relação entre Estado e sociedade civil, "fortalecendo demandas populares e o reconhecimento de novos interlocutores políticos" (Degenszajn, 2008, p. 209).

A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS3) teve sua promulgação no governo Itamar Franco, após a aprovação de um projeto de lei redigido pelo poder executivo. A LOAS permitiu uma ampliação dos direitos já existentes, revolucionou o pensamento jurídico, político, redefiniu leis, teorias e filosofias (Pereira, 2007). Considerando os aspectos históricos do assistencialismo, ligados a políticas de compadrio e com ausência de regulamentação para liberação de benefícios e para execução de serviços públicos, pode-se considerar que essa política foi um avanço para a formação cidadã da população, iniciando um processo que visava a consideração do indivíduo como sujeito de direito. O SUS foi regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde4, sendo contemporâneo da elaboração da política da Assistência Social. O então Ministério da Saúde elabora a primeira cartilha do SUS, o "ABC do SUS" (1990), com as doutrinas e os princípios da política de Saúde.

Existem correspondências nas diretrizes e princípios dessas duas políticas. Em ambas, preconiza-se a participação da população na formulação das políticas; a descentralização das ações executadas, para permitir que haja maior proximidade entre as necessidades da população atendida com as intervenções das políticas; a hierarquização dos serviços prestados, que vão da baixa à alta complexidade; além de responsabilizar o Estado na condução das políticas nas esferas de governo. O SUS possui a universalidade como doutrina, que corresponde ao atendimento a todo e qualquer cidadão; enquanto a LOAS, em seus princípios, prevê que não haverá diferenciação no acesso ao atendimento. Pela Constituição Federal, a Assistência Social será prestada a quem dela necessitar, o que pode ir além das questões de ordem econômica.

Essas regulamentações conceberam um modelo de políticas públicas que deve ser respeitado pelos governos locais, iniciando o rompimento com o assistencialismo, criando instituições que todos os governantes devem seguir e respeitar. Esses aspectos fortalecem a população diante das políticas de governo que até então dependiam de iniciativas individuais. Dessa forma, referente à política da Assistência Social, a proteção básica deve ser ofertada principalmente pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que possui características comuns em todo o território nacional.

No Art. 6º A, inciso I, da redação da LOAS, a proteção básica é descrita como "conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social que visa prevenir situações de vulnerabilidade e risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários;" (Lei n. 8742, 1993). A LOAS também delibera que o CRAS é um equipamento público municipal, de base territorial, localizado em áreas com maiores índices de vulnerabilidade, respeitando a descentralização já mencionada acima. Uma das obrigações do CRAS é a de articular os serviços socioassistenciais, identificando as demandas do território para desenvolver suas práticas. Isso permite uma aproximação dos profissionais com a realidade vivida pelos atendidos, além de explorar os próprios recursos oferecidos pelo território, facilitando o relacionamento com a população e a construção de vínculos.

Em 2004, a Secretaria Nacional de Assistência Social e Combate à Fome foi a responsável pela elaboração da Política Nacional de Assistência Social (PNAS5). Na PNAS se define o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), implantado em 2005, respeitando as recomendações da IV Conferência Nacional da Assistência Social (Pereira, 2007). A Norma Operacional Básica do SUAS de 2005 (NOB-SUAS/20056) regula a operacionalização da gestão dessa política, pois foi a primeira elaborada após a criação do SUAS. A Norma Operacional Básica do SUAS de 2012 (NOB-SUAS/20127) buscou atualizar e aprimorar a gestão do SUAS.

No Art. 24-A da LOAS fica instituído o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), integrante da proteção social básica, formado por ações e serviços socioassistenciais prestados de forma continuada nos CRAS. A Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (TNSS8) caracteriza algumas ações do PAIF, caracterizando os objetivos desse serviço, como, por exemplo, a prevenção do rompimento de vínculos familiares e a garantia ao direito à convivência familiar e comunitária. Esse serviço promove o trabalho social com famílias, possibilitando o acesso e usufruto de direitos, assim como melhoria na qualidade de vida. A TNSS também caracteriza outros serviços a serem prestados pelo CRAS, como o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo (SCFV), sendo complementar ao PAIF e ao trabalho social com famílias, prevenindo as situações de risco social. Esses dois serviços têm caráter preventivo e são proativos em relação à proteção social. Para que não ocorra o rompimento de vínculos, visam fortalecer a função protetiva da família.

 

Entrada do Psicólogo no SUAS

O psicólogo foi valorizado na Norma Operacional Básica Recursos Humanos SUAS (NOB-RH/SUAS9), que define os profissionais que deveriam compor o CRAS. Segundo Afonso, Vieira-Silva, Abade, Abrantes e Fadul (2012), a preferência por psicólogos na equipe ocorre pelo reconhecimento da subjetividade como elemento fundamental para o exercício da cidadania, sendo que "na medida em que o trabalho social avança na promoção de direitos, questões subjetivas, ao lado das questões sociais e políticas, impactam o acesso e influenciam o exercício desses direitos" (Afonso et al., 2012, p. 191).

Para Sawaia (2016), a entrada do psicólogo no SUAS reconhece a subjetividade como importante aspecto para se trabalhar com as questões sociais. Segundo a autora, não é possível verificar que a legislação confere exclusividade à dimensão subjetiva, porém a coloca em destaque, não sendo possível cindir a subjetividade da objetividade. Apesar dessa compreensão, os psicólogos e outros profissionais muitas vezes entram em conflito, segundo Senra e Guzzo (2012, p. 295), "gerando dúvidas quanto à complementaridade ou a especificidade em relação a sua atuação". Para essas autoras, há uma falta de formação profissional que permita a verificação das especificidades de cada atuação.

O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Política Públicas (CREPOP) publicou em 2008 um manual intitulado "Referências Técnicas para atuação do psicólogo/a no CRAS/SUAS", no qual desenvolve algumas questões referentes à atuação do psicólogo nas políticas públicas. Esse manual trata da dimensão ético-política da Assistência Social, a respeito da trajetória percorrida pela Assistência, sua entrada para o sistema de Seguridade Social brasileiro e sua construção como política pública. O usuário da Assistência chega a ser descrito como o que sofre com as desigualdades sociais. Esse material ainda ressalta que o público também é formado pelos que foram privados dos direitos ou tiveram seus vínculos quebrados. Como já mencionado acima, a assistência social deverá ser prestada a quem dela necessitar, sem distinções, aproximando-se aos princípios e diretrizes do SUS.

No manual citado (CECROP, 2008), no que tange a discussão a respeito da Psicologia e a Assistência Social, o objetivo do psicólogo é colocado como o de fortalecer o usuário como sujeito de direito e consolidar as políticas públicas. Na construção dessas políticas, o psicólogo contribui por ser um profissional que considera a dimensão subjetiva, o que favorece o desenvolvimento da autonomia e cidadania, sem deixar de compreender os aspectos histórico-culturais da sociedade. Algumas diretrizes citadas são de "não categorizar, patologizar e objetificar as pessoas atendidas" (CECROP, 2008, p. 09), para que construa com o sujeito seu lugar ativo nas elaborações das políticas, focalizando o usuário e atribuindo suas responsabilidades enquanto beneficiário e principal interessado nas políticas sociais.

O documento também aponta como marco a PNAS para a ruptura com o assistencialismo, descrevendo-a como "um caminho sem volta, pautado pela ruptura de uma história (e prática) atravessada por ações que tinham em sua intenção a lógica das benesses, dos clientelismos e, principalmente, a manutenção da condição de subalternidade aos que dela recorriam" (2008, p. 14). Na perspectiva assistencialista, o sujeito é considerado culpado por estar em situação de pobreza e os fatores sociais que produziram essa situação não são considerados relevantes. Afonso et al., (2012) ressaltam o risco da psicologização do SUAS, ou seja, existe um temor de que o psicólogo atue para normatizar e culpar os usuários da política pela sua condição social. Os princípios que orientam a prática do psicólogo devem seguir a lógica de contribuição para a efetivação das políticas públicas da assistência social e para a construção de um sujeito ativo, resultando na prevenção de situações de risco, atuando por meio do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, também desenvolvendo as potencialidades pessoais e coletivas (CECROP, 2008).

O psicólogo deve atuar de modo interdisciplinar; integrado com o contexto local; identificando os recursos psicossociais, tanto individuais como coletivos; partindo do diálogo entre saber popular e saber científico; favorecendo os espaços de participação social. O profissional deve manter-se em processo de formação profissional; priorizar os atendimentos de maior vulnerabilidade psicossocial; ampliar o espaço das atuações para além do setting convencional. No manual do CREPOP (2008) é possível verificar que a atuação do psicólogo deve considerar a integralidade do sujeito, sendo tanto os aspectos sociais como os psicológicos, buscando o rompimento com o ciclo de dependência do usuário da política da assistência e caminhando para uma autonomia.

Dentre os principais objetivos estão a autonomia e a cidadania, buscando ações que contribuam para a conquista e apropriação dos usuários sobre sua condição que rompam com o ciclo de pobreza, construindo a emancipação do sujeito. Para acompanhamento clínico terapêutico tradicional, o psicólogo deverá encaminhar o usuário ao serviço de saúde do município ou acessar outros serviços públicos que tenham essa finalidade, atuando na construção de um trabalho intersetorial. A prática do Psicólogo no CRAS é de um profissional da área social, atuante na proteção social básica, que trabalha de forma interdisciplinar. O profissional é aquele que atua de forma ética e crítica, levando seus conhecimentos aos outros settings e áreas, não só aos espaços clínicos tradicionais.

É possível perceber que um tipo de atuação é valorizado, sendo que o SUAS tem permitido que a Psicologia retome alguns questionamentos críticos que surgiram na sua constituição enquanto ciência. Para Sawaia (2016), a atuação do psicólogo no CRAS rompe com o papel histórico da profissão de adaptar o sujeito às normas e às instituições, passando a ter papel fundamental como potencializador da autonomia, intervindo nos problemas sociais de forma ativa. Segundo Afonso et al., (2012), o trabalho do psicólogo na proteção social básica aproxima a cidadania da subjetividade, reconhecendo o papel do psicólogo e valorizando a construção da identidade desse sujeito atendido. Dessa forma, essa política permite uma compreensão do sujeito de forma dialética, como aquele que é composto tanto por sua renda e seu local de moradia, quanto por seu sofrimento pessoal, relações de amizade, entre outros fatores.

Para Alberto, Freire, Leite e Gouveia (2014) ao entrar nas políticas públicas, o profissional colocou a profissão ao alcance da população, possibilitando um novo modo de pensar da Psicologia. Segundo as autoras, a inserção do psicólogo nas políticas públicas possibilitou grandes avanços, com execução de práticas que se comprometem com a transformação social e com o enfrentamento de situações vulneráveis.

Benelli (2016) questiona o processo normatizador da política, avaliando que as exigências dos programas obedecem ao pensamento hegemônico, não criando espaços para outras possibilidades de construções de sujeito que não tenham as normas das classes dominantes como base. Mesmo considerando importante esse questionamento, é preciso reforçar a importância desses programas para a garantia do acesso a direitos, como educação e saúde, além do acesso a outros benefícios sociais, para a população pobre.

Uma das doutrinas do SUS é a integralidade, que considera o homem como ser bio-psico-social, o que também está de acordo com as diretrizes do SUAS. O profissional psicólogo possui função distinta nas políticas citadas e deve buscar desenvolver uma atuação que não seja no modelo biomédico tradicional, mas que atue na lógica do diálogo interdisciplinar e multiprofissional, em um trabalho em rede. As políticas públicas como o SUS e o SUAS devem estar em diálogo constante, considerando a busca da emancipação do sujeito e a superação de situações vulneráveis.

As políticas ainda possuem algumas características que remetem ao seu passado assistencialista. Na prática diária, considerando a experiência de cinco anos da autora, é possível perceber que a política da Assistência Social como direito ainda está sendo absorvida pelos profissionais e pela população, de modo que, a atuação que tem como base o Cuidado pode contribuir para melhorar a prática. Considerando a perspectiva de Campos (2000), é preciso pensar nos sujeitos como cidadãos de direitos, com capacidade crítica, para promoção da saúde pública, não somente investir na dimensão corporal. O enfrentamento das vulnerabilidades deve ocorrer de forma integrada para a garantia da promoção e universalização dos direitos sociais. As produções e experiências do SUS auxiliam na reflexão a respeito da implantação do SUAS, considerando a proximidade nos seus princípios e diretrizes, almejando o efetivo enfrentamento das situações de risco e vulnerabilidade.

 

O Cuidado na Atuação no SUAS

Foi realizada revisão de literatura a respeito da atuação que possui como base o Cuidado. O autor utilizado como base foi Ayres (2004), pois suas contribuições são consideradas um marco para a política de cuidado no SUS. Foram utilizados artigos da área das políticas públicas, principalmente as atuações no SUS, como Cela e Oliveira (2015); Jorge, Pinto, Quindere, Pinto, Sousa, e Cavalcante (2011); Souza, Vilar, Rocha, Uchoa, e Rocha (2008). Na área da política da assistência Social, a base foram as reflexões de Macedo e Dimenstein (2009), além dos autores Sawaia (2016), Bertini (2014) e Ciampa (1994). Identificamos algumas das tecnologias mais utilizadas pelos profissionais, possibilitando a identificação das atuações dos psicólogos que tem como base o Cuidado. Objetiva-se verificar as aproximações para a atuação no SUAS e no CRAS, assim como identificar possibilidades da atuação do psicólogo que atua na proteção social básica.

Ayres (2004) estuda a categoria do cuidado a partir de um constructo filosófico, visando uma compreensão ao articular, à filosofia a prática. Explora a categoria sob a perspectiva ontológica, genealógica e crítica, e os desafios encontrados. Buscou ir além do senso comum, que, segundo o autor, considera o cuidado como "um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de um certo tratamento" (Ayres, 2004, p.74).

Outros autores fizeram considerações a respeito da atuação dos profissionais no SUS, estando de acordo com as categorias apresentadas por Ayres (2004), como também possibilitaram ampliações e análises dos limites dos conceitos aplicados na prática. Tendo como ponto de partida a teoria e as análises críticas, o Cuidado será analisado a partir de algumas ferramentas: acolhimento, vínculo, responsabilização e a possibilidade de (re)construção da identidade tendo como perspectiva a promoção da autonomia. Esses quatro focos de atendimento serão explorados para auxiliar na construção do cuidado integral, assim como serão consideradas na proposta de prática de atuação do psicólogo no SUAS.

Para Ayres (2004), o acolhimento se dá em todas as possibilidades de escuta do outro, uma escuta diferenciada e qualificada que é transformadora. Outros pesquisadores refletem a respeito do acolhimento como ferramenta/equipamento das políticas públicas. Jorge et al., (2011) e Souza et al., (2008) pontuam que o acesso ao serviço de saúde e o acolhimento apontam para a construção do cuidado integral. O bom acolhimento como aquele que proporciona escuta qualificada, atenta às necessidades da população atendida, sendo primordial no atendimento oferecido. Rocha et al., (2016) consideram que as práticas dos profissionais são importantes para a efetividade do trabalho, porém, partindo da pesquisa realizada por esses autores, verifica-se a dificuldade dos profissionais no acolhimento com diálogo, assim como na construção de vínculo e na responsabilização dos atendidos.

A segunda ferramenta proposta por Ayres (2004) é o vínculo, que foi considerado por Jorge et al., (2011) como dispositivo que possibilita uma relação de igualdade entre os profissionais e os usuários da saúde, permitindo que haja troca entre saberes. Dessa forma, o caráter subjetivo e o objetivo constroem uma terapêutica adequada para cada relação entre usuário e profissional. O estudo de Jorge e cols. permitiu analisar os atendimentos realizados em um CAPS, verificando os relatos das experiências no serviço. Verificou-se um bom acolhimento, assim como bons vínculos.

Segundo Rocha et al., (2016), a falta de uma escuta qualificada e de uma relação horizontal impede o cuidado integral, sendo necessária a construção de espaços para que isso ocorra. Segundo esses autores, muitas vezes os encaminhamentos acabam sobrecarregando a atenção secundária, assim como reforçando uma cultura de medicalização daqueles que são atendidos pelos equipamentos de saúde mental. A equipe deve ser capaz de garantir um espaço de trocas e fortalecimento dos vínculos sociais para que o atendimento possa ser efetivo na atenção primária. As categorias analisadas no estudo desses autores permitiram que se verificasse a dificuldade no acolhimento com diálogo, assim como na construção de vínculo e na responsabilização dos atendidos.

A responsabilização, ou co-responsabilização, é a terceira ferramenta explorada por Ayres (2004), que considera fundamental a participação dos envolvidos, superando o atendimento cômodo baseado na técnica já pré-determinada. Souza et al. (2008), consideram o cuidado como um atendimento integral que respeita o protagonismo do atendido, assim como pressupõe a presença ativa do usuário e a interação entre os envolvidos. Isso pode configurar uma relação de igualdade, o que se aproxima de uma responsabilização do cliente e do profissional. Para Jorge et al. (2011), as novas estratégias no tratamento de saúde mental propõem formas inovadoras de pensar a relação saúde e doença. O usuário passa a ter protagonismo, participa ativamente do processo de tratamento, tornando-se cliente e deixando a posição de passividade. A relação de igualdade entre os profissionais e os usuários permite que haja troca entre saberes, que o caráter objetivo e o subjetivo construam uma terapêutica individualizada. O dispositivo de responsabilização, ou co-responsabilização, permite que o cliente/usuário e o profissional se identifiquem com o trabalho realizado, construindo em conjunto uma resolução para o sofrimento inicial. Cela e Oliveira (2015) consideram o diálogo como instrumento fundamental para a efetivação da política do SUS, sendo que somente é possível efetuar a atenção integral se houver uma relação dialógica entre todos os envolvidos. A lógica do trabalho verticalizado se manteve na maioria das situações encontradas no estudo desenvolvido pelas autoras, dificultando uma co-responsabilização dos profissionais a respeito dos casos atendidos. Com raras exceções, o que se encontrou é a prática tradicional da referência e contra referência. A pesquisa também encontrou uma rede de serviços de políticas públicas fragilizada, o que dificulta o atendimento das demandas dos sujeitos.

A quarta tecnologia utilizada por Ayres (2004) é a identidade, ou a possibilidade de (re)construção identitária pela prática do atendimento que tem o Cuidado como base. A constituição da subjetividade da população em situação de pobreza e de exclusão social, assim como de famílias que se constituem de forma diversa da forma tradicional, é levada em consideração na pesquisa. Ao analisar essa constituição subjetiva, poderemos analisar a melhor forma de atendimento, acompanhamento psicológico. Podemos refletir a respeito da possibilidade de intervenção em uma sociedade marcada pela presença da religiosidade, pelo baixo acesso à educação ou acesso à educação de baixa qualidade e pelas práticas assistencialistas. O objetivo não é tratar a realidade desse sujeito de forma preconcebida, nem categorizar ou diferenciar essa população daquela que possui maior acesso à renda e escolaridade, mas compreender o imaginário dos usuários dos programas sociais do governo. Algumas outras linhas da psicologia não levam em consideração as diversas formas e possibilidades de existência e de desenvolvimento dos sujeitos, limitando o repertório do profissional da psicologia a um determinado perfil populacional.

O Programa de Atendimento Integra à Família (PAIF) apresenta como público alvo:

Famílias em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, do precário ou nulo acesso aos serviços públicos, da fragilização de vínculos de pertencimento e sociabilidade e/ou qualquer outra situação de vulnerabilidade e risco social residentes nos territórios de abrangência dos CRAS, em especial: - Famílias beneficiárias de programas de transferência de renda e benefícios assistenciais; - Famílias que atendem os critérios de elegibilidade a tais programas ou benefícios, mas que ainda não foram contempladas; - Famílias em situação de vulnerabilidade em decorrência de dificuldades vivenciadas por algum de seus membros; - Pessoas com deficiência e/ou pessoas idosas que vivenciam situações de vulnerabilidade e risco social. (Brasília, reimpressão 2014, p. 17)

Considerando que o PAIF é o principal serviço prestado no CRAS, é possível verificar que as vulnerabilidades sociais e econômicas são levadas em consideração para que a família seja inserida nos programas, serviços e projetos. Em geral, essas recomendações são seguidas, ou seja, o público atendido é o que está descrito acima, havendo exceções e atendimentos que são feitos para demandas pontuais. Sendo assim, a população atendida normalmente é beneficiária do Programa Bolsa Família; participa de programas sociais; reside em casa cedida, ocupada ou alugada; não possui renda fixa ou emprego; casadas; solteiras que não recebem ajuda do ex-companheiro ou pai de seus filhos. São cristãs, principalmente evangélicas, possuem contato com suas mães, porém muitos foram criados por outros familiares.

Sawaia (2016) defendeu que a constituição da consciência não se dá somente pela cognição, sendo também constituída pelo afeto. Utiliza a categoria do sofrimento ético-político para justificar que o sofrimento não é somente psíquico, referindo-se às precariedades sociais a que esses sujeitos estão colocados (Bertini, 2014). Consideraremos, então, como é possível essa constituição da subjetividade com essa vivência de precário acesso à renda e serviços públicos.

Ciampa (1994) considera que a identidade não é uma característica estática, pois se altera ao longo da vida e dos contatos sociais, um processo que pode sofrer alterações e mudanças. A identidade não seria atemporal, acabada, mas uma metamorfose. É importante compreender o papel social exercido pelos clientes dos programas e projetos do CRAS, que possuem características que podem levar a uma falsa percepção de que possuem limitantes estruturais.

A (re)construção da identidade, como tecnologia utilizada por Ayres (2004), ou a constatação de que essa construção é contínua, é importante para que não se rotule o sujeito atendido como possuidor de características já definidas, mas o identificar como capaz de adquirir novos conhecimentos, possibilitando o aumento do seu repertório. É importante não atribuir às pessoas adjetivos que carreguem para a vida toda. Trata-se sobre a importância de reconhecer o Outro como sujeito dinâmico e complexo, não limitar a um usuário de programa social, do CRAS, CREAS ou Albergue. É preciso considerar o sujeito como complexo, que está representando um papel social naquele momento do atendimento, porém que possui potência. Quais as condições que possibilitam ou que impedem que esse sujeito se transforme sujeito de si próprio e não assujeitado? O que possibilita ou impede uma emancipação? A atuação do profissional do CRAS deve buscar responder a esses questionamentos e a não considerar as características dessa população atendida como permanentes.

Macedo e Dimenstein (2009), verificaram que existiam duas percepções da produção de Cuidado, sendo que a primeira era de que esse ajudaria na melhora da vida dos atendidos, presente na maioria dos casos, baseada em procedimentos para monitorar demandas de saúde ou sociais, com tratamentos e acompanhamentos pelas equipes dos serviços. A segunda percepção considerava Cuidado "como um campo de possibilidades, onde as pessoas poderiam experienciar e viver a partir de suas diferenças, independente das expectativas esperadas por cada política ou pelo próprio serviço" (Macedo & Dimenstein, 2009, p. 294).

Essa percepção é crítica e considera o projeto de vida singular do sujeito, não buscando adaptá-lo às políticas públicas existentes. A partir dessa análise, encontra-se relação com a valorização da autonomia do sujeito, percebendo-o como protagonista de sua história. Os profissionais identificam que o Cuidado estaria nessa possibilidade de construção de projetos de vida individuais, permitindo a superação das práticas exclusivamente biomédicas. Essa abertura permitiu a formação de vínculos, possibilitando a criação de projetos de trabalho que dialogassem com a população. Segundo Macedo e Dimenstein (2009), as ações de Cuidado permitiram ações mais efetivas nos ambientes de trabalho.

Os autores tratam a respeito das possibilidades do profissional da psicologia, sugerindo que se pode fomentar situações de escuta entre a população e os técnicos. Eles apresentam uma proposta de trabalho e de atuação que é considerada um passo na efetivação do Cuidado, sendo a potencialização de um espaço sensível, saindo do padrão educativo do atendimento.

Para Jorge et al., (2011), a autonomia ocorre a partir da formação e fortalecimento das redes sociais, tanto dos atendidos como daqueles que atendem. O acolhimento, o vínculo e a responsabilização já foram considerados acima como ferramentas que auxiliam na construção do Cuidado, porém a autonomia surge como um quarto dispositivo que respeita os anteriores. A autonomia pode ser um resultado a ser perseguido, uma forma de verificar a efetividade das outras formas de atuação.

Cela e Oliveira (2015) fazem uma análise da atuação do psicólogo nas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), problematizando as práticas de cuidado integral. As autoras consideram que a saúde coletiva busca transformar a prática do cuidado à saúde a fim de possibilitar a construção e fortalecimento da autonomia do sujeito. A partir dessa perspectiva, o sujeito é concebido em sua totalidade, inserido em seu meio social e cultural.

As quatro tecnologias propostas acima se contrapõem ao tecnicismo e valorização da objetividade do atendimento. Souza et al., (2008) refletem a respeito do acolhimento e acesso às políticas de saúde e consideram que deve existir uma ampliação das práticas, que, muitas vezes, se limitam aos aspectos técnicos, científicos e impessoais. Esses pressupostos estão de acordo com aqueles já apontados acima como promotores do Cuidado, pois valorizam o diálogo e a escuta qualificada, assim como a promoção do compromisso e responsabilidade do profissional e do cliente.

Jorge et al., (2011) se propõem a analisar a relação de cuidado no atendimento à saúde a partir dos quatro dispositivos de Ayres. Para os autores, as novas estratégias no tratamento de saúde mental propõem formas inovadoras de pensar a relação saúde e doença. O estudo permitiu analisar os atendimentos realizados em um CAPS, em que os profissionais e usuários relatavam suas experiências no serviço. Verificou-se um bom acolhimento, assim como bons vínculos, porém a autonomia e a co-responsabilização ainda requerem mais articulação. Para os autores, os sujeitos envolvidos no processo devem lidar com suas próprias demandas para que possam de fato construir um atendimento mais resolutivo. Buscam-se novos caminhos e novas possibilidades, com atendimentos flexíveis voltados para cada atendido.

Para Cela e Oliveira (2015), a prática baseada no modelo biomédico está sofrendo uma relativização, pois atualmente estão sendo considerados múltiplos fatores para promoção de saúde. Para as autoras, o SUS e o trabalho no NASF alteram a lógica tradicional de trabalho do psicólogo, pois o convoca a trabalhar em equipe interdisciplinar, e a conceber a saúde de modo integral, pois concebem a saúde mental como intrínseca à saúde e ao cuidado. Na análise dos resultados, Cela e Oliveira verificaram que existe uma dificuldade em superar as práticas tradicionais de atendimento fragmentado. A lógica do trabalho verticalizado se manteve na maioria das situações encontradas, dificultando uma co-responsabilização dos profissionais a respeito dos casos atendidos. Com raras exceções, o que se encontra é a prática tradicional da referência e contra referência. A pesquisa também encontrou uma rede de serviços de políticas públicas fragilizada, o que dificulta o atendimento das demandas dos sujeitos. Por fim, as autoras fazem uma crítica à psicologia tradicional e à sua visão limitada, centrada na cura e na terapia individual. Essa fragmentação do conhecimento auxilia na manutenção da dificuldade da compreensão do sujeito integral, não quebra a construção social já estabelecida e culpabiliza o sujeito pela sua situação. Reafirmam a necessidade de um compromisso social para possibilitar que a psicologia auxilie efetivamente na superação das vulnerabilidades.

A valorização do diálogo, assim como o reconhecimento de que é necessário conceber o indivíduo na sua totalidade estão de acordo com as práticas do Cuidado. A reflexão a respeito das práticas do psicólogo nos equipamentos públicos de atendimento à população é fundamental. Uma prática centrada somente nos aspectos individuais não corresponde às necessidades e fundamentos das políticas públicas instituídas para superar as vulnerabilidades.

Rocha et al., (2016) buscaram identificar as percepções do cuidado em saúde mental pelos profissionais de uma UBS. Os autores identificam que existe no país, desde a década de 70, um movimento que busca reconstruir as práticas de saúde, visando gerir e produzir nova tecnologia do cuidado. Os autores consideram que as práticas dos profissionais são importantes para a efetividade do trabalho, como acolhimento, discussão de caso, construção de planos terapêuticos individuais, entre outras. Foram feitas entrevistas e observações com profissionais de saúde de uma UBS, a fim de explorar como eram as práticas no cotidiano e se promoviam saúde mental. Perguntou-se a respeito de como as queixas emocionais daqueles que são atendidos pela equipe e as respostas permitiram a construção de algumas categorias, como: acolhimento, assistência e longitudinalidade.

Para os autores, na categoria acolhimento, os profissionais da UBS utilizam essa ferramenta principalmente para alívio do sofrimento dos usuários, construindo uma relação acolhedora e humanizada. Com relação à assistência, os profissionais relataram que o atendimento ainda ocorre segundo o modelo biomédico, centrado no saber técnico e medicamentoso, existindo pouco espaço para a expressão do modo de vida e projeto de felicidade individual. Na categoria do atendimento longitudinal, a pesquisa observou que existe uma transferência da responsabilidade do cuidado em saúde mental quando o cliente é encaminhado para outros serviços da saúde, o que resulta em profissionais que sentem pouca responsabilidade no atendimento das demandas de saúde mental. Segundo essa pesquisa desenvolvida, muitas vezes os encaminhamentos acabam sobrecarregando a atenção secundária, assim como reforçando uma cultura de medicalização daqueles que necessitam de atendimentos. A equipe deve ser capaz de garantir um espaço de trocas e fortalecimento dos vínculos sociais para que o atendimento possa ser efetivo na atenção primária. Os casos demonstram a complexidade de se alterar a lógica tradicional de atendimento, impossibilitando o Cuidado. Dessa forma, resulta-se em baixa resolutividade e frustração entre a população e os técnicos.

 

O Cuidado no SUAS e no CRAS

É possível perceber aproximações nos atendimentos dos profissionais da saúde com aquele que é ofertado no SUAS, especificamente no CRAS. As tecnologias desenvolvidas para a saúde podem ser utilizadas na assistência social. A construção de um acolhimento, a construção de vínculos, a responsabilização e promoção de autonomia podem ser exemplos de atuação que busca uma efetiva resolução da situação de vulnerabilidade que a pessoa se encontra. Diferentemente do SUS, o SUAS tem como público alvo uma população com características específicas, principalmente com vulnerabilidades sociais, beneficiárias de programas sociais, entre outros. Dessa forma, as tecnologias são necessárias para pensar o trabalho.

No acolhimento, o cliente deve poder relatar suas demandas, aproximar-se da política e do equipamento, compreendendo as possiblidades de atendimento que são oferecidas. O vínculo com o profissional que atende permite uma abertura para que se reflita a respeito da vulnerabilidade social, econômica, assim como a respeito da possibilidade de garantia de direitos, acesso às políticas, acompanhamento familiar, acesso a benefícios sociais, entre outros projetos oferecidos. A responsabilização ou co-responsabilização possibilita a superação da política assistencialista. A construção de um acompanhamento em conjunto permite que o usuário reflita a respeito das possibilidades de alterar seus padrões e história de vida, assim como de se identificar com outras formas de ação dentro do território. Ou ainda, caso deseje, possa afirmar a sua posição contrária aos padrões socialmente aceitos.

Os grupos possibilitam acolhimento e construção de vínculo com o equipamento da assistência, outros usuários e com os profissionais. Um usuário que é atendido pelo CRAS conhece e passa a ter acesso às políticas públicas, às políticas de transferência de renda, aos programas sociais, aos projetos municipais, aos serviços de convivência, entre outros, podendo optar pela participação, o que permite que ele atue de acordo com aquilo que se identifica, aquilo que deseja. O SUAS também possui espaço para a participação social, por meio dos conselhos de direitos, por estimular a participação da população nas conferências municipais, estaduais e federais. A população é estimulada a observar, refletir e participar das construções das políticas, o que estimula também a autonomia e o protagonismo. Os serviços do CRAS devem ser construídos a partir das demandas da população, o que pode ser considerado uma forma de responsabilização.

Propomos que o psicólogo do CRAS atue observando as políticas de Cuidado propostas por Ayres (2004), superando os limites da clínica tradicional e compreendendo as realidades vividas. A existência de um profissional da psicologia capacitado para operar dessa forma, faz com que a instituição não se desenvolva na lógica de desassistir a população, potencializando os sujeitos na dimensão da sua criatividade. O psicólogo atua em conjunto com os atendidos, com base em um vínculo de confiança e apoio. Esse tipo de atendimento auxilia mudanças reais e superação de traumas. A proposta do psicólogo é atuar com interesse na experiência e na troca com a população.

 

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Recebido em: 25/07/2019
Aprovado em: 09/01/2020

 

 

(1) Este artigo é fruto de dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, 2019
(2) Decreto Lei n. 4.830 de 15 de outubro de 1942.
(3) Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993.
(4) Lei n. 8.080 de 19 de dezembro de 1990.
(5) Resolução n. 145, de 15 de outubro de 2004.
(6) Resolução n. 130, de 15 de julho de 2005.
(7) Resolução CNAS n. 33 de 12 de dezembro de 2012.
(8) Resolução n. 109, de 11 de novembro de 2009.
(9) Resolução n. 269, de 13 de dezembro de 2006.

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