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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.47 São Paulo Jan./Apr. 2020

 

ARTIGOS

 

Tenda do conto: reflexões da experiência do encantamento no trabalho em saúde

 

Tent of the tale: reflections of the experience of enchantment in health work

 

Tienda del cuento: reflexiones de la experiencia del encantamiento en el trabajo en salud

 

Tente du conte: réflexions de l'expérience de l'enchantment dans le travail de santé

 

 

Gabriela Fabian Nespolo CasenoteI; Emerson Elias MerhyII

IEnfermeira do Grupo Hospitalar Conceição, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIProfessor Titular Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro – Macaé, RJ

 

 


RESUMO

Esse artigo apresenta reflexões a partir da vivência da Tenda do Conto, metodologia aplicada em uma dissertação de mestrado que objetivou compreender como trabalhadores da saúde constroem cuidados de si. Através da pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, técnicas de enfermagem participaram da experiência. Apresentaram-se como resultados: singularidade dos processos existenciais, descrição das experiências com o sofrimento no trabalho, relatos de si para além do campo discursivo institucional, ampliação da capacidade de expressão do corpo sensível. Espera-se contribuir com a Tenda do Conto como ferramenta metodológica para diferentes pesquisas, por fazer emergir diferentes narrativas sobre o vivido, dando centralidade à constituição de si como uma rede viva de existência. Além disso, este estudo teve um efeito a mais que foi facilitar aos participantes uma ampliação da sua compreensão do sofrimento vivido no cotidiano do trabalhador e a possibilidade de uma nova visão do que seja o cuidado de si nesse campo.

Palavras-chave: Tenda do Conto; Saúde do Trabalhador; Psicossociologia; Redes Vivas de Existência; Saúde Coletiva.


ABSTRACT

This article presents reflections based on the Tent of the Tale experience, a methodology applied in a Master's dissertation that aimed to understand how health workers build care of themselves. Through descriptive research, with a qualitative approach, nursing techniques participated in the experiment.The following results were presented: singularity of existential processes, description of experiences with suffering at work, reports of themselves beyond the institutional discursive field, expansion of the sensitive body's capacity of expression. It is hoped to contribute with the Tent of the Tale as a methodological tool for different researches from making different narratives emerge about the lived, giving centrality to the constitution of oneself as a living network of existence. Moreover, this study had the additional effect of facilitating to the participants an amplification of their understanding of the suffering lived in the daily life of the worker as well as the possibility of a new vision of what is the care of oneself in that area.

Keywords: Tent of the tale; Worker's health; Psychosociology; Living networks of existence; Collective health.


RESUMEN

Este articulo apresenta reflexiones a partir de la vivencia de la Tienda del Cuento, metodología aplicada en una disertación de maestría, que propuso comprender como trabajadores de la salud construyen cuidados de sí. A través de la investigación descriptiva, con abordaje cualitativo, técnicas de enfermería participaron de la experiencia. Se presentó como resultados: singularidad de los procesos existenciales, descripción de las experiencias con el sufrimiento en el trabajo, relatos de sí más allá del campo discursivo institucional, ampliación de la capacidad de expresión del cuerpo sensible. Se espera contribuir con la Tienda del Cuento como herramienta metodológica para diferentes tipos de investigaciones, por hacer emerger diferentes narrativas sobre lo vivido, dando centralidad a la constitución de sí como una red viva de existencia. Además, este estudio tuvo otro efecto, facilitar a los participantes una ampliación de su comprensión del sufrimiento vivido en el cotidiano del trabajador y la posibilidad de una nueva visión de lo que sea el cuidado de sí en ese campo.

Palabras-clave: Tienda del Cuento; Salud del Trabajador; Psicosociología; Redes Vivas de Existencia; Salud Colectiva.


RÉSUMÉ

Cet article présente des réflexions sur le vécu sur la Tente du Conte, méthodologie appliquée dans la dissertation de maîtrise ayant par but la compréhension de comment les travailleurs de la santé bâtissent les soins de soi. Parcourant la recherche descriptive, avec une approche qualitative, techniques de soin des malades prenant partie de l'expérience. Avec les résultats suivants : singularité des processus existentiels, description des expériences avec souffrance au travail, récit de soi au-delà du champ descriptif institutionnel, élargissement de la capacité d'expression du corps sensible. En espérant contribuer avec la Tente du Conte en tant qu'outil méthodologique pour différentes recherches, afin de faire émerger plusieurs récits sur le vécu, en donnant une place centrale à la constitution de soi comme un réseau vivant d'existence. En plus, cette étude a eu un effet supplémentaire, à savoir, faciliter aux participants un élargissement de leur compréhension de la souffrance vécue au quotidien du travailleur et la possibilité d'une nouvelle vision de ce que peut être le soin de soi dans ce domaine.

Mots-clés: Tente du Conte; Santé du Travailleur; Psychosociologie; Réseaux Vivants d'Existence; Santé Collective.


 

 

Introdução

A Tenda do Conto é uma experiência vivida através da montagem de um cenário, que não segue uma regra de como fazer. A principal característica é possibilitar que haja a contação de histórias revisitando lugares, que vão surgindo na missão de se puxar os fios da memória. O surgimento do uso da Tenda do Conto, proposto aqui, nasceu através do estudo do sofrimento vivido e narrado por trabalhadores de uma equipe de saúde. Não o sofrimento traduzido como dor ou tristeza, mas o que atinge o corpo, o que afeta (afecções) (Rolnik, 2014). O corpo como portador de suas próprias histórias inscritas a partir das afecções vivenciadas, abrindo-se para diferentes perspectivas de produzir e encarar o sofrimento em si.

A Tenda do Conto apresentou os primeiros registros na cidade de Panatis em 2007 (Félix-Silva, Nascimento, Albuquerque, Cunha, & Gadelha, 2014). Durante uma visita domiciliar, uma agente de saúde mostrou-se preocupada, pois após dois anos visitando a mesma família, descobriram não haver banheiro na casa. Essa preocupação levou a constatação de que suas práticas do cuidado em saúde estavam sendo executadas a partir da lógica medicalizante, onde só havia espaço para doenças crônicas e quadros sintomáticos. Foi-se percebendo a exclusão de questões preventivas como higiene e cuidados, além da diversidade de demandas sociais e afetivas, que acabavam sendo traduzidas e reduzidas como doença; e o quanto seria importante retomar o cuidado preventivo e ouvir de fato a comunidade.

Certo dia, nesta Unidade, foi oportunizado aos moradores que falassem um pouco de si (Félix-Silva et al., 2014), neste momento surgiu a Tenda do Conto, com objetos de múltiplos significados, carregando lembranças e encontros, não só com as pessoas, mas com o espaço também, encontros da ordem do encantamento e que possibilitavam, inclusive, repensar o mundo do cuidado, conforme os próprios autores da proposta.

A partir dessa experiência esse estudo foi proposto, para que técnicas de enfermagem de um hospital, referência para o estado do Rio Grande do Sul, pudessem vivenciar algo semelhante, em relação ao sofrimento que sentiam no mundo do seu trabalho, procurando gerar reflexões que pudessem falar do cotidiano, da vida e do que há de singular em cada uma delas, trabalhadoras da saúde. Grande parte das equipes de enfermagem são compostas por mulheres. Muitas com dupla jornada de trabalho (hospital/serviço doméstico) e, por vezes, a dupla jornada de trabalho nos serviços de saúde (hospital I/hospital II), além do serviço doméstico em seus lares.

O resgate de histórias orais e produção de agenciamento de memória sobre o vivido através da Tenda do Conto pretendeu dialogar com a micropolítica do trabalho em saúde, com a "contação" de cada trabalhadora e com o que julgaram relevante para compartilhar. Ao narrarem suas histórias, as contadoras deixam de ficar no esquecido protetivo e se abrem para produzir novas memórias de si (Abrahão et al., 2014).

Importante perceber que, mesmo com os constitutivos de vida que sobrecarregam a rotina diária, é possível observar trabalhadoras da saúde sorrindo, compartilhando a angústia da doença e auxiliando a recuperação dos pacientes. É possível perceber o envolvimento no cuidado do outro se deslocando de si e construindo alguns questionamentos sobre o fazer no trabalho, quase que de modo paradoxal, pois não se imobiliza, mesmo em sofrimento, o que nos levou a perguntar, nesse estudo: como o trabalhador da saúde pode desenvolver afetos tão calorosos em ambientes tão difíceis como o hospitalar? Será que no interior da equipe acontece o cuidar de si?

 

Método

Tratou-se de um estudo descritivo, metodologia utilizada em uma dissertação de mestrado, com abordagem qualitativa, que a partir das leituras sobre cartografia e micropolítica do trabalho, procurou a produção da narrativa por parte das próprias trabalhadoras do vivido, no campo do seu trabalho, facilitada pelo uso da Tenda do Conto, na busca de narrativas menos capturadas institucionalmente e pelo discurso biomédico (Abrahão et al., 2014; Rolnik, 2014). A pesquisa foi realizada com quatro técnicas de enfermagem de um hospital do sul do Brasil e a seleção das participantes foi por escolha intencional, focando-se nas experiências que recolhiam a partir de seus próprios sofrimentos no trabalho.

As participantes, todas do sexo feminino e trabalhadoras do turno da tarde, estavam há, no mínimo, quatro anos na mesma equipe. Três já haviam trabalhado em outras instituições e duas já haviam apresentado afastamento do trabalho por questões psicológicas e uso de medicação psicotrópica, a faixa etária das participantes variou entre 27 e 40 anos. Cabe enfatizar que as trabalhadoras, ao serem convidadas para participar da pesquisa, foram convidadas a pesquisar a si mesmas também.

Franco e Merhy (2007), nesse contexto, enfatizam que as pesquisas do processo de trabalho buscam revelar, nas relações que se constituem nesse território, o atravessamento de subjetividades, o diferente, a produção de fluxos de cuidado e não cuidado, o inesperado e a tradução do saber-fazer no mundo que produz cuidado nos diferentes cenários. Sendo assim, os trabalhadores da saúde são fundamentais nesse processo, pois eles poderão revelar o mundo de sua produção, a potência das relações e dos encontros, expressando suas vivências no mundo do trabalho.

Para potencializar a Tenda do Conto foi utilizada uma Caixa de Afecções, com uma certa função radar e de dispositivos para a contação de narrativas de si, como histórias sobre suas próprias vidas, em diferentes platôs do existir. A essa vivência agregávamos três proposições: O que você vê? O que você pensa do que vê? O que você faz com o que pensa do que vê? (Educação Permanente em Saúde- [EPS], 2014). Nesse sentido é o que tiramos proveito de Rolnik (2014), que nos apresenta a função radar que se dá através do olho vibrátil, que é capaz de identificar situações do cuidado em ato que nos afetam, produzem vibrações, potencialidades e mecanismos de visibilidade e dizibilidade, construindo, assim, o mundo do trabalho com vivências, experiências e encontros (EPS, 2014).

Os dados foram coletados em dezembro de 2016, foi possibilitado um contexto/uma oficina de contação de histórias, na sede de um sindicato próximo ao hospital, local calmo, previamente combinado com as participantes, onde elas foram convidadas a partilhar suas afecções enquanto trabalhadoras no mundo do trabalho, explorando-se como contadoras de histórias de si, individualmente, sem limite de tempo estipulado. Houve a possibilidade de levarem objetos que pudessem representar afecções vivenciadas, que foram depositados na caixa de afecções, e, ao final, tornou-se uma espécie de memorial, onde constavam elementos que podiam ter significado no seu mundo do trabalho e da vida.

As contações foram escolhidas pelas trabalhadoras, não sofrendo intervenções diretas, foram gravadas e transcritas, garantindo anonimato às participantes, onde tiveram sua identidade substituída por nomes de flores: Margarida, Orquídea, Rosa e Violeta. Após essa etapa, foi realizada a exploração do material.

Para análise das informações, inicialmente foram transcritas as narrativas construídas do mundo do trabalho na Tenda do Conto, desde o falado até o subentendido e sentido pela narradora e pela pesquisadora principal desse estudo, visto que os relatos tendem a mobilizar afetos e memórias afetivas. Nessa elaboração possibilitou-se uma visão geral do conjunto a partir de impressões prévias e orientações de falas. Após essa etapa foi realizada a exploração do material, onde se navegou pelos momentos de aproximações, produzidos pelas participantes da pesquisa, na tentativa de responder às questões norteadoras deste estudo.

Cabe ressaltar que não se buscou detalhes do processo de trabalho ou processo de cuidado, mas se tentou entrar no mundo dos detalhes da produção da vida no ambiente de trabalho, relações de sentidos, interesses, afecções produzidas no cuidado em ato e na perspectiva de entender a porosidade na produção dos encontros, abrindo, de certa forma, espaço para o imprevisível, o inusitado, o encantado, que através dos contos nos faz transitar pelos interiores (Feuerwerker, 2014).

O projeto de pesquisa foi submetido à Comissão de Ética e Pesquisa, sendo aprovado conforme parecer nº 31906, e, posteriormente, à Plataforma Brasil, obtendo autorização para sua execução mediante protocolo nº: 61012616.8.0000.5699. Foram observados os aspectos éticos de pesquisa com seres humanos, preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde, de acordo com a Resolução 466/2012.

 

Resultados e Discussão

Tenda do Conto: A Singularidade das Pluralidades Micropolíticas

As relações cotidianas são encontros de corpos. Mas o que é corpo? Deleuze e Guatarri (2012) afirmam que o corpo é o antes e o depois, é o cansaço e a espera, o desespero também é atitude do corpo. A submissão do corpo quanto à autodisciplina, que em Nietzsche (1999) adestra o corpo animal, e, em Foucault (2014) disciplina o corpo anômalo, acaba por questionar o que pode suportar o corpo. É possível ser sensível ao sofrimento sem adoecer? Todo sofrimento é tristeza? O corpo sofre ao ser afetado. Deleuze, a respeito disso, diz que o corpo não cessa de ser submetido à erupção contínua de encontros, com a luz, com o oxigênio, com os alimentos, sons, necessitando encontrar seu equilíbrio a partir de tantos atravessamentos de encontros que geram o sofrimento (Deleuze & Guatarri, 2012).

Nessa perspectiva, Dejours (Barros & Lancman, 2016) estuda uma certa inteligência criativa, astuciosa e corporal, que tende a trabalhar na criação de estratégias defensivas no mundo do trabalho, de forma que o intenso sofrimento vivenciado cotidianamente não se transforme em patologia. Dejours enfatiza que a inteligência desenvolvida pelo trabalhador tende a começar pelo fracasso, sendo capaz de superá-lo, até que se encontre uma solução, permitindo tentar algo que não se tenha tentado até o momento, ou seja, a experiência para desenvolver as habilidades tende a permitir superar certas dificuldades e encontrar soluções para os conflitos internos e externos cotidianos.

Merhy (2013), a respeito disso, aborda as estratégias que tendem a ser mobilizadas, como o autogoverno e a produção de si no trabalho em ato, fazendo da afecção que faz sofrer, produção de novos sentidos de si e do agir sobre o outro. O mesmo autor explora os agires micropolíticos, através da construção de conceitos-ferramenta pelas próprias trabalhadoras, mobilizando linhas de força e expondo as construções (ruídos) no cotidiano do trabalho.

Ambas as linhas de pesquisa emergem em vários cenários, conforme os seguintes relatos: conversas informais, distanciamentos, outros tipos de encontros que não no trabalho e até o sentir a falta dos encontros nas atividades laborativas como lugar de uma ampla rede de conversação:

Às vezes eu estou de folga no domingo e não sei o que fazer... Eu sinto falta trabalhar, de encontrar todo mundo, de fazer medicação nos pacientes. (Violeta)

E na hora do pavor está todo mundo correndo, mas depois a gente está junta e vai lá tomar um lanche, conversar. Então isso faz a diferença. (Margarida)

Sabe quando que eu consigo extravasar? Quando a gente se junta no posto de enfermagem, que dá pra falar. Eu gosto do nosso trabalho, eu sinto falta quando estou longe. (Violeta)

A gente vai tomar um café, conversar, a gente tem intervalo entre medicações. Eu acho que se não pudéssemos falar, seríamos infelizes no trabalho. (Rosa)

As pessoas falam: - Trabalha sábado, domingo, feriado. Mas eu gosto. Eu converso mais no hospital que em casa. Minha mãe tem 70 anos e minha filha adolescente só fala besteira. É uma família no trabalho. Eu converso da vida particular, tenho intimidade e eu acho que esse é meu jeito de extravasar, eu converso e me sinto melhor. Chegar num canto do posto que a gente sabe que ninguém vai ouvir e poder falar ... É bom tu ter a tua colega para poder conversar, a gente precisa disso. (Violeta)

Esses relatos também revelam os ruídos (Merhy, 2013) produzidos nos ambientes de trabalho, no encontro, na micropolítica e na relação com o outro que se apresentam como cuidados de si. Cruz (2015) aponta que o cuidar de si acontece no cotidiano, socializando com outro trabalhador, inclusive o sofrimento que o mundo do trabalho gera, como potência ou desespero. Quando Violeta traz em sua fala que o local em que ela menos sofre é no local de trabalho é possível evidenciar que, na ação, o que faz sofrer pode virar produção de vida interessante.

Talvez esteja aqui a primeira conclusão sobre o cuidado de si: O cuidado de si inicialmente é micropolítico, na sua intensividade. Mas o cuidado de si construído no cotidiano é sempre um processo coletivo, no encontro com o outro que faz parte da composição dessa cotidianidade. Entre colegas de trabalho, aí, pode acontecer o cuidado e o trabalhador desenvolver ferramentas para lidar com os afetos provocados, que lhe fazem sofrer. Os processos de subjetivação vão se constituindo na medida em que o trabalhador se experimenta, se afirma, se expressa, se diferencia e se identifica no coletivo, com os outros. Se o mundo do trabalho tiver abertura para que essa vivência se transforme em experiência por parte dos trabalhadores, facilitam-se esses movimentos subjetivantes que podem tirar das afecções e afetos mais produção de vida em si, ao invés de sofrimento anulador.

O mundo do trabalho passa a ser prazeroso mesmo recheado de dor, pois são proporcionados muitos encontros como constam nos relatos. Reflexões importantes sobre como cada um usa o seu trabalho vivo em ato e seus sentidos, uma vez que é possível identificar a construção do cuidado de si no mundo do trabalho.

 

Tenda do Conto: Percepções Refletidas na Sensibilidade

O cotidiano do trabalho em saúde tende a promover inúmeros encontros cuidadores e demonstram certa alteridade imprescindível para recuperação de pacientes. Através das expressões das trabalhadoras (o franzir da testa demonstra preocupação, o sorriso contido demonstra expectativa, as mãos fechadas demonstram ansiedade, o olhar distante demonstra a construção do vivido) que vão surgindo durante a Tenda do Conto, é possível perceber que isso reforça o trabalho que cada uma exerce.

Acompanhar uma criança, que nasce com 600 gramas e vai crescendo ter alta com a família é inexplicável. Ou quando estamos o dia inteiro cuidando de um paciente e ele pergunta se a gente vai voltar amanhã, isso traz pra gente reconhecimento e motivação. (Rosa)

No meu primeiro estágio tinha um paciente que era envergonhado. Ele não deixava a gente levar ele no banheiro. Quando fomos embora, ele nos esperou durante uma semana inteira, sentado no saguão e estava frio. A gente cuidava bem dele, diferente dos técnicos do hospital. Então depois disso eu quis dar o mesmo atendimento para os meus pacientes, tão detalhista quanto no início. (Orquídea)

Tinha um paciente que foi para UTI, eu lembro na época de não ter feito mais que minha obrigação. Só que quando ele voltou da UTI, ele veio direto em mim e me agradeceu, por tudo que eu estava fazendo por ele. Ele disse que eu estava acalmando ele, mas eu nem lembrava mais disso. Então eu sempre lembro dele, porque é uma satisfação quando os pacientes nos valorizam com elogios, agradecimentos, isso gratifica muito. (Margarida)

A respeito da dinâmica do reconhecimento, fator que é importante para identidade do trabalhador e prazer no trabalho, Dejours (2012) enfatiza que se trata da valorização do esforço e sofrimento investido pelo trabalhador para a realização das atividades. Nesse sentido, o sofrimento e as defesas no trabalho, sejam individuais ou coletivas, desempenham o papel de articular a saúde e a doença, o saudável sendo tomado como o resultado do compromisso entre sofrimento e estratégias de defesas individuais e coletivas, em função da manutenção da saúde. Ou seja, através do reconhecimento uma parte do sofrimento tende a ser transformada em prazer (Dejours, 2013).

A relação cuidador/ paciente é sensível no que tange a suprir as demandas existentes, além do mais, o vínculo estabelecido entre pacientes e trabalhadores da saúde exige disposição e empatia de ambos.

Na hora que eu consigo suprir a demanda do paciente, eu também me alivio. Mas quando a gente se torna mais próximo, que eu consigo me abrir para ele e ele consegue se abrir comigo, fica mais fácil, fica parecendo uma grande família. (Violeta)

Só o fato da pessoa te olhar, rir e agradecer. A gente só dá uma risadinha e diz que nem foi nada, pra mim foi tão espontâneo, eu estou dando amor para eles, sabe ... Aquela coisa de tu estares perto: - Comeu? -Quer mais um pouquinho? -Vamos limpar a boca aqui. Às vezes eu penso: sou até meio chata por tratar outros adultos assim, mas o jeito da gente falar essas coisas é com carinho. (Violeta)

A sensibilidade da trabalhadora da saúde permeia por outros campos também, podendo transformar as condições geradoras de sofrimento, buscando/inventando outras formas de enfrentá-las, seja através da sutileza, engenhosidade, autogoverno, abrindo caminhos para suportar o adoecimento, sem adoecer, funcionando como modo de proteção. Essas engenhosidades tendem a ser sustentadas pelo coletivo para lidar com as contradições encontradas na precarização do trabalho (Dashtipour & Vidaillet, 2017; Silva, Deusdedit-Júnior, & Batista, 2015), e, muitas vezes, são essas inventabilidades que dão sustentação no aprimoramento do trabalho, inclusive para lidar com os afetos provocados:

No setor tem uma caixa com produtos de higiene. Alguns trazem de casa, outros compram... Sabonetes, cremes, perfumes. Os perfumes são os preferidos. Tem o perfume dourado, que seu João, um morador de rua, prefere. Tem o perfume de flores, que fica a tarde inteira no ambiente, que é o preferido de Dona Rosa, uma paciente confusa, que ninguém visita. Tem o pós-barba esquecido por outro paciente. Alguns pacientes só aceitam fazer a barba se fosse para usar o pós-barba da caixa. (Rosa)

A caixa de produtos de higiene foi surgindo através de uma conversa informal, evidenciada pela falta de materiais na instituição, podendo então ser um elemento para ir para a Caixa de Afecção e podendo ser explorada nas contações de histórias, na narratividade que a Tenda do Conto vai proporcionando, abrindo novas práticas discursivas por parte da trabalhadora, que pode desse modo ampliar o experimento do vivido.

No caminhar desse processo, podemos testemunhar que os trabalhadores desse setor, de certa forma, foram deixando de serem vítimas e passaram a desenvolver formas de intervir nas realidades de trabalho. Cruz (2015), a respeito disso, diz que, em alguns momentos, apresenta-se a necessidade de revisitar, estranhar, analisar e construir outras linhas de fuga em busca de outros mundos e processos. Ou seja, além da saúde dos pacientes é provável que esse processo seja importante para a promoção de saúde dos trabalhadores também, onde coletivamente agem sobre a organização e si mesmos.

Desenvolver as inventabilidades do cotidiano permite aos trabalhadores se reconhecerem no que fazem. São intervenções na prática do autogoverno que cuidam de si e cuidam dos outros, mesmo vivendo em um meio de constante dor e luto, evidenciando, assim, que gestão e cuidado são inseparáveis e cuidar é também um ato de gestão/governo do trabalho.

 

Tenda do Conto: Da Vivência das Emoções

A permanente exposição à insalubridade e à penosidade vem da própria natureza desse trabalho. Componentes importantes do objeto do trabalho: a dor, o sofrimento e a morte do outro. Entretanto esse mesmo trabalho é capaz de produzir prazer através de mecanismos defensivos, quando as condições permitem aos trabalhadores realizarem os cuidados de modo satisfatório, tanto para os pacientes como para eles próprios. Ao ouvir os relatos das trabalhadoras da saúde, agenciados nesse processo de investigação, comumente são citadas transformações de percepção sobre a vida e até novas maneiras de viver:

A gente tem a alegria de sair e ter a família nos esperando. A enfermagem tem disso, ela faz a gente ficar mais humano. Fazer com que a dor do paciente seja amenizada com conforto, com carinho, isso acabou me transformando. (Margarida)

Como é bom ter meu emprego, minha mãe, minha filha. Eu valorizo o que eu não valorizava antes. (Violeta)

O trabalho me faz entender que a vida é curta, vivemos de momentos, então dou mais valor à minha família, dou mais valor às pessoas que estão ao meu lado, tento passar mais tempo junto. (Margarida)

Acompanhar e cuidar de pacientes parece permitir que as histórias sejam compartilhadas e projetadas para as histórias das trabalhadoras. Não é incomum ver uma trabalhadora da enfermagem chorar ao ver um paciente morrer, não é incomum a angústia que se mantém durante dias que uma criança está na UTI, ou durante a internação da paciente que tem a idade da mãe, o adolescente que tem a idade do filho. Por isso é tão necessário o cuidado no interior da equipe, mas também o olhar atento da organização na qual esse trabalho se efetiva, mesmo sabendo que nos vários outros platôs do viver os trabalhadores recorrem a outras vivências para elaborarem os processos vividos no trabalho:

Então tu tens uma rotina pesada de trabalho, precisa de um momento de conversa, de reflexão, de meditação. (Rosa)

Eu me foco muito em desopilar essa carga negativa. Eu vou para academia, eu faço exercício quatro vezes na semana para tirar esse peso. (Orquídea)

Eu tento encontrar energia e força para essas questões na missa. (Rosa)

Toda quinta-feira frequento minha religião, a umbanda. Eu sinto que me faz bem, me faz relaxar dos estresses da semana. (Violeta)

Toda semana combinamos de sair um dia e relaxar, comer algo ou até jogar futebol. (Orquídea)

Acredito que o reiki ajuda também. (Rosa)

Quando estou muito pesada eu vou ao centro para tomar passe. (Margarida)

Nos dias em que folgo nos finais de semana eu levo meu filho no parque e ficamos andando de patins, assim consigo esquecer um pouco dos pacientes. (Margarida)

Se compreendermos que o viver causa sofrimento e dor e que o problema é o que fazemos com isso: produzimos mais vida ou adoecemos, e considerando que no trabalho o sofrimento aí gerado pode também ser transformado em potência, torna-se necessário perceber que em muitos espaços de trabalho em saúde esses mecanismos dos processos de subjetivação não são facilitados, ao contrário, são inibidos, pois a gestão partilhada do próprio trabalho não é autorizada. Isso quer dizer que esse processo de tirar do sofrimento potência tende a estar vinculado ao modo como os trabalhadores geram para si modos de governar, com os outros, o seu mundo do trabalho, indicando a força de cuidado que há no campo da gestão coletiva do cotidiano e nas estratégias de educação permanente em saúde (Merhy, 2015).

O sofrimento como potência provavelmente seja o que, para os pesquisadores desse estudo, mais gostariam de partilhar, procurando mostrar como o percurso pela Tenda do Conto tornou isso visível e, mais, acabou por tornar isso um acontecimento. A Tenda do Conto, de um dispositivo método, abriu-se para um dispositivo gestão em si no mundo do trabalho.

 

Conclusão e considerações finais

O hospital tende a proporcionar encontros cuidadores que vão gerando marcas nos corpos. As histórias contadas pelas trabalhadoras, analisadas nesse artigo, sugerem que, nesses encontros, mecanismos vão sendo ativados e (re) inventados no autogoverno de cada um, andando na direção da construção dos cuidados de si no mundo do trabalho em saúde. Conhecer e explorar as experiências de trabalhadoras da saúde permite o deslocamento de territórios conhecidos, para cartografar em outras produções, outros campos de investigação, outros modos de governar, outros jeitos de cuidar de si. O cuidar de si apresentou-se como um pressuposto para o cuidar dos outros, o que dá potência em sua produção cotidiana.

As contações da Tenda do Conto refletem a importância desse espaço de entrega para que as trabalhadoras da saúde possam falar das afecções no cotidiano do trabalho e da vida. O que vive dentro delas e permanece no desconhecido, até então. Trabalhadoras poderem falar do que sentem, o que querem, sobre o que querem e produzirem falas tão parecidas, mas tão cheias de si: singularidade das pluralidades micropolíticas (através dos ruídos e encontros cotidianos), percepções refletidas na sensibilidade (seja pelo vínculo, reconhecimento, empatia, engenhosidade e autogoverno) e vivência das emoções (encontros para além do trabalho, valorização da vida e da família), na mobilização subjetiva que, de certa forma, ressignifica o sofrimento.

Ressignificar o sofrimento como o que é sofrido pelo corpo por estar exposto, difere de significar todo sofrimento como dor. Ressignificar o sofrimento como potência para transformar e despertar novos modos de cuidar de si, no sentido de adquirir potência de autoanálise, dando ao sujeito do trabalho em saúde a condição de operar seu processo de trabalho, inclusive dentro da instituição hospitalar, modificando as linhas limitantes e abrindo novas fronteiras do agir para lidar com os afetos provocados no cuidado em saúde. Cabe a reflexão de que se não houver tantos movimentos em seu autogoverno, o trabalhador da saúde tem dificuldade de cuidar de si, tendendo a conduzir seu cuidado aprisionado ao constituído.

Espera-se contribuir para o experimento da Tenda do Conto como uma ferramenta metodológica de pesquisa, onde há liberdade de escolha e expressão dos relatos, visto que tende a ser uma estratégia no processo de autogoverno e compreensão do sofrimento vivido no cotidiano do trabalhador da saúde, permitindo, inclusive, que as pessoas assumam o papel de protagonistas das suas próprias vidas. Espera-se, também, com a pesquisa desenvolvida como um todo, contribuir para uma nova visão do que seja o cuidado de si no cotidiano do trabalho em saúde. Um cuidar de si que necessita ser compreendido pelos trabalhadores e equipes, como o encontrar-se com o outro, através da troca e cuidados em ato, ressignificando o sofrimento enfrentado por cada um. O cuidado de si que acontece no coletivo e em cada um de nós.

 

Referências

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Recebido em: 11/03/2019
Aprovado em: 11/09/2019

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