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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.47 São Paulo jan./abr. 2020

 

ARTIGOS

 

"Córrego de Ubaranas": possíveis caminhos à uma comunidade educadora e emancipadora

 

"Córrego de Ubaranas": possible ways to an educating and emancipating community

 

"Córrego de Ubaranas": posibles caminos a una comunidad educadora y emancipadora

 

"Córrego de Ubaranas": quels chemins possibles pour une communauté éducatrice et émancipatrice

 

 

Debora Linhares da SilvaI; Wanessa Nhayara Maria Pereira BrandãoII; Vanessa Louise BatistaIII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas da Escravidão e Abolicionismo na Amazônia da Universidade Federal do Pará – GEPEAM/UFPA
IIMestranda em Serviço Social, Trabalho e Questão Social pela Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil. Pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidades, Gênero e Família (NUAFRO/UECE), onde integra o Grupo de Pesquisa Relações Étnico-raciais: Cultura e Sociedade. Articuladora na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado do Ceará
IIIProfa. adjunta na Faculdade de Educação/ Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

 

 


RESUMO

Fruto das vivências de construção das cartografias socioculturais, histórico-geográficas, patrimoniais e (especialmente) afetivas na Comunidade de Remanescentes Quilombolas do Córrego de Ubaranas, este trabalho integrou o Projeto "Duas Fendas: Patrimônio, Cultura e Consciência Biocêntrica" (MEC/Sesu - PROEXT 2013) e o Programa "Cidade Educadora: por uma educação patrimonial libertadora" (PREX/UFC 2014 e MEC/Sesu - PROEXT 2015). Utilizamos o método da observação participante em conjunto com a escuta de narrativas e entrevistas abertas, registros em diários de campo, registros fotográficos e a realização de Rodas de Conversa e Círculos de Cultura. Objetivamos o cuidado primordial com as relações intergeracionais, intercomunitárias e intersetoriais. A gestão das comunidades não deve se restringir apenas aos procedimentos burocráticos evidenciados pelo Estado. Em cada localidade, a superação da crise ambiental não está na criação de novos moldes, mas sim na elaboração e familiaridade com as incertezas advindas de um compromisso simbólico e vivencial de busca sustentável.

Palavras-chave: Comunidade Educadora; Quilombolas; Patrimônio; Política Ambiental.


ABSTRACT

As a result of the experiences of building socio-cultural, historical-geographical, patrimonial and (especially) affective cartographies in the Quilombola Remaining Community of the Ubaranas Stream, this work integrated the "Two Crevices: Heritage, Culture and BiocentricConsciousness" PROEXT 2013) and the program "Educating City: for a liberating heritage education" (PREX / UFC 2014 and MEC / Sesu - PROEXT 2015). We used the method of participant observation in conjunction with listening to narratives and open interviews, records in field journals, photographic records and the holding of Conversation Wheels and Culture Circles. We aim for primary care with intergenerational, intercommunity and intersectoral relations. The management of communities should not be restricted only to bureaucratic procedures evidenced by the State. In each locality, overcoming the environmental crisis is not in the creation of new molds, but in the elaboration and familiarity with the uncertainties arising from a symbolic and experiential commitment of sustainable search.

Keywords: Educating Community; Quilombolas; Patrimony; Environmental Policy.


RESUMEN

Fruto de las vivencias de construcción de lascartografíassocioculturales, histórico-geográficas, patrimoniales y (especialmente) afectivasenlaComunidad de Remanentes Quilombolas delCorriente de Ubaranas, este trabajointegróelProyecto Dos Fendas: Patrimonio, Cultura y ConcienciaBiocéntrica(MEC/Sesu - PROEXT 2013) y el Programa "Ciudad Educadora: por una educación patrimonial liberadora" (PREX/UFC 2014 e MEC/Sesu - PROEXT 2015). Utilizamos el método de laobservación participante en conjunto conlaescucha de narrativas y entrevistas abiertas, registros endiarios de campo, registros fotográficos y larealización de Ruedas de Charla y Círculos de Cultura. Objetivamos el cuidado primordial conlas relaciones intergeneracionales, intercomunitarias e intersectoriales. La gestión de las comunidades no deberestringirsesólo a losprocedimientos burocráticos evidenciados por el Estado. En cada localidad, lasuperación de lacrisis ambiental no está enlacreación de nuevos moldes, sino enlaelaboración y familiaridadconlasincertidumbres surgidas de uncompromiso simbólico y vivencial de búsquedasostenible.

Palabras-clave: Comunidad Educadora; cimarrones; patrimonio; Política Ambiental.


RÉSUMÉ

Fruit des expériences au sein desquelles ont été élaborées des cartographies socio-culturelles, historiques et géographiques, patrimoniales et (surtout) affectives, dans la Communauté de Remanescentes Quilombola du Córrego de Ubaranas, ce travail s'inscrit dans le cadre du Projet "Deux Fissures: Patrimoine, Culture et Conscience Biocentrique" (MEC/Sesu - PROEXT 2013) et du Programme " La ville éducatrice : pour une éducation au patrimoine émancipatrice « (PREX/UFC 2014 et MEC/ Sesu - PROEXT 2015). Nous avons utilisé une méthode d'observation participative jointe à l'écoute de récits et d'entretiens ouverts, de notes prises sur le terrain et de registres photographiques ; nous avons également organisé des tables rondes et des cercles culturels. Notre objectif s'est en priorité attaché aux relations intergénérationnelles, intercommunautaires et intersectorielles. La gestion des communautés ne doit pas se limiter aux seules procédures bureaucratiques mises en avant par l'État. Dans chaque localité, surmonter la crise environnementale ne consiste pas à créer de nouveaux modèles, mais à élaborer, à se familiariser avec les incertitudes découlant d'un engagement symbolique et expérimental dans la recherche de la durabilité.

Mots-clés: Politique socio-environnementale; Quilombolas; Héritage; Communauté éducatrice e émancipatrice.


 

 

Uma cultura é avaliada no tempo e se insere no processo histórico não só pela diversidade dos elementos que a constituem, ou pela qualidade de representações que dela emergem, mas sobretudo por sua continuidade. Essa continuidade comporta modificações e alterações num processo aberto e flexível, de constante realimentação, o que garante a uma cultura sua sobrevivência. Pode-se mesmo dizer que a previsão ou a antevisão da trajetória de uma cultura é diretamente proporcional à amplitude e profundidade de recuo no tempo, do conhecimento e da consciência do passado histórico. Da mesma maneira como, analogicamente, uma pedra vai mais longe na medida em que a borracha do bodoque é suficientemente forte e flexível para suportar uma grande tensão, diametralmente oposta ao objetivo de sua direção. (Aluísio Magalhães1, p. 21, 1977)

 

Introdução

Eram muitas as comunidades a conhecer naquele ano de 2013, todas na cidade de Aracati/CE. Caminhos diversos entre rodovias, estradas, ramais, ruelas, ruas, vicinais; alguns identificados por placas, outros por um poço, uma igreja, uma escola, um cemitério, nas quebradas de uma duna ou dos cataventos de energia eólica. Algumas próximas à sede da cidade ou já quase fronteiriças ao estado do Rio Grande do Norte; praieiras ou semiáridas, de pescadores e/ou agricultores, fizeram conosco um caminhar de muitos encontros com moradores de 127 comunidades.

Foram caminhos de uma mobilização comunitária para a produção participativa do Plano Plurianual (2014/2017) daquele município, desenvolvido durante os meses de maio, junho e julho de 2013 através dos "Encontros Comunitários da Cidade" e "Encontro Municipal das Comunidades", e que possibilitaram a formulação da Lei Municipal nº 069/2013 que regulamentou a integração entre as funções de planejamento e orçamento através da compatibilidade entre três instrumentos legais básicos: o Plano Plurianual (PPA), as Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).

Esses caminhares, no entanto, começaram alguns anos antes, num trabalho de cooperação entre a Universidade e a Cidade. Iniciou-se com um modesto e audacioso projeto de extensão-cooperação universitária, em fevereiro de 2011, chamado "Duas Fendas", que visava cultivar processos de ampliação e desenvolvimento da consciência pessoal e coletiva, contribuindo para a conscientização e mobilização em torno das gravíssimas questões decorrentes da crise socioambiental que se abatem sobre Canoa Quebrada. Foi neste bairro de Aracati, mais especificamente com a comunidade da Vila do Estevam, que se desenvolveu a atuação comunitária via extensão-cooperação universitária, cujo fruto foi a criação do Movimento Cultura & Consciência Biocêntrica (mc²BIO), ali sediado.Tal atuação se fez como um vórtice irradiador de desenvolvimento regional ecomunitário, biocêntrico e libertador.

Com o passar dos anos, esse projeto se fortaleceu e, mantendo a parceria do Laboratório de Estudos Sobre a Consciência (LESC Psi) e do Laboratório de Pesquisas em Psicologia Ambiental (LOCUS), ambos da Universidade Federal do Ceará - UFC, o Projeto "Duas Fendas: Patrimônio, Cultura e Consciência Biocêntrica" (MEC/Sesu - PROEXT 2013) se ampliou e firmou parceria também com a Prefeitura Municipal de Aracati, a partir de participação da equipe do projeto no Fórum Comunitário de Canoa Quebrada e Fórum Aracati Novos Caminhos.

E, assim, retornamos ao ano de 2013 e nossos encontros, caminhos e caminhares com as comunidades de Aracati. Finalizados os trabalhos dos "Encontros Comunitários da Cidade", dá-se uma nova etapa de atuação da equipe do "Duas Fendas", que se interligava ainda ao Plano Plurianual de Aracati, mas que também se expandia para os processos educadores e emancipadores das comunidades. Nos planos de ação, mantinha-se a comunidade da Vila do Estevam com o mc²BIO e agregava-se a comunidade do bairro do Pedregal, conhecido pelos altos índices de violência e mortalidade de/entre jovens. Neste bairro, o diálogo e possibilidades de atuação se faziam juntamente com a Associação dos Moradores do Pedregal (AMOP), cujas lideranças também participaram do Fórum Comunitário de Canoa Quebrada e do Fórum Aracati Novos Caminhos.

Paralela a essa frente de atuação, outra se configurou através de um processo formativo destinado aos educadores da rede pública de ensino do município, denominada "Formação Permanente em Educação Patrimonial: por uma Cidade Educadora". Esta visava operar a integração entre o plano macrogenético de desenvolvimento da identidade municipal, e o plano microgenético de integração da identidade pessoal, em suas expressões individuais e coletivas, criando campo propício para a elaboração colaborativa de um planejamento estratégico da cidade. Esta dupla inserção se refere à natureza educativa da proposta, visando o favorecimento e a realização de um programa em que Aracati se faria Cidade Educadora e Patrimônio do Ceará. Tal perspectiva apontava para um complexo de estratégias de promoção da aprendizagem e desenvolvimento municipal adotando o lema "Aracati, Patrimônio do Ceará: por uma Cidade Educadora" e retratando o espírito da cidade, em sua totalidade, potência e identidade, nos cenários regional, estadual, nacional e internacional.

Contudo, apesar de termos trilhado planos de ação específicos, organizando processos formativos nas escolas municipais, elaborando atividades com as secretarias municipais, construído projetos comunitários em Canoa Quebrada e no Pedregal, um caminho surgiu tão somente do encontro, da força que se apresentou através de tantas histórias contadas em meio às demais comunidades. Encontro afetivo potente que nos chamou para uma visita à Ubaranas, a comunidade que tinha "a igreja [católica] mais antiga do Aracati", construída pelos negros daquele lugar.

Da terra árida onde floram os cajueiros

É num pedaço da BR - 304, com olhar atento entre mata rasteira, cercas e ramais que conseguimos encontrar as vicinais que levam àquela terra. Pequenas casas espalhadas, algumas de pau-a-pique, outras já de alvenaria, campos abertos, aves e animais de criação de pequeno porte soltos nos terreiros, poços antigos e cisternas, e muitos, muitos pés de caju por toda parte. Transeuntes no chão de areia fofa, alguns passam de bicicleta, outros de carroça e alguns tantos a pé. E, mais uma vez, seja em plantações, seja enfeitando a entrada das casas, pés de caju, com idade suficiente para ter copas infindáveis e espalhar-se pelo chão dando voltas como se estivessem movimentando-se, a caminhar, tal qual aquele lugar.

O Córrego de Ubaranas localiza-se a 18 km da sede da cidade de Aracati e está em processo de reconhecimento da terra como sendo comunidade de Remanescentes Quilombolas. Junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, conseguiu a conclusão do Relatório Técnico de Identificação de Delimitação - RTID2 em março de 2015. Em 22 de Maio de 2018 foi publicada no Diário Oficial da União a portaria nº 8623, que além de reconhecer declara como terras quilombolas as circunscritas no espaço de vida da comunidade do Córrego de Ubaranas, Aracati-Ceará, em benefício de mais de 61 famílias ali sediadas desde os tempos da escravização de seus antepassados. Restam três passos até a titulação, quais sejam: a "decretação"por decreto presidencial ao que autoriza e desapropriação privada; a "desintrusão"por notificação judicial aos detentores atuais do título da terra e a retirada dos mesmos e, então, a "titulação"através da emissãodo título de propriedade coletiva para comunidade.

Em território identificado e delimitado em 1.626 hectares de área, essas famílias estão cadastradas na Associação dos Agricultores e Agricultoras do Córrego de Ubaranas. Sua base econômica é a agricultura familiar, porém, com os conflitos territoriais, grande parte dos moradores presta serviços às empresas vizinhas, trabalhando, principalmente, na colheita de castanhas de caju; outros se dedicam a atividades oriundas das lutas desses trabalhadores a fim de valorizar suas práticas agrícolas e manufatureiras. Neste território, compreende-se a relação dos moradores com o processo de pertencimento à terra, legalmente e espiritualmente falando, e as relações afetivas com o chão de antepassados escravos e escravistas.

Apresentaremos, então, alguns resquícios de nossa caminhada na referida comunidade, sendo este trabalho fruto das vivências de construção das cartografias socioculturais, histórico-geográficas, patrimoniais e (especialmente) afetivas na comunidade do Córrego de Ubaranas, integrando, assim, os Programas "Duas Fendas: Patrimônio, Cultura e Consciência Biocêntrica" (MEC/Sesu - PROEXT 2013), "Cidade Educadora: por uma educação patrimonial libertadora" (PREX/UFC 2014) e "Aracati, Patrimônio do Ceará: por uma Cidade Educadora" (MEC/Sesu - PROEXT 2015), buscando desenvolver uma experiência interdisciplinar, interlaboratorial e interinstitucional na composição do trabalho e da equipe.

A partir dos primeiros levantamentos junto à comunidade, objetivamos construir ações conjuntas nas quais discussões referentes às políticas públicas voltadas às populações negras e, mais especificamente, às Comunidades de Remanescentes Quilombolas, potencializassem possibilidades de transformações às realidades dos moradores do Córrego de Ubaranas, levando-se em consideração os atravessamentos intergeracionais e as demandas específicas ali existentes, (tais como adequações no currículo escolar, políticas de assistência social e saúde dirigidas a esta população), mas também, e principalmente, um processo de construção de uma educação emancipadora e sustentável que valorizasse os patrimônios materiais e imateriais desta população evidenciando identidades e "afetos" em devir (Espinosa, 2008).

Respaldamo-nos no Estatuto da Igualdade Racial que teve sua aprovação e sanção presidencial em 2010, e cuja prerrogativa foi minimizar as desigualdades raciais que caminharam durante séculos na história nacional e que vetaram direitos e oportunidades aos negros no Brasil. Baseando-se em seu capítulo IV (Do Acesso à Terra e à Moradia Adequada), seção I (Do Acesso à Terra), "Artigo 31. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (Brasil, 2010).", nossas ações fomentaram o diálogo da comunidade com esse aparato legal, fortalecendo a conexão da consciência coletiva acerca desse processo emancipador e, ainda, refletindo como se dá, para além das leis, a afinidade amorosa, afetiva e cuidadora com os patrimônios de Ubaranas.

Identificamos problemas relevantes para nossa atuação com uma das situações que, mesmo existindo um processo em andamento no INCRA, havia notória falta de acesso a determinadas informações (legislações, projetos, diferentes aparatos legais e institucionais) que poderiam contribuir na luta desta comunidade pelo reconhecimento de seu território como sendo de Remanescentes Quilombolas. Isto, por sua vez, tornou-se explícito quando nos deparamos com os constantes conflitos entre moradores da comunidade e os "proprietários" da terra, também em algumas reuniões com o INCRA, bem como na dificuldade que estes moradores tinham (e ainda tem) em tratar de si mesmos como sujeitos de direitos. É como se estivessem sempre num dilema entre a submissão e a resistência, entre sua própria história e a necessidade de sobrevivência que acaba levando-os às situações de exploração e ameaça.

Patrimônio: Valorização da Memória e Identidade(s)

Nos anos de 2013 e 2014 pudemos identificar alguns aspectos na comunidade de Ubaranas ligados à história de formação da mesma e às memórias dos seus moradores mais antigos. Estes, muitas vezes tidos como patrimônios do lugar, referendam o que dialogamos no LESC-Psi como conceito de patrimônio: algo que perpassa não apenas um apreço ou apego pelo que é palpável, mas o que está no campo dos afetos, que de algum modo reverbera nos modos de ser da comunidade.

Conforme nos traz Cipriano, Linhares e Batista (2014, p. 262):

A história da comunidade, que nos foi sendo apresentada através de narrativas e também de objetos antigos e considerados importantes, abriu-nos outros campos possíveis ao que objetivávamos. Há ali uma longa história de escravidão e de conflitos agrários, que envolvem inclusive o processo de reconhecimento destas terras como pertencente a seus moradores. Junto a isto, há também uma longa história de não reconhecimento, que se reflete na necessidade de (re)construir sua identidade e que se apresenta na capacidade cotidiana que essas pessoas tem de resistir e, ali, resistem há gerações.

Para que as memórias se perpetuem, é necessário que resistam ao tempo. Para que as identidades se (re)afirmem, é necessário que resistam às opressões. E é também por meio de diferentes formas de resistência que os patrimônios ainda estão espalhados por Ubaranas, desde o cemitério, o engenho, poços, a igreja (tida como a mais antiga de Aracati), às pessoas, costumes, artesanias, contações de histórias e outras tantas manifestações que sequer acessamos.

Nesse sentido, o levantamento detalhado destes patrimônios foi feito por diferentes vias:

a) Narrativas biográficas das memórias dos mais velhos;

b) Registro (fotográficos e de peças) dos tipos de artesanias ali existentes;

c) Registro de patrimônios arquitetônicos referendados pelas/os moradores;

d) Registro de manifestações artístico-culturais (danças, cantorias, rezas, modos construtivos, culinária, histórias de trancoso e outras);

e) Registro de outros patrimônios identificados pela comunidade.

As crianças e a escola: criAtiv(a)Idade!

Ubaranas tem muitas riquezas, uma delas são suas crianças, seja pela quantidade, seja por sua disposição de brincar. Crianças que significam o lugar onde vivem em miniaturas, que se propõem a montar apresentações públicas, que vivem a capoeira com paixão e alegria, que montam brinquedos, que vivem e falam de política do seu jeito, negociando possibilidades e espaços de criação da vida comum.

São as mesmas que estão na escola da comunidade -hojeum "anexo" da escola do Córrego da Foice - lugar que outrora foi uma escola daquela comunidade. Algumas questões se levantaram durante o trabalho realizado: Como fazer da "escola" uma Escola? Um lugar de criação, de liberdade e transformação? Como fazer da educação um patrimônio? Pensando sob a perspectiva do Projeto Cidade Educadora (2014/2015) e de todo nosso caminhar desde 2013, não poderíamos pensar uma comunidade educadora?

Dentre tantas potências latentes em Ubaranas, uma delas é a curiosidade de alguns que ali vivem, não apenas das crianças. Esta curiosidade dialoga conosco, quer aprender; e aprende que também ensina. Esta curiosidade nos pede "o conhecimento que não tenho", mas não de forma depositária, quer conhecer! -do latim, cognoscere: com, "junto", mais gnoscere, "saber".

Diante das tentativas de implementar uma política educadora na rede municipal de ensino e de tantos impedimentos administrativos e politiqueiros, por que não focar aquela pequena escola no quilombo? Por que não aquelas crianças? Aquelas professoras? Aqueles moradores? Por que não pensar essa escola como um espaço tão propício, onde a comunidade sabe do que necessita, onde há educadores que apenas precisam se (re)conhecer como tais?

Surgiu, assim, uma proposta: na escola de Ubaranas, construir com as professoras e as crianças outra forma de aprender e ensinar. A escola não tem muros, não precisamos esperar os muros serem construídos para depois tentar desconstruí-los. Estender os espaços educadores pela comunidade, uma escola na e da comunidade, embaixo da mangueira ou dos pés de caju, onde falar de história é falar da própria comunidade.

Nas palavras de Silva (2014, s/n),

as atividades com as crianças e professores nos espaços de ensino/aprendizagem, que podem ser vários, podemos pensar a presença dos mais velhos como forma de interagir junto à história da comunidade, no entendimento das situações cotidianas que tiveram sua gênese no passado, na tentava de unir gerações entendendo que 'somos nós uma história', referenciando e reverenciando esses velhos e velhas.

Também nessa perspectiva, construir um curso de educação patrimonial a qualquer interessado, independente da idade. Os participantes desse curso, por sua vez, estariam em contato com os professores municipais de Aracati que, durante o 2º semestre de 2013 e 1º semestre de 2014, participaram da "Formação Permanente em Mobilização para Educação Patrimonial - por uma Cidade Educadora", parceria do LESC-Psi com a prefeitura municipal de Aracati. Assim, ter-se-iam futuramente na comunidade, formadores de novos educadores, que passariam a replicar a formação em Ubaranas e em comunidades vizinhas.

Do político à política: citadinos cidadãos

Apesar de, com o passar do tempo, ter-se uma presença mais frequente de órgãos do governo federal, como INCRA e Instituto Zumbi dos Palmares - IZP em Ubaranas por conta do processo de reconhecimento das terras como território de remanescentes quilombolas, os órgãos de âmbito municipal continuavam ausentes.

Como já supracitado, havia ali somente um anexo escolar que atendia apenas ao ensino infantil. Estudantes do ensino fundamental deslocavam-se para comunidades próximas e os do ensino médio para a "sede" de Aracati. Há uma unidade de atendimento em saúde da família na comunidade que funciona apenas uma vez por mês. Os Agentes Comunitários de Saúde - ACS's também não tinham atuação regular.

Logo, apesar dos direitos constitucionais, apesar do que rege atualmente as políticas de saúde, educação e assistência social no Brasil, estes continuam tendo seus direitos limitados. Em alguns momentos, o desconhecimento das leis e dos direitos sociais básicos os mantêm numa posição até "conformada" e passiva. Porém, a cada nova conquista em suas lutas, apesar das dificuldades, há uma nova possibilidade.

Por isso, o espaço educador é também um espaço político e de exercício da política, enquanto ferramenta coletiva e de organização social e pública. O processo de emancipação está na conscientização, na qual Política e Estado não podem ser sinônimos, onde Público e Estado também não podem significar a mesma coisa. Enquanto seres políticos, há que se pensar e agir na direção da solidariedade e organização coletiva como constituinte dos processos de libertação pública, em que o Estado tem a função de zelar e viabilizar.

Para além dos direitos básicos não cumpridos, há na comunidade outro direito que tem merecido relevante atenção: o direito à vida, diante das constantes ameaças de morte às lideranças comunitárias. Segundo Malatesta (2001, p. 23), "Oprimem-se os homens de dois modos: diretamente, pela força brutal, pela violência física; ou indiretamente, subtraindo-lhe seus meios de subsistência e reduzindo-os, assim, à impotência.".

As ações educativas aqui deram-se na esfera da assessoria em direitos humanos e de esclarecimentos quanto aos direitos sociais básicos. E, dialogando com a proposta de uma comunidade educadora, pensamos atividades específicas como vídeo-debates, rodas de conversa e ações na escola tratando de temas relevantes para a comunidade, que auxiliassem a pensar esse ser-político- do grego politikòs: cidadão - atuante nas esferas micro e/ou privadas, como quando tratamos as questões de violência doméstica, por exemplo, e também nas esferas macro e/ou públicas, quando da necessidade de reivindicar ou pensar alternativas às situações problemas aqui apresentadas.

Estas ações seriam realizadas em parceria com a Associação de Agricultores e Agricultoras do Córrego de Ubaranas e com auxílio das crianças. Intentava-se ainda levar à participação desses momentos representantes municipais de diferentes políticas, em diferentes instâncias, bem como integrantes de movimentos sociais, educadores, artistas, etc.

Fóruns Comunitários: "de Ubaranas para o mundo!"

A ideia era que estes espaços funcionassem como espaços de formação, resistência, construção e expansão coletiva, como potência de ação, que segundo Chauí (2010, online) é:

A potência interna (o conatus) que define a singularidade individual é uma força que pode aumentar ou diminuir, dependendo da maneira como cada singularidade se relaciona com outras ao efetuar seu trabalho de autoconservação. A intensidade da força da potência de existir e agir diminui se a singularidade for afetada pelas outras de tal maneira que se torna inteiramente dependente delas; e aumenta se a singularidade não perder independência e autonomia ao ser afetada por outras e ao afetá-las... Um afeto é passivo ou uma paixão quando o que se passa no corpo e na mente decorre do poderio das forças externas; um afeto é ativo ou uma ação quando decorre exclusivamente de nossa potência interna de existir e agir.

Logo, os fóruns, enquanto espaços educadores e políticos podem colaborar para as potências, para os bons encontros. Para tanto, pensamos inicialmente em dois fóruns:

a) Fórum das Crianças = que dialogaria com o processo a ser deflagrado na escola (supracitado);

b) Fórum de Comunidades de Remanescentes Quilombolas = que reuniria as comunidades de Aracati, inicialmente, em Ubaranas.

Desse modo, conseguiríamos construir/pensar diferentes instâncias da comunidade e isto não se encerraria nela mesma. As trocas de vivências e experiências também são parte do processo educador emancipador, onde alteridade e resiliência se encontram.

 

Percursos Metodológicos

Utilizamos o método da observação participante (Brandão, 1984) em conjunto com a escuta de narrativas e entrevistas abertas além de registros em diários de campo, registros fotográficos e a realização com a comunidade de algumas Rodas de Conversa e Círculos de Cultura (Freire, 2011).

Toda essa trajetória deu origem a algumas atividades, tais como:

a) Projeto Reciclagem e Permacultura, viabilizando o aproveitamento sustentável do que nem sempre é lixo, mas que pode afetar a saúde dos moradores, degradar o ambiente, prejudicar na higiene do local e danificar a terra;

b) Memórias da Terra: Raízes Históricas da Comunidade de Ubaranas, a qual propôs a construção de espaços de discussão e troca adotando uma relação facilitadores/grupo, dialogando as concepções de lugar, identidade e pertença;

c) Oficina Rádio Patrimônio, visando a valorização dos patrimônios materiais e imateriais da comunidade, por meio da produção e realização de programas de rádio;

d) Pequenos passos com a Lei 10.639/03 para crianças, no sentido de fomento à identidade negra e na produção de valores e práticas que eduquem os cidadãos quanto a pluralidade étnico racial.

Participantes

As famílias que frequentavam a associação participaram desde as primeiras conversas de implantação e desenvolvimento do trabalho. Contudo, aos poucos foram integrando outras famílias nas atividades propostas, de modo que mães e filhos, avós e tios pudessem produzir conjuntamente e/ou paralelamente. Nos eventos comunitários outras famílias se aproximavam da organização e produção, mesmo que não desejasse permanecer nas atividades permanentes. Já os assuntos vinculados à terra, a comunidade se fazia presente e a equipe do LESC-Psi também, quandoas atividades congregavamos moradores num público diverso em idade, gênero e raça-etnia.

Equipe de Atuação

Para cada ação tínhamos uma pessoa de referência na equipe. Estas se alocariam nas ações por afinidade, dentro do que já vinha se desenvolvendo na comunidade, se responsabilizando pela organização das atividades, solicitação de transporte e materiais, diálogo permanente com a comunidade e idas a campo com frequência mínima de 15 em 15 dias. Também era de responsabilidade dessa pessoa fazer o repasse de informações ao grupo do laboratório e apresentar suas demandas. Em caso de indisponibilidade, a mesma deveria referendar outra pessoa da equipe para fazê-lo.

Materiais

Utilizamos gravadores; câmeras fotográficas e/ou celulares; caderno para registro de diário de campo; canetas; materiais de papelaria (cartolina, papel A4, canetinhas, lápis de cor, giz de cera, cola, tesourinhas, tintas guache); impressões e fotocópias de materiais didáticos; datashow; caixa de som; notebook; materiais recicláveis.

Da periodicidade

As atividades ocorreram durante os anos de 2014-2015, com a seguinte periodicidade:

• Levantamento de patrimônios da comunidade tinham periodicidade semanal até se encerrar o levantamento e registro de patrimônios;

• As atividades desenvolvidas com as crianças, professoras e comunidade eram quinzenais;

• Ações coletivas com a comunidade tinham periodicidade definida a partir do diálogo com a associação e suas demandas;

Os fóruns poderiam ser mensais, contudo a periodicidade era definida pela comunidade, mediante suas possibilidades de articulações e necessidades organizativas. Estas propostas foram apresentadas à comunidade e aprovadas, sendo de livre deliberação da mesma a execução de todas, de algumas ou de nenhuma delas.

 

Resultados e Discussão

"Cidade educadora", por sua natureza inventiva, foi um programa que intentou a participação social como construção poética do planejamento estratégico comunitário. Seu caráter participativo requer criação constante e coletiva. Seu princípio é estar aberta para quem possa entrar no diálogo e seus fóruns como espaços de gestão de um projeto político de futuro o qual se fortalece como materialização de uma urbanidade viva.

A cidade se faz busca contínua ao gerar conhecimento, desenvolvimento e aprendizagem na/da vida pública reverberando subjetivamente nos sujeitos de modo a possibilitar superação da passividade citadina, dando espaço para a atividade cidadã. E é, também, aquela que resulta da poesia urbana, da vida partilhada na cidade: pelas praças, lojas, praias, avenidas, museus, moradias, igrejas, escolas, hospitais, enfim, por todos os espaços e territórios da vida humana. O por vir, presentificado continuamente na prática dialógica, a faz educadora; o futuro é o norte e as incertezas são parte dos impulsos que proporcionam a poética de uma cidade, sempre aberta para o movimento "periurbano"4 (Tassara, 2007) - uma urbanidade própria do lugar com características semelhantes às que se vinculam à hegemonia, mas com zelo pela singularidade e diversidade cultural da comunidade. Aqui, a tradição se alimenta do novo para manter a memória do que é ímpar nesse modo de vida e, também, superar as opressões que herdaram do passado.

A poesia tem algo de atemporal (Bachelard, 1993) e, portanto, facilita o transitar entre os tempos históricos e inventivos, propiciando novos caminhos para a sustentabilidade. É preciso desenvolver um projeto que objetive desacomodar as ideias prontas e os "corpos dóceis" ou domesticados e doutrinados (Agamben, 2002) em processos coletivos rumo a um novo modo de viver cidade.

A sustentabilidade é resultante da coexistência entre a justiça social, aceitação da diversidade cultural, viabilidade econômica e consciência ecológica; tal complexidade exige atenção e cuidado no processo inventivo. Não basta inovar, é preciso ter noção dos prós e contra quando se toma uma decisão de agir na direção criadora. A poética da cidade é fruto das revisitações do passado que evidenciam tais nuances da vida comum e das experiências presentes que geram brechas para se inventar novos caminhos de superação dos determinismos históricos e sociopsicológicos, assim como dos domínios espúrios de nossa geopolítica.

E a gestão da cidade e, por conseguinte, das comunidades não deve se restringir apenas aos procedimentos burocráticos evidenciados pelo Estado em níveis municipais, estaduais ou federais; mas exige uma cooperação tal que o caminho formativo se ramifique e se enraíze nos territórios a partir de reflexões e ações mobilizadoras e integradoras. Em cada localidade, a superação da crise ambiental não está na criação de novos moldes, mas sim na elaboração e familiaridade com as incertezas advindas de um compromisso simbólico e vivencial de busca sustentável. Nesse sentido, tomou-se como base metodológica para as ações em Ubaranas o cuidado primordial com as relações intergeracionais, intercomunitárias e intersetoriais, assim como a articulação destas em níveis e escalas distintas da "produção" política (Espinosa, 1983) da cidade, do estado e da federação.

A noção de sustentabilidade gera condições de observar os impactos neoliberais de desenvolvimento evidenciados, principalmente, através da mundialização da pobreza (Tassara, 2007). Esse é um desafio que todos podem assumir, quando em processo educativo, viabiliza em cada território a proposta de superar a servidão do viver a urbanização dominadora, construindo uma urbanidade libertadora e promotora da democracia participativa: uma periurbanidade comprometida poeticamente com a construção de um futuro humanitário. Assim, a sustentabilidade é referência, meio e fim. É método e, ao mesmo tempo, utopia e, portanto, "utopia de caminho" (Tassara & Ardans, 2003).

Uma Política Ambiental como práxis educadora

A práxis fundamentada em uma "Política Ambiental" se define pela direção de políticas intersetoriais que consideram Educação e Cultura como base para sua implantação. O olhar para o território e a atuação participativa requer a "construção intencional e poética do futuro" (Bo Bardi citado por Tassara, 2006), cujo método baseia-se em uma leitura atenta e crítica para compor, coletivamente, um espaço público por excelência: um viver a cidade como inventividade do espaço-tempo compartilhado. Ela tem suas bases alicerçadas em aspectos retrospectivos e prospectivos/projetivos que, no horizonte, apontam para a sustentabilidade e no ponto atual age no tempo que a complexidade da ação exige.

Tal política é uma utopia no sentido freireano do "inédito viável (1992)", aquela que se busca, se constrói com, se faz ao caminhar. "Sua busca consiste, portanto, em uma dinâmica utopia de caminho na direção da almejada emancipação". (Tassara & Ardans, p. 162, 2003)

É importante demarcar que esse movimento de/rumo à "Política Ambiental" requer o desenvolvimento de um processo educador, cujo foco é o modo de viver no território, seja no campo, na cidade, na floresta, nos sertões, rios e mares... Para tanto, será preciso identificar espaços educadores que sejam, ao mesmo tempo, lugares de articulação e planejamento participativo entre a Gestão e a Comunidade.

A escola é considerada como espaço educacional por excelência; isso é inegável! Contudo, a questão aqui colocada enfoca o sentido educador que todos os espaços comunitários têm, porém não reconhecidos enquanto tal; assim como a condição de educadores que todo o cidadão passa a ter para se reconhecer citadino de uma Cidade Educadora.

Na perspectiva de identificar os aspectos que caracterizam e valorizam a cidade em sua complexidade e singularidade, encontrou-se na noção de Patrimônio um amparo semântico que permitiu refletir sobre os valores da vida na cidade e em comunidade e suas diversas formas de manifestação e existência. No âmbito governamental (em suas diversas escalas) pôde-se perceber que a legitimidade aos bens materiais e imateriais é dada sob a forma de patrimônios regionais, nacionais e mundiais. Esse termo se refere àquilo que identifica, delimita e demarca o que há de histórico na evidenciação da identidade cultural, assim como àquilo que se atribui um valor genuíno nos territórios.

A própria trajetória filológica da palavra patrimônio se transforma de acordo com os tempos históricos, que podem estar relacionados com as distintas tônicas de urbanidade, apresentadas por Lefebvre (1999). "Patrimônios Culturais" consagrados convivem com os, ainda, não registrados e tombados; muitos deles reconhecidos pelas comunidades, ou ainda em processo de reconhecimento. (Fonseca, 1997).

Pensando esta perspectiva de (re)afirmação identitária e/ou de reconhecimento de si e de seus lugares estimados a partir do que a própria comunidade afirma como seus patrimônios, pudemos desenvolver uma série de ações em Ubaranas. Essas ações, amplamente dialogadas e, portanto, dialógicas, impulsionaram e fortaleceram o caráter educador que os próprios moradores possuem, abrindo campos de possibilidades a um viver-ser cidadão.Cada dia mais os moradores da comunidade percebem sua história e de seus antepassados dentro de um processo excludente e de exploração e acreditam na necessidade de resistirem e lutarem pela garantia de seu direito àquela terra, mesmo que isso por vezes os levem a viver sob ameaça de morte. Ter acesso a leis e instituições como a defensoria e o ministério público, bem como entidades não governamentais de defesa dos direitos humanos, transparece o sentido educador de uma simples roda de conversa aos pés de uma mangueira ou de um cajueiro.

Algumas de nossas ações, no entanto, não tiveram continuidade, abrindo espaço para a invenção de outras, que dialogavam com maior autenticidade ao que a realidade da comunidade nos apresentava. Listamos a seguir alguns caminhos percorridos nesta parceria:

• Mapeamento cultural e identificação dos patrimônios da comunidade;

• Reunião com representantes da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas - CONAQ;

• Organização do Dia da Consciência Negra em Ubaranas (2013, 2014, 2015);

• Realização de entrevistas com moradores mais antigos de Ubaranas;

• Reuniões com representantes da Prefeitura Municipal de Aracati (gestão 2012-2016);

• Mapeamento da comunidade;

• Teatro, oficinas, rodas de conversa e atividades lúdicas e de leitura específicas com as crianças, que a pedidos se estenderam aos adolescentes;

• Atividades de educação ambiental sob enfoque da Permacultura e visita à Ecoaldeia Flecha da Mata;

• Publicação do livro sobre as histórias e lendas da comunidade, incluindo escritos de D. Madalena;

• Entrega de materiais referentes às Políticas de Igualdade Racial;

• Reuniões e diálogos com o INCRA e Instituto Zumbi dos Palmares;

• Reunião com adolescentes e jovens da comunidade: apresentação dos projetos e chamamento para participação no Fórum do Selo UNICEF e NUCA- Núcleo de Cidadania de Adolescentes (2014);

• Reuniões com Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica popular Frei Tito de Alencar;

• Diálogos e entrega de documentos e materiais sobre impactos de instalação de aerogeradores para captação de energia eólica, etc.

As ações e atividades continuaram e fortaleceram o sentimento de autonomia da comunidade que, aos poucos, já não solicita tanto nossa presença. Há muito ainda que enfrentar até o final do processo de titulação das terras aos Remanescentes Quilombolas de Ubaranas, mas esta comunidade já mostra mais e com mais coragem e vontade o que é ser um quilombola, assim como sua resistência, resiliência e união. Seus moradores nos ensinaram e nos ensinam cada vez mais sobreo emaranhado a se encarar quando a luta cotidiana precisa garantir os direitos de viver no território em que nasceram e cresceram.Quando ela se ergue, exige de cada um e de todos a disposição em seguir adiante com os sonhos que se sonham coletivamente.

Uma contradição nos alerta para os resquícios da escravidão que ainda precisam ser trabalhados para se superar a desigualdade presente nessa disputa territorial na cidade do pioneiro abolicionista brasileiro Dragão do Mar.

O gigante se ergue, porém um caminho se abriu na execução de políticas públicas e direitos sociais facilitadores da valorização e reconhecimento do valor comunitário de sua cultura para a história da cidade, do estado, do país e do mundo. Uma comunidade lutadora que se reconheceu educadora, onde se aprende todo dia com a história do dia. É ali que nós, estudantes e professores, nos reconhecemos aprendizes de caminhos emancipadores, cujo teor educativo trouxe osaberde que é possível realizar métodos que viabilizem odesafio permanente levantado porAloísio Magalhães (1997, p.8):

de como conciliar cultura nacional, local, e mercado internacional, global. Como forjar um caráter cultural próprio no contexto plural, competitivo e interferente nas nações? Ou seja, como conciliar comunidade, geradora e diferenciadora de culturas, com a progressiva homogeneizadora internacionalização cultural? Como conciliar as culturas locais com uma cultura universal? Plurais com singular? A multiplicidade com a unidade?

É preciso dar bons passos pra trás na história brasileira para se entender qual conciliação ou reconciliação é possível, mas tais questões trazem outro alerta de que:para haver diálogo é preciso ter interlocutores que se conectem e se comuniquem nas diversas escalas de existência da vida humana. E se não há disponibilidade para o diálogo, o que reverbera nas profundidades psíquicas são as interferências hegemônicas. Por isso é preciso conceber a produção vívida da comunidade, que se manifesta com mais brilho quando em relações intergeracionais. A escola carece disso, a comunidade tem de sobra. Assim saberemos de nossas raízes quando adentrarmos as escalas internacionais e globais de relação, reconhecendo as diferentes dimensões da vida nesses distintos territórios.

Algo, no entanto, precisa ser contemporizado: a vida dessas pessoas estão compartimentadas e velozmente amplificados são os ritmos das atividades que exercem cotidianamente. Então, como caminhar juntos, ao mesmo tempo, tanto no mesmo espaço quanto em outro? Mecanismos midiáticos cibernéticos vêm respondendo a isso. As gerações estão convivendo via web e outros modos de construção cultural se coloca. E então acrescentamos mais uma questão para compor o desafio permanente: Quais caminhos escolheremos a seguir diante da tentativa de apropriação do território, quando se trata do ciberespaço? Que referências devemos ter/ser diante da queda dos direitos humanos no país e no mundo, cujas ações deflagrem caminhos de emancipação e sustentabilidade?

Aluísio buscou nas relações internacionais vias para promover e proteger a Cultura no Brasil. Há que se agir local e globalmente. Não é necessário desistir de um em detrimento do outro, basta saber quem está disposto a caminhar junto. Educarmo-nos ao caminhar... Caminhar é preciso!

 

Referências

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Bachelard, G. (1993). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes. (Coleção tópicos)        [ Links ]

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Recebido em: 27/02/2018
Aprovado em: 03/12/2018

 

 

1 Um dos mais renomados designers brasileiros do séc. XX, foi advogado, artista plástico e secretário de cultura do Ministério da Educação e da Cultura (MEC). Foi diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e esteve sempre ligado a questões próprias da cultura brasileira. Atuou na Política Pública de Cultura e Educação entre os anos de 1974 a 1982. Inspirou outras gerações a desenvolver semelhantes ações nas gestões públicas de Educação Patrimonial e Políticas de Cultura e Territórios Educativos.
2 A elaboração do documento reúne estudos sobre a história da comunidade e a área do território, é a primeira etapa realizada pelo INCRA para regularização de um território quilombola.
3 Fonte do documento: Diário Oficial da União, portaria de nº 862, de 22 de maio de 2018
4 Segundo Tassara (2007) esse movimento é resultante da representação social da urbanidade, que se produz na relação ideológica entre o modelo instituído hegemonicamente (que é impossível alcançar) e o modo de vida dos que convivem em um mesmo território, seja de alta ou baixa renda com respectivas inserções. Sendo assim, acaba que o modelo hegemônico é uma utopia de vida urbana, que repõe a luta de classes através da afirmação de um modelo central e outros periféricos que orbitam ao seu redor. Quando se trata de periurbanidade sem lugares de raízes minotitárias socialmente, tal afirmação pode se torntar a negação da singularidade comunitária. Contudo, em uma versão reflexiva e conscientizadora, tal periurbanidade pode ser reconhecida como outra urbanidade, cujo diálogo com o centro se dá a partir da luta pela construção de direitos e valorização de sua diversidade urbana, num processo emancipatório como mencionado no texto.

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