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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.47 São Paulo Jan./Apr. 2020

 

RESENHA

 

Políticas públicas, poder e desenvolvimento sustentável: contribuições da obra O sertanejo e o caminho das águas

 

Public policies, power and sustainable development: contributions of The sertanejo and the way of the waters

 

Políticas públicas, poder y desarrollo sostenible: contribuciones del trabajo El sertanejo y el camino de las aguas

 

Politiques publiques, pouvoir et développement durable: apports du travail Le sertanejo et du chemin des eaux

 

 

Maria Laís dos Santos Leite

Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN. Coordenadora adjunta do Grupo Impulsor da Rede Latino-americana de Psicologia Rural. Servidora técnico-administrativa da Universidade Federal do Cariri - UFCA, Juazeiro do Norte-CE. Coordenadora do Laboratório de Estudos em Políticas Públicas do Cariri / mlaisleite@gmail.com

 

 

Obra: Chacon, Suely Salgueiro (2007). O Sertanejo e o caminho das águas: políticas públicas, modernidade e sustentabilidade no semi-árido. Fortaleza: BNB.

 

A autora

A Prof.ª Suely Salgueiro Chacon é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará -UFC (1990), mestra em Economia Rural pela UFC (1994) e doutora em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília - UnB (2005). Atualmente realiza estágio pós-doutoral em Economia do Desenvolvimento na Universidad Autónoma de Madrid - UAM (2019).

É professora associada e pesquisadora do Centro de Ciências Agrárias da UFC, onde lidera o Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos Avançados em Desenvolvimento Regional Sustentável (LEADERS) e Coordena o Núcleo de Apoio à Gestão Pública (NAGEP).1

 

A obra

O livro, fruto da pesquisa e tese de doutoramento da Profª Suely Chacon, traz importantes ensinamentos para todas(os) que desejam compreender mais sobre as Políticas Públicas, questões de escassez de água, Nordeste, sertão, e ainda, sobre Filosofia e Psicologia. Sua obra é fortemente marcada pela interdisciplinaridade, sua pesquisa bibliográfica consistente e o delineamento metodológico da pesquisa qualitativa realizada podem ser úteis para diversas áreas de conhecimento, especialmente as Ciências Humanas e Sociais, e também para interessadas(os) nas temáticas abordadas, sendo acadêmicos(as) ou não.

Chacon estabelece como objetivo da pesquisa responder por que as políticas públicas não conseguem reverter o processo agudo de exclusão social e promover um processo sustentável de desenvolvimento para o sertão. Para tanto, a autora além da investigação conceitual e documental, procura escutar as pessoas que vivem no sertão do Ceará, para saber como elas percebem as políticas públicas de que são partícipes, especificamente as políticas para a gestão de água implantadas no período de realização da pesquisa.

A autora se propôs ainda a escutar o ponto de vista de políticos e técnicos que atuam no território, sobre como esses concebem a população e espaços do sertão. Lembremo-nos que esta pesquisa se realizou no início dos anos 2000, em que ainda eram mais patentes as desigualdades e manipulações a que estes(as) sujeitos(as) eram submetidos(as).

O livro é dividido em oito capítulos, além das seções de introdução e considerações finais. No primeiro deles, intitulado "sertão: uma arena de conflitos, um espaço para o encontro", a autora apresenta o marco epistemológico do trabalho, em que trata especialmente da noção de conflito para a sociedade moderna e do mapa de atores que atuam nesta arena onde se desenrolam conflitos ou se acertam alianças.

O Capítulo 2, "O papel da modernidade na história do sertão", mostra como ocorreu a inserção da modernidade no discurso político e quais as primeiras consequências disso para o sertão e para os sertanejos (Chacon, 2007). Neste capítulo a autora apresenta ainda a gênese dos principais conflitos que marcam a história do sertão semiárido do Nordeste a partir da sua formação econômica e social, destacando o papel do Estado capturado pelo poder político e interferindo diretamente na organização social e também na apropriação do meio ambiente.

No Capítulo 3, "Modernidade e Política no Ceará", são vistos os principais pontos do processo de modernização econômica promovido pelo Governo do Estado a partir do seu impacto no estado. "O objetivo claro dos governantes foi inserir o Estado no mercado competitivo e no âmbito da modernidade econômica, o que exclui definitivamente o sertão como espaço econômico e político relevante." (Chacon, 2007, p. 87).

No Capítulo 4, "Entra em Cena o Desenvolvimento Sustentável", trata-se de modo detalhado sobre o referido conceito partindo dos estudos de Celso Furtado, Enrique Leff e Ignacy Sachs. O referencial subsidia tanto a subsequente análise do seu uso político como também das variáveis que revelam as condições de vida no sertão. Na seção, Chacon (2007) faz um resgate conceitual do surgimento do conceito de desenvolvimento sustentável e ressalta pontos essenciais que o compõem e que se relacionam diretamente com o estudo das possibilidades de desenvolvimento local para comunidades carentes, como as estudadas pela autora.

No Capítulo 5, "Da Modernidade à Sustentabilidade: Os Coronéis Urbanos e as Inovações no Discurso Político no Ceará", Chacon (2007) discorre como o conceito de desenvolvimento sustentável foi incorporado ao discurso do grupo político que assumiu o poder no Estado do Ceará a partir de 1986. Dando continuidade a um processo que se propôs, antes de tudo, a ser considerado "moderno", o grupo liderado por Tasso Jereissati passa a usar também a ideia de sustentabilidade como base de sua agenda política a partir dos anos 1990.

No Capítulo 6, "As políticas públicas e o uso político da água no sertão", é apresentado um apanhado geral das ações do Estado em relação à seca no sertão semiárido nordestino. São enfatizadas as apropriações político-partidárias dessas políticas e "os conflitos que as perpassam continuamente, alimentados pelos interesses das elites no poder. Um fato que sobressai na análise é a decisiva interferência das orientações dos organismos internacionais de financiamento, a partir de meados da década de 1970" (p. 159). Os objetivos do capítulo são compreender como se opera sobre esta política 'da água' e analisar até que ponto os conceitos trazidos pelos discursos políticos se materializam nas práticas governamentais e na agenda das políticas públicas implantadas no território(Chacon, 2007).

Os principais pontos que norteiam as políticas de gestão de recursos hídricos no Estado do Ceará são analisados no Capítulo 7, "Modernidade e Sustentabilidade na Gestão de Águas no Ceará". Chacon (2007) ressalta que 90% do território do Estado está situado no sertão semiárido, impactando sua formação social, econômica e política e que "se a história do Nordeste se confunde com a história da seca, a história do Ceará é própria história da seca" (Chacon, 2007, p. 176). Explana-se ainda a respeito do papel dos organismos internacionais de financiamento, dentre eles o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, e ainda sobre a organização do sistema de gestão e dos usuários nos Comitês de Bacia (Chacon, 2007).

O Capítulo 8, "Bacia do Rio Banabuiú, Um Retrato do sertão", a autora apresenta os resultados da pesquisa de campo e analisa as condições de vida no sertão, procurando observar as consequências para a população da implantação das diversas políticas públicas que afetam esse espaço. A autora apresenta ainda relevantes indicadores sociais e econômicos relativos aos municípios que compõem a Bacia do Banabuiú, região escolhida como recorte para a pesquisa de campo. Os dados são apresentados conforme as dimensões do desenvolvimento sustentável - dimensão sociocultural; dimensão econômica; dimensão ambiental; dimensão institucional e política -, contrapondo os dados secundários às observações e depoimentos colhidos na pesquisa de campo.

Os elementos que compõem a arena sertão são apresentados em função do seu conflito explícito, que é relativo ao acesso à água. As relações que se desenrolam na arena são analisadas a partir da ética do encontro, com isso, o sertão retratado expressa o verdadeiro conflito que perpassa toda a vida do sertanejo: o conflito de identidade, que o leva à perda de autoestima e, em última instância, ao abandono definitivo do sertão (Chacon, 2007).

 

Algumas contribuições da obra para a atuação no campo das políticas públicas

Os esforços de pesquisa da autora contribuem para o estudo e atuação nas políticas públicas pelo resgate histórico e aporte teórico revisado e construído e ainda pelo aspecto metodológico, notadamente pela construção do mapa dos atores envolvidos e pela utilização de procedimentos qualitativos para a análise e avaliação das políticas públicas, considerado pouco comum no período de publicação da tese.

Chacon (2007) ressalta que, no Brasil, especialmente a partir do governo de Juscelino Kubitschek, a ideia de modernidade foi ligada ao planejamento, que se incorpora definitivamente na formulação de políticas públicas que visam ao desenvolvimento do país. Isto é perceptível no investimento governamental em infraestrutura e na elaboração de planos técnicos na área econômica, por exemplo.

Para a autora, a já "assinalada fragilidade dos instrumentos de políticas públicas e a carência de meios para implementá-las, muitas vezes relacionada à falta de prioridade para essas questões, faz com que alguns avanços se percam pela falta de comprometimento e continuidade". (Chacon, 2007, p. 131).

Ocorre ainda para a especialista, uma banalização de temas cientificamente importantes que acabam virando arma em discursos políticos vazios de valor, como ela ressalta ao analisar o "Nordeste e, especialmente, o Ceará, onde o conceito de desenvolvimento sustentável tem sido usado exaustivamente no discurso político desde os anos de 1990, sem, contudo, ter sido posto em prática para todos" (Chacon, 2007, pp. 131-132).

A Prof.ª Suely Chaconevidencia ainda que "o formato das políticas públicas locais, dado que a intervenção constante dos organismos internacionais supracitados leva à definição de políticas mais voltadas para o atendimento das suas diretrizes do que propriamente para atender as necessidades da sociedade local." (Chacon, 2007, p. 156).

Ao tratar do sertão enquanto uma arena de disputas, a autora propõe um novo caminho para transformá-lo em um espaço renovado, que permita o encontro de aliados e não mais o embate de opositores. Essa visão só é possível a partir do diálogo e de um comportamento ético que tem como princípio norteador a noção de que todos os seres humanos são parte da mesma espécie e habitam o mesmo espaço, a Terra, e que, portanto, devem ser solidários entre si, formando uma rede de responsabilidade mútua e, ao mesmo tempo, de respeito pela liberdade e pela alteridade do outro. Assim, partindo desta premissa é possível pensar não mais em conflitos ou alianças circunstanciais, mas, sim, em pactos que visem ao bem-estar de todos e promovam de fato o desenvolvimento sustentável.

A autora também faz uma discussão das definições de alianças e conflitos, com destaque para a resolução e a mediação dos conflitos, pois entende que "todo o emaranhado de relações que se formam a partir dos conflitos pode gerar novos conflitos ou mesmo alianças e nessa perspectiva é possível apreender melhor os mecanismos de organização do espaço em estudo." (Chacon, 2007, p. 49).

Chacon (2007) traça então um mapa de atores na arena sertão que atuam emtorno dos conflitos pela água, dentre eles: os moradores; sertanejos que emigraram, mas que mantêm vínculos afetivose culturais com o território; técnicos de órgãos governamentais, deorganizações do terceiro setor e de organismos internacionais queatuam na região; políticos; autoridades; religiosos. Ela detalha ainda uma série de elementos do campo de conflito, sua natureza, a lógica ou dinâmica, fases, quais os mediadores ou observadores, etc.

Na perspectiva da autora para conhecer o espaço e as pessoas que vivem no sertão é preciso reconstruir a história do lugar e as histórias vividas por seus habitantes, resgatando e compreendendo a formação da sociedade e dos indivíduos, suas práticas sociais, produtivas e discursivas. Para além das pesquisas bibliográficas que resgatam os fatos históricos, o caminho utilizado pela autora para desenvolver essa pesquisa passou por uma descoberta conjunta com os atores pesquisados, lembrando junto com eles de suas histórias.

No sertão do Ceará em 2007 ou atualmente em tantos lugares do Brasil e em outros países capitalistas dependentes "grande parte das pessoas e o próprio ambiente natural foram excluídos pelo sistema econômico e social vigente e pela sua própria história.". E que estes, sofrem as "consequências negativas da intervenção de políticas públicas inadequadas à realidade local." (Chacon, 2007, p. 66).

 

Referências

Chacon, S. S. (2007). O Sertanejo e o caminho das águas: políticas públicas, modernidade e sustentabilidade no semi-árido. Fortaleza: BNB.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 10/02/2019
Aprovado em: 29/03/2019

 

 

1 Informações coletadas do Currículo Lattes da autora: http://lattes.cnpq.br/7717558830395336.

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