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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo May/Aug. 2020

 

EDITORIAL

 

Teorias e análises interseccionais no enfrentamento político de desigualdades e opressões

 

Theories and intersectional analyzes in the political confrontation of inequalities and oppression

 

Teorías y análisis interseccionales en la confrontación política de desigualdades y opresiones

 

Théories et analyses intersectionnelles dans la confrontation politique des inégalités et de l'oppression

 

 

Adolfo PizzinatoI; Aline Reis Calvo HernandezI; Conceição SeixasII; Frederico Viana MachadoI

I(UFRGS)
II(UERJ)

 

 

O conceito de interseccionalidade, originalmente cunhado nos escritos e reflexões de feministas negras e cada vez mais crescente no debate teórico nas ciências humanas e sociais, considera que as teorizações sobre os processos discriminatórios e de categorização social são muito melhor analisáveis quando entendidos como fatores interrelacionados em identificações sociais, como classe, raça, cor, etnia, religião, casta, orientação sexual, deficiência, geração, entre outros, que podem ser entendidos como "diferenças que fazem diferença". Partindo desse pressuposto, existem dificuldades e vulnerabilidades que são próprias de determinados subgrupos de mulheres e as afetam desproporcionalmente, sendo que essas particularidades não podem ser obscurecidas ou esquecidas em categorias amplas e únicas de gênero, por exemplo.

Para dar luz às diferenças intragrupos e evitar a invisibilidade, Crenshaw (2002) cunha dois termos: superinclusão e subinclusão. O primeiro fenômeno ocorre quando uma determinada discriminação é formada por mais de um critério, porém é analisada e descrita perante somente um único fator – um exemplo desse fenômeno pode ocorrer quando há uma discriminação de gênero e raça, mas que é vista somente pelo viés do gênero, prejudicando a percepção da discriminação em torno da raça e se tornando apenas um "problema de mulheres". O segundo fenômeno, subinclusão, ocorre quando determinado problema ou discriminação percebidos por um grupo de mulheres não é tomado como uma questão de gênero, pois não é parte da vivência de mulheres do grupo dominante, impossibilitando análises de gênero a advindas da situação. Nas "abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível" (Crenshaw, 2002, p. 176). Os estudos interseccionais, portanto, buscam analisar consequências da composição e da dinâmica de interação entre dois ou mais eixos de subordinação, estruturando, consequentemente, posições diferentes para diferentes grupos de mulheres, com opressões que fluem dinamicamente entre eixos, proporcionando o seu desempoderamento (Crenshaw, 2002).

Interessada nessa discussão, a Revista Psicologia Política (RPP) lançou em setembro de 2018 a chamada de artigos "Teorias e análises interseccionais no enfrentamento político de desigualdades e opressões". A escolha por esse tema para integrar um número da RPP deve-se não apenas pelo crescimento dessa perspectiva no contexto nacional, mas também por que a leitura interseccional analisa as sobreposições ou intersecções de identidades sociais e sistemas relacionados de hierarquização, opressão, dominação ou discriminação, bem como os processos de resistência e ação que emergem como enfrentamento - portanto, focos já consolidados pelas discussões promovidas pela RPP.

O campo interseccional sugere e procura examinar como diferentes categorias biológicas, sociais e culturais, tais como gênero, raça, classe, capacidade, orientação sexual, religião, casta, idade e outros elementos produtores de identificação interagem em níveis múltiplos e muitas vezes simultâneos. O objetivo desse número foi reunir reflexões que abarquem as dinâmicas e efeitos destes processos para as teorias e metodologias críticas de pesquisa, mas também para pensar fenômenos sociais e políticos específicos, no campo das políticas públicas, grupos e instituições, movimentos sociais e protestos.

Por ser o Brasil um país atravessado por uma série de desigualdades - raciais, econômicas, geográficas, de gênero, geracionais, entre outras -, as quais mantém uma estreita relação nas suas produções e reproduções sócio-históricas, consideramos importante que sejam visibilizados estudos que avancem na compreensão da articulação destes processos. Este número é composto por quatorze artigos, apresentados a seguir, e que trabalham essas diferentes categorias a partir de contextos variados. Estão representadas pelo menos 17 universidades das regiões sul, sudeste e nordeste do Brasil, bem como uma universidade portuguesa e uma colombiana, que agregam um conjunto de diversidades temáticas e teóricas às discussões aqui apresentadas.

No artigo "Práticas interseccionais de discriminação contra mulheres negras: Um estudo sobre vergonha e humilhação," James Ferreira Moura (UNILAB), Vilkiane Natercia Malherme Barbosa (UFC), Jorge Castellá Sarriera (UFRGS), Damião Soares de Almeida Segundo (UFRGS) e Antonio Ailton de Sousa Lima (UFC), levando em consideração os marcadores de raça, gênero e condição socioeconômica, analisam, inersec- cionalmente, práticas de discriminação dirigidas a mulheres negras em situação de pobreza.

O segundo artigo, "Diálogos entre gênero e as experiências com a população de rua", de autoria de Anderson Luis Schuck (UNOESC), Marivete Gesser (UFSC) e Adriano Beiras (UFSC), busca compreender a relação entre as experiências da população de rua – articuladas com o Movimento Nacional da População de Rua em Santa Catarina (MNPR/SC) – e as questões de gênero. Os autores argumentam que a normatividade de gênero produz efeitos nas condições de reconhecimento, (in)visibilidade das vidas nas ruas, contribuindo para a acentuação das suas condições precárias de existência.

No terceiro artigo, "As mulheres na política de transferência de renda: uma revisão sistemática da literatura", Camila Borges Machado (UFJF) e Fernando Santana de Paiva (UFJF) analisam a temática do papel atribuído às mulheres na política de transferência de renda, considerando estas como as principais interlocutoras dessa política, e figuras importantes na mediação entre as esferas pública e privada. Os resultados deste artigo indicam que a titularidade feminina é apresentada como um avanço político importante, no entanto a participação das mulheres ainda é um desafio devido à forma naturalizada com que a divisão sexual do trabalho se dá nos programas de transferência de renda.

"Reflexões sobre discursos a respeito do racismo no Brasil: considerações de uma psicologia social crítica", escrito por Flávia Fernandes Carvalhaes (UFSC), Rafael Bianchi Silva (UEL) e Alexandre Bonetti Lima (UEL) discutem a temática do racismo no Brasil a partir da problematização de algumas narrativas responsáveis pelos sentidos que são construídos socialmente. Os/as autores argumentam que uma revisão crítica da história, assim como a valorização de produções científicas alinhadas a conhecimentos locais, plurais que buscam empreender ações transformadoras da realidade social se fazem necessárias para o enfrentamento do racismo no cotidiano brasileiro.

O quinto artigo, intitulado "Negritude Feminina no Brasil - uma análise com foco na Educação Superior e nos quadros executivos empresariais," foi escrito por Vanessa Cristina da Silva Malpighi (USP), Luz Amparo López Barreyro (USP), Rilza Xavier Marigliano (USP) e Kae Leopoldo (IPUSP), e investiga o impacto das políticas públicas educacionais e empresariais no enfrentamento da desigualdade social de mulheres negras no Brasil, considerando que, apesar certa ascensão social das mulheres negras, estas ainda estão sub-representadas no nosso cenário social. As/os autoras/es reiteram a importância das políticas afirmativas para o enfrentamento das desigualdades sociais, raciais e de gênero, contribuindo para a inserção de mulheres negras no Ensino Superior e, consequentemente, para a seu desenvolvimento e emancipação.

Em "Interseccionalidade e participação política: A experiência de mulheres negras jovens feministas", de autoria de Ana Cecília Ramos Ferreira da Silva (UFAL) e Marcos Ribeiro Mesquita (UFAL), é discutido o que as jovens feministas, inseridas num cenário de disputas políticas na cidade de Maceió, pensam sobre a temática da interseccionalidade de gênero, geração e raça dentro dos espaços políticos em que atuam. As/os autoras/es argumentam que essas jovens tecem, no interior dos seus coletivos, importantes críticas aos processos que marginalizam suas presenças, como as lógicas de exclusão e opressão que são responsáveis pela desracialização dos debates e de seu alheamento quanto às questões geracionais e de classe.

"Quase da família: perspectivas interseccionais do emprego doméstico" é o sétimo artigo deste número. As/os autoras/es Odair Furtado, Mônica Gurjão Carvalho e Winnie Nascimento dos Santos (PUC-SP) refletem sobre a configuração colonial do trabalho doméstico remunerado no Brasil, destacando como as empregadas domésticas estiveram submetidas a uma série de aspectos excludentes, como baixa remuneração, contratações à margem da legalidade e discriminação de gênero e raça. A discussão parte do conceito de "nó", imbricando as categorias patriarcado-racismo-capitalismo, e da perspectiva interseccional.

O oitavo artigo, "Interseccionalidade, femi-genocídio e necropolítica: morte de mulheres nas dinâmicas da violência no Ceará", foi escrito por Ingrid Sampaio de Sousa (UFC), Larissa Ferreira Nunes (UFC) e João Paulo Pereira Barros (UFC), integrantes do Integrantes do VIESES, Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação da UFC. O artigo objetiva problematizar interseccionalmente a dinâmica da morte de adolescentes e jovens mulheres nas tramas da violência urbana no Ceará, destacando as relações entre marcadores sociais e de opressão, como gênero, raça e classe. O artigo argumenta que as políticas de prevenção e enfrentamento à violência contra mulheres devem desnaturalizar a condição de matabilidade e abjeção que recai sobre corpos racializados, feminizados e periferizados.

Ana Urpia (UFRB) participa desse número com o artigo "Por uma noção corporalizada e posicional de subjetividade de gênero". Em seu texto, Urpia situa e historiciza - no âmbito dos estudos feministas - como o conceito de gênero foi empregado em diferentes análises desse campo. De acordo com ela, há no campo dos estudos feministas, ao menos dois pontos de vista sobre gênero. No primeiro, gênero está em oposição a sexo, e refere-se a uma subjetividade e um comportamento socialmente construído, e não ao corpo em sua materialidade. No segundo, gênero faz referência a qualquer construção social, incluindo aquelas que separam corpos "femininos" de corpos "masculinos". A autora ainda argumenta que essa segunda perspectiva seja predominante, esta ênfase discursivo-semiótica por vezes obvia o corpo em relação ao gênero e omite elementos da localização material e corporal dos sujeitos. Assim, o texto contribui de forma muito interessante tanto para destacar o lugar que corpo e semiose assumem nesses processos como para indicar, como alternativa ao esvaziamento do sujeito de qualquer materialidade, uma noção corporalizada e posicional de subjetividade de gênero.

O décimo artigo, "Cidades, territórios e juventudes: práticas e sentidos sobre pertencimento, juventude e periferia", de Paloma de Almeida Albergaria Lanna (CES/JF) e Lara Brum de Calais (CES/JF), investiga as práticas e os sentidos atribuídos por jovens, moradores de um bairro periférico em Juiz de Fora (MG), sobre sua noção de pertencimento à cidade. As autoras compreendem que ser jovem, pobre e morador de periferia ocasionará vivências atravessadas por tais marcadores, produzindo a forma como estes vivenciam a juventude, incluindo o uso que fazem da cidade.

"Atividades consideradas "masculinas": mulheres cis e transexuais em busca de autonomia através do trabalho", de Julice Salvagni (UFRGS), Marília Veríssimo Veronese (UNISINOS), Marina Guerin (UNISINOS) e Samanta Fanfa Marques (UNISINOS), analisa a trajetória de mulheres em atividades laborais consideradas "masculinizadas". Os resultados do artigo organizam-se em três pontos principais: (a) As mulheres utilizam-se de várias estratégias para lidar com os desafios que encontram no mercado de trabalho e principalmente em atividades consideradas masculinizadas; o trabalho aparece como possibilidade de emancipação e de empoderamento; (b) As perspectivas familiares em relação ao trabalho das mulheres demonstram que a dupla jornada ainda é uma realidade e que a maternidade mantém-se como condição de desigualdade de gênero na esfera laboral; (c) A mulher, quando transexual, sofre preconceito tanto na instituição familiar quanto nas laborais, sendo difícil encontrar mulheres transexuais no mercado de trabalho formal em que este seja veículo de emancipação e produção de autonomia.

O décimo segundo artigo, intitulado "Gênero, classe e raça: representações de jovens sobre o mundo do trabalho," foi escrito por Simone Regina dos Reis Nunes (Universidade Luterana do Brasil Campus Torres/RS), Giovana Ilka Jacinto Salvaro (UNESC) e Giane Rabelo (UNESC). As autoras analisam a ausência de debates sobre gênero, classe e raça no campo das representações sociais de jovens sobre o mundo do trabalho, o que deve ser questionado partindo das desigualdades sociais construídas e naturalizadas.

"Un abordaje interseccional de la ciudadanía trans* en Cuba", de Yarlenis Mestre Malfrán (UFSC) e João Manuel de Oliveira (UFSC e Instituto Universitário de Lisboa), debate sobre a configuração da cidadania trans* em Cuba focando nos usos e efeitos das políticas. O artigo conclui que uma política pública para a cidadania trans* em Cuba precisa incorporar o gênero em uma perspectiva interseccional, como garantia de uma agenda inclusiva e transformadora das vulnerabilidades interseccionais que limitam as vidas e os direitos das pessoas trans*.

O último artigo, "La parentalidad como práctica de lo político", foi escrito por Jacqueline Garavito López e Nelson Molina Valencia, pesquisadores da Universidad del Valle, na Colômbia. As/os autoras/ es investigam como se constrói o político nas relações entre pais e filhos e identificam que a parentalidade constitui uma prática do político ao instituir uma responsabilidade cidadã regulada por instâncias de poder, ao transmitir ideologias políticas e na negociação do poder entre pais e filhos, por contribuir na construção de cidadãos capazes de se adaptar ou resistir. Além disso, argumentam que, através da parentalidade, emoções e noções políticas são construídas, apoiadas por formas de ativismo que podem vir de pais ou filhos.

A todas e todos, da comunidade da Revista Psicologia Política, desejamos uma boa leitura e que este número contribua com a análise do panorama psicossocial nos vários campos em que a Psicologia Política contribui, particularmente no momento de tensão global em que vivemos - onde as crises provocadas pela pandemia da COVID-19 recrudescem as assimetrias e desigualdades sociais, tingidas fortementes pelas cores que a análise interseccional nos apresenta.

 

Referências

Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1),171-188.         [ Links ]

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