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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo maio/ago. 2020

 

ARTIGOS

 

As mulheres na política de transferência de renda: uma revisão sistemática da literatura

 

Women in the income transfer policy: a systematic literature review

 

Mujeres en la política de transferencia de efectivo: una revisión sistemática de la literatura

 

Les femmes dans la politique de transfert monétaire: une revue systématique de la littérature

 

 

Camila Borges MachadoI; Fernando Santana de PaivaII

IPsicóloga. Mestra e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) / camilabm.01@gmail.com
IIDoutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor de graduação e pós-graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) / fernandosantana.paiva@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

As mulheres, principais interlocutoras dos programas de transferência de renda, são convocadas à função de mediar a esfera pública e privada. Assim, realizou-se uma revisão sistemática acerca do papel atribuído às mulheres na política de transferência de renda. Para busca dos artigos, os descritores gênero e mulheres chefes de família foram cruzados com transferência de renda; feminização da pobreza; políticas públicas; pobreza; combate à pobreza, nas bases de dados: LILACS, IBECS, SCIELO, PepSIC, Paho, Psycinfo e Web of Science. Após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, foram selecionados 22 trabalhos, sendo 15 teóricos e 7 empíricos. Nossos resultados indicam que a titularidade feminina é apresentada como um avanço político importante, mas sua participação torna-se contraditória pela natural forma com que a divisão sexual do trabalho ocupa nos programas de transferência de renda, o que remete ao debate sobre a feminização da pobreza e o trabalho de reprodução social.

Palavras-chave: Transferência de Renda; Programa Bolsa Família, Feminização da Pobreza; Mulheres; Gênero.


ABSTRACT

Women are the main interlocutors of income transfer programs, being convoked to mediate the public and private sphere. Thus, a systematic review was made on the role attributed to women in income transfer policy. To search for articles, gender and female heads of household descriptors were crossed with income transfer; feminization of poverty; public policies; poverty; combating poverty, in the databases: LILACS, IBECS, SCIELO, PepSIC, Paho, Psycinfo and Web of Science. After applying the inclusion and exclusion criteria, 22 papers were selected, 15 of which were theoretical and 7 were empirical. Our results indicate that female ownership is presented as an important political advance, but its participation becomes contradictory due to the natural way in which the sexual division of labor occupies the income transfer programs. This leads to the debate about the feminization of poverty and social reproduction work.

Keywords: Income Transfer; Family Grant Program, Feminization of Poverty; Women;Gender


RESUMEN

Las mujeres, principales interlocutoras de los programas de transferencia de renta, son convocadas a la función de mediar la esfera pública y privada. Así, se realizó una revisión sistemática acerca del papel atribuido a las mujeres en la política de transferencia de ren-ta. Para la búsqueda de los artículos, los descriptores género y mujeres jefas de familia fueron cruzados con transferencia de renta; feminización de la pobreza; políticas públicas; la pobreza; en el marco de la lucha contra la pobreza, en las bases de datos: LILACS, IBECS, SCIELO, PepSIC, Paho, Psycinfo y Web of Science. Después de la aplicación de los criterios de inclusión y exclusión, se seleccionaron 22 trabajos, siendo 15 teóricos y 7 empíricos. Nuestros resultados indican que la titularidad femenina es presentada como un avance político importante, pero su participación se vuelve contradictoria por la natural forma con que la división sexual del trabajo ocupa en los programas de transferencia de renta, lo que remite al debate sobre la feminización de la pobreza y el trabajo de reproducción social.

Palabras clave: Transferencia de Ingresos; Programa Bolsa Familia, Feminización de la Pobreza; Mujeres; Género.


RÉSUMÉ

Les femmes, principales interlocutrices des programmes de transferts de revenus, sont appelées à jouer un rôle de médiation dans les sphères publique et privée. Ainsi, un examen systématique a été effectué sur le rôle attribué aux femmes dans la politique de transfert de revenus. Pour rechercher les articles, les descripteurs genre et femme chefs de ménage ont été croisés avec transfert de revenus; féminisation de la pauvreté; politiques publiques; la pauvreté; lutte contre la pauvreté dans les bases de données: LILACS, IBECS, SCIELO, PepSIC, Paho, Psycinfo et Web of Science. Après application des critères d'inclusion et d'exclusion, 22 articles ont été sélectionnés, dont 15 théoriques et 7 empiriques. Nos résultats indiquent que la propriété féminine est présentée comme un progrès politique important, mais que sa participation est contredite par la manière naturelle dont la division sexuelle du travail occupe une place dans les programmes de transferts de revenus, ce qui conduit au débat sur la féminisation de la pauvreté. et le travail de reproduction sociale.

Mots-clés: Transfert de revenu; Programme Bolsa Família, Féminisation de la pauvreté; Les femmes; Genre.


 

 

Introdução

Ao longo das últimas décadas, em detrimento a uma política universal de superação da condição de pobreza, o enfrentamento às desigualdades sociais e à pobreza tem sido realizado a partir da focalização nos segmentos mais pauperizados (Yazbek, 2012). Com isso, após quatro décadas de neoliberalismo, a serviço do capital, se acentuam as desigualdades sociais e a concentração de riqueza, revelando a tentativa de manter os moldes de produção e distribuição pautada na concentração de riqueza, na exploração e opressão da classe trabalhadora (Siqueira & Alves 2018).

Neste cenário, o relatório da Oxfam (2019) aponta que o número de bilionários no mundo quase que dobrou desde a crise de 2007-2008, de 1.125 em 2008 para 2.208 pessoas bilionárias em 2018. Entre os dados apresentados no relatório, o 1% mais rico da América Latina e Caribe concentra 40% da riqueza da região. Em relação aos países latino-americanos, o Panorama Social da América Latina de 2017, apresentado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL, 2017), constata a grave desigualdade social, onde os povos latino-americanos permanecem em condições econômicas precárias, com altos índices de violência, insegurança, problemas graves em relação à moradia e saneamento básico. Em 2014, 28,5% da população (168 milhões de pessoas) encontrava-se em situação de pobreza, porcentagem que aumentou para 29,8% (178 milhões) em 2015 e para 30,7% (186 milhões de pessoas) em 2016. A extrema pobreza passou de 8,2% (48 milhões) em 2014 para 10% em 2016 (61 milhões de pessoas) em nosso continente.

A partir do cenário em tela, o Estado Democrático de Direito, na América Latina e Caribe, assim como em outras partes do mundo, tem implementado iniciativas de caráter público e incentivado alternativas de cunho privado, que visam atenuar os efeitos da pauperização. Como resultado, a perspectiva da focalização em determinados segmentos ganha evidência, a partir da concretização, como política de Estado, da transferência monetária de renda para um conjunto de famílias que vivem sob determinadas condições de pobreza (Lavinas, Cobo, & Veiga, 2012; Marinho, Linhares, & Campelo, 2011).

Brasil e México foram os pioneiros no desenvolvimento dos programas focalizados de transferência condicionada de renda, Bolsa Escola e Progressa, respectivamente. Concomitantemente, quase todos os países latino-americanos investiram em programas semelhantes, tais como Superémonos costarriquenho (2000), Bono de Desarrollo Humano equatoriano (2001), Famílias em Acción na Colômbia (2001), Chile Solidário (2002), Jefes de Hogar argentino (2002), Juntos do Peru (2005), Ingreso Ciudadano no Uruguai (2005), Red Solidária em El Salvador (2005); Bono Escolar "Juancito Pinto" na Bolívia (2006), entre outros (Stein, 2009; Zibecchi, 2014). Segundo Verena Duarte de Moraes, Rachel Guimarães Vieira Pitthan e Cristiani Vieira Machado (2018), os programas de transferência de renda estão presentes em 20 países da América Latina e Caribe, cobrindo mais de 120 milhões de pessoas, isto é, 20% da população da região. Isso faz com que o desenho dos programas varie significativamente entre os países latinos no que concerne a: métodos e critérios para a seleção do público-alvo; faixa etária; benefícios oferecidos (transferência monetárias, programas de capacitação e microcrédito, acompanhamento familiar); condi-cionalidades, dentre outras características.

"Os desenhos dos programas são distintos", conforme afirmam Ana Maria Medeiros da Fonseca e Claudio Roquete (2018, p. 11). Neste sentido, os referidos autores apontam algumas características relevantes dentre os programas de transferência de renda da América Latina. No México, por exemplo, no que diz respeito à condicionalidade da educação, nota-se que a exigência da frequência escolar para as meninas é mais elevada, visto que estas compõem o quadro de baixa escolaridade do país, bem como um elevado índice de abandono escolar. O programa Jefes de Hogar da Argentina também merece destaque, uma vez que ele se dirige às famílias nas quais a pessoa de referência está desempregada e com filhas e filhos menores de 18 anos. Junto a isso, além do controle saúde e educação, através dos cartões de vacina e frequência escolar, o programa exige de quatro a seis horas diárias de dedicação em projetos de infraestrutura social (Fonseca & Roquete, 2018). No entanto, apesar das diferentes características dentre os programas da América Latina e Caribe, muitos pontos coincidem, por exemplo: o público-alvo famílias em situação de pobreza, condicionalidades em torno da frequência escolar e controle da saúde; variação do valor do benefício de acordo com o número de integrantes da família; e, sobretudo, a titularidade concedida às mulheres/mães (Moraes et al., 2018).

De forma processual, respeitando os princípios do sistema econômico vigente, as respostas à pobreza passam a ser canalizadas para os mecanismos reguladores do mercado e organizações privadas, as quais compartilham com o Estado a implementação de programas focalizados e descentralizados (Lavinas et al., 2012). Em linhas gerais, os programas de transferência de renda, somada às condicionalidades impostas, se estruturam a partir da lógica de que a transferência monetária em articulação com as políticas de saúde, educação e assistência, permitirá romper com o ciclo intergeracional da pobreza. Outra constatação a ser problematizada é a lógica de parceria que fundamenta esses programas e depositam sob as famílias, em especial as mulheres, a partir da preferência como principais titulares, obrigações para administrar o espaço doméstico e responsabilidades na superação do ciclo geracional da pobreza, envolvendo-as em uma rede de obrigações e condicionalidades impostas (Mariano & Carloto, 2009; Biroli, 2018).

Nessa direção, cumpre salientar que em nossa realidade sociocultural, a adoção de uma concepção liberal sobre família é pilar na organização e desenvolvimento dos diferentes sistemas de proteção social (Teixeira, 2010). Tal concepção ancora-se nos papéis tradicionais da família nuclear burguesa, isto é, a figura paterna como provedora e a materna como dona-de-casa e cuidadora (Duque-Arrazola, 2008; Mariano & Carloto, 2009).

À medida em que se delega à família a proteção de todos os seus membros, Regina Célia Tamaso Mioto (2009) e Teixeira (2010) nomeiam o modelo protetivo como familista. Neste contexto, o familismo aponta para a elevada responsabilização das famílias em função da baixa e precária oferta de serviços de proteção social, além de reiterar determinados papéis de gênero e a naturalização da responsabilidade familiar pela reprodução social. Portanto, como corolário, de acordo com Mariano e Carlotto (2009), a perspectiva familista assume um lugar central no âmbito dos programas de transferência de renda e marca o modelo de assistência social latino-americano, nos quais a família, ou melhor, as mulheres, ocupam o papel de parceiras do Estado, envolvendo-as em uma rede de obrigações e condicionalidades que são exigidas para se manterem como beneficiárias dos programas.

Em torno dessa reflexão, o papel das mulheres no desenvolvimento da política social é problematizado, visto que as mulheres são percebidas como instrumento primordial para o desenvolvimento da política social. As mulheres, por razões ideológicas-patriarcais, são condicionadas à função de mediar a esfera privada (espaço familiar) e a esfera pública (política pública), sendo a principal personagem da política, seja na gestão, execução e como beneficiárias dos programas sociais (Biroli, 2018).

Segundo os dados do CEPAL (2017), são elas, as mulheres, 70% dos pobres do mundo; são elas quem enfrentam filas nos postos de saúde, hospitais e escolas; são elas que estão em sua grande maioria no cotidiano da assistência social para garantir condições mínimas de sobrevivência. A feminização da pobreza é uma ideia que remonta o debate introduzido pela estadunidense Diane Pearce em estudo publicado em 1978. Para Pearce (1978), o processo de feminização da pobreza tem início quando a mulher, sem marido ou companheiro, tem que prover o sustento familiar. Nesta perspectiva, a autora examina as diversas fontes de renda (programas de renda mínima, pensão alimentícia, trabalho), para evidenciar os motivos pelos quais a pobreza atinge mais as mulheres do que os homens chefes de família. Dessa forma, a pobreza feminina é associada à ausência do marido ou companheiro no domicílio, reforçando o papel social do homem como provedor da família, assim como o da mulher como dependente desta estrutura familiar (Novellino, 2004).

A feminização da pobreza não ocorre no vácuo, ela se configura sobre os sentidos e lugares socialmente construídos para homens e mulheres, negras e não-negras em nossa sociedade. Mas seria a feminização da pobreza algo novo na dinâmica capitalista? O que mostra as historiadoras Luiza Tonon da Silva (2018) e Silvia Federici (2017) é que vê-la como algo recente é uma análise a-histórica. Compreende-se, portanto, que a feminização da pobreza não é uma originalidade das últimas décadas, assim como as opressões de raça e etnia, mas são historicamente remodeladas no sistema capitalista, com a finalidade de garantir maior extração de mais-valia sobre tais grupos (Davis, 2013).

Por isso, frente à adoção de ações políticas de transferência de renda que adotam a família como núcleo central de intervenção, e, compreendendo o lugar estratégico das mulheres nestas práticas, o objetivo deste artigo foi realizar uma revisão sistemática de literatura sobre o papel das mulheres nas políticas de transferência de renda implementadas nas últimas décadas no Brasil e alguns países da América Latina.

 

Método

Trata-se de uma revisão sistemática da literatura, sendo um método caracterizado pela finalidade de construir um mapeamento da produção acadêmica em relação à temática específica (Rother, 2007). Segundo a referida autora, as revisões sistemáticas são fundamentais para atualizar o debate sobre uma determinada temática, evidenciando ideias, métodos e questões que têm recebido maior ou menor ênfase na literatura selecionada.

A presente revisão foi realizada a partir de quatro etapas: (a) elaboração da pergunta; (b) definição dos descritores e fontes de busca; (c) elaboração dos critérios de inclusão/exclusão; (d) coleta, análise e interpretação dos dados (Rother, 2007). Assim, após elaborar a pergunta norteadora da presente pesquisa, os descritores gênero e mulheres chefes de família foram cruzados com transferência de renda; feminização da pobreza; políticas públicas; pobreza e combate à pobreza. Com periodicidade de busca de setembro de 2017 a janeiro de 2018, foram encontrados 1555 estudos nas bases de dados selecionadas, LILACS, IBECS, SCIELO, PepSIC, Paho, Psycinfo e Web of Science.

Após esta etapa foram lidos todos os resumos dos trabalhos encontrados, aplicando-se os seguintes critérios de inclusão: (a) pesquisas teóricas e de campo que abarcassem o papel das mulheres na política de assistência social; (b) estudos realizados no Brasil e demais países da América Latina; (c) pesquisas com resumos e artigos completos disponíveis; e (d) trabalhos em português, inglês e espanhol. Foram excluídos dessa etapa os artigos com as seguintes características: (a) materiais educativos, documentos, teses e dissertações; (b) artigos sem resumo ou texto completo disponível; (c) estudos sem descrição metodológica completa (objetivos, métodos e resultados); e (d) estudos sobre a população LGBTQ+1. Não foi especificado nenhum recorte temporal.

Após a leitura dos resumos, aplicação dos critérios de inclusão e exclusão e descarte dos resumos duplicados, restaram 30 trabalhos. Os artigos foram lidos na íntegra, sendo descartados mais 12 que também não estavam de acordo com os critérios estabelecidos. A partir da leitura das referências dos 18 artigos restantes, foram detectados seis estudos que preenchiam os critérios de inclusão anteriormente citados, mas que não haviam sido abarcados através do processo de busca. Incorporaram-se ainda três artigos após sugestões de especialistas na área. Por fim, após a leitura na íntegra dos artigos adicionados, foram excluídos cinco estudos que não preenchiam os critérios supracitados. Assim, a amostra final é composta por 22 artigos, com o processo de busca e coleta ilustrados na figura 1.

O processo ilustrado na Figura 1 resultou na análise bibliométrica e tabulação dos artigos encontrados, com discriminação dos seguintes itens: autores, ano, país, periódico de publicação, área dos estudos, descrição do tema de estudo, metodologia empregada (natureza dos estudos, instrumentos e participantes) e resultados encontrados. Para a análise descritiva do material, destacaram-se as informações principais que possibilitassem uma apreensão da temática e discussões gerais, elaborando categorias a partir do material coletado.

 

Resultados

Indicadores bibliométricos

A caracterização da produção resultante do levantamento nas bases de dados: LILACS, IBECS, SCIELO, PepSIC, Paho, Psycinfo e Web of Science, apresenta uma visão geral do material produzido na América Latina, além de proporcionar reflexões de tendências gerais da produção de conhecimento. Conforme relatado, a presente revisão é composta por 22 artigos. Os anos de publicação, ilustrados na Tabela 1, variam de 2002 a 2016, sendo os anos de 2010, 2011, 2014 e 2016 com o maior número de publicações (três cada), seguido de 2012, 2013 e 2015 (duas cada) e 2002, 2006, 2008 e 2009 (uma cada). Observa-se que os anos de 2003 a 2005, 2007 e 2017 e 2018 não apresentaram nenhuma publicação a partir do processo de busca estabelecido. Do total de artigos analisados, observou-se que os periódicos brasileiros apresentaram o maior número de publicações, totalizando 13 estudos, seguido da Argentina com quatro, Chile e México com duas publicações cada, e um estudo abrangendo dois países, Chile e Cuba.

A revisão bibliográfica do tipo narrativa foi o método mais empregado, sendo 15 estudos dessa natureza, correspondendo à discussão do "estado da arte" da temática em questão (Rother, 2007). Sete estudos foram relatos de pesquisas empíricas, sendo os principais métodos de coleta de dados: entrevistas semiestruturadas e aplicação de questionários. Dois estudos se valeram da abordagem metodológica mista, qualitativa e quantitativa, ao passo que um empregou uma abordagem exclusivamente quantitativa. Ao todo, seis artigos apresentaram visões multi ou interdisciplinar, sendo as áreas de Ciências Sociais, Sociologia e Serviço Social as mais referenciadas, e apenas um artigo referente à Psicologia.

Quanto aos objetivos, quase todos os estudos buscaram problematizar o enfoque de gênero nos programas de transferência de renda, bem como discutir as condicionalidades impostas e as representações da maternidade, enquanto três estudos se comprometem a estudar as contribuições dos programas para o empoderamento das mulheres, dois artigos em analisar os resultados empíricos sobre os efeitos na autonomia das mulheres, um se propôs analisar as condições para conciliar trabalho remunerado e cuidados familiares e outro em analisar os efeitos do PBF destacando a raça como categoria central.

No tocante à análise de conteúdo dos resultados e debates propostos pelos artigos selecionados, foram construídas três categorias temáticas: (a) gênero, políticas públicas e feminização da pobreza; (b) autonomia, empoderamento e política de transferência de renda; e (c) gênero, raça e política de transferência de renda.

 

Gênero, políticas públicas e feminização da pobreza

Sobre o primeiro eixo observou-se que, para as autoras e autores, em grande parte, a categoria gênero nas políticas de proteção social contribui para compreender a instrumentalização dos papéis femininos (Anzorena, 2010; Gustá, 2013; Lavinas, Cobo, & Veiga, 2012; Lucas & Hoff, 2008; Mariano & Carloto, 2009, 2013; Teixeira, 2010; Zibecchi, 2014). Assim, o papel das mulheres está condicionado como o principal instrumento nas políticas públicas, com demonstrações de preocupação sobre o reforço das representações tradicionais de gênero (Azeredo, 2010; Ahaumada, Monreal, & Tenorio, 2016; Duque-Arrazola, 2006; Gomes, 2011; Lucas & Hoff, 2008; Mariano & Carloto, 2009; Meyer & Borges, 2014; Ochamn, 2015; Passos & Waltenberg, 2016; Pires, 2012).

Outro aspecto a ser levantado são as críticas pelo cumprimento das condicionalidades impostas, uma vez que os programas sociais de transferência de renda priorizam o repasse do benefício às mulheres e envolvem-nas em uma rede de condicionalidades e obrigações estatais. Assim, há uma naturalização dos papeis das mulheres na figura de mãe e cuidadora e reforço de certa lógica de feminização da pobreza (Ahumada, Monreal, & Tenorio, 2016; Gomes, 2011; Klein et al., 2014; Lavinas et al., 2012; Mariano & Souza, 2015; Tabbush, 2011; Teixeira, 2010).

Além disso, observa-se que o acesso das mulheres à assistência social, com destaque para os programas de transferência de renda, tem relação direta com a sua capacidade reprodutiva e, consequentemente, com a construção social do seu papel de mãe-esposa-cuidadora-lar (Aguilar, 2011; Anzorena, 2010; Azeredo, 2010; Duque-Arrazola, 2006; Lucas & Hoff, 2008; Mariano & Carloto, 2009; Mariano & Souza, 2015; Zibecchi, 2014).

Ao levantar o debate sobre as políticas públicas, considera-se o viés maternalista e familista que tende a cristalizar desigualdades entre homens e mulheres, revelando-se antes como políticas voltadas para as mulheres/mães como titulares e não adotando uma perspectiva de gênero (Ahumada et al., 2016; Azeredo, 2010; Mariano & Souza, 2015; Tabbush, 2011; Teixeira, 2010).

Observa-se, contudo, entre o material encontrado, um cenário paradoxal, onde apesar das políticas públicas se apresentarem enquanto reforço aos papéis normatizadores de gênero, as políticas de proteção social e o trabalho interdisciplinar ainda são percebidos com o potencial de remover as desigualdades de gênero ao estimular a autonomia e o empoderamento das mulheres (Leiva & Montenegro, 2016; Melo, Menta, & Serafim, 2014).

Quanto à interface entre gênero e pobreza, pode-se dizer que o processo histórico das (re)produções das desigualdades sociais suscita uma série de considerações. Embora as condições de pobreza não sejam determinadas pela questão de gênero, os dados de alguns países da América Latina nos revelam que tal marcador influencia as situações das famílias em contexto de pobreza (Aguilar, 2011; Lavinas et al., 2012; Mariano & Carloto, 2009). As mulheres, em consequência da lógica de parceria protetiva, são convocadas a participarem de atividades extras, como, por exemplo, dentre outras obrigações e condicionalidades, grupos de geração de trabalho e renda, além de grupos de ações educativas, gerando efeitos para o tempo e o trabalho feminino (Aguilar, 2011; Mariano & Carloto, 2009; Passos & Waltenberg, 2016; Zibecchi, 2014).

Para alguns estudos, tal sobrecarga é vista como um dos fatores vinculados à desigualdade social e de gênero, uma vez que disponibiliza menos tempo às mulheres para o trabalho remunerado (Ahumad et al., 2016; Anzorena, 2010; Klein et al., 2014; Mariano & Carloto, 2009). Além disso, outros estudos apontam a insuficiência de acesso a equipamentos sociais de qualidade, como creches públicas, escolas em tempo integral, ausência de cuidados formais para idosos dentro da família, entre outros serviços que poderiam aliviar a carga dos trabalhos domésticos e gerar melhores oportunidades de renda (Azeredo, 2010; Gomes, 2011; Passos & Waltenberg, 2016).

O survey realizado por Lavinas et al. (2012) para estimar os efeitos da política de transferência de renda no Brasil, sobre a autonomia das mulheres beneficiárias e não-beneficiárias, aventa a hipótese de que o vínculo de trabalho formal é um mecanismo que exclui a participação no programa de transferência de renda, ainda que a titular do cartão viva com uma renda domiciliar inferior à linha de pobreza. As autoras apontam que o programa não gera desincentivos ao emprego formal, mas uma incompatibilidade e exclusão entre ser bolsista do programa e ter um emprego formal, uma vez que registrada na RAIS (cadastro de emprego formal), reduz a probabilidade de tornar-se titular.

 

Gênero, raça e política de transferência de renda

Com relação às pesquisas que consideraram os marcadores gênero e raça como dimensões indispensáveis de análise acerca das políticas de transferência de renda, ressalta-se as interconexões desses dois marcadores na (re)produção das desigualdades sociais (Duque-Arrazola, 2006; Gomes, 2011; Mariano & Carloto, 2013; Mariano & Souza, 2015; Passos & Waltenberg, 2016). Conforme já salientado, um ponto de ilustração a esse respeito é a discussão sobre a feminização da pobreza que estatisticamente revela a predominância do quesito raça, além do gênero, em situação de pobreza e miséria (Gomes, 2011; Mariano & Carloto, 2013; Passos & Waltenberg, 2016).

Com isso, pode-se debater a predominância da população negra entre os mais pobres como um fator de análise sobre a configuração histórica da desigualdade social e econômica latino-americana. Assim, a pobreza afeta de forma desigual e diferente as mulheres, segundo sua raça e etnia, havendo assimetrias que configuram empregos e responsabilidades familiares diferentes para mulheres brancas e negras (Mariano & Souza, 2015; Passos & Waltenberg, 2016).

Mariano e Carloto (2013), a partir de grupos focais e entrevistas individuais com as titulares do programa brasileiro, pesquisaram os aspectos diferenciais da inserção das mulheres negras no programa de transferência de renda. As autoras indicam que o PBF exerce maior influência no cotidiano das mulheres negras, em comparação com as não negras. Contudo, maior influência não gera o impacto necessário na superação da desigualdade social entre os dois grupos. Além disso, as mulheres negras entrevistadas relataram maior responsabilidade e, consequentemente, maior sentimento de respeito nas relações familiares, o que pode indicar que as mulheres negras estão mais suscetíveis às influências normativas da política de proteção social. Por outro lado, de acordo com Azeredo (2010), Mariano e Carloto (2013) e Pires (2012), há de se reconhecer que, de modo geral, as ações desempenhadas pelo programa têm um papel significativo no processo de autonomia das mulheres bolsistas, conforme sinalizado anteriormente.

 

Autonomia, empoderamento e política de transferência de renda

As discussões encontradas pela presente revisão sistemática exploram algumas possibilidades de autonomia e empoderamento contidas na experiência das mulheres titulares de certa renda monetária. Leiva e Montenegro (2016), Lucas e Hoff (2008) e Melo et al. (2014), apontam possibilidades implícitas de empoderamento feminino, uma vez que os programas de transferência de renda se revelam inovadores ao redimensionar o conceito de família e conferir às mulheres titularidade e destinação do benefício. Leiva e Montenegro (2016) acrescentam que o foco da política deve estar no empoderamento das mulheres para facilitar a redução da pobreza e desigualdade social. Além disso, Melo et al. (2014), ao analisar os objetivos dos programas de transferência de renda e as contribuições para o empoderamento de quem os recebe, validam, inclusive, a inserção do terapeuta ocupacional para auxiliar em tal processo de empoderamento feminino, o que nos remete a ideia de uma garantia de mercado profissional.

O fato de estabelecer a mulher como titular do cartão do benefício pode ter alguns desdobramentos positivos. Klein et al. (2014), Lavinas et al. (2012) e Mariano e Carloto (2009) constataram que as mulheres, na sua grande maioria, utilizam a bolsa para melhoria das condições de vida, nos quesitos alimentação, vestuário, material escolar e melhorias para as condições físicas da casa.

Contudo, a lógica de titularidade enquanto empoderamento feminino e a ideia de que o empoderamento das mulheres tem relação direta com a superação da pobreza, é contestada por outros estudos (Teixeira, 2010; Zibecchi, 2014). Embora os programas de transferência de renda promovam certo grau de independência econômica, reproduzem e reforçam as principais premissas das normas de gênero tradicionais e conservadoras, de modo a impactar negativamente nas condições de desenvolvimento autônomo dessas mulheres (Duque-Arrazola, 2006; Gomes, 2011; Ochamn, 2015; Ojeda, Pablos, Muñoz, & Michel, 2002). Como consequência, as demandas feministas vão se transfigurando em perspectivas familista e maternalistas, que, no processo de metamorfose política, substituem a demanda por autonomia das mulheres por demandas que fortalecem concepções tradicionais da instituição familiar (Gomes, 2011; Mariano & Carloto, 2009). Por um lado, pesquisas apontam que a titularidade feminina produz efeitos no processo de autonomia, refletindo na ampliação de escolhas, questionamentos de relações conjugais indesejadas e diminuição dos índices de violência doméstica (Azeredo, 2010; Mariano & Carloto, 2013; Pires, 2012). Contudo, por outro lado, a escolha da titularidade remete à manutenção e reforço dos papéis tradicionais de gênero, impactando diretamente na feminização da pobreza.

A despeito desta aposta na capacidade de superar a desigualdade de gênero através do empoderamento ou autonomia promovida pela titularidade feminina, alguns estudos têm tentado debater tal perspectiva apontando os limites desta análise sobre as multifacetadas relações entre as mulheres e o Estado. Para as autoras Lavinas et al. (2012), os efeitos estão presentes na associação tradicional da mulher com o espaço doméstico, não colaborando com a construção de uma percepção valorizante do trabalho feminino, ou seja, a titularidade feminina é tida como insuficiente para operar processos de autonomização. As autoras apontam que para além de uma titularidade feminina, é necessário articular políticas com vistas ao estímulo e valorização do trabalho feminino, escola integral, creches e serviços públicos de qualidade, transferindo para o âmbito público as atividades domésticas de reprodução social.

A questão emergente é que a titularidade feminina não estimula em si a autonomia ou até mesmo o empoderamento feminino e, por essa razão Lavinas et al. (2012), em consonância com Mariano e Souza (2015), Ochamn (2015), Ojeda et al. (2002) e Teixeira (2010), propõem uma análise a partir da centralidade atribuída às mulheres pelo viés familista e maternalista desenhado nas políticas sociais. Dessa maneira, a titularidade não permite identificar sinais de promoção da equidade de gênero, pelo contrário, ao privilegiar as mulheres, as políticas de focalização tendem a cristalizar as desigualdades de gênero historicamente construídas.

 

Discussão

O debate sobre as relações estabelecidas entre as mulheres e o Estado, a partir dos programas de transferência de renda implementados nas últimas décadas em alguns países da América Latina tem sido realizado por diferentes pesquisadores. Devido à própria amplitude da questão, a literatura aponta diversos modelos explicativos sobre esta questão, que apesar de coexistirem, nem sempre dialogam. Embora a problematização sobre a instrumentalização dos papéis femininos nas políticas de proteção social esteja presente em perspectivas distintas (Azorena, 2010; Gustá. 2013; Lavinas et al., 2012; Mariano & Carloto, 2009, 2013; Teixeira, 2010; Zibecchi, 2014), observa-se análises que defendem e apostam na capacidade das mulheres, a partir dos processos de empoderamento e/ou autonomia conferido pela titularidade do Programa, conseguirem impactar de forma significativa na desigualdade de gênero (Leiva & Montenegro, 2016; Melo et al., 2014 ).

Os estudos analisados pela presente revisão consensualmente apontam que os modelos protetivos constitutivos das políticas sociais trazem em seu escopo a centralidade na família, isto é, a família como unidade principal de ação do Estado. Segundo Mioto (2009), em nome de uma divisão sexual do trabalho, essa centralidade pode desmantelar direitos conquistados em outras arenas políticas, visto que devolve à família e consequentemente à mulher, encargos situados na esfera dos cuidados, antes assumidos pelo Estado, exigindo, assim, um maior tempo da mulher com as tarefas domésticas e de cuidado, restaurando a própria desigualdade de gênero.

No contexto das políticas de ajustes neoliberais, a instituição família é um pilar indispensável ao Estado. Com isso, a família patriarcal cumpre uma importante função ideológica na difusão do conservadorismo, através da internalização de (des)valores tradicionais junto às crianças, onde "obedece a um sistema de normas que fixam o que é considerado feminino e masculino" (Cisne, 2014, p. 91). Desde a mais tenra idade, as crianças recebem uma educação que diferencia os sexos de forma desigual: meninas são criadas para lavar, cozinhar, passar, cuidar e serem submissas, passivas e tímidas; meninos são educados para serem fortes, provedores e valentes. Portanto, no sistema patriarcal, de acordo com Duque-Arrazola (2008), a responsabilidade com o trabalho reprodutivo é atribuída às mulheres, garantindo, inclusive, a reprodução da força de trabalho.

Segundo Birolli (2018), o trabalho de reprodução social realizado na vida cotidiana das mulheres está longe de se constituir como escolhas voluntárias. Dessa forma, em consonância com o estudo produzido por Mariano e Souza (2015), a titularidade feminina pode acabar implicando desvantagens na participação das mulheres na sociedade, sobretudo dentre as mais pobres e negras. A recusa de um emprego ou faltas seguidas ao trabalho por não haver creche para as crianças, lavanderias, restaurantes públicos, dentre outros serviços, que possivelmente contribuiriam na desresponsabilização feminina nas atividades doméstica, são apenas alguns exemplos que marcam a posição desigual das mulheres na esfera pública (Azeredo, 2010; Gomes, 2011; Passos & Waltenberg, 2016).

Nessa direção, considera-se importante o debate da feminização da pobreza que pode ser entendida através de uma relação direta com a progressiva e socialmente naturalizada responsabilização feminina por seus lares, a considerar a naturalidade com que os papéis de gênero e a divisão sexual do trabalho ocupam na ordem social, visto uma série de considerações ao estabelecer a mulher como parceira do Estado (Aguilar, 2011; Zibecchi, 2014). Em outras palavras, ao invisibilizar o trabalho de reprodução social das mulheres, a feminização da pobreza pode ter relação direta com a progressiva responsabilização feminina no combate à pobreza, estendendo efeitos no tempo e trabalho das mulheres e na manutenção de um modelo patriarcal que confere sutilmente formas perversas de exploração (Silva, 2018, Federici, 2017, Cisne, 2014).

Nesta lógica, a feminização da pobreza adquire um novo significado quando o efeito do capitalismo na vida das mulheres é analisado historicamente. Isso porque, o capitalismo se sustenta, além da exploração no âmbito da produção pelo trabalho, através da interseccionalidade das opressões de classe, raça e gênero, de tal modo que, ao longo do tempo, remodela as opressões para cumprir determinadas funções sociais. Assim, ao ser a atividade que produz a força de trabalho, o trabalho doméstico não assalariado das mulheres tem sido um dos principais pilares da produção capitalista (Davis, 2013). Tal problematização não significa desconsiderar os ganhos significativos que os programas de transferência de renda representam na vida de inúmeras mulheres, contribuindo, inclusive, em processos significativos de autonomia no espaço doméstico. Entretanto, pode ser mais produtivo analisar estes efeitos considerando suas contradições que constituem a totalidade social (Gustá, 2013; Lavinas et al., 2012; Mariano & Carloto, 2013).

Na América Latina, os movimentos feministas dos anos 1970, emergiram no curso das lutas revolucionárias contra os regimes militares que tomaram o poder no Brasil em 1964, Bolívia em 1971, no Uruguai e Chile em 1973 e na Argentina em 1976, instituindo ditaduras altamente repressivas que usaram da tortura para eliminar qualquer pensamento progressista (Schild, 2016). Para a referida autora, em países como a Argentina e o Brasil, as políticas neoliberais foram implementadas por regimes pós-di-tatoriais. Além disso, Silva (2018) observa que em países como Brasil, Uruguai e Argentina, os partidos políticos com raízes em movimentos sociais anti-neoliberais não efetivaram práticas que rompessem com o neoliberalismo, na verdade, tais partidos mantiveram-se dentro do modelo com políticas sociais compensatórias. E foi neste contexto que os programas sociais direcionados aos pobres, dirigidos, inclusive, por ONGs subcontratadas, incorporaram alguns conceitos do movimento feminista progressista, em que a autonomia e empoderamento feminino veio a ser reformulada em termos de participação política e econômica, desempenhando um papel crucial no desenvolvimento das políticas neoliberais da América Latina.

Segundo Sylvia Chant (2006) e Gomes (2011), esses programas, sob o novo imperativo do empoderamento e autonomia feminina, apelam para a responsabilidade das mulheres e intensificam suas cargas de trabalho, tanto na gestão da política quanto em sua preocupação geral com o bem-estar de suas famílias. Assim, essa participação feminina é contraditória, uma vez que o apelo à autonomia ou empoderamento das mulheres está entrelaçado a suposições tradicionais sobre seu papel de mãe (Duque-Arrazola, 2006; Ochamn, 2015; Ojeda et al., 2002), forjando a expectativa de que elas não só continuarão a se responsa-bilizar pelos cuidados da casa e de seus membros, como também na produção da força de trabalho para exploração capitalista. Desse modo, o tipo de autonomia e empoderamento proporcionada pelo modelo neoliberal tem andado de mãos dadas com a acumulação capitalista, enquanto, dialeticamente, o trabalho de prestação de cuidados pesa ainda mais sobre os ombros das mulheres (Schild, 2016).

 

Considerações finais

Por mais que os estudos encontrados pela presente revisão possuam uma ampla diversidade metodológica (revisão narrativa, entrevistas, survey, questionários etc.), implicando diferentes perspectivas teóricas e de análise, o trabalho em tela demonstra, a partir de uma base crítica da Psicologia, como visões morais e naturalizantes sobre os papéis das mulheres nas políticas de transferência de renda reforçam a rede discursiva que delineia papeis de gênero conservadores. A naturalização dos papéis femininos pode se tornar um obstáculo para a ampliação do debate acerca da parceria funcional conferida às mulheres, uma vez que, ao educar mulheres como mães, a superação da pobreza, em um cenário de escassez e mazelas, passa a ser mais responsabilidade feminina, impactando, inclusive, nas desigualdades de gênero e na chamada feminização da pobreza.

Assim, ao abarcar as relações entre a política de transferência de renda com as mulheres, a presente revisão aponta um terreno controverso. De um lado, estudos que problematizam o papel das mulheres como instrumento necessário na lógica neoliberal, com intervenções políticas paliativas e uma naturalização da feminização das responsabilidades sociais que reforçam o papel da mulher enquanto esfera central no espaço doméstico. Em oposição existem perspectivas com problematizações rasas sobre o modelo de proteção social para o combate à pobreza no contexto neoliberal, bem como o papel de parceria atribuído às mulheres. A considerar a natural forma com que os papéis de gênero e a divisão sexual do trabalho ocupam na ordem social, o debate do papel das mulheres na política social dever ser entendido através da relação direta com o trabalho reprodutivo e a socialmente naturalizada responsabilização feminina por seus lares, ressaltando o incentivo de tal responsabilização pelos programas de ajustes neoliberais de combate à pobreza.

A literatura aponta que a participação feminina é, ao mesmo tempo, contraditória, uma vez que a titularidade conferida às mulheres, por mais significativas que sejam, são limitadas para modificar as condições de pobreza feminina e promover reais processos de autonomia e empoderamento. Todavia, a realidade marcada pela extrema pobreza e miséria não anula a relevância dos programas de transferência de renda, por apresentarem impactos pontuais para as famílias inseridas que não dispõe, muitas vezes, de qualquer alimentação mínima. Contudo, acredita-se que os processos de combate à pobreza, empoderamento ou autonomia feminina permanecem ocos se não articulados com avanços e lutas políticas, de modo a garantir uma educação gratuita e universal, moradias a baixo custo, direitos trabalhistas, serviços de saúde assegurados e demais serviços públicos de qualidade. Com isso, pode-se dizer que na democracia liberal, a titularidade feminina vestida de autonomia e empoderamento podem ser redefinidos por meio de um discurso que na prática pode colaborar com a manutenção do status quo, através de uma lógica ligada à instrumentalização da mulher, para, inclusive, reforçar o lugar socialmente atribuído a ela: casa e família.

Além disso, os estudos analisados apontam a tendência de se olhar para as mulheres descoladas das relações patriarcais na qual elas historicamente se inserem. Analisar a história das mulheres trabalhadoras é olhar para história da classe trabalhadora, sendo um caminho para pensar transformações sociais que se fazem urgentes quando olhamos a face negra e feminina da pobreza. Assim, enquanto as políticas de ajuste neoliberal reconfiguram as opressões de gênero, urge a construção de um caminho de transformação do sistema social, de modo a garantir uma alternativa de confronto ao sistema de exploração, que afeta de maneira singular e coletiva a vida de todas as pessoas.

Essas questões, cuja discussão demanda muito mais que dezenas de páginas, suscita o pensar nas relações estabelecidas entre as mulheres e o Estado por um prisma que problematize os processos de reforma estrutural e os ideais de gênero que impulsionaram (e impulsionam) o desenvolvimento do capitalismo e suas ferramentas políticas como forma de "enfrentamento" de uma série complexa de questões históricas, políticas e sociais. Por fim, estudos e revisões futuras podem considerar as concepções das próprias mulheres titulares dos programas de transferência de renda, buscando obter uma visão mais abrangente, numa tentativa de compreender como elas se percebem e quais são as reverberações da relação com o Estado na implementação das políticas públicas.

 

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Recebido em: 29/05/2019
Aprovado em: 21/11/2019

 

 

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