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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo maio/ago. 2020

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre discursos a respeito do racismo no Brasil: considerações de uma psicologia social crítica

 

Reflections on discourses about racism in Brazil: considerations of a critical social psychology

 

Reflexiones sobre discursos acerca del racismo en Brasil: consideraciones de una psicología social crítica

 

Réflexions sur les discours sur le racisme au Brésil: considérations de psychologie sociale critique

 

 

Flávia Fernandes de CarvalhaesI; Rafael Bianchi SilvaII; Alexandre Bonetti LimaIII

IDepartamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC (2015). Mestre em Psicologia Social pela Universidade Estadual Paulista/UNESP. Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social e Institucional, interessando-se pela pesquisa nas seguintes temáticas: Processos de subjetivação; Políticas Públicas; Estado Penal; Medidas Socioeducativas; Estudos de Gênero; Estudos Pós-coloniais / fcarvalhaes@uel.br
IIDepartamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina. Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutor em Educação pela Unesp/Marília (2012). Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina / tibx211@yahoo.com.br
IIIDepartamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina. Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1992), mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997) e doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Atualmente é professor associado do departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina, e vem atuando como pesquisador e docente nos seguintes temas: saúde e trabalho; mídia, práticas discursivas e poder na modernidade; novos movimentos sociais e processos de resistência e emancipação. / bonetti@uel.br

 

 


RESUMO

O artigo problematiza narrativas que articulam sentidos construídos acerca da temática do racismo no Brasil. Inicialmente, apresentaremos os pressupostos teóricos e metodológicos que orientaram esta investigação fundamentada pelo conceito de discurso. São analisadas as condições de desigualdades que assolam a população brasileira e seus desdobramentos na reprodução do racismo sendo problematizado seu lugar em nossa sociedade a partir de discursos que o justificam ou buscam acobertá-lo ideologicamente. A partir disso, refletiremos sobre as concepções de habitus e de meritocracia como analisadores que contribuem para edificar um mito de democracia racial no Brasil, bem como para tornar invisíveis condições de subalternidade e subcidadania. Concluímos que um dos caminhos para o enfrentamento do racismo no cotidiano brasileiro se articula por meio da revisão crítica da história, bem como por meio da valorização de produções científicas alinhadas a conhecimentos locais, plurais e que buscam empreender ações transformadoras da realidade social.

Palavras-chave: Racismo; Discurso; Produção de sentidos; Colonialismo; Subcidadania.


ABSTRACT

The article problematizes narratives that articulate constructed meanings about the theme of racism in Brazil. Initially, we willpresent the theoretical and methodological assumptions that guided this research based on the concept of discourse. The conditions of inequalities that afflict the Brazilian population as well as their consequences in the reproduction of racism are analyzed, being its place in our society problematized from discourses that justify it or seek to cover it ideologically. Thus, we will reflect on the conceptions of habitus and meritocracy as analysts that contribute to build a myth of racial democracy in Brazil as well as to make invisible conditions of subordination and sub-citizenship. We conclude that one way to confront racism in Brazilian day-to-day is articulated through the critical revision of history, as well as through the valorization of scientific productions that are aligned with local, plural knowledge and that seek to undertake transformative actions of the social reality.

Keywords: Racism; Discourse; Meaning production; Colonialism; Sub-citizenship.


RESUMEN

El artículo problematiza narrativas que articulan sentidos construidos acerca de la temática del racismo en Brasil. Inicialmente, presentaremos los presupuestos teóricos y metodológicos que orientaron esta investigación influenciada por el concepto de discurso. Se analizan las condiciones de desigualdades que asolan la población brasileña y sus desdoblamientos en la reproducción del racismo siendo problematizado su lugar en nuestra sociedad a partir de discursos que lo justifican o buscan encubrirlo ideológicamente. A partir de eso, reflexionamos sobre las concepciones de habitus y de meritocracia como analizadores que contribuyen a edificar un mito de democracia racial en Brasil, así como para hacer invisibles condiciones de subalternidad y sub-ciudadanía. Concluimos que uno de los caminos para el enfrentamiento del racismo en el cotidiano brasileño se articula por medio de la revisión crítica de la historia, así como por medio de la valorización de producciones científicas alineadas a conocimientos locales, plurales y que buscan emprender acciones transformadoras de la realidad social.

Palabras clave: Racismo; Discurso; Producción de sentidos; Colonialismo; Sub-ciudadanía.


RÉSUMÉ

L'article problématise des récits qui articulent des significations construites sur le thème du racisme au Brésil. Dans un premier temps, nous présenterons les hypothèses théoriques et méthodologiques sur le discours, concept fondamental de cette investigation. Les conditions d'inégalité qui affligent la population brésilienne et ses conséquences dans la reproduction du racisme sont analysées, problématisant sa place dans notre société à partir de discours qui la justifient ou cherchent à la couvrir idéologiquement. De cette condition, nous réfléchirons aux concepts d'habitus et de méritocratie qui agissent comme des analyseurs qui contribuent à construire un mythe de la démocratie raciale au Brésil, ainsi que pour rendre invisible les conditions de subordination et la sous-citoyenneté. Nous concluons que l'un des moyens de visage au racisme présent dans la vie quotidienne brésilienne s'articule à travers une revue critique de l'histoire, ainsi que par la valorisation de productions scientifiques alignées sur le savoir local et pluriel et qui cherchent à produire des actions qui transforment la réalité sociale.

Mots-clés: Racisme; Discours; Production de significations; Colonialisme; Sous-citoyenneté


 

 

Introdução

Este ensaio alia-se àqueles que se situam em um campo de lutas que buscam descolonizar discursos e ideologias que legitimam e justificam assimetrias e relações de opressão, materializadas em violências discriminativas, práticas de extermínio, desigualdades e exclusões sociais que afastam cotidianamente inumeráveis pessoas das possibilidades de inserção nos quadros de cidadania plena (Cunha, 2013; Nogueira, 2013).

Haraway (1999) ressalta a importância da produção de "saberes localizados" como um modo de resistir à hegemonia dos conhecimentos produzidos a partir de eixos de dominação. A partir disso, ao longo do artigo, afirmamos a importância de produzir saberes locais que possam criticar a racionalidade colonial eurocêntrica e brancocêntrica formulada desde o século XVI e consolidada no século XIX (Lander, 2005). Em contraposição, a autora propõe que o conhecimento se articule por meio de "conexões parciais" entre saberes que priorizam a produção de conhecimentos situados, que se organizam a partir de vivências plurais desenhadas no cotidiano.

A partir dessa dupla tarefa acima colocada, em um primeiro momento, foram apresentados os pressupostos teórico-conceituais que orientaram esta reflexão. Em seguida, analisamos condições de desigualdades que assolam a população brasileira e seus desdobramentos na reprodução do racismo. Na continuidade, problematizamos a questão do racismo na sociedade brasileira tomando como suporte uma série de discursos que o constroem e o justificam e que, de modo insistente, são evidenciados nos debates teóricos sobre o racismo. Destacamos, por exemplo, a ênfase na educação para o "progresso" como tarefa de brancos, as ideologias de embranquecimento da população brasileira, a perspectiva da superioridade da raça branca, a noção de meritocracia e o mito da democracia racial no Brasil.

Por fim, refletimos sobre as concepções de habitus (Bourdieu, 2007) e de meritocracia (Souza, 2011, 2012), como analisadores que contribuem para edificar o mito de democracia racial no Brasil, bem como para tornar invisíveis condições de subalternidade e subcidadania vivenciadas por grande parte da população.

 

Algumas considerações sobre racismo e produção de sentidos

O racismo se reproduz em meio a trajetórias individuais/sociais pelas quais são construídos e maturados repertórios de sentidos que orientam ações e interpretações do mundo, da vida social e de cada um de nós nela, suas possibilidades e limites (Sodré, 2015; Wetherell & Potter, 1992). Este processo de produção de sentidos se articula e se institui no decorrer das relações sociais por meio de discursos que circulam a vida em sociedade (Spink, 1999).

Como argumenta Bakhtin (1988), o discurso é um processo de produção de sentidos sempre dialógico. Ele é um meio de interação humana através do qual a língua se expressa em funcionamento com a história, produzindo efeitos de sentidos. No entanto, não pode ser entendido apenas por seu desempenho comunicativo, como mera ferramenta de representação ou tradução de algo - objetos, experiências, fatos e etc - utilizada para comunicar a outrem. Para o autor, ele deve ser compreendido efetivamente como ação social.

Conceber o discurso como ação social e dialógica, por sua vez, exige percebe-lo temporalmente, isto é, apreende-lo como uma trama polidiscursiva cujas fronteiras dos discursos que a compõe tensionam-se, conflitam-se, articulam-se, complementam-se, negociam constantemente sentidos e intencionalidades, configurando-se em um todo dinâmico e inacabado, sempre mediado histórica e socialmente (Bakhtin, 1999). Logo, separações entre ações sociais e palavras, entre real e significação do real devem ser descartadas, pois discurso é ação que dá sentido e materialidade ao mundo, às coisas, aos eventos e a cada um de nós em meio a tudo isso (Lima, 2007). Como afirma Potter (1998): "O mundo não está categorizado de antemão por Deus ou pela Natureza de uma maneira que todos nos vemos obrigados a aceitar. Constitui-se de uma ou outra maneira na medida em que as pessoas falam, escrevem e discutem sobre ele" (p. 64).

De fato, observa Guimarães (2009), "não há nada espontaneamente visível na cor da pele, no formato do nariz, na espessura dos lábios ou dos cabelos, ou mais fácil de ser discriminado nesses traços do que em outros, como o tamanho dos pés, a altura, a cor dos olhos ou a largura dos ombros" (p. 47). Esses traços só adquirem sentido com a inscrição de formações discursivas que criam fatos, realidades, dizeres e saberes, concebendo-os como marcas classificatórias que justificam e legitimam o lugar majoritariamente precário de negras e negros no quadro social do país (Wetherell & Potter, 1992).

Do olhar de suspeita de policiais e seguranças privados, ao olhar amedrontado de mulheres brancas ao cruzar com um homem negro à noite na rua; das piadas e apelidos que desqualificam os negros, aos elogios lascivos e sexuais dirigidos aos homens e mulheres negras a tipificá-los como objetos sexuais; dos olhares de estranheza quando negros adentram espaços de elite à naturalidade com que se os miram invariavelmente a habitar os territórios mais precários e periféricos das cidades; dos desiguais índices de morte violenta entre brancos e negros, aos igualmente desiguais índices de escolaridade entre eles, parcialmente compensados pelas políticas de ação afirmativa, como as cotas raciais, contestadas por não poucas vozes conservadoras no país. Elementos, entre muitos outros, que afiguram, no conjunto, o que Mbembe designa como razão negra, "um trabalho cotidiano que consistiu em inventar, contar, repetir e promover a variação de fórmulas, textos e rituais com o intuito de fazer surgir o negro enquanto sujeito racial e exterioridade selvagem, possível de desqualificação moral e de instrumentalização prática" (Mbembe, 2018, p. 61).

Se é através dos discursos que predominantemente são construídos sentidos, materialidades, realidades no mundo que habitamos, buscamos através desse ensaio, problematizar discursos e ideologias que contribuem para naturalizar práticas racistas, mesmo quando apresentam-se de modo sutil e aparentemente "inocente".

Nesta perspectiva, o debate apresentado se organizou em torno de discursos e produções de sentidos que buscaram dar visibilidade a condições que, no Brasil, contribuem para instituir modos desiguais de vida e de acesso a direitos entre a população, bem como seus desdobramentos na reprodução do racismo.

 

A realidade brasileira como condição para reprodução do racismo

Segundo Thomas Piketty (2013), a diferença de renda entre ricos e pobres ampliou significativamente nas últimas décadas. E embora o mundo globalmente produza mais riqueza do que nunca, com um PIB (produto interno bruto) de cerca de 55 trilhões de dólares (Sassen, 2016), o Banco Mundial, em relatório de 2016, referente aos dados de 2013, aponta que quase 800 milhões de pessoas vivem ainda em situação de extrema pobreza, com renda de até 1,9 dólar por dia (Poverty and Shared Prosperity , 2016).

Recentemente, a Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam) publicou um relatório que indica uma situação ainda mais alarmante: apenas oito pessoas possuem renda semelhante à renda dos 50% mais pobres da população do planeta, o equivalente a 3,6 bilhões de pessoas (Oxford Committee for Famine Relief, 2017).

No Brasil, os índices não são dissonantes destes, mas pelo contrário. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD de 2013, a renda de cada um do 1% de brasileiros(as) mais ricos equivale a cem vezes a renda de cada um dos 10% mais pobres. A mesma pesquisa verifica que o índice de analfabetismo atinge 8,3% das pessoas com mais de 15 anos, e o analfabetismo funcional chega a 17,8%. Constata ainda que 25,7% dos brasileiros(as) não tem ensino fundamental completo e 7% não possui qualquer instrução formal. Não poder agir espontânea e efetivamente num mundo tomado por formulários e contratos, para não falar das tecnologias digitais, é a realidade cotidiana de quase 30% dos habitantes do país. Realidade que os restringe aos espaços de vulnerabilidade extrema (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2013).

O Instituto Trata Brasil, em pesquisa realizada no ano de 2014, verifica, ademais, que somente 48,6% da população brasileira tem acesso à coleta de esgoto (Trata Brasil, 2014). Índice assombroso em um país que está entre as dez maiores economias do mundo, promovendo situações bastante desiguais no que diz respeito às condições de sobrevivência, bem como expectativa média de vida e mortalidade infantil, conforme o estrato social a que se pertence.

No que diz respeito à desigualdade racial, a diferença é ainda mais marcante, visto que a grande maioria dos que pertencem aos quadros de precariedade social, como os acima ilustrados, são negros. Segundo dados levantados pelo IBGE, dispostos no jornal Folha de S. Paulo de 20/05/2017, um negro recebe 56% do rendimento médio de um branco e, embora os negros representem 53,6% da população brasileira, 76% deles estão entre os 10% mais pobres. Com a instauração da crise econômica no país, a remuneração recebida por brancos em todos os trabalhos formais teve variação média positiva de 0,8% entre 2015 e o primeiro trimestre de 2017; entre os pardos a variação de renda neste mesmo período caiu em média 2,8%, e entre os pretos, caiu 1,6% (Perrin, 2017, p. A25).

Ainda no debate sobre rendimento interseccionado a questões raciais no Brasil, Rocha (2016, p. 186) ressalta que "a proporção dos brancos que estão entre os ricos é de 2,65%, comparados a 0,6% dos negros", sendo que a probabilidade de uma pessoa negra estar entre o 1% mais rico no país equivaleria a 36% da probabilidade de uma pessoa branca.

Dentre as condições sociais que contribuem para acirrar esta desigualdade na população brasileira, destaca-se que 24,5% dos brancos têm nível superior completo, contra 10,26% dos negros. Estudos indicam, ainda, que os negros concentram-se em cursos de menor prestígio social e em profissões mal remuneradas (Artes & Ricoldi, 2015; Rocha, 2016).

Tais desigualdades de renda, por sua vez, não se explicam apenas pelas diferenças de qualificação profissional e nível de escolaridade entre brancos e negros - já inquietantes e problemáticas, em si mesmas, pois denotam uma estrutura institucional que os trata desigualmente -, mas também devido à existência do racismo enquanto marca das relações interpessoais que podem ser observadas, por exemplo, no campo do trabalho. Sobre essa questão, Caio Magri, presidente do Instituto Ethos, em matéria da Folha de S. Paulo, afirma que: "Além de serem preferencialmente demitidos, os negros também são preferencialmente recusados" (Perrin, 2017, p. A25).

Segundo os Atlas de Violência publicados em 2017 e 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), os negros possuem probabilidades 23,5% maiores de ser assassinados do que brasileiros de quaisquer outra cor de pele, sendo que a cada cem brasileiros assassinados, 71 são de cor negra (Cerqueira et al., 2017). Destaca-se, ainda, que no ano de 2016, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%), sendo que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras (Cerqueira et al., 2018).

Ainda sob o escopo estatístico, dados contidos no Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014) e no Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade (Ministério da Saúde, 2015), anunciaram o aumento significativo nos índices de homicídios da juventude brasileira. Melo e Cano (2014) estimaram que "entre 2013 e 2019 aproximadamente 42 mil vidas de jovens serão perdidas nos municípios com mais de 100 mil habitantes" (p. 22). Sobre este panorama, os autores ainda afirmaram a existência de um grupo que, de modo insistente, se apresenta mais vulnerável a essa violência letal no país: os "homens, em sua maior parte jovens e negros, vítimas de armas de fogo" (Melo & Cano, 2014, p. 46), o que aponta para a alta vulnerabilidade a que se encontra submetido esse grupo social.

Por fim, não é surpresa para ninguém que nas periferias mais precarizadas das cidades brasileiras a esmagadora maioria de seus moradores sejam negros, situação bastante diferente do que ocorre nos bairros mais abastados.

Tal cenário, de aflitiva desigualdade, torna-se ainda mais inquietante por sabermos viver em uma sociedade democrática que aboliu o sistema escravocrata há mais de 120 anos. Como, então, perdura ao longo do tempo, e em período histórico no qual nunca se produziu tanta riqueza, tal situação de vulnerabilidade em contingente tão amplo da população brasileira? E como, num país que se autodeclara racialmente democrático, as oportunidades de acesso pleno à cidadania são tão desiguais entre negros e brancos? Tais questões serão problematizadas a seguir.

 

O lugar do racismo na sociedade brasileira

Se nos debruçarmos sobre o modus operandi da sociedade brasileira, poderemos alcançar algumas respostas às perguntas traçadas no subtópico anterior. Assim, embora desde o século XIX o Brasil seja uma república independente, permanece fortemente ainda a presença de elementos orientados pelo que Boaventura Souza Santos (2010) denomina de paradigma do colonialismo, caracterizado como "o conjunto de trocas extremamente desiguais que assentam na privação da humanidade da parte mais fraca como condição para a sobre-explorar ou para a excluir como descartável" (p. 37). Valores e práticas de cidadania republicana, portanto, próprios de uma república democrática, estão distantes da materialização organizativa plena e ordinária da sociedade brasileira, embora oficialmente assim ela se apresente.

Com efeito, as trajetórias da história não se fazem por meio de saltos a partir dos quais são superadas, linear e definitivamente, as distintas etapas evolutivas, mas se fazem em passos descontínuos, os quais ora movem-se para frente, ora para trás, ora para os lados, ora fixam-se num mesmo ponto, imiscuindo temporalidades históricas e seus respectivos valores, ideologias, discursos, saberes e materialidades. Na matriz simbólica e institucional deste caleidoscópio de temporalidades, o paradigma do colonialismo "eurocentrista, racista e brancocêntrico" (Nogueira & Guzzo, 2016, p. 197) ainda se faz preponderante na sociedade brasileira - embora tensionado por inúmeros movimentos sociais.

Como destaca Marilena Chauí (1994), a sociedade brasileira se pauta por relações sociais manifiestamente autoritárias, uma vez que "conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor-cidadão" (p. 53). É uma sociedade que forja a cidadania como um privilégio de classe, na qual os direitos são concedidos aos demais estratos sociais de modo tutelado e estritamente regulado pelo Estado. Uma sociedade que naturaliza a desigualdade e a assimetria, configurando relações sociais de rígida hierarquização, ilustrada com o antigo e ainda bastante citado provérbio popular: "manda quem pode, obedece quem tem juízo". Uma sociedade, ademais, na qual as leis não são instrumentos de definição de direitos e deveres para todos os cidadãos igualitariamente, mas "armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão" (Chauí, 1994, p. 54), igualmente bem ilustrado em outro conhecido provérbio popular: "aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei".

Em convergência aos argumentos de Chauí, Florestan Fernandes (1978), em estudo sobre a integração do negro após a abolição da escravidão em São Paulo, defende a tese de que ao negro ex-escravo faltaram às condições para sua pré-socialização à nova ordem social e econômica que se instaurava, a qual exigia modelos de conduta, de valores, uma subjetividade, enfim, demandas da sociedade capitalista e sua premissa do trabalho livre. Tal situação se deu, afirma o autor, porque a libertação da escravidão não foi acompanhada por políticas de inclusão social do negro ex-escravo. Desorganização familiar e social, violência em função de discriminações racistas, impossibilidade para educar-se e qualificar-se profissionalmente são algumas das imprecações que a sociedade impôs aos negros, constituindo o que Jessé Souza (2012) denomina subcidadania, epíteto metafórico com que o autor refere-se aos indivíduos destituídos das condições objetivas e subjetivas, culturais e sociais para serem incluídos nas molduras da cidadania plena numa sociedade capitalista.

Guimarães (2009) explica a ausência de políticas voltadas para a qualificação e inserção do negro no sistema produtivo neste período, com base na vigência de um racismo institucional fundamentado na doutrina científica que prevalecia no Brasil do século XIX e início do século XX, sendo que as desigualdades entre as raças fundavam-se na diferença biológica, isto é, na natureza e constituição mesma dos seres humanos. Esta é condição inicial na qual iremos investigar os discursos disseminados que apontam para a desvalorização do ser negro.

Nos anos que antecederam a virada do século XIX ao XX, o Brasil foi acometido por mudanças e transformações em prol do desenvolvimento econômico que repercutiram sobre as relações estabelecidas entre a população. O desenvolvimento estava fortemente associado a modelos europeus e estadunidense de vida, que justificaram a ênfase na educação para o "progresso," bem como a legitimação de práticas racistas. As influências das negras na educação dos filhos das "sinhás", por exemplo, começaram a ser alvo de críticas, sendo que, em 1870, um jornal pernambucano publicou uma matéria em que afirmava: "A nossa primeira mestra é ordinariamente uma preta muito bruta, que nos dá de mamar, nos pensa e nos trata" (Carvalho, 2003, p. 59). Neste momento, mostrou-se evidente que "era preciso livrar-se de todos os vestígios 'negros'" (Carmo, 2012, p.116).

Deste modo, Sodré (2015, p. 97) recorda que "o negro e o mestiço brasileiros despontam como problemas da ciência", transformando-se em objeto de investigação e intervenção. Ideologias de embran-quecimento da população brasileira começam, então, a tomar força, como ilustra depoimento de Monteiro Lobato, no início do século XX, em carta endereçada a Tito Lívio Brasil: "Só a imigração e a consequente fusão de sangue superior trará uma aptidão congênita para o progresso" (Lobato, citado por Guimarães, 2009, p.76).

A população brasileira, assim, majoritariamente negra e mestiça, era considerada decadente e inferior; a referência de superioridade assentava-se no branco europeu, materializada em discursos doutrinários que perpassavam a medicina, a antropologia, a educação. Por essa razão, a eleição das teorias do embranquecimento despontam como solução futura - um darwinismo social à brasileira. Abrindo-se o país para a imigração europeia em massa, e impedindo a entrada de novas levas de negros africanos, a tendência era que com os anos o "problema negro" se resolvería, pois o sangue branco progressivamente diluiria e exterminaria o negro, tornando assim possível que os mestiços - mais embranquecidos - se elevassem ao estágio de civilização (Carone & Bento, 2002; Guimarães, 2009; Schwarcz & Starling, 2015).

"Como ideologia", assevera Sodré (2015), a ideia do embranquecimento "alimentou os dogmas da superioridade racial, do determinismo climático, da geopolítica e da filosofia eugenista, que redundaram em instituições como a Liga de Higiene Mental ou em pensamentos como os de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Viana" (p. 100), além de Nina Rodrigues, os quais espelhavam o preconceito contra a população negra, responsável, por sua vez, pela passagem do racismo de dominação - próprio do período escravocrata - para o racismo de exclusão - pós-abolição.

Delineia-se, assim, a situação prototípica da constituição da exclusão social brasileira, ou seja, o processo histórico e social pelo qual o país confere e naturaliza um lugar social desqualificado a uma vasta gama de pessoas, não as reconhecendo como detentoras de direitos. Construções culturais singulares como músicas, danças, histórias e tradições populares, religiosidades, linguagens, pinturas e esculturas, em suma, toda uma cosmogonia e estética de origem afro-brasileira, ainda que detendo uma riqueza incomensurável, foram (e são) fortemente desvalorizadas e mesmo, não poucas vezes, proibidas (caso da capoeira e de cultos religiosos, como o candomblé e a umbanda, por exemplo).

Este processo de exclusão está edificado no paradigma colonialista, que articula uma "supressão destruidora de alguns modelos de saberes locais" (Nogueira & Guzzo, 2016, p. 198), por meio da circulação de uma racionalidade que desvaloriza e hierarquiza saberes e suprime a diversidade cultural dos povos localizados como não-hegemônicos.

Apesar dessas constatações, o processo singular de colonização brasileira, mais especificamente a evidente miscigenação entre brancos e negros, implicou na edificação de um mito de democracia racial no país que dificulta o debate sobre as condições de subalternidade e subcidadania vivenciadas por grande parte da população. Este é o debate que se articula a seguir.

 

O mito da democracia racial no Brasil

Os primeiros trabalhos de Gilberto Freire nos anos 1930 - especialmente Casa Grande e Senzala (Freire, 1992), publicado em 1933 -, além da mais conhecida obra de Sérgio Buarque de Holanda -Raízes do Brasil (Holanda, 2006) -, seguidos depois pela constituição de todo um campo de estudos de antropologia social, contribuem para deslocar e modificar a materialidade do racismo no Brasil, que até então se apresentava de modo explícito, tornando-o progressivamente mais sutil e mascarado. Segundo tais autores, o processo de colonização no Brasil, devido a suas características peculiares, se fez de forma distinta do que ocorreu em outras regiões colonizadas do mundo - nos domínios ingleses, por exemplo. Aqui, desde o início, observa-se um processo menos vertical de relações entre colonos e colonizados, proprietários e escravos - em parte devido à influência dos valores da Igreja Católica, em parte devido a uma maior sensualidade latina dos portugueses em relação aos anglo saxões (Schwarcz & Starling, 2015) -, que levou a confecção de um povo majoritária e eminentemente mestiço.

A chegada das mulheres negras no Brasil foi marcada por relações violentas e exploratórias, evidentes no colonialismo. Juntamente com as crianças, elas eram vendidas como as mercadorias mais baratas e foram submetidas a múltiplas intervenções, como a captura para o trabalho escravo e a exploração sexual, o que deixou como resultado a miscigenação da população brasileira (Carmo, 2012). Por muito tempo, as mulheres mulatas foram representadas como "objetos sexuais" e "pessoas perigosas", sendo consideradas, principalmente por mulheres brancas, como as responsáveis pela sedução de seus homens.

A mistura das raças é então apontada como uma singularidade brasileira e, paradoxalmente, exaltada como resultante facilitadora para a consumação de uma democracia racial. Guimarães (1995) explica este paradoxo argumentando que os cientistas sociais brasileiros - e estrangeiros brasilianistas -, em geral, tomavam o padrão de relações sociais nos Estados Unidos como referência para comparação e entendimento do que ocorria na sociedade brasileira. Com efeito, diz o autor, "o modelo norte-americano exibia um padrão de relações violento, conflitivo, segregacionista, sancionado por regras precisas de filiação grupal, baseada em arrazoados biológicos que definiam as 'raças'. O modelo brasileiro, ao contrário, mostrava uma refinada etiqueta de distanciamento social e uma diferenciação aguda de status e de possibilidades econômicas convivendo com equidade jurídica e indiferenciação formal" (p. 03). Tal referência à sociedade norte-americana, acabou por obscurecer e negar a existência de diferenciações racistas no Brasil, materializadas mediante um sistema bastante complexo e ambíguo, "baseado principalmente em diferenças fenotípicas e cristalizado em um vocabulário cromático" (p. 04).

"Não somos um povo racista como os Estados Unidos da América ou a África do Sul, por exemplo", dizia-se (e ainda se diz). Aqui brancos e negros confraternizam-se e transitam por todos os lugares livremente. Nossos problemas explicam-se fundamentalmente pela forma como a classe proletária é expropriada pelos donos dos meios de produção, argumento que deixa a questão racial em segundo plano. Convergindo com tais ideias, o governo de Getúlio Vargas investe numa política de construção de identidade nacional, que deveria cingir o país de norte a sul (Schwarcz & Starling, 2015), a qual confluiría com toda uma narrativa de valorização da cultura popular - mestiça, mulata, cabocla - com presença cada vez mais frequente na literatura, na música, na pintura, mesmo dentro do universo erudito e elitizado dos grandes teatros, museus e livrarias, como se podia ver nas obras de Villa Lobos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, entre muitos outros. Como afirma Guimarães (2009), "a ideia de democracia racial, tal como reinterpretada pela antropologia de Freyre, pode ser considerada como um mito fundador de uma nova nacionalidade" (p. 54).

Para Florestan Fernandes (1972), no entanto, o mito da democracia racial escamoteia a forte presença do racismo que perdura notadamente no país. Se, por um lado, ele supera a noção do racismo colado às diferenças de ordem biológica, uma vez que nos assumimos como um povo misturado, como diz Caetano Veloso, todos "quase pretos ou quase brancos", são, por outro lado, os "quase pretos" que permanecem sofrendo mais vigorosamente as restrições objetivas de acesso à cidadania por meio de diferenças enormes de renda, educação, habitação, segurança etc.

Logo, a "raça/cor da pele pode interferir nas oportunidades educacionais, financeiras e sociais, que uma pessoa recebe na sua vida" (Smolen & Araújo, 2017, p. 4022), sendo que a pele de matiz mais escura e todos os elementos físico-estéticos que a acompanham (como os cabelos crespos, por exemplo) configuram o atributo de significação de uma subclasse de brasileiros marcada pelo lugar da subalternidade, ou da condição subcidadã, como classifica Jessé Souza (2011, 2012).

Para compreender os mecanismos da reprodução da subcidadania nas microfísicas do cotidiano social, Souza (2012) busca na concepção de habitus - desenvolvida por Bourdieu - uma resposta. O conceito define um conjunto de esquemas cognitivos, inculcados e incorporados desde a infância ao longo da trajetória social de cada um de nós, a partir dos quais são demarcadas as possibilidades de sentidos e significados, oportunidades e coerções, liberdades e limites de acordo com as condições objetivas, por sua vez encarnadas em cada indivíduo ou grupo social específico (Bourdieu, 2007). Em outras palavras, o habitus refere-se ao processo de socialização por onde se apreendem, se institucionalizam, inscrevem-se no corpo ações, disposições, comportamentos, escolhas, sentidos comuns socialmente esperados em determinadas categorias sociais, seja no âmbito das diferenças de gênero, classe social, etnia. "É o habitus'", diz Souza (2012), "que produz a 'mágica social' que faz com que pessoas se tornem instituições feitas de carne" (p. 46). Assim, o pobre em oposição ao abastado, o negro em oposição ao branco objetificam-se, no cotidiano das relações, como diferenças e desigualdades sociais que se naturalizam, institucionalizando-se hierarquicamente.

A noção de meritocracia, especialmente valorizada nos dias de hoje por grande parte da população, igualmente ilustra o processo de naturalização das desigualdades e da exclusão sociais, uma vez que torna invisíveis os diferentes habitus de classe e de etnia, justificando e socialmente legitimando formas extremamente desiguais de localização das pessoas no quadro social (Souza, 2011, 2012). Um exemplo dessa racionalidade está no tensionamento que a adoção do sistema de cotas étnicos-raciais em concursos públicos e vestibulares incita na população brasileira, mais especificamente em parcelas da população favorecidas economicamente.

Melhor dizendo, num modelo societário não mais orientado pela hierarquia estamental, pressupõe-se, por princípio lógico, que todos têm condições iguais e democráticas para alcançar uma situação social e econômica na qual um ser humano pode sentir-se dignamente respeitado e reconhecido, com acesso a emprego adequadamente remunerado, alimentação, saúde, moradia, educação, lazer, segurança etc. A possibilidade de inserção neste quadro, isto é, do lugar ocupado na pirâmide social, se dá por mérito, ou seja, os melhores irão para o topo e os piores para a base. Os critérios de seleção, portanto, mostram-se, discursivamente, como critérios justos. Cabe a cada indivíduo disciplinar-se para adquirir as habilidades necessárias para tanto e, uma vez adquiridas, continuar avidamente dedicando-se para não ser superado, visto que a competição é permanente e entendida como uma condição igualitária a qual todos se encontram submetidos.

Ora, sabemos que a realidade se apresenta um tanto diversa do que é desenhado acima. As condições de possibilidade de alguém que nasceu e cresceu nas periferias e favelas das cidades brasileiras (geralmente pretos e mestiços) são bastante diferentes de alguém de classe média alta, por exemplo. E não apenas devido às diferenças de renda e de acesso às melhores escolas, saúde, lazer, entre outras condições objetivas - ainda que bastante relevantes -, mas também às diferenças nos processos de socialização (Guareschi, 2013; Souza, 2011, 2012). Como sensibilizar crianças e adolescentes acerca da importância da educação formal no seu processo de desenvolvimento quando não têm um modelo de referência para mirar no contexto em que vivem? Como vislumbrar um horizonte de possibilidades de ascensão de classe social quando tudo ao seu redor aponta, desde a infância, para obstáculos quase intransponíveis para tanto? Como aprender a lidar com todo o aparato técnico e tecnológico ostensivamente presente nas funções laborais mais qualificadas quando se vive e cresce em um contexto doméstico de extrema pobreza? Como, enfim, romper com o habitus largamente incorporado ao longo da vida - e, muitas vezes, ao longo de gerações - quando no dia a dia, recorrentemente, se é brutalmente diferenciado?

A confecção do habitus subcidadão, assim, se faz simultaneamente à composição de um imaginário racista que, alerta Sodré (2015), "aloja-se em novas modalidades institucionais - no sentido dado por Mauss à palavra instituição, ou seja, modo de fazer ou de pensar independente do indivíduo" (p. 278). Ela é categoria importante para se entender muito das representações negativas dos cidadãos e cidadãs de pele negra, e pode ser hoje reproduzido pelo discurso midiático, "sem distância crítica do tecido da civilização tecnoeconômica, onde se acha incrustada a discriminação em todos os seus níveis" (Sodré, 2015, p. 278).

Um exemplo desse processo é descrito por Coimbra (2001) que, em um estudo realizado acerca dos discursos que circularam na mídia durante uma operação do exército no Rio de Janeiro na década de 1990, aponta que foi construído um perfil do indivíduo perigoso: homem pobre, preto ou pardo, entre 18 e 24 anos, morador da periferia que não terminou a educação básica. É sobre essa população que serão empregadas às ações vinculadas a visão de segurança pública que passaram a incluir modos de pensar, sentir e julgar os ditos "perigosos".

Em contrapartida a esse processo, ressaltamos a importância de insistir na recuperação da memória histórica, como um modo de tornar visíveis os privilégios de uma minoria dita hegemônica em relação à perspectiva das maiorias marginalizadas produzidas nas racionalidades do habitus subcidadão e da

meritocracia. Tal insistência tem sido amplamente referenciada pelos movimentos sociais de luta pela igualdade racial no Brasil, como um modo de evidenciar os pressupostos históricos colonizadores que possibilitaram as condições de desigualdade.

Através deste artigo, pretendemos somar com esses movimentos sociais e contribuir nos processos de "desideologização das realidades cotidianas" (Nogueira & Guzzo, 2016, p. 202), possibilitando caminhos para que as pessoas possam compartilhar suas vivências, discursos e "verdades" locais.

 

Considerações provisórias

Ao longo desse artigo buscamos problematizar a questão do racismo, a partir de discursos que enfatizaram a educação para o "progresso" como tarefa de brancos, as ideologias de embranquecimento da população brasileira, a perspectiva da superioridade da raça branca, a noção de meritocracia e o mito da democracia racial no Brasil. Consideramos que, de certa forma, estes discursos visaram, por um lado, justificar o racismo ou, por outro, colocá-lo como uma temática secundária em vista de outros tópicos considerados mais urgentes que circulam na sociedade brasileira.

Ao rever sentidos construídos acerca da temática do racismo no Brasil, buscamos contribuir ao conjunto de pesquisas e intervenções que, de modo insistente, vêm denunciando a crise do paradigma epistemológico eurocêntrico, racista e brancocêntrico da ciência hegemônica e seus múltiplos efeitos violentos (racistas) em grupos populacionais circunscritos como subalternos.

Consideramos também a importância da revisão da história do Brasil em uma perspectiva crítica e localizada, como um modo de tornar visível parte dos conhecimentos e vivências que, de modo sistemático, vem sendo desqualificados e silenciados na trajetória da população brasileira.

Nesse processo de enfrentamento, torna-se fundamental investigar discursos que tendem a minimizar o racismo enquanto processo amplamente disseminado no tecido social em vista da defesa de uma suposta democracia a qual todos encontram-se incluídos indistintamente. Entendemos que denunciar tais estratégias configura-se como uma tarefa que precisa ser ampliada no campo da pesquisa social.

Além disso, um percurso teórico possível para a problematização crítica de discursos que apontam para uma lógica hegemônica eurocêntrica, dialoga com a perspectiva decolonial que vem ganhando visibilidade na América Latina e que nos oferece outro olhar sobre nosso contexto local, remetendo a autores como Glória Anzaldúa, Freire, Anibal Quijano, Walter Mignolo, Achille Mbembe, entre outros.

Assim, ressaltamos a importância da circulação de vieses teóricos e práticos que se alinham a perspectivas epistemológicas que valorizam a produção de conhecimentos plurais, locais e que buscam empreender ações transformadoras da realidade social. Deste modo, acreditamos que é possível articular saberes que se compõem a racionalidades inclusivas e dialógicas e que contribuem para o enfrentamento do racismo nosso de cada dia.

 

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Recebido em: 06/11/2017
Aprovado em: 16/07/201

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