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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo maio/ago. 2020

 

ARTIGOS

 

Negritude feminina no Brasil: uma análise com foco na educação superior e nos quadros executivos empresariais

 

Feminine blackness in Brazil: an analysis focused on higher education and corporate executives

 

Negritud femenina en Brasil: un análisis con enfoque en la educación superior y en los cuadros ejecutivos empresariales

 

Feminine negritude au Brésil: une analyse centrée sur l'enseignement supérieur et les dirigeants d'entreprise

 

 

Vanessa Cristina da Silva MalpighiI; Luz Amparo López BarreyroII; Rilza Xavier MariglianoIII; Kae LeopoldoIV

IDoutoranda pelo Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo. Mestre em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Psicopedagoga e Especialista em Adolescente em Conflito com a Lei, ambos pela Universidade Bandeirante de São Paulo. Graduada em Psicologia pela Universidade Católica de Santos / vanacris@yahoo.com.br
IIMestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo - IPUSP e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo / luzalopezb@hotmail.com
IIIDoutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo-USP. Mestre em Ciências do Envelhecimento pela Universidade São Judas Tadeu-USJT. Pesquisadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social (APOIAR), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo / rilzamarigliano@usp.br
IVDoutorando pelo Programa de Neurociência e Comportamento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Mestre em Ciências pelo Programa de Psicologia Experimental do IPUSP. Graduado em Psicologia pela USP / kae.leopoldo@usp.br

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo investigar as Políticas Públicas Educacionais e Empresariais para o enfrentamento da desigualdade social de mulheres negras no Brasil. Observa-se a ascensão social das mulheres negras, porém estas ainda permanecem sub-re-presentadas. Os dados apresentados neste estudo referem-se ao percentual de mulheres negras na Universidade e em cargos executivos do setor privado. Problematizar o lugar da negritude feminina, enfatizando as políticas afirmativas para enfrentamento das desigualdades é reiterar a necessidade de políticas que atinjam a negritude feminina e a estrutura social. Desse modo, pensar a inserção de mulheres negras no Ensino Superior é também refletir sobre suas possibilidades de desenvolvimento e emancipação.

Palavras-chave: Mulher Negra; Ensino Superior; Trabalho; Políticas Afirmativas.


ABSTRACT

This article aims to investigate the Public Educational and Business Policies that combat the social inequality of black women in Brazil. It is noted the social ascension of black women, but they still remain underrepresented. The data presented in this study refer to the percentage of black women in the University and in executive positions of the private sector. By emphasizing the Affirmative Policies to face inequalities, to problematize the place offeminine blackness is to reiterate the need for Policies that achieve female blackness and the social structure. This way, thinking about the insertion of black women in Higher Education is also reflecting on their possibilities of development and emancipation.

Keywords: Black woman; Higher education; Work; Affirmative policies.


RESUMEN

El presente artículo tiene por objetivo investigar las Políticas Públicas Educacionales y Empresariales para el enfrentamiento de la desigualdad social de las mujeres negras en Brasil. Se observa la ascensión social de las mujeres negras pero todavía siguen sub-representadas. Los datos presentados en este estudio se refieren al porcentaje de mujeres negras en la Universidad y en cargos ejecutivos del sector privado. Problematizar el lugar de la negritud femenina, destacando las Políticas Afirmativas para el enfrentamiento de las desigualdades, es reiterar la necesidad de Políticas dirigidas a la negritud femenina y a la estructura social. De ese modo, pensar la inserción de mujeres negras en la Educación Superior es también reflexionar sobre sus posibilidades de desarrollo y emancipación.

Palabras-clave: Mujer Negra; Educación Superior; Trabajo; Políticas Afirmativas.


RÉSUMÉ

Cet article a pour objectif d'examiner les Politiques Publiques en matière d'éducation et d'entreprise visant à remédier à l'inégalité sociale des femmes noires au Brésil. L'ascension sociale des femmes noires est observée, mais elles sont toujours sous-représentées. Les données présentées dans cette étude se réfèrent au pourcentage de femmes noires à l'université et à des postes de direction dans le secteur privé. Pour problématiser la place de la négritude féminine, insister sur les politiques affirmatives pour faire face aux inégalités revient à réitérer la nécessité de politiques qui affectent la négritude féminine et la structure sociale. De cette façon, réfléchir à l'insertion des femmes noires dans l'enseignement supérieur, c'est aussi réfléchir à leurs possibilités de développement et d'émancipation.

Mots clés: Femme noire; Enseignement supérieur; Travail; Politiques Affirmatives.


 

 

Introdução

O presente artigo tem por objetivo investigar as Políticas Públicas Educacionais e as Políticas Empresariais para o enfrentamento da desigualdade social de mulheres negras no Brasil. Partimos da análise dos efeitos produzidos por recentes políticas afirmativas na ampliação do número de mulheres afrodescendentes na Educação Superior e nos quadros executivos de empresas privadas. A escolha destes campos de observação se deve ao fato de serem áreas reconhecidas socialmente, tanto no nível intelectual quanto salarial. Nesse sentido, tais dados podem compor discussões a respeito da posição socioeconómica da mulher negra na sociedade brasileira atual.

Em primeira análise, o aumento no número de mulheres negras na Universidade se deve à implementação de políticas afirmativas no século XXI que visam, dentre outros objetivos, a inserção da população negra no âmbito da Educação Superior. Para isso analisamos os dados existentes sobre políticas afirmativas, traçando suas possíveis implicações no mercado de trabalho a partir da ocupação de cargos empregatícios formais por parte dessa parcela da população. Para o desenvolvimento do tema, torna-se necessário apresentar um panorama da desigualdade social no Brasil, esclarecer questões sobre raça, gênero e exploração, além de abordar o advento das políticas afirmativas na Educação, correlacionando-as com o cenário atual do mercado de trabalho dentro do universo proposto.

O Brasil é um país desigual em termos sociais e económicos. Dentre a parcela mais pobre da população, ou seja, as mais atingidas pelas consequências da desigualdade social (baixos salários, pouca qualidade de vida, educação e saúde precárias), encontram-se os afrodescendentes. A pobreza tem cor no Brasil e a população negra é a mais ameaçada com a crise económica, como declara, em 2016, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Questões das Minorias. Negras e negros sentem as marcas da segregação imposta pela escravização em massa de povos africanos pelos povos europeus desde o século XV até o século XIX e a perpetuação desta segregação (Davis, 2017; Fernandes, 2016; Jones, 2017). A desigualdade social atinge de maneira incisiva mulheres brancas e negras e, homens negros; grupos aos quais são reservados lugares minoritários na sociedade, renegados à falta de reconhecimento e de possibilidade de uso da palavra (Silva, 2007).

A partir desse contexto de desigualdade é possível afirmar que as mulheres negras são a fração super explorada da classe trabalhadora (Jones, 2017). A sociedade e o Estado defendem os Direitos Humanos, entretanto, mantêm relações de dominação-exploração em sua estrutura, cuja sistemática envolve três aspectos interligados: Patriarcado-Racismo-Capitalismo (Saffioti, 1987). Ao ser analisada, levando em consideração esses três aspectos, a mulher negra encontra-se no meio de um "nó" de opressões: de um lado, é uma mulher numa sociedade que privilegia homens. De outro, é uma pessoa negra numa sociedade que valoriza pessoas brancas. E por último, necessita sustentar a si mesma e à sua família numa sociedade que explora o trabalho de uma maioria para enriquecer a uma minoria (Jones, 2017; Saffioti, 1987).

Para incentivar a mudança em um sentido emancipador, levando em consideração a equidade, e reconhecer as especificidades dos oprimidos, faz-se necessário visibilizar a opressão (naturalizada, porém não natural) e tornar um direito o uso da palavra por todos os indivíduos. Para que haja real modificação na estrutura da sociedade, deve-se começar melhorando as condições de quem está no setor mais baixo da pirâmide social. À mulher negra foi reservado, historicamente, o trabalho doméstico, pouco reconhecido, pouco respeitado, pouco remunerado, pouco regulamentado e pouco estável (Davis, 2017; Fernandes, 2016; Jones, 2017; Saffioti, 1987, 2004; Silva, 2007). Partindo dessa realidade opressora, decidimos deter nossa atenção na atual ocupação da mulher negra na educação universitária e no mercado de trabalho, tangendo questões históricas e políticas da construção desse contexto. A especificidade do enfoque - a mulher negra - advém das múltiplas forças de opressão que só a ela recaem, a saber, o patriarcado e o racismo, que exigem, por esse entrecruzamento, uma análise em si. No texto a seguir, tem-se o cuidado de, ao abordar a mulher negra, fazê-lo de forma clara e objetiva enfatizando a raça e o gênero.

A análise em torno de questões raciais e de gênero, tendo como pano de fundo a educação e o mercado de trabalho convida-nos à reflexão e à crítica, gerando uma série de questionamentos, tais como: quais são as principais atividades ocupacionais exercidas pelas mulheres negras? Quantas mulheres negras ocupam cargos de chefia/liderança? Quantas mulheres negras finalizam a graduação no Brasil? Quantas dessas mulheres continuam os estudos (especialização/mestrado/doutorado)?

Algumas destas questões impulsionam este estudo e dão origem à pergunta principal: como políticas públicas educacionais e políticas empresariais enfrentam a desigualdade social? Este artigo se mostra relevante social e teoricamente, uma vez que busca enriquecer a atual discussão a respeito da desigualdade social no Brasil e apontar possíveis caminhos para a análise dos indicadores da situação da mulher negra nesse contexto.

Os dados apresentados neste estudo referem-se à realidade brasileira, focando-se em duas dimensões: (a) o percentual de mulheres negras na universidade antes e depois das políticas afirmativas de educação, a partir de 2003; e (b) o percentual de mulheres negras em cargos executivos no setor privado nas 500 maiores companhias brasileiras (dados de 2010 a 2016). Outras estatísticas serão apresentadas de maneira complementar e comparativa, a fim de desvelar o abismo social existente, quando o critério é gênero e raça.

O relatório "Mais igualdade para as mulheres brasileiras: caminhos de transformação econômica e social", produzido pela ONU entre 2015 e 2016, apresenta dados estatísticos de diversas pesquisas a fim de investigar o progresso para a construção de uma sociedade livre de violência, desigualdade e opressão baseada em gênero. O relatório apresenta o seguinte perfil populacional: o percentual de pessoas negras no Brasil cresceu de 50,7% (IBGE, 2010) para 53% (IBGE, 2014). Em consulta à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, esses dados são atualizados para 54% (IBGE, 2016). Fazendo um recorte de raça e gênero, as mulheres afrodescendentes passam a ser maioria entre as mulheres: de 45% em 2004 para 50,9% em 2014 - representando 26,5% da população total brasileira. Em 2016, a ONU declara que 39,2% das mulheres negras estavam ocupadas no mercado de trabalho, sendo ainda o emprego doméstico a principal ocupação (ONU-MULHERES, 2016).

As políticas afirmativas, tanto na educação quanto nas empresas, vêm levantando discursos polêmicos, pois uma parcela da população que não é contemplada com os benefícios dessas políticas contribui para um discurso racista, tornando pejorativo o direito do cidadão afrodescendente e causando uma discriminação ainda maior. Esse tipo de comportamento reforça o mito da democracia racial no Brasil. De acordo com esse mito, interpreta-se que, no Brasil, devido à grande miscigenação de povos, não haveria preconceito racial. A reação da sociedade, muitas vezes, é negativa diante do direito das cotas aos afrodescendentes. Esse tipo de atitude além de constranger os cotistas, acaba dificultando a luta desta população pelos direitos sociais (ETHOS, 2016).

Mesmo diante deste confronto de interesses, é inegável a contribuição das Políticas Públicas Afirmativas aos afrodescendentes, pois possibilitam a ascensão social, acontecimento pouco comum diante das consequências históricas da escravidão. Para que essas políticas realmente sejam eficazes, é necessário que haja a conscientização desses direitos pela população afrodescendente, para que se formem profissionais capacitados para ocupar todos os escalões empresariais e acadêmicos e, principalmente, a análise histórica da colocação da mulher negra na carreira profissional (ETHOS, 2016).

Diante do exposto, este artigo está organizado em quatro seções, além da introdução. A primeira aborda o espaço da mulher negra na Educação Superior; a segunda, sua representatividade no setor privado do mercado de trabalho; a terceira propõe um espaço analítico interpretativo dos dados apresentados previamente; e, por fim, as considerações finais. As discussões são realizadas com base nas recentes políticas afirmativas implementadas no Brasil, durante o século XXI.

 

A mulher negra na dimensão educacional

Historicamente ao homem foi conferido o papel de provedor. Devia sair de casa para trabalhar e tinha o direito à educação. Portanto, era maioria nas Universidades. Entretanto, com o passar dos anos, o número de mulheres no ensino superior supera o dos homens. Isso se deve à reversão do fenômeno "hiato de gênero", conceito definido pela educação para tratar das diferenças sistemáticas nos níveis de escolaridade entre homens e mulheres. Esse quadro foi revertido a partir de meados do século XX, com a universalização do ensino promovida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, que equiparou a escola normal aos demais cursos de segundo grau, permitindo aos indivíduos que faziam o Magistério - a grande maioria das mulheres - disputarem o vestibular. Este cenário foi reiterado pela Constituição Nacional de 1988, a Constituição Cidadã (Beltrão & Alves, 2009).

A partir dessas bases legais se construiu a ideia de que a educação é um direito de todas as pessoas e não apenas o privilégio de algumas. Antes disso as mulheres tinham acesso restrito à escolarização, então, quando houve a universalização do ensino, elas foram as principais beneficiadas e conseguiram chegar em maior número à formação universitária, comparando-se aos homens. A partir desse momento, a presença feminina nas carreiras superiores tornou-se crescente (Beltrão & Alves, 2009).

Dentre os brasileiros de 25 a 44 anos de idade, os homens graduados representam 15,6%, já as mulheres somam 21,5% dessa população. Quando se desagrega a população de 25 anos de idade ou mais com Ensino Superior completo por raça ou cor, tem-se: 23,5% de mulheres brancas, 10,4% de mulheres negras, 20,7% de homens brancos e 7% de homens negros. O percentual de mulheres brancas que conclui a graduação é 2,3 vezes maior do que de mulheres negras, de acordo com a pesquisa "Estatística de Gênero - Indicadores sociais das mulheres no Brasil" do IBGE (2018).

Um dos fatores que possibilitou o aumento de estudantes afrodescendentes e das classes mais pobres da população nas universidades foi às políticas de ações afirmativas. Em material desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra no Brasil, ação afirmativa é definida como uma medida que tem como objetivo eliminar desigualdades "historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, [...] compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros" (Santos, 1999, p. 25). A diferença de tratamento no acesso aos bens e aos meios fimdamenta-se unicamente como estratégia de restituição da igualdade. Deve, portanto, ter caráter temporário, dentro de um âmbito e escopo restritos (Guimarães, 1997).

As políticas afirmativas podem ser ações voluntárias, ações de cunho obrigatório, um instrumento misto com programas governamentais ou privados, leis e orientações jurídicas ou ações de agências de fomento. As principais áreas contempladas são o mercado de trabalho, isto é, a contratação, qualificação e promoção de funcionários; o sistema educacional, especialmente o Ensino Superior; e a representação política (Guimarães, 1997; Santos, 1999).

O debate sobre as ações afirmativas não é recente, já que desde 1968 há projetos de políticas afirmativas. No final do Governo de Fernando Henrique Cardoso algumas ações começaram a ser instituídas, tomando força no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003/2004. O Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) foi criado em 1999, o Programa Universidade para todos (PROUNI) foi implantado em 2004, o Sistema de Seleção Unificada (SISU), em 2010, e a política de cotas foi julgada constitucional em 2012, tendo uma aderência bem lenta até os dias atuais por parte das universidades públicas. Com a vigência dessas políticas, foi possível aos cidadãos afrodescendentes e populações indígenas o acesso ampliado ao Ensino Superior, possibilidade outrora muito restrita (Moehlecke, 2002).

Diante do contexto das políticas afirmativas, entre 2004 e 2014, aproximadamente 5,946 milhões de mulheres negras ingressaram no mercado de trabalho em atividades de maior reconhecimento social e exigência de escolaridade em relação a períodos anteriores. Esse avanço também está relacionado à adoção de políticas afirmativas no campo empresarial, abordado mais adiante. Por volta de 65% desse ingresso concentra-se em áreas, como comércio e reparação, saúde, educação e serviços sociais, alojamento e alimentação. Esse quadro é expressivo e está relacionado ao nível socioeconómico das mulheres negras que neste período tiveram rendimento de aproximadamente 7% maior do rendimento médio do conjunto de mulheres. O PROUNI, por exemplo, programa que amplia o ingresso de estudantes de baixa renda em instituições privadas tendo como contrapartida à isenção de impostos, possui em seu cadastro de bolsista 52% das vagas ocupadas por mulheres. Quanto à raça, 49,6% são negros e 46,6% são brancos (ONU-MULHERES, 2016).

A desigualdade racial e de gênero tem sido objeto de estudo em várias pesquisas, por exemplo, o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil: 2009-2010 (Paixão, 2010). O documento traz dados sobre brasileiros afrodescendentes em diversos contextos da vida em sociedade e aponta para o aumento de mulheres negras com acesso a cursos de nível Superior. Em 2003, apenas 4,1% de mulheres negras cursaram uma universidade, já em 2010 essa proporção aumentou para 20%. Esse avanço só foi possível devido às políticas de ações afirmativas, pois, de outra forma, grande parte dessa população não teria acesso ao Ensino Superior, como mostra a história do país. Embora esse aumento seja muito significativo, a porcentagem continua sendo desproporcional à composição racial do País.

Saindo da premissa de ações afirmativas e adentrando aos fatores alienantes ou emancipadores da educação, observa-se a incipiente presença de mulheres negras como professoras universitárias. Silva (2010), analisando a quantidade de professoras doutoras negras inseridas nas universidades do Brasil, constata que das 63.234 professoras atuantes nas universidades, somente 251 eram mulheres negras, representando apenas 0,36% do total. Em cargos de chefia no mercado de trabalho, o número de mulheres negras também é menor quando comparado ao número de homens brancos, homens negros ou mulheres brancas.

É importante ressaltar que cada povo traz uma história e uma verdade sobre suas condições educativas. As diferenças socioeconómicas, raciais e de gênero sempre tiveram um papel muito importante na definição de quem seria bem sucedido, pois a disparidade de ascensão entre estudantes brancos e negros começa a partir do Ensino Médio e estende-se ao Ensino Superior (Barreto, 2015).

Essas características também foram observadas no estudo de Góis (2008), sobre desigualdade social e os fatores imbricados aos padrões de pobreza no Brasil. O autor retrata as populações afrodescendentes na condição de camadas mais empobrecidas da sociedade. Esse estudo enfatizou o cenário ainda mais preocupante em relação às mulheres negras, pois, embora tenham alcançado um nível de escolaridade maior que os homens negros, ainda sofrem pelas diferenças salariais e o preconceito no momento das contratações.

Além disso, poucas mulheres negras chegam à formação universitária e aos níveis de pós-graduação, lato e stricto sensu, muitas vezes exigidos para a contratação em cargos na docência superior. Em decorrência desse fator, que reitera a hierarquia racial da sociedade brasileira, a colocação de docentes negras no Ensino Superior se torna muito menor em relação à contratação de docentes brancas com essas características de formação (Euclides, 2017).

Existe um debate político fortemente voltado a questões estudantis em relação à cor e raça. Nos discursos, observa-se uma preocupação quanto ao número reduzido de afrodescendentes nas universidades em relação às pessoas brancas. O fato é que mesmo com o implemento das ações afirmativas ainda falta muito para que uma parcela expressiva dessa população tenha acesso a uma formação de qualidade e possa, finalmente, concorrer de igual para igual no mercado de trabalho (Artes & Ricoldi, 2015).

 

A mulher negra e o mercado de trabalho

Nesta seção, abordaremos a realidade alarmante quanto à representatividade da mulher negra no setor privado estritamente relacionada à escassez de políticas afirmativas empresariais para a negritude feminina. Além disso, iremos destacar a percepção dos gestores sobre a presença de mulheres e de afrodescendentes nos altos escalões hierárquicos, considerando o olhar do gestor como parte integrante de um pensamento socialmente compartilhado.

Para toda a análise a seguir, utilizaremos a série histórica de pesquisas "Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas do Brasil", realizadas e divulgadas pelo Instituto Ethos em 2010 e 2016. Essas pesquisas ilustram a trajetória do fenómeno de ocupação de mulheres negras no quadro executivo de grandes empresas (ETHOS, 2010, 2016).

De acordo com o estudo realizado em 2016, homens negros e mulheres negras correspondem a apenas 4,7% dos cargos executivos nas 500 maiores companhias brasileiras. Para expor a riqueza ou, mais precisamente, a pobreza desses números no quesito da representatividade de negras e negros, é preciso apresentar como estas pessoas desaparecem do quadro funcional (ETHOS, 2016). Comecemos pelos dados abordando a situação da mulher em geral (branca e negra), logo depois a do negro em ambos os sexos (homem e mulher) e, enfim, a da mulher negra em 2010 e 2016, respectivamente.

Sobre a mulher em geral (branca e negra), de acordo com os citados estudos, percebe-se um decréscimo da presença feminina na base e nos níveis intermediários da escala hierárquica. No entanto, considerando o quadro executivo, observa-se que, em 2001, havia 6% de mulheres em tais cargos, em 2007, este percentual sobe para 8,2% e, em 2010, a taxa passa a ser de 13,7%, percentual que se manteve em 2016 (ETHOS, 2010).

Em se tratando do negro em ambos os sexos (homens e mulheres), há uma evolução positiva da participação nas empresas, porém mais lenta se comparada à evolução feminina (mulheres em geral/ brancas e negras). Mulheres negras e homens negros estão sub-representados e ocupam parcelas muito desiguais em relação às pessoas brancas nos quadros de funcionários das empresas pesquisadas: apenas 31,1% são ocupados por afrodescendentes. A proporção é progressivamente menor nos níveis hierárquicos mais elevados: 25,6% na supervisão, 13,2% na gerência e 5,3% no executivo, esta última parcela é representada, em numero absolutos, por 62 negros e negras em um grupo de 1.162 diretores (ETHOS, 2010). Compara-se a situação dos negros com a das mulheres: em situação de desigualdade, negligenciados à sub-representação e ao afunilamento hierárquico.

A exclusão, entretanto, é mais acentuada no caso da mulher negra: em 2010 ocupava uma parcela de 9,3% no quadro funcional; 5,6% na supervisão; 2,1% na gerência e 0,5% no quadro executivo. Esta última parcela representa, em números absolutos, 6 mulheres negras dentre 1.162 diretores - negros e não negros, de ambos os sexos (ETHOS, 2010).

Em 2016, os dados em relação à mulher negra nas empresas passaram a ser: 10,6% no quadro pessoal, 10,3% no nível funcional, 8,2% na supervisão e 1,6% na gerência. No quadro executivo, sua presença se restringe a 0,4%, ou seja, 2 dentre 548 diretores, negros e não negros, de ambos os sexos (ETHOS, 2016). Comparando os dados de 2010 com 2016, tem-se que a representatividade da mulher negra aumentou no quadro funcional e na supervisão, mas diminuiu, tal qual de afrodescendentes, na gerência e no executivo.

No quadro geral de 2016, os dados apresentam as mulheres (negras e brancas) em melhor situação comparado ao estudo de 2010. Contudo, mais uma vez deparam-se com um espaço que se revela quase intransponível: o quadro executivo, com uma participação praticamente igual à de 2010, de 13,7% a 13,6% em 2016 (ETHOS, 2016).

Comparando a realidade de 2010 com a de 2016, houve um pequeno aumento na participação de afrodescendentes (homens e mulheres) ao longo dos anos em todos os quadros, com exceção da gerência e do quadro executivo que apresentaram um pequeno decréscimo. Nas empresas participantes da pesquisa, negras e negros correspondem a apenas 34,4% de todo o quadro de pessoal. Sendo assim, do total do universo pesquisado, o segmento de afrodescendentes (homens e mulheres) representa: (a) 57,5% dos aprendizes, (b) 28,8% dos estagiários, (c) 58,2% dos trainees, (d) 35,7% do quadro funcional, (e) 25,9% da supervisão, (f) 6,3% das gerências, (g) 4,7% dos cargos executivos, h) 4,9% do conselho de administração (ETHOS, 2016).

As mudanças relacionam-se tanto com o papel das Políticas Públicas para a Educação quanto com as Ações Afirmativas empresariais. Este último setor propõe transformações de forma lenta e em ações pontuais (marcadas por um recorte racial ou de gênero), ao invés de políticas e ações planejadas.

Das 500 empresas pesquisadas, apenas 25 mencionaram ter políticas e ações afirmativas para a equidade de gênero. Dessas, 64% optaram pela adoção de medidas visando à conciliação entre trabalho, família e vida pessoal que podem ajudar a superar dificuldades relacionadas à tripla jornada vivenciada especialmente pelas mulheres. A menção de políticas visando a ampliação da presença das mulheres em cargos de direção e gerência é mencionada por apenas 11 dessas corporações. Além disso, somente 7 das empresas adotam medidas para combater a desigualdade salarial. É mais rara a adoção de políticas e metas para a equidade racial nos altos escalões. Das 500 empresas, 117 possuem políticas e ações planejadas para incentivo e ampliação de negros no quadro funcional. Os dados expõem, em números absolutos, apenas 4 empresas de um conjunto de 117, que adotam políticas com metas e ações planejadas para incentivo da participação negros nos postos de comando - supervisão, gerência e quadro executivo (ETHOS, 2016).

Quanto ao teor dessas políticas, uma única empresa declarou ter metas para ampliar a presença de pessoas negras em cargos de direção e gerência. A política mais adotada pela empresa é o estabelecimento de programas de capacitação profissional com o objetivo de melhorar a qualificação de afrodescendentes para assumir postos não ocupados tradicionalmente por essas pessoas (ETHOS, 2016).

Para os gestores, a participação restrita de mulheres em ao menos um nível hierárquico nas empresas, está baseado: I- na falta de conhecimento ou experiência de sua empresa para lidar com o assunto e II- na falta de interesse das mulheres em ocupar esses cargos. Em relação à participação restrita dos afrodescendentes, os gestores acreditam que: I- os negros possuem falta de qualificação profissional para os cargos e II- não existe interesse dessas pessoas em ocupar os cargos (ETHOS, 2016).

Os resultados sobre a presença feminina refletem um cenário geral de crescimento favorável em alguns quadros. Porém, dois fatores podem constituir obstáculos para a ampliação da participação de mulheres no topo da escala hierárquica: a alta porcentagem de empresas que não possuem medidas para incentivar a inclusão de mulheres e a grande parcela de gestores cuja percepção indica ser adequada a presença feminina em cada nível hierárquico.

No que tange às ações afirmativas, houve poucas mudanças de 2010 a 2016. A maioria das empresas adotam apenas ações pontuais e não planejadas para incentivar a participação de mulheres e de afrodescendentes. E, ainda que o façam, não assumem como foco a mulher negra e, sim, a mulher sem perspectiva de raça, ou o negro, sem perspectiva de gênero. É bem menor a parcela das empresas que adotam políticas e metas com ações planejadas para a equidade de gênero e raça.

A Secretaria Especial para políticas para Mulheres (SPM) criou o programa Selo Pró-Equidade de Gênero e Raça, que tem por objetivo difundir novas estratégias que promovam a igualdade entre homens e mulheres na cultura organizacional. Este programa é de adesão voluntária e é destinado a empresas privadas ou públicas de médio e grande porte. A primeira edição aconteceu em 2005/2006 e, em 2016, teve sua sexta edição (SPM, 2016).

Este "selo" é um prêmio oferecido pelo governo às empresas que conseguem cumprir as metas estabelecidas pelo programa. A empresa deve contemplar duas demandas visando a situação das mulheres: (a) salário igual para trabalho igual e compartilhamento igualitário da massa salarial e (b) representação perceptível na escala hierárquica. O "selo" também traz benefícios para a companhia, como uma pontuação a mais nos editais de licitação governamentais (SPM, 2016).

 

Conversando com os dados

Os dados apresentados apontam, de maneira geral, para uma expansão da participação tanto da mulher quanto do afrodescendente nas empresas. Porém, quando o assunto é o quadro executivo para a mulher em geral (branca e negra), houve uma estagnação (13,7%, em 2010 e 2016) e, para o negro em geral (homem e mulher), um decréscimo (de 5,3%, em 2010, para 4,7%, em 2016). No caso da mulher negra, de 2010 a 2016, houve uma redução de 0,1% no quadro executivo, como mostrado anteriormente (ETHOS, 2016). Considerando a variação das formas de coleta dos dados, pode-se considerar também uma estagnação. Essa análise afirma a necessidade de dados e estudos que considerem a mulher negra e, portanto, adotem um recorte de raça e gênero para desvelar a real condição da negritude feminina.

A maioria das empresas que diz investir em políticas para a mulher as faz por meio de programas que auxiliam a conciliação da tripla jornada. Essa ação não atinge de maneira estrutural o problema da baixa representatividade da negritude feminina, apenas ratifica que o serviço doméstico e o cuidado de terceiros são socialmente atribuídos exclusivamente às mulheres. Apresentam-se propostas de mudanças tentando amenizar as reivindicações, mas que mantêm o status quo, uma vez que não se toca na estrutura. Políticas que incentivam a participação de mulheres ou negros são raríssimas. Das empresas entrevistadas (ETHOS, 2016), apenas 20% possui políticas que incentivam a participação das mulheres em altos escalões e 2% a participação de negros. Em suma, não existe política visando à mulher negra.

O Programa Selo Pró-Equidade de Gênero e Raça (SPM, 2016) se justifica e aparece como promissor, porém não apresenta uma evolução frente à necessidade da mulher negra que mais sofre com o afunilamento hierárquico, segregação funcional e diferença salarial. Novamente, a mulher negra é ocultada perante uma política que, no findo, beneficia apenas a mulher branca. A construção de uma consciência de uma sociedade mais justa e igualitária é marcada pelo viés econômico que constitui essas medidas de equidade.

Segundo o ETHOS (2016), a maior parte dos gestores acredita estar adequada a presença de afrodescendentes e mulheres nas empresas. Essa cena é, no mínimo, contraditória, visto que os dados comprovam o espaço minoritário ocupado por esses grupos. Essas percepções sugerem as bases sociais fortemente sexistas e racistas da nossa sociedade, que não admite a presença feminina e de afrodescendentes em altos patamares de comando. Destaca-se também que algumas empresas promovem programas de incentivo, como a oferta de palestras e cursos. Porém, apenas uma minoria apresenta programas para a efetiva ampliação, perpassando uma política de cotas que permita ratificar o lugar desses grupos nos altos escalões.

Sobre a visão daqueles gestores que percebiam a diminuta participação das mulheres e negros nas corporações e apostam na falta de capacitação dos negros e na falta de interesse das mulheres (ETHOS, 2016), confabulam-se aqui duas possibilidades: a mudança desta percepção dos gestores frente à oferta de capacitação profissional ou a perpetuação da segregação e a construção de novas justificativas para persistir. Para resistir é preciso desmontar esse argumento que culpabiliza e discrimina a mulher branca e negra, os afrodescendentes homens e mulheres, ao não considerar o contexto histórico, político e econômico, no qual o ser humano se constitui.

As ações afirmativas no âmbito da Educação Superior comprovadamente ampliaram o acesso da mulher negra à educação; mesmo não apresentando um recorte de gênero e raça conseguem atingir a negritude feminina. É importante registrar que os números avançam, mas ainda são inexpressivos diante da realidade populacional de maioria negra e parda. As mulheres negras obtêm o diploma de graduação, entretanto, poucas alcançam os altos níveis de formação, como mestrado e doutorado. As que lá chegam não encontram políticas afirmativas para incentivar suas contratações nos setores públicos ou privados. Nota-se um descompasso entre ações afirmativas no campo das políticas públicas educacionais e das políticas empresariais, de tal modo, pensar a possível relação dessas políticas traz desafios: (a) o recente advento dessas políticas, portanto, há de se acompanhar os processos de implantação e desdobramentos; (b) a escassez de pesquisas e indicadores que cruzem esses dados.

A PNAD realizada em 2016 e divulgada pelo IBGE em 2018 aponta que as mulheres estudam mais e continuam a ganhar menos. Em 2016, as mulheres dedicavam 18,1 horas semanais aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos - cerca de 73% a mais de horas do que os homens e dedicavam 10,5 horas semanais a essas atividades. Regionalmente, a maior desigualdade estava no Nordeste, onde as mulheres dedicavam 19 horas semanais ao cuidado de terceiros e a serviços do lar, ou 80% de horas a mais do que os homens. As mulheres negras são as que mais se dedicam aos cuidados de pessoas e a afazeres domésticos, com 18,6 horas semanais (IBGE, 2018). Caminha-se para a superação da desigualdade, contudo, caminha-se em passos lentos.

O fato dos quadros gerenciais e executivos, que correspondem aos melhores salários, serem ocupados por homens e não por mulheres, menos ainda por negras, faz com que o rendimento delas não se equipare ao deles. Mas por que elas não chegam nesses quadros se possuem, algumas vezes, formação para tal? Devido a um fenômeno relacionado à discriminação salarial e à segregação funcional chamado teto de vidro, caracterizado por barreiras invisíveis que impedem as mulheres negras de alcançarem posições de visibilidade e de tomada de decisões dentro do universo profissional, não obstante a luta de movimentos sociais (Beltrão & Alves 2004; Beltrão & Teixeira, 2005; Schweitzer, 2008).

Schweitzer (2008) relaciona a ocupação feminina no mercado de trabalho a uma inflexão econômica e social, e não às suas especificidades políticas e culturais. A autora aponta as Revoluções Industriais como fenômenos econômicos e sociais que reverberaram em reformas de ensino. Estas reformas, por sua vez, permitiram o acesso da mulher à formação técnica e superior, dando-lhe maiores condições de acesso ao mercado.

Atualmente, pode-se apontar a pressão dos empresários da educação para a criação de políticas públicas educacionais que ampliem o número de matrículas, como o financiamento estudantil. A iniciativa privada em educação é responsável por grande parte das matrículas, criando em torno da educação um universo lucrativo. O fenômeno da globalização e do capital internacional na educação privada são questões contemporâneas que marcam esse cenário (Barreyro & Costa, 2014, 2015).

Para alcançar a equidade das mulheres negras, muito se fala da mudança da ordem simbólica criada pelos homens na divisão de tarefas para aliviar o conflito entre a vida pessoal e profissional. Contudo o estudo de Schweitzer (2008) traz em pauta a observação do fenômeno por uma perspectiva tanto estrutural quanto conjuntural. Concordamos com o autor, pois a exclusão de mulheres negras na universidade e no mercado de trabalho é aqui apreendida como um fenômeno social, econômico e político.

Tomando a educação como um mecanismo social e político capaz de desenvolver a atividade humana no sentido de aprendizagem cognitiva, histórica e simbólica, podemos observar que as mulheres negras têm, estatisticamente, buscado inserir-se nos espaços de Ensino Superior. Considerar que na graduação o sujeito adquire conhecimentos instrumentais e processuais para o exercício de determinada profissão do ponto de vista psicológico consiste também em revelar um desenvolvimento da atividade neste período (Leontiev, 1983).

Dessa forma, pensar a inserção de mulheres negras no Ensino Superior é também refletir sobre as possibilidades do desenvolvimento psicológico desta parcela. O contrário também é verdadeiro, ou seja, a reduzida participação deste público no contexto universitário implica também numa desigual oportunidade de vivências que permitam a emancipação das potencialidades humanas.

Neste momento podemos pensar a educação como método de resistência e superação desta realidade limitadora imposta pelo capitalismo. A partir da consideração sobre os aspectos constituintes da atividade prática, aquela que media a interação entre sujeitos e vida objetal-social, torna-se viável considerar uma educação para o trabalho. Não no sentido de trabalho alienado, mas com compromissos de fortalecer as potencialidades humanas de transformação consciente do mundo, a fim de resguardar valores de sustentabilidade e solidariedade como elementos imprescindíveis para a emancipação e liberdade humanas (Tonet, 2012).

A inserção profissional a partir da conscientização e do engajamento crítico dos sujeitos torna possível a realização de escolhas mais livres frente ao mercado de trabalho. Assim, a dialética constante entre sujeito (trabalhadores) e sociedade (mercado de trabalho) poderia provir transformações mais autônomas, ou seja, ações práticas com sentidos direcionados pelos próprios sujeitos, autodeterminadas, em contraste com os modelos de ação estritamente determinados pelas exigências do mercado (Tonet, 2012).

O mundo corporativo em suas políticas afirmativas enfatiza a mulher ou o negro. Contudo, é necessário apontar a fragilidade dessa perspectiva, afinal avaliamos que o cenário atual não insere a mulher negra. Entre a mulher branca e a mulher negra, em um recorte de gênero, a última é preterida na dimensão educacional e no mercado de trabalho privado. Entre o homem negro e a mulher negra, tendo a raça como alvo, a última também luta para vencer o universo machista no mercado de trabalho. Assim, mecanismos voltados a um recorte de gênero e ao mesmo tempo de raça mostram-se relevantes. As condições de representatividade das mulheres negras tanto na Educação Superior quanto nos quadros executivos empresariais revelam a necessidade de uma reparação histórica.

Este trabalho se constitui na qualidade de um estudo preliminar, uma vez que muitas das dimensões estudadas aqui exigem maior aprofundamento, através da comparação de dados e da análise. Os dados do universo educacional e do campo empresarial revelam a existência um teto de vidro tanto nos mais altos níveis do estudo universitário quanto nas cadeiras de chefia de empresas privadas. Enfatizamos, portanto, a necessidade de um acompanhamento sistemático e contínuo nos próximos anos da relação entre a ampliação do número de mulheres negras no âmbito da educação e a conquista de espaços no mercado de trabalho, considerando como fator preponderante um conjunto de políticas afirmativas.

 

Considerações finais

Problematizar a situação da negritude feminina, enfatizando as políticas afirmativas para o enfrentamento das desigualdades, é frisar a necessidade de políticas que efetivamente atinjam as mulheres negras. As políticas voltadas para a questão do gênero não as têm alcançado de maneira prioritária, assim como políticas raciais também não o têm feito.

As políticas afirmativas são respostas do Estado ou do universo corporativo à pressão exercida tanto por movimentos sociais que buscam equidade quanto pelo universo corporativo visando o lucro. Essa política é uma conquista fulcral à edificação de uma sociedade democrática de direitos. Não obstante, o fenômeno é contraditório, uma vez que a política afirmativa esvazia a tensão e não enfrenta de maneira efetiva a desigualdade social das mulheres negras. Por vezes, incidem de forma conjuntural ao resgatar duas ou três gerações de uma população excluída socialmente para a formação de mão de obra. São necessárias políticas que incidam de maneira precisa na desconstrução das bases relacionadas à sociedade patriarcal, racista e exploradora.

Nesse sentido, as políticas afirmativas devem ser modificadas para atingir e transformar o cerne da estrutura social. A mulher negra continua sendo vista majoritariamente como mão de obra que vende sua força de trabalho para tarefas com baixa remuneração, mesmo tendo maior escolaridade que homens negros, por sua vez vítimas de racismo, mas não do sexismo, todo este cenário dificulta a emancipação da mulher negra. Em síntese, a posição das mulheres negras na sociedade não consegue ultrapassar certos limites, ou seja, avançar significativamente nos mais altos níveis tanto da Educação Superior quanto dos quadros executivos das empresas privadas.

 

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Recebido em: 01/10/2018
Aprovado em: 09/01/2019

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