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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo maio/ago. 2020

 

ARTIGOS

 

Por uma noção corporalizada e posicional de subjetividade de gênero

 

Defending an embodied and positional notion of gender subjectivity

 

Por una noción corporeizada y posicional de subjetividad de género

 

Pour une notion corporalisée et positionnelle de subjectivité de genre

 

 

Ana Urpia

Psicóloga, Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Santo Amaro, BA / anaurpia@gmail.com

 

 


RESUMO

Há, no campo dos estudos feministas, ao menos dois pontos de vista sobre gênero. No primeiro, gênero está em oposição a sexo, e refere-se a uma subjetividade e um comportamento socialmente construído, e não ao corpo em sua materialidade. No segundo, gênero faz referência a qualquer construção social, incluindo aquelas que separam corpos "femininos" de corpos "masculinos". Embora este último seja o predominante, feministas contemporâneas têm argumentado que algo importante se perde com a ênfase discursi-vo-semiótica deste ponto de vista, no qual o corpo fica subsumido em gênero: perde-se a localização material e corporal dos sujeitos. Este artigo, ao apresentar, desde o campo dos estudos feministas, algumas elaborações teóricas em torno dos processos de subjetiva-ção de gênero, propõe-se a (a) destacar o lugar que corpo e semiose assumem nesses processos e (b) indicar, como alternativa ao esvaziamento do sujeito de qualquer materialidade, uma noção corporalizada e posicional de subjetividade de gênero.

Palavras-chave: Gênero; Corpo; Semiose; Subjetividade; Posicionalidade.


ABSTRACT

There are at least two views on gender in the field offeminist studies. According to the first one, gender is opposed to sex, and refers to subjectivity and socially constructed behavior, not to the body in its materiality; as to the second one, gender refers to any social construction, including those that separate 'female' bodies from 'male' bodies. Although the latter seems predominant, contemporary feminists have argued that something important can be lost, considering the discursive-semiotic emphasis of this view, in the light of which body is subsumed in gender: the material and bodily location of the subjects is lost. The present paper, by presenting, in the view of the field offeminist studies, some theoretical elaborations around the processes of gender subjectivation, proposes to (a) highlight the status that body and semiosis assume in these processes and (b) indicate, as an alternative to the emptying of the subject of any materiality, an embodied and positional notion of gender subjectivity.

Keyword: Gender; Body; Semiosis; Subjectivity; Positionality.


RESUMEN

Existen, en el campo de los estudios feministas, al menos dos puntos de vista sobre género. El primero, género, se opone a la perspectiva de sexo, y se refiere a una subjetividad y a un comportamiento socialmente construido, y no al cuerpo en su materialidad. El segundo, género, hace referencia a cualquier construcción social, incluyendo aquellas que separan los cuerpos "femeninos" de los cuerpos "masculinos". A pesar de que este último sea el enfoque predominante, feministas contemporáneas han argumentado que algo importante se pierde con el énfasis discursivo-semiótico de este punto de vista, con el cual el cuerpo se queda subsumido en género: se pierde la localización material y corporal de los sujetos. Este artículo, al presentar, desde el campo de los estudios feministas, algunas elaboraciones teóricas en torno a los procesos de subjetivación de género, se propone el (a) destacar el lugar que el cuerpo y semiosis asumen en esos procesos y, (b) indicar, como alternativa al vaciamiento del sujeto de cualquier materialidad, una noción corporeizada y posicional de subjetividad de género.

Palabras clave: Género; Cuerpo; Semiosis; Subjetividad; Posición.


RÉSUMÉ

Il existe, dans le domaine des études feministes, au moins deux points de vue sur le genre. Dans le premier, le genre s'oppose au sexe et fait référence à la subjectivité et au comportement socialement construit, et non au corps dans sa matérialité. Dans le second, le genre fait référence à toute construction sociale, y compris celles qui séparent les corps «féminins» des corps «masculins». Bien que ce dernier soit prédominant, les féministes contemporaines soutiennent que quelque chose d'important se perd avec l'emphase discursive-sémiotique de ce point de vue, dans lequel le corps est englobé dans le genre: la localisation matérielle et corporelle des sujets est donc perdue. Cet article, en présentant, à partir du domaine des études féministes, quelques développements théoriques autour des processus de subjectivation du genre, propose (a) de mettre en évidence la place que le corps et la sémiosis occupent dans ces processus et (b) d'indiquer, au lieu de la vidange du sujet de toute matérialité, une notion incarnée et positionnelle de la subjectivité de genre.

Mots-clés: Genre; Corps; Sémiose; Subjectivité; Positionalité.


 

 

Introdução

A questão da subjetividade e da identidade de gênero esteve presente no âmbito dos estudos feministas desde as suas primeiras formulações teóricas, mesmo aquelas anteriores ao conceito de gênero. É o caso de O Segundo Sexo, obra de Simone de Beauvoir (2009, p. 361) publicada em 1949, em cujas páginas a filósofa existencialista afirma que "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher", permitindo compreender que a subjetividade feminina ou a feminilidade atribuída às mulheres não está dada pela biologia; trata-se, antes, de uma qualidade construída mediante um processo cultural que tem no corpo (considerado feminino) uma situação. Assim, em fins dos anos 1940, diz a autora: "todo mundo concorda que há fêmeas na espécie humana; constituem hoje, como outrora, mais ou menos a metade da humanidade; e contudo dizem-nos que a feminilidade 'corre perigo'; e exortam-nos: sejam mulheres, permaneçam mulheres." E completa: "Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher, cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa, ameaçada que é a feminilidade. ... Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve." (Beauvoir, 2009, pp. 13-14). Já à sua época, citando os achados das ciências biológicas e sociais, Beauvoir considerava que o "comportamento [reconhecido como] feminino", assim como o "masculino", é, em vez de um dado da biologia, uma reação secundária a uma situação [corporal] significada e valorada no contexto de uma situação sociocultural e histórica. Especialmente preocupada com a situação de desvantagem social das mulheres em relação aos homens, Beauvoir questionava: em que o fato de "sermos" mulheres teria afetado nossas vidas? Sublinhava que precisávamos analisar o alcance da palavra "ser", asseverando: "a má-fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeliano: ser, é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta" (Beauvoir, 2009, p. 25). Com estas afirmações, a autora, reconhecida hoje como uma precursora do conceito de gênero, não apenas questionava o pensamento determinista biológico e essencialista como desnaturalizava a posição secundária da mulher em relação ao homem - sua situação de subordinação não era natural, mas social.

Com a passagem da categoria mulher e dos estudos de mulheres para os estudos de gênero, que não se operou completamente, visto que os últimos não substituem os primeiros, a discussão sobre a subjetividade toma novos rumos, num contínuo movimento de construção e desconstrução, radicalizando-se. Nessa altura, entende-se que "estudos sobre a condição, a situação e a posição das mulheres não pareciam ser capazes de responder aos desafios feministas, pois tendiam a se tornar descritivos e reiterativos, reificando a situação das mulheres" (Machado, 1998, p. 107). Segundo autoras como Joan Scott (1995) e Lia Zanotta Machado (1998), a generalização do conceito de gênero no campo dos saberes disciplinares da sociologia, antropologia, história, literatura, filosofia e psicologia, que ocorrerá no Brasil por volta dos anos oitenta e noventa, trouxe consigo o compartilhamento da desnaturalização biológica das categorias homem e mulher e a compreensão da natureza simbólica ou semiótica das construções discursivas em torno das ideias de feminilidade e masculinidade. Para Machado os estudos de gênero possibilitaram uma mudança paradigmática: o distanciamento do uso da categoria mulher e um processo de radicalização da pergunta sobre as relações entre sexo e gênero, por meio da primazia de uma visão cultural [discursivo-semiótica] do social. Entendia-se que "'mulher' tornava-se uma construção discursiva que sustentava as relações opressivas de poder" (Costa, 2002, p. 69).

Como resultado dessa mudança paradigmática, operada desde a introdução do conceito de gênero, chegou-se, segundo a autora, a um consenso: "o consenso foi de que não há consenso sobre qualquer natureza do feminino e do masculino" (Machado, 1998, p. 110). De acordo com Machado, esse novo paradigma reivindica o caráter simbólico das relações de gênero, e ao revelá-las passa a desconstruí-las, apontando "tanto para diferenciação quanto para uma indiferenciação, para um número qualquer de gêneros e para a instabilidade de quaisquer caracterizações" (Machado, 1998, p. 112, grifo da autora). Neste cenário, é revisada a concepção binária de dois sexos e dois gêneros, como observa Martha Giudice Narvaz e Silvia Helena Koller (2007), e passa-se a entender, especialmente com a entrada das teóricas pós-estruturalistas e pós-modernistas, que [a subjetividade de] gênero é um efeito da linguagem ou de linguagens, produzido e gerado a partir de discursos e não determinado pela biologia. Corpos e subje-tividades de gênero são produções discursivas, os discursos habitam os corpos e fazem gênero através de práticas de significação que atuam performativamente (Butler, 2003). Nesse processo de construção subjetiva de gênero, ou melhor, de subjetivação discursiva, entretanto, há espaços não só para submissão, mas também para reinvenção, subversão, resistência do sujeito aos discursos ou ao discurso dominante, como indica Narvaz e Koller (2007), citando Judith Butler (2003).

Para Narvaz e Koller (2007), contudo, os estudos de gênero tiveram penetração difícil no campo da psicologia brasileira. As autoras sinalizam para o fato de que a posição periférica da ciência psicológica em revistas feministas de grande expressão no país como Revista Estudos Feministas e a Cadernos Pagu, bem como em bancos de teses e dissertações de importantes universidades, não deve ser desprezada e nem interpretada como se o campo das pesquisas psicológicas fosse neutro em relação a gênero. As autoras consideram que os discursos de gênero a partir de uma perspectiva feminista ainda têm estatuto marginal na comunidade acadêmica brasileira e, inspiradas em Bordo (conforme citado por Narvaz & Koller, 2007, p. 221), questionam: se "as vozes da diferença não têm permissão para falar", quais os discursos de gênero que circulam na psicologia contemporânea? Embora consideremos essa uma discussão fundamental para o avanço das discussões de gênero no campo da formação e da pesquisa em psicologia, não é do escopo desse artigo o seu aprofundamento. Retornaremos, assim, aos estudos de gênero, especialmente naquilo que estes nos ajudam a compreender os processos de subjetivação de gênero tão bem como a construção do sujeito político do feminismo.

Para Linda Nicholson (2000), há, no campo dos estudos feministas, dois pontos de vista sobre gênero. No primeiro, gênero está em oposição a sexo, e refere-se a uma subjetividade e comportamento socialmente construído, e não ao corpo. No segundo, gênero faz referência a qualquer construção social que tenha a ver com a distinção masculino/feminino, incluindo aquelas que separam corpos "femininos" de corpos "masculinos". Embora este último ponto de vista tenha predominado no discurso feminista, algumas teóricas contemporâneas, como Toril Moi (1999) e Linda Alcoff (2006), têm questionado sobretudo as posições de inspiração pós-estruturalista, argumentando que algo importante se perde com a ênfase discursivo-semiótica deste ponto de vista, no qual o corpo fica subsumido em gênero: perde-se a localização material e corporal dos sujeitos. Este artigo, ao apresentar, desde o campo dos estudos feministas, algumas elaborações teóricas em torno dos processos de subjetivação de gênero, propõe-se (a) destacar o lugar que corpo e semiose assumem nesses processos e (b) indicar, como alternativa aos essencialismos biológico e cultural1, bem quanto aos riscos de esvaziamento do sujeito de qualquer materialidade, uma noção corporalizada e posicional de subjetividade e de identidade de gênero.

Ao nos remeter a uma subjetividade corporalizada e posicional, buscamos sublinhar, como fazem autoras como Butler (2003), Moi (1999), Alcoff (2006) e Bell Hooks (2015), dentre outras que, em nossa cultura, o corpo sexuado, assim como a cor da pele e outras traços fenotípicos, temporais etc., faz diferença na definição do estatuto social e político do sujeito, e, portanto, na definição do lugar ou posição que estes vão ocupar no mundo. Esse corpo está tão sujeito às leis da natureza quanto às práticas e tecnologias de significação/produção subjetivas. O corpo sexuado se constituiría como uma situação (localizada em outras situações socio-históricas e culturais) na qual se funda a experiência vivida (subjetiva).

Acompanhamos aqui Terry Eagleton (2000) quando afirma que "não nascemos seres culturais, nem seres naturais autossuficientes, mas criaturas cuja inescapável natureza física é tal que a cultura é uma condição de sobrevivência" (p. 129). Somos natureza e cultura, esta última "é o 'suplemento' que preenche um vazio no cerne da nossa natureza e as nossas necessidades materiais são depois reconduzidas nos seus termos" (p. 129) e não reduzidas aos seus termos. É preciso ter cuidado para não resumir o sujeito corporalizado à sua natureza semiótica ou discursiva, assumindo um reducio-nismo cultural, que é tão perigoso quanto o reducionismo biológico. Como sinaliza Alcoff (2006), nossas práticas culturais ocorrem dentro de um mundo material e por meio de uma experiência corporalizada cuja "visibilidade" tem ressonância em nossas relações intersubjetivas, bem como em nossos processos de subjetivação.

Referindo-se a esses processos de subjetivação, Alcoff faz uma distinção conceitual que, embora não seja objetivo desse artigo desenvolver em profundidade, vale a pena recuperar, visto que ambos os conceitos farão parte de nossa discussão. Trata-se da diferenciação entre os conceitos de subjetividade e de identidade. Alcoff argumenta que todos somos posicionados socialmente e, portanto, temos identidades [posições] sociais a partir das quais somos reconhecidos em nossa cultura e a partir das quais experimentamos e interpretamos o mundo. Esta identidade social ou posicionalidade pode ser também o ponto de partida a partir do qual podemos empreender a luta política.

A identidade social tem relação direta com nossa localização num campo de disputa de poder. Em nossa cultura, o corpo, em sua visibilidade, é uma das principais referências na definição da identidade. Mas há, para além desta "identidade visível" e posicional, uma subjetividade vivida (não-essencial), que nem sempre está perfeitamente mapeada em nossa identidade socialmente percebida. Através do termo subjetividade, Alcoff (2006) faz referência a quem entendemos ser, como vivenciamos a nós mesmos, e à gama de atividades reflexivas que podem ser incluídas sob a rubrica de "agência". Como ela destaca, esses termos - identidade social e subjetividade vivida - são geralmente vistos, respectivamente, como correspondentes aos aspectos "exteriores" e "interiores" dos sujeitos, sem que se observe a interação constante e até mesmo as relações mutuamente constitutivas entre cada uma dessas dimensões do eu.

Alcoff reconhece que é potencialmente enganosa a separação entre "mundo externo" e "mundo interno", identidade social e subjetividade vivida, mas considera ser necessária, na medida em que persiste a necessidade de caracterizar a maneira pela qual uma pessoa consegue separar-se de sua interpelação pública - sua identidade social -, como ocorre frequentemente com aqueles sujeitos que têm suas identidades públicas marginalizadas, não raro em função de marcas corporais, de sua visibilidade, e que precisam resistir à opressão, mantendo uma distância entre o modo como são vistos pelos outros e o modo como se veem.

Alcoff considera que o problema com o uso de termos como "interior/exterior" para explicitar as relações entre subjetividade vivida e identidade social relaciona-se ao perigo de invocar a tradição de longa data de pensar a noção de self na filosofia ocidental. Nesta tendeu-se a postular a interioridade como separada da exterioridade e não constituída por esta última. A autora adverte que uma descrição mais plausível do self, ou com valor mais explicativo e coerente com a experiência cotidiana, sustentaria que nem a identidade social nem a subjetividade vivida são entidades separáveis, fundamentalmente distintas ou inteiramente independentes uma da outra. Uma das tarefas da análise, então, assevera ela, deveria ser explorar as interrelações entre a identidade social e a subjetividade vivida ou encarnada, como preferimos, fazendo referência ao fato de que o corpo é uma importante dimensão não somente na definição da identidade, como da experiência vivida subjetivamente. O corpo é mais que o meio através do qual nossa subjetividade se expressa e se realiza no mundo; é também e, talvez, sobretudo, o meio através do qual ela é produzida (Butler, 2003). Nas palavras de Butler, são os atos, os gestos, o estilo corporal ou de carne, como ela prefere usar, que fabricam o efeito de um núcleo ou substância interna à qual chamamos identidade ou subjetividade de gênero. Para a autora, essa produção é feita na superfície do corpo, proposição que irá se distinguir daquela formulada por Moi (1999), para quem a subjetividade constrói-se desde o corpo como situação e não como superfície.

 

A controversa discussão acerca da distinção sexo/gênero

A distinção de língua inglesa dos termos sexo e gênero foi desenvolvida pela primeira vez nos anos 1960 por psiquiatras e outros profissionais ligados à área da saúde que trabalhavam com casos de intersexualidade e de transexualidade. Foi o psicanalista norte-americano Robert Stoller quem primeiro usou o termo identidade de gênero em um congresso internacional em Estocolmo. O termo gênero fazia referência ao sentimento que cada indivíduo tem de que é feminino ou masculino, e de que pertence a este ou àquele grupo de referência (Moi, 1999; Oakley, 1972), e diferenciava-se de sexo, considerado como biológico e passível de alteração através de intervenção cirúrgica.

Embora a distinção, do ponto de vista conceitual, não tenha sido inaugurada no contexto dos estudos feministas, é preciso reconhecer que foi neste último que ganhou consistência teórico-analítica e radicalidade política no enfrentamento de situações concretas que afetavam e continuam afetando negativamente a vida das mulheres, distanciando-se muito dessas primeiras formulações no campo biomédico e até questionando-as em sua necessidade de tornar socialmente congruentes sexo e gênero. Como notam autoras como Henrietta Moore (1997), a distinção entre sexo (biológico) e gênero (construção cultural) mostrou-se absolutamente crucial para o desenvolvimento da teoria e da militância feminista, "porque possibilitou mostrar que as relações entre homens e mulheres e os significados simbólicos associados às categorias 'mulher' e 'homem' são socialmente construídos e não podem ser considerados naturais, fixos ou predeterminados" (Moore, 1997, p. 4).

Uma das primeiras tentativas de elaboração desse conceito no interior dos estudos feministas pode ser conferida no livro Sex, Gender & Society, de Ann Oakley. Nesse livro, a socióloga (1972) argumenta que é necessário reformular nosso pensamento acerca dos papéis femininos e masculinos, admitindo a distinção entre sexo e gênero. Segundo essa autora, sexo é um termo que faz referência ao biológico, gênero um termo que faz referência ao psicológico e ao cultural. Ela afirma que o senso comum lê esses termos como apenas duas formas de olhar para a mesma divisão (distinção), de forma que se costuma entender que o sexo feminino e o sexo masculino corresponderíam, respectivamente, ao gênero feminino e ao gênero masculino. Nota-se, porém, à luz dos estudos nos campos da medicina e da antropologia, que não é bem assim. Ser [ou sentir-se, reconhecer-se e ser reconhecido] um homem ou uma mulher, um menino ou uma menina, seria mais o resultado de um aprendizado cultural, que do fato de o indivíduo ser possuidor/a de um dado genital particular.

"Foi, em parte, para avaliar e combater os argumentos do determinismo biológico que as antropólogas feministas [também as sociólogas, historiadoras, psicólogas etc.] nos anos 70 salientaram a distinção entre sexo biológico e gênero" (Moore, 1997, p. 2). Não obstante esse esforço, diz a antropóloga Moore (p. 2), "a relação real entre sexo biológico e construção cultural do gênero não foi devidamente examinada, visto que foi assumida como uma relação relativamente não-problemática." A antropóloga feminista faz referência ao fato de que, embora se reconheça que as construções culturais de gênero não são determinadas pelas diferenças sexuais "biológicas", existe uma tendência geral a assumir as categorias e os sentidos de gênero como artifícios culturais destinados a gerir o fato "óbvio" das diferenças sexuais binárias. Moore argumenta que duas observações precisam ser feitas quanto ao tratamento que vem sendo dado à relação entre sexo e gênero. A primeira diz respeito à impossibilidade de se continuar pensando a distinção radical entre sexo (biológico) e gênero (construção cultural). Essa distinção, como afirma a autora, citando as obras de Shelly Errington (1990) e de Jane Yanagisako e Sylvia Collier (1987), não nos permite compreender as múltiplas formas nas quais a cultura interage com a biologia. A segunda diz respeito ao fato de que estudos de gênero e estudos de parentesco têm assumido a diferença entre homens e mulheres como natural, dada na biologia, portanto, pré-social. Para Moore (1997), com base nesse pressuposto, não se observa que a diferença sexual em si é também uma construção social, produto do discurso biomédico da cultura ocidental. Não se entende que, fora deste discurso, sexo não existe. A noção de sexo, assim como o conceito de gênero, é uma construção cultural, jamais um fato pré-social.

Para Nicholson, podemos distinguir dois usos distintos no que tange ao conceito de gênero. No primeiro, gênero é usado em oposição ao sexo, para descrever o que é socialmente construído, diferenciando-se, assim, de sexo, lido como biologicamente dado. "Aqui", diz a autora, "gênero é tipicamente pensado como referência a personalidade e comportamento, não ao corpo; gênero e sexo são portanto compreendidos como distintos." (Nicholson, 2000, p. 9). No segundo, complementa Nicholson, "'gênero' tem sido cada vez mais usado como referência a qualquer construção social que tenha a ver com a distinção masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos 'femininos' de corpos 'masculinos'" (p. 9). Nesse último uso, o próprio corpo é visto como atravessado pela interpretação/significação social, de forma que aqui sexo não é independente de gênero. Nesse sentido, sexo passa a ser subsumido em gênero. Sexo passa a ser gênero desde o início, como irá argumentar Butler (2003) em Problemas de gênero.

 

Corpo, sexo e gênero na perspectiva de Judith Butler

Butler faz afirmações que muito se aproximam dos argumentos levantados por Moore (1997). Em Butler, fica claro que sexo é gênero. Diz ela: "se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como interpretação cultural do sexo" (Butler, 2003, p. 25). Para Butler, gênero é uma performance ou um estilo corporal com consequências claramente punitivas. Ela considera ainda que os gêneros distintos e polarizados são parte do que "humaniza" os indivíduos e que habitualmente punimos os que não desempenham "coerentemente" o "seu gênero", ou seja, aqueles cuja performance não estabelece a esperada congruência entre sexo-gênero-desejo. De acordo com Butler, há "gêneros 'inteligíveis' e não-inteligíveis. Os primeiros são aqueles que instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo" (p. 38). Ela enfatiza, porém, que a coerência e continuidade da "pessoa" não corresponderia a qualidades lógicas de sua condição de pessoa, mas a normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas. Em sendo a "identidade da pessoa" assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a autora considera que a própria "noção de pessoa deveria ser questionada, pela emergência de seres cujo gênero é 'incoerente' ou 'descontínuo', os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero que dão inteligibilidade cultural e pelas quais as pessoas são definidas" (Butler, 2003, p. 38).

O sexo, de acordo com a autora, não poderia ser qualificado como uma facticidade anatômica pré-discursiva, na medida em que é/será sempre apresentado como tendo sido gênero desde o começo. Mais que isso, como um gênero constituído por um conjunto de normas regulatórias que define como culturalmente inteligíveis apenas os corpos que atendem à lógica binária e à ordem compulsória da hete-rossexualidade. Sua formulação sobre o conceito de gênero em Problemas de Gênero é, segundo Sérgio Carrara (2010), o resultado da convergência entre as perspectivas feministas, os estudos queer e as teorias pós-estruturalistas. Deste modo, em Butler, o corpo, inserido como está em um campo discursivo-regu-latório que lhe é anterior, não é o meio através do qual o sujeito se expressa, antes, é o meio através do qual a própria subjetividade (de gênero) é produzida.

A subjetivação de gênero não se dá exatamente por meio do corpo, mas através de "práticas significantes" cujo resultado intermediário deve ser uma performance corporal mantenedora da "coerência" entre sexo-gênero-desejo, e cujo produto final é, segundo a autora, uma ilusão de substância. Essas práticas significantes teriam no corpo um dispositivo privilegiado por meio do qual o poder atua. Butler considera que as normas de gênero, que em nossa cultura envolvem tanto o binarismo de gênero quanto a heterossexualidade como compulsória, não são internalizadas, mas incorporadas, ou seja, são inscritas no corpo e, por meio dele, manifestam-se como essência do "eu" deste corpo. O corpo, em Butler (2003), "não é um 'ser', mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural" (p. 198). Butler considera que são os atos, gestos e desejos dos sujeitos [suaperformance] que produzem o efeito de um núcleo, de uma substância interna a que chamamos subjetividade ou, mais precisamente, identidade. "Esses atos, gestos e atuações", diz a autora, "entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos" (Butler, 2003, p. 194).

Para Moi, na tentativa de rejeitar o pensamento determinista biológico e o pensamento essencia-lista, Butler nega o corpo em sua materialidade, assumindo que ele, tal como o sujeito, é um efeito do poder. Moi (1999) reconhece que Butler (2003) produziu um dos mais importantes trabalhos sobre as noções de sexo e gênero dos anos 1990, com implicações relevantes para a política LGBTQ e também para a teoria e a política feminista, mas compreende como reducionista afirmar que sexo é tão discursivo quanto gênero. O corpo em Butler é descrito como uma superfície politicamente regulada e os corpos marcados por gênero, "estilos de carne" ou um estilo corporal, um "ato" que tanto é intencional como performativo (Butler, 2003, pp. 198-199). Fazendo um retorno a O Segundo sexo, de Beauvoir, Moi2 (1999), afirma: "Para Beauvoir, por outro lado, o corpo é uma situação, e, como tal, uma parte crucial da experiência vivida" (p. 74).

 

Toril Moi e o retorno às noções de "corpo como situação" e "experiência vivida" de Beauvoir

Para Moi (1999), embora as teóricas feministas pós-estruturalistas tenham tentado mudar radicalmente nosso entendimento de sexo e gênero, retiveram esses conceitos como pontos de partida para suas teorias da subjetividade, da identidade e do corpo sexualmente diferenciado. Para a autora, entretanto, a distinção sexo e gênero é simplesmente irrelevante para o propósito de elaborar um entendimento concreto do que é ser uma mulher em uma dada sociedade, assim como não é útil para a elaboração de uma boa teoria do corpo e da subjetividade. Moi vê na obra de Beauvoir (2009), e particularmente em sua afirmação de que o corpo é uma situação, não somente uma contribuição original para a teoria feminista como uma alternativa sofisticada para as teorias contemporâneas de sexo e gênero. Moi adverte que é preciso estar atento, porém, para não reduzir o pensamento de Beauvoir à ideia familiar de que o corpo está em uma situação. "Para Beauvoir, o corpo [sexuado] percebido como uma situação está profundamente relacionado com a subjetividade das mulheres (ou dos homens)" (Moi, 1999, p. 60). Em Beauvoir, a transcendência humana - liberdade - é sempre encarnada. Em sua perspectiva, o corpo é uma situação e está localizado em outras situações.

Desde as formulações de Beauvoir acerca do corpo, afirma Moi, "meu corpo é uma situação, mas é um tipo fundamental de situação, na qual se funda minha experiência de mim mesma e do mundo" (p. 63). Nesse sentido, o conceito de "corpo como situação" está estreitamente relacionado com o de "experiência vivida", um conceito central do existencialismo. A situação não é nem coextensiva com a experiência vivida nem redutível a esta última. A experiência vivida designa o todo da subjetividade de uma pessoa, o termo descreve a forma através da qual um sujeito individual constrói sentido de sua situação e de suas ações. Minha experiência vivida (subjetividade) não é determinada pelas várias situações das quais faço parte nem de meu corpo, pois o conceito envolve minha liberdade. Nesse sentido é que a liberdade em Beauvoir (2009) deve ser entendida como encarnada.

O corpo, então, não carrega seu significado sobre sua superfície, ele é uma situação que tem implicações para a minha vida subjetiva ou minha experiência vivida. Nas palavras de Moi, "minha situação não está fora de mim, não está relacionada a mim como um objeto para uma situação, é a síntese de facticidade com liberdade" (p. 65). Afirmar que o corpo é uma situação significa dizer, então, que o significado do corpo de uma mulher ou, simplesmente, de uma mulher, está vinculado à forma como ela usa sua liberdade. Para autoras como Beauvoir (conforme citada por Moi, 1999), "nossa liberdade não é absoluta, mas situada" (pp. 65-66). Considerado como situação, o corpo compreende tanto os aspectos objetivos como subjetivos da experiência.

De acordo com Moi, "para Beauvoir e Merleau-Ponty, o corpo humano é ambíguo, está sujeito, a uma só vez, às leis da natureza e à produção humana de significado, e nunca pode ser reduzido a nenhum desses elementos" (p. 69, grifo da autora). Em Beauvoir, o corpo não é suficiente para definir o que uma mulher é, o que significa dizer que ela rejeita o determinismo biológico de algumas teorias, mas ao afirmar que "não é suficiente", ela também rejeita as construções puramente idealistas da mulher. Assim, podemos afirmar que, para Beauvoir (2009), o corpo sexuado (feminino) é parte necessária de sua definição como mulher, uma mulher define-se a si mesma através da forma como ela vive sua situação corporal no mundo; mais precisamente, através do que ela faz com aquilo que o mundo faz dela (Moi, 1999). Nesse sentido, pode-se afirmar que, desde Beauvoir, não é a diferença percebida entre os corpos, em si mesma, que é definidora de desvantagens ou vantagens sociais, mas as práticas de significação que se efetuam com base e através de processos diferenciadores. Assim é que Moi considera, a partir das argumentações desta autora (2009) sobre corpo como situação e experiência vivida:

(a) fatos biológicos só ganham sentido quando situados dentro de contextos econômicos, sociais e psicológicos; (b) fatos biológicos são, contudo, importantes elementos na definição da situação da mulher; (c) fatos biológicos sozinhos não podem definir uma mulher; (d) o corpo isoladamente não define uma mulher, ao contrário, ela precisa fazer isso por ela mesma, tornando isto uma "realidade vivida", um processo que é alcançado com a interação socialmente situada da mulher, consciente de suas escolhas e ações; e (e) a biologia não pode explicar a subordinação das mulheres. (Moi, 1999, p. 71)

Moi compreende que, quando Beauvoir escreve: "ninguém nasce mulher, torna-se mulher", não está opondo sexo a gênero, ou biologia a construção social. Considera que qualquer um que queira fazer uma leitura de Beauvoir (2009) através da distinção sexo/gênero acabará por se equivocar quanto às formulações desta filósofa feminista, visto que, ao considerar o corpo como situação, ela está recusando a separação exclusivista entre componentes objetivo e subjetivo. Segundo Moi, em Beauvoir, a mulher que eu me tornarei é mais que gênero, ela é um ser humano encarnado, porém, não pode ser reduzida à sua diferença sexual, seja esta uma diferença natural ou cultural. Em sua perspectiva, desde Beauvoir (2009) poderiamos afirmar que "a questão [a ser formulada pelo feminismo] não é como uma pessoa de qualquer sexo se torna uma mulher, mas com quais valores, normas e demandas o ser humano feminino - precisamente porque é [considerado] feminino - defronta-se em seu encontro com o Outro (sociedade)" (Moi, 1999, p. 79). Estudos sobre a construção da subjetividade de gênero de pessoas transgênero também não nos parecem poder escapar disso, visto que todos nós, seres humanos, nos constituimos a partir do diálogo corporalmente situado com o outro social, que nunca interpela um sujeito desencarnado, interpela um sujeito encarnado, e quando o faz, utiliza-se dos recursos semióticos disponiveis em sua cultura pessoal e coletiva (Valsiner, 2012), de modo que ninguém se torna "aquilo que é", fora de seu corpo e de seu campo semiótico.

 

Teresa de Lauretis: Gênero como construção e como aparato semiótico

Conforme entende Teresa de Lauretis (1984), a relação entre mulheres como sujeitos históricos e a noção de mulher como construida ou representada pelos discursos dominantes não é nem uma relação direta de identidade, uma correspondência um-a-um, nem uma relação de simples implicação. O grande desafio da autora é formular uma concepção da subjetividade que, ao tentar corrigir os erros das noções modernas de subjetividade, não acabe por se envolver nas armadilhas dos discursos essencialistas de gênero (Alcoff, 1988). Lauretis (1984) procura deixar claro que, como todas as outras relações expressas na linguagem, a relação entre o construto mulher e as mulheres reais é uma relação arbitrária e simbólica, construida com base no campo semiótico elaborado pela cultura em sua diversidade dinâmica.

Considerando que as mulheres são seres históricos de relações reais, adverte que estas não podem ser definidas fora destas mesmas formações discursivas que têm instituido a ficção mulher. Assim, Teresa de Lauretis (1994), em Tecnologias de Gênero, propõe uma possível alternativa a essa impossibilidade da mulher de definir-se fora do discurso de gênero dominante em sua cultura: um movimento de "vaivém entre a representação do gênero (dentro de seu referencial androcêntrico) e o que essa representação exclui, ou, mais exatamente, torna irrepresentável" (p. 238). Ela sinaliza que habitar os dois tipos de espaço ao mesmo tempo é a própria "condição do feminismo aqui e agora: a tensão de uma dupla força em direções contrárias - a negatividade de sua teoria, e a positividade afirmativa de sua política" (p. 238).

Lauretis (1994), que não se detém na controversa distinção entre sexo e gênero, preferindo usar gênero em quase todas as situações, considera que este último deve ser pensado, a um só tempo, como construção cultural e aparato semiótico. Gênero é, segundo ela, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio etc.) e, portanto, posições com mais ou menos poder, a indivíduos no interior da sociedade. "Gênero não é sexo", afirma Lauretis, "e sim a representação de cada indivíduo em termos de uma relação social preexistente ao próprio indivíduo e [em geral] predicada sobre a oposição 'conceitual' e rígida (estrutural) dos dois sexos biológicos" (p. 211).

Gênero é, mais precisamente, "um sistema de representação que produz as diferenças sexuais" (Lauretis, 1994, p. 214) através de um conjunto de práticas de linguagem [incluindo o cinema e outras formas de arte] e não da linguagem. Ele transforma sexo em subjetividade e identidade de gênero, e assim justifica a desigualdade social com base nos sexos construídos como diferentes e assimétricos.

Segundo Lauretis, o sistema sexo-gênero, ou gênero, como ela prefere, precisa de um sujeito, um indivíduo concreto sobre o qual agir. Afirma que a representação social do gênero afeta a construção subjetiva e que a representação subjetiva, a autorrepresentação do sujeito, afeta a sua construção social, apontando, a um só tempo, para um agenciamento ao nível da vida subjetiva e para os efeitos discursivos-produtivos de gênero. Em Alice doesn ', Lauretis (1984) afirma que o processo de autorrepresentação que permite a alguém reconhecer-se como mulher, ou seja, que en-gendra um sujeito como feminino, é a experiência. Experiência é o

processo através do qual a subjetividade é construída para todos os seres humanos. Através desse processo, uma pessoa posiciona-se ou é posicionada na realidade social, e, então, percebe e compreende como subjetiva (referindo-se a, originando em si mesmo) aquelas relações - material, econômica e interpessoal - as quais são um fato social e, em uma perspectiva mais ampla, um fato histórico. (Lauretis, 1984, p. 159)

Este processo, entendido como contínuo e infindável, permite-nos perceber que a subjetividade não pode ser compreendida como um ponto de partida ou ponto de chegada a partir do qual uma pessoa interage com o mundo, mas um efeito dessas interações. Como sublinha Linda Alcoff (1995), a principal tese de Lauretis (1984) é que a subjetividade, isto é, o que se "percebe e se compreende como subjetivo", é construída através de um processo contínuo, baseado na interação com o mundo em sua semiose, que a autora (1984) define como experiência. A subjetividade, na acepção de Lauretis (p. 159) "é produzida não por ideias externas, valores ou causas materiais, mas pelo envolvimento pessoal e subjetivo em práticas, discursos e instituições que dão significado (valor, significado e afeto) aos acontecimentos do mundo." Segundo Lauretis (1984), esse é o processo - experiência - através do qual a subjetividade é gendrada3.

Lauretis nota que os esforços feministas têm sido muito frequentemente apanhados na armadilha estabelecida pelo seguinte paradoxo: ou as feministas assumem que "o sujeito", o "homem", é um termo genérico, e como tal pode designar igualmente os sujeitos femininos e masculinos, o que resulta no apagamento da sexualidade e da diferença sexual na produção da subjetividade, ou recorrem a uma noção oposicionista de sujeito "feminino" definido pelo silêncio, pela negatividade, por uma sexualidade natural ou por uma proximidade com uma natureza não comprometida com a cultura patriarcal.

Alcoff (1995) considera que nesse ponto Lauretis (1984) estaria explicitando o dilema entre um pós-estruturalismo sem gênero e o sujeito essencializado do feminismo cultural, e adverte: quando retiramos da subjetividade suas marcas de gênero, estamos comprometidos com um sujeito genérico e colocando em questão o feminismo; por outro lado, quando definimos o sujeito em termos de gênero, articulando a subjetividade feminina num espaço claramente distinto da subjetividade masculina, nos envolvemos numa dicotomia de oposição que lutamos para superar, e que é controlada por um discurso misógino.

Lauretis argumenta que a subjetividade não é determinada pela biologia, nem pela "intencionalidade livre, racional" dos sujeitos, mas pela experiência. Utilizando-se da noção de hábitos de Pierce4, entendida como efeitos de significado produzidos via semiose, a autora vê a experiência como um complexo de hábitos que resultam da interação semiótica entre "mundo externo" e "mundo interno", ou seja, do engajamento de um eu ou sujeito na realidade social. Para a autora, "ambos, sujeito e realidade social são entendidos como entidades de natureza semiótica, como 'signos', e a semiose nomeia o processo de efeitos reciprocamente constitutivos" (Lauretis, 1984, p. 182). Com base nessas argumentações, Lauretis nos leva a considerar e a analisar "aquele complexo de hábitos, disposições, associações e percepções, que 'definem' e elaboram um ser como feminino". "O sujeito", diz a autora (p. 183), "é o lugar em que, o corpo em quem o efeito de significado do signo se instala e é realizado" Lauretis considera que o significado do signo não poderia ter efeito, quer dizer, o signo não poderia ser signo, sem a existência ou a experiência de uma prática social em que o sujeito está corporalmente envolvido no trabalho de semiose. Semiose é "um trabalho [de construção de sentido] que produz efeitos de significado, percepção, autoimagens e posições subjetivas para todos os envolvidos ...um processo semiótico em que os sujeitos estão continuamente engajados, representados e inscritos na ideologia" (Lauretis, 1984, p. 37). Para Lauretis, a relevância teórica da noção de semiose para o feminismo está, dentre outras coisas, no fato de que a semiose indica a mútua sobredeterminação do significado, percepção e experiência, um nexo complexo de efeitos reciprocamente constitutivos entre sujeito e realidade social, que, no sujeito, provoca uma modificação contínua da consciência e essa modificação da consciência seria, justamente, a condição da mudança.

 

Da subjetividade corporalizada à identidade como posicionalidade

Uma análise do material apresentado até aqui nos permite concluir que há uma íntima relação entre corpo e práticas de significação (semiose) no processo produtivo que tem como resultado a construção das subjetividades de gênero. Pode-se afirmar, com base nas elaborações teóricas acerca dos processos de subjetivação de gênero dessas diferentes autoras feministas, que o corpo sexuado, ou o sexo, como prefere Grosz (2000), "não é apenas uma variação contingente, isolada ou menor de uma humanidade subjacente. Ele não é trivial para o estatuto social e político de cada um do mesmo modo que se possa pensar que o é a cor dos olhos" (p. 83). Ao contrário, "[o sexo] é a íntegra do estatuto e da posição social do sujeito" (Grosz, 2000, p. 83). Significa dizer que o corpo sexuado - mas não somente, também racializado, etarizado, patologizado - através de processos e práticas de significação, participa produtivamente da subjetivação, e faz diferença em todas as funções - biológicas, sociais, culturais, posicionando diferentemente os sujeitos no mundo. Para Errington, a lista de nossos atributos físicos, interpretados culturalmente como signos, é infinita, e culturas particulares constroem sentido de uns, ignoram outros, e inventam outros. "O sentido atribuído aos corpos está longe de ser universal", diz Errington (1990, p. 21).

Essa compreensão ganha amplo desenvolvimento no campo dos estudos feministas, em que a discussão sobre o caráter de construção dos corpos e dos gêneros radicaliza-se, através do privilegiamento do paradigma da linguística e da primazia de uma visão cultural do social (Machado, 1998). No contexto dessas elaborações teóricas de forte inspiração pós-estruturalista, "enquanto produção discursiva, o gênero não apenas descreve construções sobre os corpos materiais, naturais e preexistentes. Corpos e subjetividades também são produções discursivas, os discursos se acomodam em corpos (Narvaz & Koller, 2007), que reiteram essas produções discursivas através de atos performativos (Butler, 2003).

Para autoras como Linda Alcoff (1995, 2006), a apropriação feminista do pós-estruturalismo merece algumas considerações, pois se esta forneceu insights sugestivos acerca da produção da subjetividade de gênero e apresentou considerações indispensáveis à crítica de um feminismo que reinvoca o mecanismo de opressão contra o qual este pretende lutar; ao adotar o nominalismo, também criou sérios problemas para o feminismo. Alcoff (1995) chama de nominalismo "a ideia de que a categoria mulher é uma ficção e de que os esforços feministas deveriam estar direcionados para desmantelar esta ficção" (p. 10). Para Linda Alcoff (1995, 2006) e para Moi (1999), há que se reconhecer o mérito das perspectivas de inspiração pós-estruturalista tanto para a compreensão dos processos de subjetivação quanto da luta política, mas também as suas limitações. Segundo elas, do ponto de vista da subjetividade, perde-se algo com esta ênfase discursiva: perde-se a materialidade do corpo.

Na perspectiva de Moi, em Butler, por exemplo, a materialidade do corpo é um problema situado fora de qualquer situação, uma suposição que a faz tratar o corpo como objeto epistemológico abstrato -o que quer dizer que ela trata isso da mesma forma que um epistemologista tradicional trata o seu objeto tradicional. O seu objeto de interesse é a materialidade em sua mais pura e geral forma e não em algo específico sobre um corpo em particular. Segundo a autora, Butler (2003) perde de vista o corpo que seu próprio trabalho tenta apresentar: o corpo concreto, histórico, que ama, sofre e morre. De qualquer modo, Moi (1999) entende que há em Corpos que importam, uma tentativa de Butler em explicar a materialidade do corpo. Uma tentativa, todavia, que merece alguma atenção, pois parece apoiar-se em um dos mais generalizados e equivocados argumentos pós-estruturalistas: o clichê sobre a materialidade do significado. Na obra anteriormente citada, Butler tenta, diz a autora, mostrar que não há razão para se preocupar com o fato de que o construtivismo linguístico tenha tornado o corpo um efeito, porque a linguagem através da qual falamos do corpo é material. A argumentação dela, na interpretação de Moi, gira em torno da não-oposição entre corpo e linguagem, que para Moi (1999) é implausível. Ela considera que Butler parece ter sido conduzida erroneamente pela suposição de que a palavra "materialidade" significa a mesma coisa na relação com a linguagem e na relação com o corpo ou qualquer outro fenômeno material.

Em entrevista a Baukje Prins e Irene Costera Meijer (2002), no entanto, Butler, referindo-se ao seu próprio trabalho, afirma que ele busca mostrar por que o debate essencialismo/construtivismo tropeça em um paradoxo que não é facilmente ou, na verdade, não é jamais superado: o fato de que "assim como nenhuma materialidade anterior está acessível a não ser através do discurso, também o discurso não consegue captar aquela materialidade anterior" (Prins & Meijer, 2002, p. 158). A autora explica que ao "argumentar que o corpo é um referente evasivo não equivale a dizer que ele é apenas e sempre construído. De certa forma, significa exatamente argumentar que há um limite à construtividade" (Prins & Meijer, 2002, p. 158).

Alcoff (1995) faz a Tereza de Lauretis uma crítica muito semelhante à que Moi (1999) faz a Butler no que diz respeito à materialidade do corpo. Referindo-se à formulação de subjetividade feita por Lauretis (1984), em que o indivíduo tem agência - e agência consiste em ser capaz de interpretação, significação, semiose, de modo que sua subjetividade e identidade de gênero não é pré-configurada por uma ordem simbólica imutável, ou produzida por estruturas fixas de significado -, o sujeito é ativo em sua subjetivação, mas é também posicionado dentro de configurações discursivas particulares. Tal perspectiva está de acordo com a perspectiva hermenêutica adotada por Alcoff (2006), mas falta-lhe materialidade, diz esta última autora. Ela considera que Lauretis (1984) enfatiza significados, discursos e conhecimentos culturais, mas não a localização material e corporal dos sujeitos. Enfatiza que, ao mover-se para longe das associações ideológicas tradicionais da mulher como natureza e corpo, Lauretis formula uma noção de experiência somente na relação com significados e discursos, não em relação a experiências corporalizadas únicas de mulheres ou à localização social material e corporalizada que a mulher ocupa. Argumenta que a linguagem não é o único recurso ou lócus de significado, que hábitos e práticas são cruciais para a construção de significados, mas hábitos e práticas são o que o corpo faz, o que ele experiencia, sublinha Alcoff criticando a autora. Alcoff (2006) afirma que trazer de volta a materialidade permitiría corrigir a tendência de Lauretis a superestimar a agência dos sujeitos. Apesar disso, considera que a autora nos permite pensar a identidade sem fixá-la. A subjetividade emeige de uma experiência histórica. Entende que sua formulação teórica em torno da subjetividade nos permite compreender que gênero não é um ponto de partida a partir do qual construímos sentido de um dado ser que já está ali pronto para ser descoberto, mas uma posição ou constructo, produzido através de uma matriz de hábitos, práticas e discursos (Alcoff, 2006).

Com base nessas considerações, Alcoff procura, então, através do conceito de posicionalidade, superar o que considera ser uma negligência nesta como em outras teorizações contemporâneas dentro do campo dos estudos feministas: o fato de que os processos corporalizados de subjetivação e o modo particular como as identidades sociais (gênero, raça, classe, religiosidade, território, idade/geração etc.) intersectam-se é profundamente significativo não apenas no modo como os sujeitos se veem (subjetividade), mas na determinação do "mundo" (ou mundos) que cada um irá habitar como ser humano, ou seja, é decisivo em relação ao modo como esse mundo será experimentado e significado: se hospitaleiro, amigável, crítico, cético, intrusivo, frio, injusto, etc. (Alcoff, 2006).

Recorrendo uma vez mais a Lauretis (1984), para quem os indivíduos são sujeitos nos dois sentidos do termo: como sujeitados aos circunscritores sociais e como sujeitos ativos no processo de interpretação/ ressignificação dos signos culturalmente compartilhados, Alcoff (1995) afirma então que "ser mulher" não é expressar a essência de "seu ser", mas estar posicionada dentro de um contexto histórico em movimento e ser capaz de escolher o que fazer dessa posição, alterando-a por meio da ação politicamente organizada. Ou seja, ser mulher é tanto ser posicionada em face de uma certa sujeição a um campo de significações, como ser capaz de posicionamento através de seu engajamento semiótico na realidade social. Do ponto de vista dessa posição bastante determinada pelo contexto histórico, embora fluida e mutável, as mulheres, enquanto posicionalidade - identidade politicamente assumida - podem articular um conjunto de interesses e fundamentar uma política feminista.

Para Alcoff (2006), se o conceito "mulher" não é definido por um conjunto particular de atributos considerados como inerentes, mas por uma posição particular numa rede de relações, as características internas da pessoa assim identificada são indicadas em sua relação com o contexto externo dentro do qual essa pessoa se situa. Ela observa que, assim como a posição de um peão em um tabuleiro de xadrez é considerada segura ou perigosa, poderosa ou fraca, de acordo com sua relação com as outras peças de xadrez, também a posição das mulheres pode ser assim avaliada em sua relação com outras posições sociais. A partir dessa analogia, a autora diferencia a definição essencialista da definição posicional:

A definição essencialista da mulher torna sua identidade [assim como sua subjetividade de gênero] independente da sua situação externa: uma vez que os traços da sua educação e boas maneiras são inatos, são ontologicamente autônomas de sua posição em relação aos outros ou às condições históricas e sociais externas em geral. (Alcoff, 2006, p. 149)

E completa:

A definição positional, por outro lado, faz com que a sua identidade se refira a um contexto constantemente cambiante, a uma situação que inclua uma rede de elementos envolvendo outros, às condições econômicas objetivas, às instituições e ideologias culturais e políticas, etc. Se é possível identificar as mulheres pela sua posição dentro desta rede de relações, então é também possível fundamentar um argumento feminista para as mulheres, não na afirmação de que suas capacidades inatas estão sendo atrofiadas, mas que sua posição dentro da rede carece de poder e mobilidade e exige uma mudança radical. (p. 149)

Indo de encontro à posição nominalista tão bem quanto à essencialista, Alcoff (1995) considera que, se associarmos o conceito de política de identidade com o conceito de posicionalidade, podemos conceber o sujeito como não-essencializado, resultado de uma experiência histórica, e ainda assim manter nossa capacidade política, tomando gênero não como essência a ser descoberta, mas como ponto de partida.

Deixando ver sua aproximação com as teorizações de Alcoff (2006) e de teóricas do feminismo negro como Hooks (2015), Kimberlé Crenshaw (2002) e Patrícia Hill Collins (2016), Cecília Sardenberg (2015), ao historiar a construção do conceito de interseccionalidade, considera que "para melhor lidar com os efeitos das interseções no cotidiano das mulheres, devemos trabalhar com o conceito de 'posicionalidade' junto com o de interseccionalidade" (p. 82). Se o conceito de interseccionalidade refere-se à maneira através da qual os sistemas de opressão interagem criando posições relativas para as mulheres, raças, etc., o conceito de posicionalidade, por sua vez, aponta para o resultado da interação das diferentes categorias de diferença ou posições identitárias em termos de privilégios, desvantagens e funções no plano cotidiano. O conceito de interseccionalidade nos permite transcender os limites das análises voltadas para um único marcador de diferença, uma vez que nos possibilita considerar as múltiplas identidades que interagem, configurando distintas posicionalidades (Sardenberg, 2015). A posicionalidade correspondería, nesse caso, ao lugar específico que cada um de nós ocupa, nossa localização social, como afirma Alcoff (2006).

Para autoras como Alcoff (2006), essa posicionalidade tem tudo a ver com a visibilidade de nossos corpos, que são sempre significados pelos outros e posicionados dentro ou fora da margem com base em um dado contexto local. O corpo-situação, localizado em outras situações (Moi, 1999), é sempre significado de antemão por um conjunto de sistemas de representação (como o sistema de representação/significação de gênero, raça, sexualidade etc.), é um corpo-signo a partir do qual cada um de nós é posicionado, e por meio do qual interagimos com o mundo e, assim, construímos sentido desse mundo, assim como de nós mesmos nesse mundo. Esse corpo é, sob a inspiração de Maurice Merleau-Ponty (2000), uma totalidade aberta. Ser corpo, na acepção do autor, é estar atado a um certo mundo.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o sujeito é seu corpo, mas não no sentido de que ele, através de seu aparato biológico, expressa "seu gênero", ou "o gênero que é", antes no sentido de que é marcado por gênero (enquanto sistema de significação/aparato semiótico-cultural), e também por raça/etnia, idade/ geração, etc. Isso nos leva a concluir que sexo é gênero desde o início (Butler, 2003), não porque gênero [raça e outros marcadores] seja propriedade dos corpos, nem algo existente a priori nos seres humanos (Lauretis, 1994, p. 208), mas porque o corpo-signo é um dos elementos centrais na produção dos sujeitos, bem como na definição do lugar ou posição que estes ocuparão no mundo.

Para Alcoff (2006) e para autoras do feminismo negro, como Hooks (2015) e Collins (2016), isso é particularmente verdadeiro quando falamos de gênero e raça. Para Collins uma das tarefas do pensamento feminista negro é, justamente, substituir imagens externamente definidas por imagens autênticas de mulheres negras. Segundo ela, "tanto ideologias racistas como sexistas compartilham a característica comum de tratar grupos dominados - os 'outros' - como objetos aos quais falta plena subjetividade humana" (p. 106). Poderíamos dizer, como corpos tão objetificados quanto abjetos, destituídos de humanidade. Segundo a autora, ao considerarem "as mulheres negras como mulas teimosas e as brancas como cachorros obedientes, ambos os grupos são objetificados, mas de maneiras diferentes. Nenhuma das duas é vista como plenamente humana ..., ambas se tornam elegíveis para modelos específicos de dominação de raça/gênero" (p. 106).

Em Alcoff (2006), as categorias de gênero e raça operam como "identidades visíveis", ou seja, são interpretadas com base em elementos de visibilidade, e são centrais no status de alguém dentro de uma dada comunidade e na maneira pela qual uma grande parte do que diz e faz é interpretada por outros. Segundo ela, nossa identidade "visível" - corporalizada - e reconhecida socialmente afeta nossas relações no mundo, o que por sua vez afeta nossa vida interior, ou seja, nossa experiência vivida ou subjetividade. Alcoff (2006) afirma que visibilidade [e identidade entendida como posicionalidade] é tanto um meio de segregar e oprimir como de manifestar unidade e resistência.

Contrapondo-se às críticas que têm sido feitas ao conceito de identidade, Alcoff (1995, 2006) argumenta que a identidade não é meramente aquilo que é atribuído, de forma impositiva, a um indivíduo ou grupo social; é, antes, uma localização no mundo, um ponto - construído - a partir do qual interpretar coletiva e individualmente sua condição/posição neste mundo, reposicionando-se e ao seu grupo identi-tário numa rede de relações sociais. Para a autora, as categorias de identidade sempre significam relações sociais e processos históricos. Uma narrativa histórica, segundo a compreensão hermenêutica que orienta o trabalho de Alcoff (2006), não funciona como uma macroforça impondo sua vontade ao indivíduo: ela vive através de indivíduos que a interpretam, ressignificam e operacionalizam em um conjunto de práticas sociais. Os indivíduos têm agência sobre as interpretações de sua história, embora não possam escolher para além de sua localização na história. É a partir dessa localização socio-histórica que se pode fazer a ação política e promover a mudança social. Mas, como sublinha Scott (1995), reposicionar o sujeito do ponto de vista sociopolítico exige trabalhar sobretudo no campo dos significados, sem esquecer que "para buscar o significado, precisamos lidar com o sujeito individual [corporalizado e capaz de semiose], bem como com a organização social [com suas tecnologias e discursos institucionalizados], e articular a natureza de suas interrelações, pois ambos são cruciais para compreender como funciona o gênero, como ocorre a mudança" (Scott, 1995, p. 86).

 

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Recebido em: 09/06/2019
Aprovado em: 17/11/2019

 

 

Agradecimentos: Com toda estima, meu agradecimento à professora doutora Alda Britto da Motta, extensivo a todas as docentes e pesquisadoras com as quais compartilhei o período do pós-doutoramento no Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia.
1 Conceição Nogueira argumenta que no campo dos estudos de gênero ligados à psicologia empiricista podem-se encontrar dois tipos de essencialismo: um biológico, em que traços comportamentais de gênero são inatos e determinados pelo sexo biológico, e um sociocultural, em que traços comportamentais de gênero são adquiridos pela socialização. Citando Crawford, a autora sublinha: "o essencialismo não implica necessariamente determinismo biológico para a explicação das especificidades do gênero (embora historicamente o determinismo biológico tenha sido uma forma de essencialismo referente a gênero). Pelo contrário, é o fato de assumir uma existência de qualidades ou características de e nos, e não as suas origens (biológicas ou sociais) que define o essencialismo. A autora considera que 'a própria noção de uma 'psicologia da mulher' é essencialista porque sugere que as mulheres (como grupo unitário) partilham uma psicologia (um conjunto de qualidades, traços e capacidades inatas ou adquiridas)" (Nogueira, 2001, pp. 142-143).
2 Todas as citações retiradas de textos em língua estrangeira foram traduzidas pela autora deste artigo.
3 Gendrada aqui, seguindo o Tecnologias de Gênero, de Tereza de Lauretis, significa: marcado, através de práticas e tecnologias sociais de significação, por especificidades de gênero posicionadoras. Afinal, em Lauretis, gênero significa configurações variáveis de posicionalidades sexuais-discursivas. Engendrar, por sua vez, aponta para o processo produtivo que tem como efeito, subjetividades gendradas.
4 O trabalho de Lauretis (1984), tem na semiótica de Charles Sanders Pierce uma importante referência, cuja obra é vasta, envolvendo uma coleção de textos que datam de 1931 a 1958, além de outros escritos menos conhecidos. Assim, quando o nome deste autor for citado neste trecho em que apresentamos os estudos de Lauretis em torno dos processos de subjetivação de gênero, podemos associá-lo a esse conjunto de textos, todos em língua inglesa. Para os leitores brasileiros interessados em conhecer as ideias de Pierce, podem ser indicadas a leitura de Semiótica e Filosofia: textos escolhidos (Pierce, 1975) e Semiótica (Pierce, 2015) ambos organizados com base em textos do próprio Pierce, traduzidos para o português.

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