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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo May/Aug. 2020

 

ARTIGOS

 

Cidades, territórios e juventudes: práticas e sentidos sobre pertencimento, juventude e periferia

 

Cities, territories and youths: practices and meanings about belonging, youth and periphery

 

Ciudades, territorios y juventudes: prácticas y sentidos sobre pertenencia, juventud y periferia

 

Villes, territoires et jeunes: pratiques et significations relatives à l'appartenance, à la jeunesse et à la périphérie

 

 

Paloma de Almeida Albergaria LannaI; Lara Brum de CalaisII

IGraduada em Psicologia pelo Centro Universitário UniAcademia / palomalanna95@gmail.com
IIDoutora em Psicologia pela UFJF. Professora do curso de Psicologia do Centro Universitário UniAcademia / laracalais@hotmail.com

 

 


RESUMO

A presente pesquisa teve por objetivo investigar aspráticas e os sentidos atribuídos por jovens moradores de um bairro periférico em Juiz de Fora (MG) sobre sua noção de pertencimento à cidade. Tendo como referencial metodológico a Pesquisa Exploratória, utilizou-se da entrevista semiestruturada como ferramenta para levantamento de informações. A análise do material coletado deu-se a partir da perspectiva da Análise de Produção de Sentidos. Deslocar-se pela cidade, apropriar-se dela representa experimentá-la, produzindo sentidos por meio da ação. No entanto, considerando a existência dos marcadores sociais da diferença, compreende-se que ser jovem, pobre e morador de periferia ocasionará vivências atravessadas por tais marcadores, produzindo a forma como estes vivenciam a juventude, incluindo o uso que fazem da cidade.

Palavras-chave: Juventude; Cidade; Periferia; Psicologia Social; Pertencimento.


ABSTRACT

This research aimed to investigate the practices and meanings attributed by young people living in a peripheral neighborhood in Juiz de Fora (MG), about their notion of belonging to the city. Using as a methodological reference the Exploratory Survey, the semi-structured interview was used as a tool for gathering information. The analysis of the collected material took place from the perspective of the Production Analysis of Senses. Move around the city, take ownership of it, represents experiencing it, producing meanings through action. However, considering the existence of the social markers of the difference, it is understood that being young, poor and living on the periphery, will lead to experiences crossed by such markers, producing the way they experience youth, including their use of the city.

Keywords: Youth; City; Periphery; Social Psychology; Belonging.


RESUMEN

La presente investigación tuvo por objetivo investigar las prácticas y sentidos atribuidos por jóvenes, habitantes de un barrio periférico en Juiz de Fora (MG), sobre su noción de pertenencia a la ciudad. Teniendo como referencial metodológico la Investigación Exploratoria, se utilizó la entrevista semiestructurada como herramienta para el levantamiento de informaciones. El análisis del material recolectado se dio a partir de la perspectiva del Análisis de Producción de Sentidos. Desplazarse por la ciudad, apropiarse de ella, representa experimentarla, produciendo sentidos a través de la acción. Sin embargo, considerando la existencia de los marcadores sociales de la diferencia, se comprende que ser joven, pobre y morador de periferia, ocasionará vivencias atravesadas por tales marcadores, produciendo la forma en que estos vivencian la juventud, incluyendo el uso que hacen de la ciudad.

Palabras clave: Juventud; Ciudad; Periferia; Psicología Social; Pertenencia.


RÉSUMÉ

Cette recherche visait à étudier les pratiques et les significations attribuées par les jeunes vivant dans un quartier périphérique de Juiz de Fora (MG) à propos de leur notion d'appartenance à la ville. Sur la base de la méthodologie de recherche exploratoire, un entretien semi-structuré a été utilisé comme outil de collecte d'informations. L'analyse du matériel collecté a eu lieu du point de vue de l'analyse de la production de sens. Se déplacer dans la ville, l'approprier, c'est expérimenter, produire des significations par l'action. Toutefois, compte tenu de l'existence de marqueurs sociaux de la différence, il est entendu que le fait d'être jeune, pauvre et vivant à la périphérie va provoquer des expériences traversées par ces marqueurs, ce qui va produir la manière dont ils vivent la jeunesse, y compris leur utilisation de la ville.

Mots-clés: Jeunesse; Ville; Périphérie; Psychologie sociale; Appartenance.


 

 

Introdução

Pretende-se abordar no presente artigo as práticas discursivas de jovens moradores de um bairro periférico do município de Juiz de Fora/MG a respeito de sua noção de pertencimento à cidade, buscando compreender os desdobramentos na constituição subjetiva dos jovens e suas experiências com os espaços. Para isso, foi desenvolvida uma investigação com base na pesquisa exploratória, tendo como fonte de levantamento de informações as entrevistas semiestruturadas.

Por meio da investigação proposta, foi possível problematizar a forma como os jovens participantes da pesquisa vivenciam a cidade e alguns dos atravessamentos que produzem essa existência. Assim, pauta-se uma discussão sobre as singularidades que configuram os espaços de periferia, articulando tais contingências com a constituição das juventudes a partir da relação com marcadores sociais.

Tal investigação pautou-se na compreensão de que a cidade é um território coletivo e diversificado que pertence a todos. Por isso é necessário lutar por ele, lutar contra a apropriação desigual do ambiente construído e lutar pelo direito ao território, pelo direito à cidade, como forma de cidadania. Deste modo, entende-se que é necessário que estes jovens visualizem a cidade como território a ser usado. Daí a importância de se discutir a respeito. Conforme apontam Heilborn, Faya e Souza (2014), os marcadores sociais da diferença irão atravessar o caminho para a constituição da vida, fazendo com que os modos e percursos dessas juventudes sejam heterogêneos.

A partir dessa perspectiva, compreende-se que ser jovem, pobre e morador de periferia, ocasiona vivências atravessadas por marcadores, como classe e território, que irão interferir na forma como estes vivenciam a juventude e seus espaços. Tal modo de existir será constituído, conforme argumentam Gua-reschi et al. (2003, p. 48) por contingências, considerando que "seu complexo contexto social está cercado por estruturas geográficas específicas, práticas históricas e culturais, e problemas econômicos e políticos".

Desse modo, discute-se brevemente, no presente artigo, alguns elementos que forjam a constituição das periferias no Brasil para, em seguida, abordar o atravessamento dos marcadores sociais na vida de jovens que vivem nestes contextos. Tal relação será estabelecida mediante as informações levantadas por meio da pesquisa realizada com jovens da cidade de Juiz de Fora, apontando um recorte que cria condições de possibilidade de discussão sobre a noção de pertencimento à cidade e a constituição de dimensões subjetivas sobre a juventude.

 

Cidades, territórios e subjetividades

De acordo com Sposito (1988), a cidade é a forma concretizada do processo de urbanização, sendo a cidade de hoje o resultado acumulado de todas as outras cidades de antes, transformadas, modificadas. Lefebvre (2001) também ressalta o caráter histórico presente no conceito de cidade, destacando sua relação com o capitalismo, uma vez que a cidade resulta da destruição das formações sociais anteriores e da acumulação primitiva do capital.

Diante desta perspectiva, para entender o processo de urbanização, é necessário aproximar a relação com o desenvolvimento industrial, tendo em vista o impulso tomado pela urbanização a partir do pleno desenvolvimento da industrialização e de uma nova roupagem para os meios de produção. Vale ressaltar que reconhecer a urbanização a partir do desenvolvimento industrial é também procurar entender o próprio desenvolvimento do capital, já que os processos de constituição das cidades e da urbanização, em nível mundial, deram-se de forma expressiva a partir do capitalismo (Sposito, 1988). Assim, Lefebvre (2013) acrescenta que as cidades passam a ser o espaço que possibilita a industrialização, já que nelas concentram-se a mão de obra e o capital.

Para além disso, Lefebvre (2013) destaca que, da mesma forma que o espaço (social) intervém no modo de produção, ele se transforma também em relação recíproca com este modo. De acordo com Sposito (1988), dentre tais transformações, pode ser citado o aumento na procura por espaço, já que o crescimento populacional não podia ser acompanhado no mesmo ritmo pelo crescimento territorial. Somado a isso, com o incremento do modo de produção capitalista, a terra também passou a ser uma mercadoria com valor de troca agregado, configurando condições nas quais só teria acesso a ela aqueles que poderiam pagar.

Deste modo, foi se formando ao redor do centro urbano uma nova faixa: a periferia - lugar de moradia de assalariados e recém-chegados do campo, os quais dividiam esse espaço com indústrias e depósitos. Com casas bem pequenas e de frágil infraestrutura, a ocupação dessas áreas de moradias de trabalhadores tornou-se densa e insalubre. Zaluar e Alvito (2004) destacam que essa ocupação se dava por meio de invasões pela população com escassez de recursos e em situação de pobreza, trabalhadores desempregados, incluindo migrantes, que se mudavam para as cidades em busca de uma vida melhor.

Neste sentido, Véras (2003) aponta que, embora não se possa afirmar que os "problemas" de nossas cidades decorreram do capitalismo, pode-se dizer que a cidade industrial e, portanto, capitalista, à medida que se formava, evidenciava a luta de classes no espaço geográfico, social e político. Como exemplos destes "problemas", podem ser citados a falta de água encanada, de rede de esgoto, de serviços urbanos, como hospitais, escolas, transportes coletivos, entre outros. Nesta lógica, Santos (2011) dirá que a possibilidade de desfrutar de mais ou menos cidadania depende, em larga proporção, do ponto a partir do qual a existência se dá.

Em meio a este cenário, são criadas localizações que contribuem mais significativamente para o aumento da pobreza do que para sua atenuação. No entanto, Santos (2009) aponta que a pobreza não está apenas relacionada ao nível de consumo de cada um, pois trata-se de uma categoria política e, acima de tudo, um problema social. Corroborando com essa ideia, Cassab (2009) defende que a pobreza deve ser discutida de forma ampla, não podendo ser restringida à ideia de grau de consumo dos indivíduos. A pobreza, sendo assim, refere-se a diferentes formas de privação de bens materiais e simbólicos essenciais para a vida, como habitação, educação, saúde, entre outros elementos.

Desta forma, morar na periferia traz a inferência de estar situado duas vezes na relação com a pobreza. A pobreza ligada às complexas questões de classe social somada ao empobrecimento que pode ser produzido pela relação com o território enquanto meio, enquanto dimensão objetiva e subjetiva de produção da vida. O território gera pobreza à medida que reduz o acesso dos indivíduos aos bens sociais, complexificando ainda mais a situação de pobreza. Em vista disso, há desigualdades sociais que são, em primeiro lugar, desigualdades territoriais, porque decorrem do lugar onde o indivíduo encontra-se localizado, em um nível geopolítico, assim como as relações simbólicas que estabelece para com tal lugar.

De tal modo, considerando a existência dos marcadores sociais, é válido dizer que cada um de nós traz consigo elementos que se misturam entre locais, culturas, referências de classe social, posições de poder, marcas corporais e psicológicas que incidem sobre as questões de gênero, classificações num sistema racializado, orientação sexual, faixa etária, e assim por diante, que irão atravessar a vivência de cada indivíduo e/ou grupo (Berger, 2007).

Esses sistemas de classificação a partir dos chamados "marcadores sociais da diferença" caracterizam-se pela sua construção social, estando intimamente ligados aos processos culturais, articulando-se de maneira a produzir maior ou menor inclusão/exclusão. Tais questões também dependem do quanto confrontam identidades sociais hegemônicas como, por exemplo, ser homem, rico, branco, heterossexual, etc. (Gonçalves & Mello, 2012). É no entrelaçamento desses marcadores sociais da diferença que podem ser (re)produzidas distintas opressões a pessoas ou grupos, mas onde também podem ser produzidas formas de resistência, num movimento que leva da sujeição à reinvenção de si.

Conforme argumenta Brah (2006), apontar a existência das diferenças não quer dizer que, necessariamente, o indivíduo estará subordinado a tais situações dentro de estruturas socioeconômicas e políticas de poder, pois o conceito de diferença refere-se à diversidade de modos como discursos específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados. Sendo assim, nem sempre a diferença será um marcador de hierarquia e opressão.

A experiência e a formação do sujeito são processos, continuamente marcados por práticas culturais, políticas e cotidianas, ou seja, são construções sociais e históricas. Diante dessa compreensão, Piscitelli (2008) acrescenta que, apesar de os efeitos opressivos das relações de poder através das interseccionali-dades serem abordados, considera-se, de forma igualitária, a possibilidade de resistência e agência que as práticas interseccionais podem produzir. Ou seja, os chamados marcadores sociais da diferença não são somente limitantes, eles podem também oferecer possibilidades de ação.

Nesse sentido, trazer à cena a discussão sobre a juventude, como se pretendeu neste trabalho, não é dizer de uma existência única. Diferentes modalidades de ser jovem estão atravessadas por tais especificidades, considerando o sujeito como um ser social, com uma determinada origem familiar, que ocupa um determinado lugar social. Isto é, a produção da sociedade através da linguagem, fabrica uma realidade anterior, que engendra formas e condições sobre o ser jovem, em diferentes contextos, sendo a juventude aqui entendida como histórica e socialmente construída.

Para Guareschi et al. (2003), o processo de construção da identidade de jovens se dá em seus espaços de convivência diária como, por exemplo, a família, a escola, a rua e o bairro onde vivem. Tais espaços, sendo constantemente atravessados por questões ligadas à pobreza e à violência, por exemplo, produzirão significados específicos para aqueles que neles vivem. Assim:

Os jovens pobres, em especial, continuam sendo alvo do controle e da preparação para o trabalho precário, instável, informal, flexível, de forma que a educação profissional é descolada da educação geral e se transforma também num mecanismo de combate à pobreza através da qualificação para o trabalho. (Melo, 2015, p. 45)

Na perspectiva dessa temática, De Tommasi (2012) argumenta que os jovens moradores de periferia e em situação de pobreza encontram, num mesmo território, projetos de fundações empresariais e ONGs que, visando a promoção do tão falado "protagonismo juvenil", ofertam cursos, oficinas e cursi-nhos. Isso porque, segundo De Tommasi e Velazco (2016), as estatísticas apontam para o fato de que os "jovens-problema" são majoritariamente negros, pobres, favelados e também ociosos, que escapam das instituições tradicionais de ensino.

Em consonância, Ramos (2018) atenta para o impacto de algumas políticas de inclusão, cujo objetivo primordial é o de facilitar o acesso de jovens ao mercado de trabalho, como forma de "fuga" aos processos de marginalização. O que se vê é que, para além de tal objetivo, acontece também uma rotulação de periculosidade ou até mesmo de incapacidade, encaminhando esses jovens a postos de trabalho já determinados e, consequentemente, a posições sociais pré-estabelecidas.

Como aponta Cassab (2007), é estabelecida uma relação entre ociosidade, periculosidade e criminalidade, levando à compreensão de que é necessário controlar a vida desses jovens, os quais estão associados a "problemas sociais". Conforme destacam Piveta e De Carvalhaes (2017), com base na obra Os anormais de Michael Foucault, é por meio da vigilância e do controle que se busca a conservação da ordem social, a qual irá atuar como forma de prevenção à desordem. Ou seja, sobrecai sobre esses indivíduos considerados "anormais", que fogem das já citadas identidades sociais hegemônicas, o controle por meio de práticas e discursos, muito mais evidente do que ocorre para o restante da população.

De acordo com De Tommasi (2014), tal controle também pode ser exercido por meio da cultura, como forma de gestão da vida da população jovem que vive nas favelas. No entanto, cabe destacar a importância de tais projetos, podendo esses ser entendidos também como caminhos para a construção de meios de comunicações alternativas, de expressão de protestos e resistência, são ambientes a serem descobertos, um convite para que os jovens se afastem de locais tidos como perigosos em seus territórios e vivenciem a arte e a cultura. Desta forma, De Tommasi (2014) aponta para o fato de que, algumas vezes, esses jovens pobres, sendo muitos deles moradores de periferia, ressignificam séculos de práticas de opressão e descaso, deixando de ser efeito de discursos arraigados.

Vale ressaltar que a juventude, essencialmente aquela que vive em contexto de periferia, aparece como alvo naturalizado de violência, seja ela simbólica, através de discursos preconceituosos, ou física, decorrente de conflitos por disputas territoriais ou da atuação policial. Além disso, pode-se dizer que a construção da imagem do jovem violento está intimamente ligada ao jovem que se encontra em situação de vulnerabilidade social e/ou vive em periferias.

Assim, segundo Guareschi et al. (2003), viver em uma favela pode, muitas vezes, ser compreendido como viver excluído, sem cidadania. Tal vivência é frequentemente articulada a noções pejorativas, segundo as quais morar em periferia é viver em meio à desorganização, à sujeira, em lugares com total ausência de infraestrutura. Para além disso, pode-se dizer que a noção socialmente construída de que a pobreza está intrinsecamente ligada ao crime, pode interferirem variadas situações na vida dessas pessoas como, por exemplo, a procura por empregos, a relação com a polícia e, até mesmo, a tentativa de se aproximar de outras pessoas.

De fato, existem particularidades que distinguirão o morar em uma localidade e não em outra e, sobretudo, na relação política e afetiva que se produz com/nesses espaços. No que se refere às favelas, pode-se dizer que há modos de viver que afirmam a existência de grupos sociais na apropriação do território. Desta forma, entre seus jovens moradores, nota-se a presença de códigos, marcações e práticas de sociabilidade que configuram significados próprios a tal condição (Barbosa & Souza, 2013). Tais elementos, considerados aqui como construções sociais, tendem a se articular e produzir formas de exclusão social, a variar de acordo com a posição que o indivíduo assume frente a tal realidade e que irão produzir diferentes sentidos, em distintos momentos e contextos, podendo ser entendidos como formas de resistência e/ou tentativas de transformação de práticas já arraigadas. Desta forma, nos próximos passos serão apresentados os elementos que constituíram a pesquisa em questão, que teve como sustentação o panorama acima problematizado, ou seja, as relações que se produzem entre território, juventude e periferia.

 

Metodologia

Para viabilizar a aproximação das discussões levantadas ao cotidiano e práticas da juventude, foi realizado o desenvolvimento de uma investigação com base na pesquisa exploratória. Para isso, buscou-se conhecer com maior profundidade a realidade e a noção de pertencimento à cidade de jovens que vivem em contexto de periferia. As entrevistas semiestruturadas, realizadas individualmente, foram a fonte de levantamento de informações, sendo relevante para a nossa perspectiva que os entrevistados participassem de forma ativa desse processo, levando-nos a um diálogo aberto e sem rigidez na conduta das entrevistas para que, assim, os mesmos se sentissem à vontade para abordar temáticas relativas às suas vidas.

Os participantes da pesquisa foram jovens com idade entre 14 e 15 anos, estudantes da Escola Municipal Santa Cândida, que moram no bairro Santa Cândida, na cidade de Juiz de Fora/MG. Foram entrevistados 14 jovens, sendo 7 meninos e 7 meninas. Dentre os 14 participantes, 11 moram no bairro desde que nasceram. Os critérios de inclusão para participação foram: possuir idade entre 14 e 18 anos, estar matriculado no 9º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Santa Cândida (tal critério está relacionado ao anterior - de idade - já que os alunos anos anteriores ao 9º ano não possuem idade mínima de 14 anos) e morar no bairro Santa Cândida.

Santa Cândida é um bairro situado na zona leste do município de Juiz de Fora. A comunidade do bairro teve origem no século XX, quando pessoas que se mudavam para Juiz de Fora à procura de emprego começavam a ocupar a região, encontrando ali uma possibilidade de moradia (Prefeitura de Juiz de Fora, 2017). A comunidade em questão foi escolhida pelo fato de possuir um território marcado por um movimento de exclusão social, altos índices de violência envolvendo jovens, bem como a presença de outros atravessamentos sociais que, de acordo com o referencial sócio-histórico e político da Psicologia, produzem efeitos na construção subjetiva da juventude que nela habita. Porém também há no bairro um histórico de luta e constituição de movimentos sociais de resistência por parte de seus moradores.

As entrevistas foram gravadas após consentimento livre e esclarecido dos/as participantes e de seus responsáveis, quando necessário. As respostas foram transcritas de forma integral a fim de produzir material documental que pudesse ser analisado a partir da perspectiva da Análise de Produção de Sentido, sendo as gravações posteriormente descartadas.

Segundo Spink (2013), o sentido é uma construção social, é interativo e coletivo, ou seja, ninguém o produz sozinho. As relações sociais nas quais cada pessoa está inserida são atravessadas por questões históricas e culturais. Dentro desta perspectiva, a linguagem é tida como fundamental na produção de sentidos. Portanto, as práticas discursivas podem ser entendidas como linguagem em ação, isto é, a forma como cada pessoa produz sentidos e coloca-se nas mais variadas relações sociais do dia-a-dia.

A respeito da análise destes dados, Spink argumenta que a mesma se inicia com o aprofundamento nas informações coletadas, sem "encaixar" os dados em temas definidos anteriormente. A análise do material coletado - no caso desta pesquisa, as informações obtidas com as entrevistas - é feita a partir destas categorias. No entanto, ao analisá-las, não se considera apenas o conteúdo das falas, mas também o uso feito desses conteúdos. Para isso, foram desenvolvidos os mapas de associação de ideias. O mapa é próximo a uma tabela, na qual as colunas são definidas a partir de temas. Em geral, esses temas estão relacionados ao roteiro de entrevista.

Na presente pesquisa, a construção destes mapas ocorreu a partir da definição de núcleos de sentido. Deste modo, foram organizados os conteúdos/sentidos obtidos a partir destes temas. Na análise das entrevistas realizadas com os 14 jovens, foram identificados quatro temas: circulação, divisão do território, diferenças territoriais e pertencimento. Em seguida, foram nomeadas as árvores de associações de ideias (mais um recurso para entender como um determinado argumento irá produzir sentido em um dado contexto). Assim, foram identificados dois sentidos para cada eixo temático anteriormente citado, com exceção do último eixo (pertencimento), que não recebeu essa árvore de associação, como se vê em Tabela 1:

 

Análise e Discussão

Eixo 1 – Circulação

Em relação ao Eixo 1, foi possível identificar dois sentidos: aquele que se refere à circulação em busca de lazer/serviços, e a circulação relacionada aos trajetos realizados pelos jovens da pesquisa. No entanto, ao longo da análise das entrevistas, alguns pontos para além destes dois destacaram-se como por exemplo, o marcador social de gênero no que tange às atividades diárias realizadas por eles.

Das 7 meninas entrevistadas, quando questionadas sobre o que geralmente fazem em seu dia-a-dia, 5 responderam que cuidam das tarefas domésticas, tais como arrumar casa e fazer comida e responsabili-zam-se pelos cuidados com os irmãos mais novos, como dar comida, arrumá-los e levá-los para a aula. A mesma pergunta, quando feita aos meninos, tinha como resposta, em sua maioria, atividades relacionadas ao lazer fora de casa, como andar de bicicleta e jogar bola. Dos 7 meninos entrevistados, 6 afirmaram jogar bola diariamente na quadra do bairro Santa Cândida e em suas ruas. Os mesmos jovens relataram também andar de bicicleta aos fins de semana, circulando por diversos pontos da cidade.

As atividades das meninas, como se vê, concentram-se significativamente dentro de suas casas ou, no máximo, próximo a elas, dentro do próprio bairro de moradia, fato que torna mais restrita a circulação dessas meninas se comparada à circulação dos meninos entrevistados. No geral, os meninos circulam pelo centro da cidade e diversos outros locais e bairros, na maioria das vezes de bicicleta, seja em busca de lazer ou até mesmo para realizar atividades extras, como futebol ou natação.

Neste sentido, Heilborn et al. (2014) dirão que os percursos dos jovens, principalmente para os mais novos, não serão similares para ambos os gêneros, já que o trabalho doméstico, culturalmente, está fortemente atrelado às meninas, como a limpeza da casa e o cuidado de irmãos mais novos, fatos que apareceram nas falas das jovens entrevistadas, como fora abordado.

Retornando aos sentidos contidos no eixo "Circulação", foi possível identificar, como já abordado, o sentido de "Lazer/Serviços", no qual há relatos em que os jovens afirmam circular por determinados pontos da cidade em busca de lazer ou algum tipo de serviço, como dentista, aula de inglês, natação e consumo (supermercados, lojas, feiras). Vale ressaltar que houve grande discrepância entre a circulação realizada pelos meninos e pelas meninas. Dentre as 7 meninas participantes da pesquisa, 5 relataram circular somente pelo Centro da cidade, seja para frequentar algum curso ou fazer compras; somente uma entrevistada relatou circular por outras regiões da cidade, como Parque da Lajinha e Museu Mariano Procópio. Como é descrito na fala de L., 14 anos: "Ah, eu não vou muito no centro não. Só vou quando preciso comprar uma roupa, uma coisa assim".

Dentre os meninos, essa circulação ocorre de forma significativamente mais frequente e ampla. Dos 7 entrevistados, 6 disseram frequentar bairros como São Mateus, São Pedro (incluindo a Universidade Federal e a Represa), Zona Norte da cidade, Parque da Lajinha. Aos finais de semana, reúnem-se e vão de bicicleta para diversos pontos da cidade, como aponta a fala de V. (14 anos): "Ah, quando nóis [sic] anda de bicicleta nóis [sic] vai pra represa, pro Parque da Lajinha, pra UFJF, São Pedro, pra um montão de lugar".

Assim como as meninas, os meninos também disseram utilizar o Centro da cidade, seja para fazer compras, andar de bicicleta ou frequentar o Shopping Santa Cruz, que está entre um dos três maiores shoppings de Juiz de Fora, localizado na região central da cidade, o qual é utilizado para consumo e diversão. Tal shopping foi o mais citado durante as entrevistas, sendo frequentemente visitado por estes meninos e meninas. Cabe salientar que o Shopping Santa Cruz é conhecido na cidade por atender a um público com uma renda mais baixa. Para além deste, existem na cidade outros dois shoppings de maior porte: o Independência Shopping, que atende a um público de renda média/alta da cidade; e o Jardim Norte, inaugurado em 2016, localizado na Zona Norte da cidade. Apenas 2 jovens disseram frequentar o Shopping Independência, enquanto 1 relatou frequentar o Jardim Norte. Tal diferenciação entre os Shoppings da cidade é feita por alguns entrevistados que explicam o porquê preferem um shopping a outro. A. (14 anos), ao ser questionada sobre sua escolha pelo Shopping Independência, responde: "Ah porque no shopping Independência tem mais lugar de comer né, que é o Burger King, que é onde eu gosto de comer".

Outro jovem, G. (14 anos), afirma que não tem muito o hábito de ir ao Shopping Santa Cruz por medo da violência: "Ah ali eu tenho um pouco de medo de ir porque o pessoal fica falando que tem bastante menino ali que gosta de ficar fazendo gracinha, confusão, aí eu não gosto muito de ir ali não. Eu só vou ali quando eu vou com minha mãe". Já R., 14 anos, explica por que prefere o Santa Cruz: "Ah, como a gente é pobre, a gente vai mais é pro Santa Cruz mesmo, né. E quando a gente ta com um dinheiro bom na mão, aí nóis [sic] vai pro Jardim Norte, aí nóis ranga [sic]".

Durante as entrevistas, os jovens abordaram algumas questões que podem ser consideradas como elementos que restringem a circulação. Quando questionados sobre o que poderia ser feito para aumentar a circulação das pessoas pela cidade de Juiz de Fora, dos 14 jovens entrevistados, 6 apontaram a violência como principal fator de restrição da circulação e apropriação da cidade, apontando para a necessidade do cuidado com a segurança pública, como destaca G, de 14 anos: "Ah tinha que acabar com essas briga [sic] aí né. Os tiro [sic], essas rixa aí que eu falei. Ia ser melhor pra gente ficar na rua, brincar mais, ir nos outros bairros".

Conforme Dimenstein, Zamora e Vilhena (2004), nesses contextos, as relações sociais podem ser afetadas pela violência (direta ou indireta), já que o medo faz com que as pessoas tendam a criar mecanismos de autoproteção, distanciando-se umas das outras. Desta forma, o uso dos espaços públicos passa a ser limitado pelos moradores, que por sua vez, passam a evitar a apropriação de praças, quadras de futebol, ou até mesmo a rua onde moram - como fora citado por alguns dos jovens entrevistados - levando a população a viver numa espécie de confinamento, assim chamado pelos autores. Em suas palavras:

a situação de confinamento progressivo desses sujeitos dentro das favelas e de seus lares, reflete seu isolamento do espaço público e a ausência de redes de apoio social; reflete também a violência social (não direitos, não cidadania) a que estão submetidos, produzindo ressonâncias em termos de sua subjetividade. (Dimenstein et al., 2004, pp. 12-13)

É interessante ressaltar que os 6 jovens que citaram a violência como fator que restringe a circulação e a apropriação da cidade de Juiz de Fora pela população, consideraram apenas os bairros com maiores índices de violência como territórios que venham a aumentar tal uso da cidade como um todo, ou seja, mesmo na ampliação do uso da cidade, os bairros de maior violência foram elencados como possibilidade. Dentre os jovens restantes, 3 citaram a falta de dinheiro, incluindo o valor da passagem de ônibus, como fator que limita a circulação das pessoas pela cidade de Juiz de Fora; 1 citou a falta de cuidado com a infraestrutura da cidade; 1 citou a importância de frequentar o Centro da cidade como forma de apropriação da cidade como um todo e 2 não souberam responder.

O segundo sentido identificado no Eixo Circulação refere-se ao trajeto realizado por estes jovens durante suas idas e vindas diárias pela cidade de Juiz de Fora. Dentre esses trajetos, o mais frequente é aquele que parte do bairro Santa Cândida, vai para o Centro da cidade, circula pela região central, sobretudo, pela Avenida Getúlio Vargas e retorna ao bairro de origem. Vale destacar que a Avenida Getúlio Vargas é o local de parada dos ônibus do bairro Santa Cândida no Centro, local de grande movimentação, com muitos comércios populares e pontos de ônibus. No domingo, tal região costuma estar mais esvaziada, já que os comércios estão fechados e é justamente aos finais de semana que este trajeto "Santa Cândida--Centro-Santa Cândida" é relatado pela turma de meninos em seus passeios de bicicleta.

Quando perguntado sobre seu trajeto no passeio de bicicleta, A., 14 anos, responde: "Tem vez que eu ando no Centro. Eu fico andando lá. Eu rodo aquilo tudo. Ando na Getúlio Vargas". G., 14 anos, quando questionado sobre o que costuma fazer no Centro, relata que vai sempre que tem que comprar algo, e completa: "Ou então dá mais uma volta pela Getúlio e depois sobe". Neste caso, "subir" significa retornar ao bairro Santa Cândida.

O centro da cidade é também local onde os jovens entrevistados se reúnem para decidirem a continuação do trajeto, que no geral é feito de bicicleta, como coloca G, 14 anos: "Nóis [sic] vai andando, aí nóis tá [sic] andando pro centro e 'poxa... a gente podia descer do lado do Rio', aí de repente já tamo [sic/ lá na UFJF, de repente já tamo [sic] lá no Parque da Lajinha". V, 14 anos, também corrobora com a fala anterior: "Ah, a gente combina né. Cada um pega sua bicicleta, aí a gente marca um lugar e todo mundo se encontra lá e depois a gente desce. Aí lá embaixo a gente resolve o lugar que a gente vai e depois a gente sobe".

No exemplo das duas falas anteriores, é possível observar que os jovens moradores do Bairro Santa Cândida se reportam ao Centro da cidade como "lá embaixo" e ao bairro de origem como "lá em cima". Ou então, quando vão citar algum trajeto, mencionam os termos "descer" - ida para o Centro - e "subir" - ida para o Santa Cândida, demarcando a divisão existente entre Centro e bairro. Este sentido atribuído ao Centro da cidade irá caracterizar o primeiro Sentido do próximo Eixo a ser abordado.

Eixo 2 - Divisão do Território

Tal Eixo foi subdividido em dois sentidos. O primeiro, "Centro-cidade", será atribuído à associação feita pelos jovens entre o bairro Centro com a cidade de Juiz de Fora como um todo. Frequentemente surgiam expressões como "vou na cidade", como se o bairro em que moram não fizesse parte de Juiz de Fora. A seguir, tem-se a fala de A., 14 anos: "eu não vou muito na cidade, entendeu? Eu vou mais, tipo assim, para outros bairros, mas não para a cidade".

A jovem, nesta fala, estava explicando como ela considera ser sua circulação pela cidade de Juiz de Fora, a qual foi considerada pela mesma, num primeiro momento, como restrita, já que ela fazia claramente a associação de cidade com o Centro da cidade. Porém, quando eu abro a ela a possibilidade de considerar o termo "cidade" como um todo e não somente como "Centro", ela reformula sua resposta e informa que considera então circular bastante por Juiz de Fora, já que ela frequenta muitos bairros. Assim, para A., 14 anos, existe uma divisão do território, onde bairro e cidade são compreendidos como espaços distintos, como se o que ela chama de "bairros" não estivesse contido na cidade como um todo. Tal entendimento demarca a divisão dos territórios Centro e demais bairros, já que o que ela chama de "cidade" representa, na verdade, o Centro da cidade de Juiz de Fora.

O mesmo eixo ainda contará com um segundo sentido que é o de "Não lugar", ou seja, irá representar aqueles lugares que os jovens da pesquisa citaram como lugares não frequentados por eles por motivos variados. A pergunta feita a todos eles era se existia algum lugar na cidade de Juiz de Fora que eles não costumavam frequentar e qual seria o motivo. Dos 14 entrevistados, todos justificaram esse "não uso" pela presença da violência, sobretudo, relacionada às rixas entre bairros e/ou tráfico de drogas, como observa-se nas falas a seguir: "Ah, tipo assim, a quadra é descendo o Viturino, mas eu não gosto muito de ir no Viturino e nem no São Benedito porque os cara [sic] daqui têm problema com os de lá. Eu não tenho né. Mas por isso que eu não gosto de ir lá" (G., 14 anos, sobre as rixas entre o Santa Cândida com outros bairros da cidade); "Ah tem uns bairro [sic] que eu prefiro nem ir - Quais? -Ah, no Arado, Dom Bosco, Furtado [...] porque lá é onde tem mais violência. Tipo assim, quem é daqui do Santa Cândida não pode ir La no Vila Alpina, no Arado" (E, 15 anos).

Interessante ressaltar que a maior parte destes jovens, em toda extensão do território de Juiz de Fora, frequenta basicamente o centro da cidade e alguns determinados locais ou bairros e, quando questionados sobre lugares que não costumam frequentar, apontam apenas os locais com alto índice de violência, sendo este, para eles, o maior fator que restringirá sua circulação pela cidade. Logo, eles parecem eleger como possíveis locais para uso apenas estes bairros com violência e tráfico, desconsiderando todas as outras possibilidades de uso que a cidade tem a oferecer. Talvez uma das explicações para este fato seja o desconhecimento dessas possibilidades de uso e apropriação da cidade de Juiz de Fora, já que, quando questionados sobre locais que gostariam de conhecer, 9 dos 14 entrevistados disseram não ter em mente, naquele momento, um local ainda não visitado que despertasse neles o interesse em conhecer.

Além disso, outro fator que pode estar associado a essa questão é o sentimento de pertencimento à cidade de Juiz de Fora, que será abordado mais à frente, mas que pode ter relação com o presente eixo, já que estes jovens citam como locais não frequentados apenas bairros com um nível socioeconómico bem próximo ao seu bairro de origem, Santa Cândida. Apesar de existir toda uma extensão da cidade não acessada por eles.

Eixo 3 - Diferenças Territoriais

Dando sequência aos eixos e sentidos, abordaremos neste ponto o eixo 3, o qual será discutido a partir da atribuição dos Sentidos "Violência" e "Infraestrutura". Dentre os 14 entrevistados, 6 relataram não notar essa distinção entre o bairro Santa Cândida e os demais bairros da cidade frequentados por eles, enquanto 8 apontaram essas diferenças (relacionada à violência e/ou à infraestrutura). Como já explanado anteriormente, a violência foi um fator frequentemente identificado nas falas dos jovens da presente pesquisa.

Tal fenômeno aparece também quando os mesmos discorrem sobre o que chamam sua atenção, seja de forma positiva ou negativa, nos diversos trajetos realizados por eles, como apontam as falas a seguir: "Aqui as crianças não pode [sic] nem brincar direito por causa dessa violência" (L., 14 anos, comparando o bairro Santa Cândida ao centro da cidade); "Ah eu acho muito perigoso, né, porque tem muito tiro" (C., sobre morar no bairro Santa Cândida); "Ah lá é tranquilo. Tem uma rua deserta que a gente fica andando de bicicleta. Não tem muito carro. Então é bem tranquilo. Não tem tiroteio. Não tem nada lá não" (V., 14 anos, sobre o bairro São Mateus, um bairro de classe média/classe média alta, situado bem próximo ao centro da cidade). Um outro jovem também aborda a questão dos tiros como um fator que limita sua circulação pelo bairro Santa Cândida: "Lá é bom. Lá é tranquilo. Dá pra [sic] andar aquilo tudo lá. Aqui não dá, dá mais ou menos, né. Tem vez que dá, tem vez que não dá". Ao ser questionado sobre o porquê de às vezes não dar para circular pelo Santa Cândida, ele responde: "Por causa dos tiros" (A., 14 anos, ao comprar o bairro Santa Cândida ao bairro São Pedro, onde está localizada a Universidade Federal de Juiz de Fora).

Vale ressaltar que a violência é identificada também no centro da cidade de Juiz de Fora, como aponta G., 14 anos: "você tem que ficar atento, né. Você não sabe o que vai acontecer, se vai vir um bandido e te roubar. Aí a gente fica atento". Outro jovem, C., de 14 anos, também relata esse medo em relação à circulação pelo centro da cidade: "Tem que tomar cuidado pra não ser atropelado, pra não acontecer nada. Acho perigoso".

É possível perceber que há diferença entre a relação que os jovens estabelecem com o Centro e com o seu território. Assim, é comum encontrar nas periferias aqueles que possuem certo medo de se deslocar até o centro, especialmente quando estes jovens não costumam circular para além do espaço do próprio bairro de origem (Almeida, 2013).

Essa diferenciação entre os diversos territórios da cidade de Juiz de Fora também foi apontada pelos jovens em termos de infraestrutura, presente ou não em determinados espaços da cidade, como relatam os jovens a seguir: "Eu só acho que...aqueleparquinho que tem ali na UFdevia ter aqui também porque é muito longe pra poder ir" (I., 14 anos, sobre o São Pedro); "Lá é o melhor lugar para morar. Lá a internet é melhor. A antena de lá é mais perto de lá né. Tem antena própria ne. Aqui nois [sic] sempre pega a antena lá do Centro da cidade aí a internet de noite fica horrível [...] aqui também não passa ônibus. Na minha rua não passa ônibus" (V., 14 anos, sobre o bairro São Mateus); "Ah tem muita coisa de diferente, né, porque tem muitos lugares que têm uma praça. Aqui não tem pracinha arrumada. Esses meninos que mexem com essas coisas já tomou [sic] conta, né" (L., 14 anos, sobre a ocupação da praça do bairro Santa Cândida pelos jovens envolvidos com o tráfico de drogas).

Para Farias e Diniz (2018), o processo de urbanização, trazendo consigo, dentre outros elementos, o processo de periferização, irá ocasionar um alto custo para as populações mais pobres. Tais populações serão afetadas pela diminuição estatal no que tange à garantia de direitos, infraestrutura de seus bairros de moradia, aumento da violência e da presença de ações militarizadas, além de práticas de exclusão e segregação como forma de negação do uso da cidade por parte dessa população.

Eixo 4 - Pertencimento

Apesar de notarem todas essas diferenças territoriais, sejam relacionadas à violência, à infraestrutura ou a qualquer outro o fator, os jovens entrevistados, em sua grande maioria, afirmam sentirem-se pertencentes à cidade de Juiz de Fora, sentimento que irá caracterizar o quarto eixo da pesquisa. Tal observação deu-se em função da pergunta feita aos jovens sobre o seu sentimento de pertencimento à cidade. Dos 14 entrevistados, apenas 1 disse não se sentir pertencente, pois não considera que circula o suficiente por toda a cidade.

A associação entre circulação e pertencimento é feita pela maior parte dos jovens, sobretudo pelos meninos, ao afirmarem que se sentem pertencentes pelo fato de utilizarem bastante a cidade. Entre as meninas, a justificativa ao sentimento de pertencimento que mais apareceu refere-se ao fato de terem nascido na cidade de Juiz de Fora, completando ainda que se sentem mais pertencentes ao Bairro Santa Cândida do que ao restante da cidade, como argumenta E., 15 anos: "Assim, eu acho que eu pertenço mais ou menos, mas eu também não aproveito tudo que a cidade tem a oferecer porque pra mim eu acho que ela ainda não tem nada a oferecer - [...] o que te faz sentir um pouco pertencente, nem que seja um pouquinho. Tem algo? -Tem, porque eu nasci aqui, né, aí eu me sinto pertencente um pouco".

Em relação à totalidade da cidade, Almeida (2013) destaca que o bairro de moradia se apresenta aos jovens como uma referência, um espaço que proporciona certa segurança, mesmo que em todo restante da cidade, ele seja identificado pelos altos índices de violência. Deste modo, esse território de origem acaba criando um sentimento de pertença que, muitas vezes, não é identificado em relação a outros espaços da cidade.

Dentre os 13 jovens que relataram esse sentimento de pertencimento, 3 o expressaram de forma parcial, ou seja, associado apenas a alguns pontos da cidade, os quais são frequentados por eles, trazendo à tona a compreensão de pertencimento atrelado ao "território usado", como relata V., 14 anos: "Ah, sim. Em alguns lugares sim. Nesses lugares que te falei aí que eu vou, mas onde tem violência eu não me sinto não".

Considerando tais elementos, a argumentação de Santos (1999) torna-se valiosa, ressaltando que o território aparece não apenas como um conjunto de sistemas de elementos superpostos. O território deve ser entendido como o território usado, ou seja, não somente o território em si, mas o território acrescido da identidade. Por isso, não basta apenas morar em um determinado local para se sentir parte do espaço, é necessário utilizá-lo, apropriá-lo. Desta forma, a ocupação do espaço apresenta-se como uma forma de enfrentamento à distribuição desigual do mesmo e de construção de possibilidades.

Ainda sobre o uso da cidade, cada jovem deu para si uma nota1, de 0 a 10, que representasse essa apropriação de Juiz de Fora. Dentre os 14 jovens, 10 deram notas a partir de 7, enquanto 2 deram para si nota 0, e 2 deram nota 5. As justificativas sempre vinham atreladas ao quanto cada jovem acredita que circula pela cidade. Quanto maior a circulação, maior era a nota. Para aumentar a nota, ou seja, para aumentar a circulação e o uso que as pessoas fazem da cidade, a solução mais citada pelos jovens foi dar ênfase à segurança pública, já que, como apontado anteriormente, a violência é o fator que mais aparece entre suas falas como restritivo da circulação.

Para Cassab (2010, p. 85), "a conquista da cidade representa uma das possibilidades de construção da ação e da política para os jovens pobres urbanos". Logo, o deslocar-se pela cidade, o apropriar-se, o uso e o reconhecimento das contradições e desigualdades, representam experimentar a própria cidade, ressignificando e produzindo sentidos através da ação. Ao contrário, não estar na rua, como ressalta Cas-sab (2010), é uma forma de negação à civilidade e à política, reafirmando a segregação que despolitiza. Para Farias e Diniz (2018, p. 288), o direito à cidade irá atuar de forma justamente oposta a essa ideia, sendo entendido como "negação da negação". Ou seja, lutar pelo direito à cidade é também lutar pelo enfrentamento à lógica excludente imposta pela cidade do capital.

 

Considerações finais

A partir da pesquisa de campo, foi possível compreender que os jovens entrevistados, em sua maioria, sentem-se pertencentes à cidade de Juiz de Fora/MG como um todo, mesmo sem, necessariamente, fazer uso de maior parte do território da cidade. Em decorrência disso, o sentido de pertencimento destes jovens aparece vinculado a uma dimensão delimitada devido a um significativo desconhecimento sobre a cidade em sua totalidade. Os locais e bairros onde há um alto índice de violência e tráfico de drogas foram identificados como um atravessamento ao uso que estes jovens fazem da cidade, tendo sido a circulação detectada como condicionalidade ao sentimento de pertencimento. Assim, o território usado é o território no qual eles sentem-se pertencentes.

Também foi possível, através da investigação realizada, problematizar a forma como os jovens participantes da pesquisa estão vivenciando a cidade, além de identificar e alcançar os atravessamentos que produzem essa vivência. Neste sentido, compreende-se que esses jovens, em sua maioria, apesar de relatarem uma grande circulação pela cidade de Juiz de Fora, a realizam de forma bastante restrita a determinados pontos da cidade, tendo sido o bairro Centro e o Shopping que neste se localiza, como locais mais apontados por eles como espaços de uso, demonstrando que a apropriação da cidade não ocorre em sua totalidade. A cidade não é apresentada a esses jovens como um território de possibilidades, como um espaço que também é deles. Esses jovens parecem não compreender a cidade como um espaço onde eles podem se colocar e afirmar sua presença.

Apesar de o fator "violência" ter sido apresentado como principal elemento limitante ao uso da cidade, percebe-se que talvez haj a outros atravessamentos a essa vivência da cidade, ainda que não tenham sido identificados pelos mesmos. Isto é, embora possa se falar que o sentido de pertencimento é decorrente dos espaços de circulação e uso, também é válido apontar o contrário: estes meninos e meninas, moradores de um bairro periférico da cidade, geralmente apropriam-se dos espaços onde há uma realidade próxima à deles, seja ela socioeconómica ou de vivência da violência. Talvez o sentimento de pertencimento destes jovens esteja atrelado não só às questões de segurança, como fora apontado durante as entrevistas, mas também ao que eles acreditam serem suas possibilidades de apropriação enquanto sujeitos. Vale salientar que o marcador social de raça, embora tenha sido citado como uma especificidade que pode vir a atravessar as diferentes modalidades de ser jovem, não surgiu durante as entrevistas como um possível elemento de produção da circulação dos jovens entrevistados. As entrevistas foram conduzidas de forma livre, tendo sido os marcadores de classe e território os mais evidentes em suas falas.

Por fim, vale destacar a relevância de se fomentar, além de produções acadêmicas, processos de incentivo a políticas públicas de direito à cidade, criando possibilidades de enfrentamento à apropriação desigual do ambiente construído, como forma de cidadania. Logo, entende-se que é necessário que estes jovens visualizem a cidade como território a ser usado. Contudo, para que isto ocorra, é relevante que práticas de promoção destas possibilidades sejam inseridas junto às instituições e saberes que acessam essa juventude, dentre elas, a Psicologia, para que sejam rompidos discursos que naturalizam e hierar-quizam processos de apropriação do espaço e óticas sobre uma juventude hegemônica, superando lógicas históricas que legitimam práticas de desigualdade e opressão.

O uso da cidade é político, é forma de ação e resistência. Faz-se necessário tomar o espaço da cidade como produção de condições de possibilidade de existência, de fortalecimento de identidades, de modos de uso que fomentem a circulação e, não a neutralização e elitização dos espaços. Neste sentido, colabora-se para a construção de dimensões territoriais que potencializem as formas de ser e sentir a cidade e de processos de subjetivação que criem outros modos de ser jovem em meio ao cenário de desigualdade que acomete o país.

 

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Recebido em: 08/05/2019
Aprovado em: 12/11/2019

 

 

1 Essa era uma das questões propostas pelo roteiro de entrevista, que foi pensada no intuito de tentar dar certa objetividade às respostas dos/as jovens. Tal questão foi elaborada após a realização das entrevistas piloto, nas quais foi identificada uma necessidade de materializar a dimensão de pertencimento dos/as jovens, contribuindo, inclusive, para processos de reflexão a partir das notas dadas à sua ideia de circulação/pertencimento.

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