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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo set./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Indústria cultural: o pensar cristalizado

 

Cultural industry: crystallized thinking

 

Industria cultural: el pensar cristalizado

 

 

Davi Mamblona Marques Romão

Diretor Executivo Adjunto do Instituto Veredas, São Paulo/SP, Brasil. É Analista Técnico de Políticas Sociais, licenciado, da Secretaria Nacional de Segurança Pública - Ministério da Justiça e Segurança Pública. Formado em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Mestre em Psicologia pelo Programa de Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento Humano da mesma instituição. Especialista em Gestão de Políticas de Saúde Baseadas em Evidências pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês / davimamblona@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo discute como a indústria cultural, tal como conceituada por Adorno e Horkheimer, se consolidou como um dos elementos socializadores mais importantes na contemporaneidade, pois tem um papel formativo na subjetividade dos indivíduos e na conservação do sistema capitalista de produção. Nesse sentido, discorremos sobre a indústria cultural e a obra de arte autêntica, e suas relações com a organização subjetiva do indivíduo contemporâneo. Para explicitar como esses conceitos operam, recorremos ao exemplo do Jornalismo Policial televisivo, que encarna muitos dos processos apontados pela crítica à indústria cultural. A partir destas considerações, conclui- se que a indústria cultural, ao colonizar os mais diversos aspectos da vida individual, promove uma profunda reificação da personalidade. O indivíduo que assim se produz é o contrário do sujeito autônomo e independente, pois é incapaz de um julgamento crítico sobre sua própria condição.

Palavras-chave: Indústria Cultural; Formação do Indivíduo; Conformismo (Personalidade); Capitalismo; Teoria Crítica.


ABSTRACT

This article discusses how the cultural industry, as conceptualized by Adorno and Horkheimer, has consolidated itself as one of the most important socializing elements in contemporary times, since it has a formative role in the subjectivity of individuals and in the conservation of the capitalist system of production. In this sense, we discuss the cultural industry and the authentic work of art, and its relations with the subjective organization of the contemporary individual. To explain how these concepts operate we resort to the example of television police journalism, which embodies many processes pointed out by critics of the cultural industry. From these considerations, it is concluded that the cultural industry, by colonizing the most diverse aspects of the individual life, promotes a deep reification of the personality. The individual thus produced is the opposite of the autonomous and independent subject, for he is incapable of a critical judgment on his own condition.

Keywords: Cultural Industry; Individual Formation; Conformity (Personality); Capitalism; Critical Theory.


RESUMEN

Este artículo discute cómo la industria cultural, tal como lo conceptualizan Adorno y Horkheimer, se ha consolidado como uno de los elementos de socialización más importantes en los tiempos contemporáneos, ya que tiene un papel formativo en la subjetividad de los individuos y en la conservación del sistema de producción capitalista. En este sentido, discutimos la industria cultural y la auténtica obra de arte, y sus relaciones con la organización subjetiva del individuo contemporáneo. Para explicar cómo operan estos conceptos, recurrimos al ejemplo del periodismo policial televisivo, que encarna varios procesos señalados por los críticos de la industria cultural. De estas consideraciones, se concluye que la industria cultural, al colonizar los aspectos más diversos de la vida individual, promueve una profunda reificación de la personalidad. El individuo así producido es lo opuesto al sujeto autónomo e independiente, ya que es incapaz de un juicio crítico sobre su propia condición.

Palabras clave: Indústria Cultural; Formación del Individuo; Conformismo (Personalidad); Capitalismo; Teoría Crítica.


 

 

Introdução

Neste artigo discutimos como a indústria cultural, tal como conceituada por Adorno e Horkheimer (2006), tem uma função constitutiva central no processo de subjetivação dos indivíduos, nos seus modos de pensar sobre o mundo, e na conservação do sistema capitalista de produção. Para tanto, inicialmente apresentamos o conceito de indústria cultural e debatemos como a obra de arte autêntica é compreendida nesse contexto. Em seguida, exploramos o conceito de indústria cultural, em especial, sua relação com a organização subjetiva do indivíduo contemporâneo. De modo a explicitar como esses conceitos operam, ao longo do texto tomaremos como exemplo o Jornalismo Policial televisivo. Como se verá, esses programas em boa medida encarnam os processos e mecanismos descritos pelos autores em sua crítica à indústria cultural.

 

Indústria cultural: um primeiro olhar

Segundo Adorno (1994), quando escreviam os esboços da obra Dialética do esclarecimento, Horkheimer e ele se referiam com a expressão "cultura de massa" ao que veio a se consagrar como indústria cultural. Esta mudança terminológica antes da publicação, como ele explica, não foi gratuita. Os autores queriam escapar à interpretação de que tal cultura teria por origem as próprias massas, de forma espontânea, tal qual uma forma de arte popular. O conceito de indústria cultural, ao contrário, se refere a um tipo de produção que de forma alguma se confunde com a criação em certo sentido rústica, espontânea e assistemática da cultura popular - aquela cultura produzida em núcleos sociais relativamente restritos e que está intimamente conectada com aspectos autóctones de certas comunidades. A ênfase dada ao termo indústria reflete exatamente o tipo de processo que dá origem a seus produtos. A indústria cultural, por um lado, transforma a cultura em mercadoria - e, como qualquer mercadoria, ela passa a ter como único objetivo sua comercialização. Por outro lado, tendo por função a produção e a venda de mercadorias, a indústria cultural organiza-se como qualquer outra indústria, o que tem por consequência que a própria criação cultural passa a seguir uma lógica industrial.

Com isso, temos que o desenvolvimento cultural, de certa forma autônomo em relação ao mercado em um primeiro momento, em larga medida é assimilado por ele. A lógica da criação perde sua independência relativa e passa a seguir, principalmente, critérios econômicos. Como consequência, o corpo gerencial das grandes empresas de produção cultural passa a ser formado, majoritariamente, por administradores, managers que podem não entender nada sobre o processo de produção artística, mas que possuem uma noção aguçada sobre eficácia e rentabilidade. Isso acaba por reforçar a padronização cultural, que privilegia produtos com maior alcance de público e de rentabilidade.

Além disso, nas últimas décadas, a cultura não apenas tomou forma de mercadoria, como conquistou um lugar proeminente no capitalismo global ao se tornar um dos ramos com os maiores índices de rentabilidade e geração de empregos (U.S. Department of Commerce, 2017). Dessa forma, o conceito de indústria cultural ganha atualidade exatamente porque a produção de cultura se tornou um setor central da economia capitalista. Nesse processo, os grandes conglomerados midiáticos foram edificando o monopólio da produção cultural, entendida como entretenimento e como informação, e, consequentemente, interligando todo material publicado. O produto midiático é produzido pela mesma empresa que faz seu marketing, sua veiculação e sua crítica (Gorgen, 2009). Isto é, não apenas ele conta com uma força de propaganda brutal, como também qualquer produto que não seja proveniente dos conglomerados midiáticos, ou que não possa ser cooptado por eles, está excluído de antemão.

Vemos, assim, que a indústria da cultura adquire um caráter central em nossa sociedade. Quem controla os meios de comunicação, por ocupar o lugar de formador de tendências e de opinião, tem grande influência tanto sobre a economia quanto sobre a política de suas respectivas regiões (Bucci, 1997)1. E esses grupos são exatamente os grandes detentores de capital, os economicamente mais fortes. Este quadro gera uma série de problemas, entre os quais poderíamos citar a utilização da produção artística e jornalística de forma a favorecer os interesses de seus detentores, a progressiva indiferenciação entre notícia, entretenimento e propaganda, a estandardização da cultura a nível global. Nesse sentido, um exemplo brasileiro é o Jornalismo Policial televisivo, o qual tem atuado de forma a espetacularizar a violência, sem abordar de forma séria e crítica esse problema (Moura, 2015). Cria-se, assim, uma atmosfera de medo e insegurança que reforça a crença de que nosso contexto social é extremamente perigoso.

A discussão de Adorno e Horkheimer (2006) sobre a indústria cultural, no entanto, nos leva ainda mais longe na compreensão de como ela está intimamente ligada ao nosso sistema econômico e político. Segundo os autores, a indústria cultural tem um importante papel na constituição subjetiva do indivíduo contemporâneo e, por meio deste papel, promove a conservação das relações de poder. Neste ponto, veremos que a crítica social, a crítica estética e a crítica ao indivíduo, tão caras a teóricos frankfurtianos como Adorno e Horkheimer, se sobrepõem e se articulam de maneira que se torna impossível separá-las. Assim, para compreendermos como esse processo se dá, faz-se necessário discutir o significado da verdadeira obra de arte para estes autores.

 

A negação da arte pela indústria cultural

Segundo Adorno e Horkheimer, uma das principais características dos produtos da indústria cultural é sua estandardização. Tal qual uma indústria qualquer, o processo de produção da música, do cinema, da televisão adquire uma forma padronizada, de produção em série. Na análise que Adorno e Simpson (1994, p. 116) fazem da música popular, isso fica claro2: "Toda a estrutura da música popular é estandardizada, mesmo quando se busca desviar-se disso. A estandardização se estende dos traços mais genéricos até os mais específicos".

Essa estandardização não implica que todos os produtos sejam exatamente iguais, nem que as pessoas só possam ter acesso a um tipo de mercadoria. Se esse imperativo de estandardização fosse completamente visível, isso certamente causaria resistência por parte do público. Assim, cabe ao processo produtivo revestir o bem cultural com uma camada de individualidade que, mesmo não alterando a estrutura geral da obra, produz a aparência de que se está diante de algo completamente novo. A este processo, responsável pelo encobrimento da estandardização, Adorno e Simpson (1994) dão o nome de pseudo-individuação.

No caso do Jornalismo Policial televisivo brasileiro, por exemplo, os processos de estandardização e pseudo-individuação são visíveis na própria estrutura dos programas. Estes têm, ao mesmo tempo, um formato que sempre se repete, mas com elementos que geram uma sensação de inovação. Os programas reproduzem, inúmeras vezes, um ciclo que consiste em apresentar uma situação de violência, utilizar-se dela para afirmar as sensações de vulnerabilidade e medo socialmente disseminadas e, enfim, insistir em um pedido por controle estatal mais eficiente (Moura, 2015; Periago, 2004). Esse mesmo roteiro, no entanto, é repetido sempre a partir um novo fato, uma nova situação de violência, um novo crime noticiado. Essa combinação entre estandardização e pseudo-individuação fica clara, também, na homogeneização das diversas versões desse tipo de programa na televisão brasileira, que seguem a mesma lógica, contando apenas com pequenas diferenças em aspectos acessórios.

Conforme Adorno e Simpson (1994), no caso da música, a consequência dessa estandardização da obra é que os ouvintes tendem a não se relacionar com a totalidade da peça musical, que já é conhecida de antemão, e prestam mais atenção nas partes. Apenas os detalhes são capazes de proporcionar alguma reação no ouvinte, mas mesmo eles têm tal capacidade limitada, pois também já são em larga medida conhecidos. Assim, o sentido dos detalhes em relação ao todo fica cristalizado.

Ao contrário, na verdadeira obra de arte, tal como compreendida pelos autores: "Cada detalhe deriva o seu sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical" (Adorno & Simpson, 1994, p. 117). Em contraposição à música séria, a música popular pode ser compreendida como um esquema de construção musical infinitamente replicado, sempre conformado às mesmas regras, e que, portanto, não exige do ouvinte nenhum tipo de esforço, pois seu resultado já é sabido de antemão. Os detalhes seriam apenas uma ilustração da ideia do todo. Em outras palavras, os detalhes não fazem outra coisa senão reafirmar o todo a cada instante.

A música séria, por outro lado, caracteriza-se exatamente por certa tensão entre o todo e as partes. As partes, ao mesmo tempo em que compõem o todo, também o forçam de modo a deslocar seu significado. O detalhe não se conforma completamente, mas obriga a obra a se redefinir, a negar sua própria identidade, a se contradizer. A obra de arte autêntica, portanto, é avessa ao automatismo que caracteriza a produção da indústria cultural:

Sumariando a diferença: em Beethoven e na boa música séria em geral [...] o detalhe contém virtualmente o todo e leva à exposição do todo, ao mesmo tempo em que é produzido a partir da concepção do todo. Na música popular, a relação é fortuita. O detalhe não tem nenhuma influência sobre o todo, que aparece como uma estrutura extrínseca. Assim, o todo nunca é alterado pelo evento individual. (Adorno & Simpson, 1994, p. 119)

Esta reflexão sobre a forma das criações culturais, advindas da crítica frankfurtiana à indústria cultural, é também crítica a nosso modo de vida. Nessa tensão que caracteriza a obra de arte verdadeira, encontra-se mais do que uma experiência circunscrita ao campo da estética. É a tensão socialmente vivida pelo artista que serve de motor para a não conformidade entre a obra e o padrão por ela seguido de forma geral. É a própria necessidade de transcender a ordem socialmente dada e as restrições que esta impõe à vida que permitem a tensão e a transformação que se manifestam na obra. No esforço de confrontação com o padrão socialmente estabelecido, nasce a verdadeira obra de arte. Ou seja, esta pode ser compreendida como a manifestação de uma forma de relação com a existência caracterizada por uma vida pulsante, vida que busca resistir às imposições do todo, que tenta se redefinir, que não se permite reduzir à imagem identitária de si mesma. A verdadeira obra explicita as restrições que o meio social impõe e aponta para a possibilidade de superação da opressão. Mesmo que de forma negativa ou não reflexiva, é exatamente este ato de resistência que se encontra no seio da verdadeira obra de arte: "Os grandes artistas jamais foram aqueles que encarnaram o estilo da maneira mais íntegra e mais perfeita, mas aqueles que acolheram o estilo em sua obra como uma atitude dura contra a expressão caótica do sofrimento, como verdade negativa. No estilo de suas obras, a expressão conquistava a força sem a qual a vida se dilui sem ser ouvida" (Adorno & Horkheimer, 2006, p.107).

Ao contrário de tal postura, na indústria cultural o material produzido se conforma ao padrão imposto de fora: ele não tem vida, não tem movimento, pois tudo nele já era para estar lá, tudo está sempre de acordo com o planejado. E a contrapartida dessa estandardização do material é exatamente o que a indústria cultural busca produzir: uma estandardização das reações provocadas nos ouvintes. Este aspecto é central na compreensão do que Adorno e Horkheimer (2006) veem como um dos principais efeitos da indústria cultural: a aversão ao novo. Na música popular, os ouvintes sabem o que vão encontrar, e isso os tranquiliza. Já na música séria é impossível antever o movimento da obra, e isso significa a abertura da experiência musical para o ainda não vivido, o verdadeiramente experienciado - o qual, no entanto, tem um caráter ameaçador. Vemos, assim, como a crítica estética começa a se entrelaçar com a crítica social e a crítica ao indivíduo, pois é este mesmo indivíduo incapaz de ousar na música que será incapaz de desafiar quer a ordem social estabelecida, quer sua própria forma já consolidada de estar no mundo: é o indivíduo conformado, submisso ao império da identidade, amedrontado frente a seu próprio devir.

Adorno e Simpson (1994) complementam sua análise da música estandardizada com a apresentação das reações estandardizadas por parte do ouvinte, o qual, mesmo diante de aspectos mais complexos do material escutado, ignora-os e reage mais à sua própria expectativa (por mais que esta tenha sido frustrada) do que ao estímulo confrontado.

Para tanto, os autores discutem como os novos produtos são apresentados ao público. Visando produzir uma aura especial em torno destes, com a qual se procura disfarçar sua estereotipia, a indústria cultural lança mão de uma série de recursos. Entre estes, está o que os autores chamam de plugging, termo que designa o processo pelo qual os produtos musicais são incessantemente repetidos nos principais meios de comunicação. Tal repetição compulsiva seria uma tentativa de combater a resistência do público gerada pelo material que nunca se renova. Por meio dela, o hit ganha certa onipresença, gerando a impressão de que é reconhecido socialmente como algo de valor e, consequentemente, ganhando o respeito da população. Basta, portanto, que o material musical tenha algum traço distintivo, algum elemento forte de pseudo-individuação que facilite sua identificação pelo público. Com isso, ele já está qualificado para se tornar um hit, desde que tenha a necessária divulgação.

Outro recurso apresentado é a produção do glamour. Este indica elementos internos ao material musical e elementos pertencentes às técnicas de propaganda responsáveis pela sensação de que aquilo que está para acontecer é de fato algo esplendoroso. Estes funcionam como os letreiros de neon vermelho-alaranjados que tentam, lutando contra a monotonia acinzentada de nossas cidades, chamar atenção. Trata-se, na verdade, de um ato de autopromoção que tenta enganar os consumidores sobre a verdadeira capacidade daquele produto de atender às suas expectativas.

O terceiro recurso apresentado pelos autores foi designado fala de criança, indicando "uma linguagem musical que sugira dependência" (Adorno & Simpson, 1994, p. 128). O uso de expressões infantis nas letras das músicas, assim como a estrutura musical simples, marcada pela repetição, pela limitação a um número restrito de tons, por organizações harmônicas vulgares e por certos "coloridos musicais superadocicados, funcionando como doces e bombons musicais" (Adorno & Simpson, 1994, p. 129) apontam para o fato de que a música é ocasião para o adulto sentir-se aliviado de suas responsabilidades. Estes elementos acentuam o movimento de passividade do indivíduo em relação ao material, pois sugerem exatamente a ideia de que na relação com os produtos culturais não é necessário nenhum tipo de esforço por parte do sujeito.

Elementos análogo ao uso do pluggin, do glamour e da fala de criança podem ser identificados no Jornalismo Policial. Como dito anteriormente, os programas repetem incessantemente a mesma mensagem. Ao mesmo tempo, aspectos como o tom sério, grave e judicioso dos programas podem ser interpretados como formas de se indicar que aquele conteúdo é de fato relevante (Borges, 2002; Periago, 2004). Por fim, a superficialidade das notícias, a dramatização do material e o constante apelo às imagens, são facilmente comparáveis com a "fala de criança" apontada por Adorno e Simpson. A qualidade do Jornalismo Policial parece indicar que seus telespectadores não estão interessados em refletir criticamente sobre os problemas que lhes cercam. Pelo contrário, os programas parecem mais entretenimento do que jornalísticos, apresentando as informações de forma a apenas estimular seu público.

Mais à frente, na parte Teoria do Ouvinte, Adorno e Simpson (1994) defendem que o coração do processo de tornar uma música famosa está na produção do reconhecimento que ocorre durante sua audição. Por meio da repetição indefinida do material produz-se reconhecimento, e este, por sua vez, gera a aceitação. Mais detalhadamente, o processo de escuta da música popular é discriminado em cinco etapas:

1. Vaga recordação: nesta etapa, opera-se a experiência difusa de estar diante de algo já conhecido.

2. Identificação efetiva: quando a vaga recordação dá lugar a uma sensação forte de reconhecimento.

3. Subsunção por rotulação: quase concomitante ao momento b, trata-se do processo em que aquela experiência já reconhecida é identificada com um hit específico, seu intérprete, seu título ou sua letra. Neste ponto, a experiência individual é conectada com seu fundo coletivo, pois é o momento em que esta se revela conectada com as agências de produção cultural e como parte do sistema por elas construído. Adorno e Simpson fazem aqui a interessante observação de que é a este procedimento que se deve o progressivo declínio das músicas exclusivamente instrumentais, uma vez que a presença de letras torna mais fácil sua identificação.

4. Auto-reflexão no ato de reconhecer: este aspecto se refere à sensação de triunfo presente no ato de reconhecer. Com a identificação do material apresentado como um hit já conhecido, o ouvinte opera certa objetificação da música. Esta se torna propriedade do ouvinte, e como tal pode ser evocada a qualquer hora e também transformada a seu bel-prazer. A música agora lhe pertence e, portanto, está sujeita à sua vontade.

5. Transferência psicológica da autoridade de reconhecimento para o objeto: neste ponto, a gratificação proveniente da sensação de propriedade é transferida para o próprio objeto, como se sua capacidade de proporcionar prazer se devesse a alguma propriedade intrínseca a ele: "Os ouvintes estão executando a ordem de transferir à própria música as suas autocongratulações quanto à sua posse" (Adorno & Simpson, 1994, p. 134). O processo de promoção dos produtos culturais enfatiza o valor que a posse de cada um destes tem. Difunde-se a ideia de que todos que têm posse sobre determinado produto, todos que são capazes de reconhecê-lo e fruir de sua existência seriam diferenciados.

A audição da música popular não requer, portanto, a atenção a cada elemento da composição e de sua ordenação. "Súbitos flashes de reconhecimento" (Adorno & Simpson, 1994, p. 138) são suficientes para garantir a experiência de posse para a qual ela é destinada. Assim, os autores defendem que o ouvinte convencional é incapaz de reconhecer a música como uma linguagem em si mesma.

Isso não significa que esse aspecto de reconhecimento não esteja presente na música séria. Assim como na leitura de um poema a familiaridade com o uso convencional das palavras é pré-requisito para a boa compreensão, na música também se deve operar o reconhecimento dos elementos constitutivos. A diferença, entretanto, é que a experiência da verdadeira música, assim como a do verdadeiro poema, não se reduz a esse reconhecimento. O reconhecimento dos elementos deve vir acompanhado da compreensão da forma como estes estão dispostos; e esta forma, a qual garante a individualidade concreta da peça, é que permite ao ouvinte a experiência de algo completamente novo.

Na música popular, essa relação com o novo é destruída e a experiência reduzida ao momento do reconhecimento. O consumidor assume um papel passivo na relação com os produtos da indústria cultural. A atividade necessária para assimilar o sentido da verdadeira obra é, assim, completamente descartada. Aqui, mais uma vez, pode ser feito um paralelo com a produção cultural do Jornalismo Policial. Nele, a violência é apresentada como algo dado, enquanto o telespectador é colocado como um consumidor passivo de notícias. Tudo que lhe cabe é queixar-se para que o Estado providencie mais segurança e leis mais severas (Borges, 2002; Periago, 2004). Elimina-se, assim, a possibilidade de que se assuma um papel ativo, crítico e questionador da realidade, necessário para uma compreensão abrangente do problema da violência urbana.

Adorno e Simpson (1994) se perguntam quais processos fizeram a música popular chegar a esse estado consolidado de petrificações. A resposta encontrada pelos autores o vincula ao processo de competição no mercado capitalista: as grandes empresas de mídia puderam identificar, ao longo dos anos, quais fórmulas geravam mais sucesso e mais retorno financeiro, e de acordo com estas fórmulas foram produzindo novos materiais. Como resultado, os conglomerados culturais estabeleceram certos modelos para o sucesso de uma canção, os quais passaram a ser seguidos rigorosamente. Quem não segue as fórmulas, não pode nem sequer entrar no jogo, pois, como dissemos, os meios de divulgação e promoção estão nas mãos das mesmas empresas que produzem o material e que, obviamente, não deixam espaço para que a concorrência alcance os consumidores.

Dessa forma, vemos que o sentido da criação cultural acaba por identificar-se com processos que são exteriores à mesma. A obra de arte já não pode mais responder às necessidades de seu compositor, ou seguir seus próprios movimentos. Ela perde sua autonomia frente à imposição de que se conforme às exigências do mercado. Seu imperativo se torna o imperativo do lucro, o qual, claramente, não é um imperativo estético: a indústria cultural não produz arte e sim mercadorias.

No entanto, como já indicamos, os efeitos da estandardização da cultura são muito mais amplos do que o simples acúmulo de capital por parte dos proprietários das grandes empresas midiáticas. Adorno e Horkheimer (2006) veem nesta harmonia forçada entre parte e todo, que impera na indústria cultural, o solo cultural que permite o desenvolvimento dos mais diversos tipos de totalitarismo.

Com a cristalização da cultura, o homem perde sua voz frente à totalidade, ele é assimilado por completo. Tal como as partes na música popular ou as notícias do Jornalismo Policial, o indivíduo constituído sob a influência da indústria cultural não passa de um exemplar do todo, ele é incapaz de tensionar a sociedade que o circunda, contradizê-la, e esta, por conseguinte, perde sua vida, perde sua mobilidade: "Na Alemanha, a paz sepulcral da ditadura já pairava sobre os mais alegres filmes da democracia." (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 104). Essa falsa harmonia absoluta entre indivíduo e sociedade - eis o problema central em direção ao qual o conceito de indústria cultural aponta.

 

Liquidação do trágico, liquidação do indivíduo

Ao contrário de certa opinião predominante em seu tempo, segundo a qual a dissolução do poder da religião, combinada com o aprimoramento técnico e o aprofundamento da divisão do trabalho impostos pelo regime capitalista, teria produzido um "caos cultural", Adorno e Horkheimer (2006, p. 99) defendem que a indústria cultural, ao articular todos os meios formando um sistema totalitário de produção da cultura, foi capaz de alcançar uma padronização desta como nunca antes fora visto.

Esta unidade cultural acarreta implicações profundas tanto na constituição do indivíduo contemporâneo como na organização de nossos regimes políticos e sociais. Isso porque a relação do indivíduo com a indústria cultural é um dos principais fatores na construção do homem adequado aos regimes capitalistas. É este processo de gestação que discutimos a seguir, procurando mostrar que tipo de indivíduo é este que nasce da exposição intensiva à indústria cultural.

 

Indústria cultural e logro: a constituição de um sistema totalitário

No cerne da compreensão da indústria cultural está a ideia de logro. Segundo Adorno e Hokheimer (2006), a indústria cultural logra seus consumidores com uma promessa de prazer nunca efetivamente realizada. Ao contrário da verdadeira obra de arte, em que o espectador poderia encontrar um canal de sublimação para sua vida pulsional, o que a indústria cultural oferece, disfarçado com roupagem de satisfação, é nada mais que o próprio recalque.

A indústria cultural se esforça para manter longe de si a ameaça de perdição. Para tanto, ela deve sempre percorrer o mesmo caminho, o caminho seguro: como vimos, aquele que já demonstrou sua eficácia. O caráter fluido do objeto da pulsão, no entanto, é incompatível com tamanha estabilidade. A indústria cultural promete satisfação absoluta, mas tudo o que ela pode oferecer são os mesmos e desgastados objetos de sempre. Por essa razão a arte autêntica é despudorada, pois nega aquilo a que o indivíduo está conformado e busca outra forma de satisfação da pulsão.

As imagens da indústria cultural, fetiches de objetos de desejo, não podem nada além de simular uma experiência de satisfação. O indivíduo se acostuma com aquele padrão que teima em surgir e reage com cada vez menos intensidade. Seja a exposição do corpo nu, sejam cenas de extrema violência, a apresentação indiscriminada faz com que o produto se vulgarize, deixe de ter qualquer significação, deixe de demovê-lo. A indústria cultural tende a gerar apatia. Ela abafa a vida pulsional forçando o indivíduo a se satisfazer com algo que não corresponde ao seu desejo.

Mais do que isso, a indústria cultural logra seus consumidores não apenas porque promete algo que não consegue cumprir, mas também porque faz parte de sua estrutura vender-se como o único lócus de satisfação possível para o indivíduo. Ela não só diz que a felicidade se encontra nela, como também que a felicidade se encontra apenas nela. Em sua ubiquidade, a indústria cultural batalha para que o indivíduo não lhe escape nem por um segundo. Tudo o que ele precisa é encontrado nela, desde que nunca saia da posição de consumidor.

Nesse sentido, começamos a compreender como a indústria cultural, ao exercer o papel de modelo formativo para os indivíduos, implica em um tipo de castração sobre a vida pulsional muito específico, que se liga muito menos ao conteúdo do objeto de desejo e muito mais ao modo de desejar e à forma de refletir sobre esse desejo: o desejo não pode escapar à esfera do consumo. A relação entre a indústria cultural e o sistema capitalista começa a se estreitar:

Contrariamente ao que se passa na era liberal, a cultura industrializada pode se permitir, tanto quanto a cultura nacional-popular [völkisch] no fascismo, a indignação com o capitalismo; o que ela não pode se permitir é a abdicação da ameaça de castração. Pois esta constitui a sua própria essência. [...] O que é decisivo, hoje, não é o puritanismo [...], mas a necessidade imanente ao sistema de não soltar o consumidor, de não lhe dar em nenhum momento o pressentimento da possibilidade da resistência. (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 117)

Qualquer coisa é permitida, desde que não escape aos limites do imperativo do consumo. E para alcançar tamanha realização, a indústria cultural não poupa esforços. A temporalidade de seus produtos, por exemplo, é própria a um tipo de relação não reflexiva com o objeto. O tempo acelerado das sequências cinematográficas impede o espectador de fazer outra coisa que não a recepção quase passiva de séries de conteúdos. Assim como no mundo do trabalho, em que o imperativo da produtividade obriga o indivíduo a estar todo o tempo focado em seu ofício, os produtos da indústria cultural buscam sugar toda sua atenção e energia restantes durante seu período de lazer. Dessa forma, fica especialmente mais difícil o desenvolvimento de qualquer reflexão mais densa sobre sua condição de existência. Sem condições para fazer a crítica a seu próprio modo de vida, porém sem deixar de sentir o sofrimento que este lhe impinge, tudo o que resta ao indivíduo é buscar uma vez mais um alívio momentâneo, alguma forma de anestésico, alguma gratificação menor; coisa que é a especialidade da indústria cultural. Adorno e Horkheimer (2006, p. 104) falam, assim, em uma "atrofia da imaginação".

A frustração proveniente da relação de logro não deixa, no entanto, de se fazer sentir. Aqui nos deparamos com um dos artifícios mais astutos da indústria cultural que é sua capacidade de usar a força daquilo que resiste ao seu poder para alimentar ainda mais o seu modo de produção. Ao invés de se contrapor às tendências que se lhe opõem, a indústria cultural captura tais tendências e as transforma em novos mercados. Exemplos clássicos desse movimento são as linhas de produtos destinadas ao público que se identifica com ideários contrários ao sistema capitalista, como camisetas estampadas com a foto de Che Guevara ou roupas de estilo hippie. Outro exemplo pode ser encontrado no próprio jornalismo policial. Por um lado, esses programas nascem da frustração e insatisfação social com a violência. No entanto, ao invés de propor saídas concretas para o problema, os programas oferecem apenas um momento de lamentação e reclamação (Borges, 2002; Moura, 2015). Nenhuma mudança social é efetivamente pautada e, assim, reforça-se o próprio sistema social que gera essa violência.

Como Adorno indica, a relação dos indivíduos com a indústria cultural nunca é totalmente passiva. Pelo contrário, o engodo desta é sensível em algum nível, o que aponta para uma clivagem no sujeito, o qual parece aceitar os padrões impostos mesmo reconhecendo sua falsidade:

de um lado, os homens se subordinam aos mecanismos da personalização como estes são promovidos pela indústria cultural [...]. Mas, ao mesmo tempo, basta avançar um pouco além da superfície, sem precisar recorrer a entrevistas profundas, pois é muito fácil constatar isso, todos os homens a rigor sabem que a princesa Beatriz, a senhora Soraya etc., não têm toda essa terrível importância. (Adorno, 2008, pp. 343-344)

Assim, aquela passividade receptiva só pode ter lugar, de fato, por meio de um processo ativo realizado pelo consumidor. Paradoxalmente, a diversão depende de um esforço de negação da frustração. A relação com o produto é, portanto, ambivalente: um gostar obrigado, um gostar carregado de rancor.

Adorno e Simpson (1994) notam como esse rancor poderá se manifestar quando os hits da música popular começam a perder sua popularidade e sair de moda. Neste momento, toda a raiva dirigida ao objeto poderá ser expressa, e a música, antes ouvida incessantemente, será desprezada e considerada ridícula com a mesma velocidade com que ganhara notoriedade.

Mas a manifestação do rancor abre espaço não para um novo tipo de material, e sim para mais uma investida da indústria cultural. Assim, dada essas diversas frustrações, os produtos da indústria cultural não geram alívio, mas sim mais tensão, mais raiva, mais revolta, que precisarão encontrar alguma forma de expressão, algum objeto sobre o qual se depositar. O indivíduo, em busca de satisfação para suas necessidades, avança assim em uma série compulsiva de novos produtos. No entanto, a almejada satisfação nunca é alcançada, pois o indivíduo fica preso a alternativas estereotipadas que nunca resolvem seu problema. E este, portanto, nunca perde sua importância e urgência.

Concluindo, vemos que o esquema montado pela indústria cultural é de uma complexidade e de uma capacidade de manipulação extremamente aguçadas. De forma sumária, poderíamos dizer que ela logra seus consumidores uma primeira vez com uma promessa de prazer que não pode realizar; engana-os ainda uma segunda vez ao transmitir a ideia de que, apesar de possíveis frustrações, é apenas nela que verdadeiras experiências de satisfação são possíveis; paralisa a capacidade crítica de seus interlocutores por meio do controle dos conteúdos apresentados e do tempo de apresentação; e ainda reverte em suplemento para seu poder toda força que resiste à sua imposição, integrando essas forças em sua própria lógica. Como resultado, temos uma estrutura cultural totalitária, quase inescapável, cujos efeitos na subjetividade, na vida social e na esfera política são abrangentes.

 

Indústria cultural e conformismo: enraizamento do capitalismo como forma de vida

A partir destes mecanismos de logro da indústria cultural, pode-se perceber de que forma esta funciona como um dispositivo central para a manutenção da atual ordem social. Um de seus efeitos mais contundentes é exatamente a acentuação da reificação de nossa realidade social. Ao reduzir a esfera do possível à esfera do existente, ao abafar qualquer possibilidade de ruptura com o estabelecido, a indústria cultural impõe um regime identitário na relação entre o indivíduo e a realidade. Além disso, circunscreve toda relação cultural a relações mercantis, regidas, como em qualquer mercado, pelo princípio da troca e da equivalência. O homem assim criado nada mais pode ser do que um apêndice do mercado, pensando todas suas relações a partir de modelos de rentabilidade e eficiência. Ele não é mais apenas o grande acumulador de capital, como nos tempos do capitalismo industrial, mas sim o grande consumidor, que passa a vida comparando os tipos de experiência que o mercado pode oferecer e escolhendo as que oferecem o melhor custobenefício. Em outras palavras, defrontamonos com o homem que rege sua vida conforme os ditames da razão instrumental, pronto para calcular os melhores meios de se manter onde está, mas incapaz de qualquer reflexão sobre o sentido de sua existência.

A esfera do lazer e a esfera da cultura são, portanto, dois dos principais dispositivos ideológicos do capitalismo, intensificando e complementando os efeitos da esfera do trabalho. Cansados da vida acelerada e desgastante que o mercado lhes impõe, aos trabalhadores não resta outra coisa que a busca de certo relaxamento em seu tempo livre. É na colonização deste tempo livre que reside o golpe fatal da indústria cultural:

A distração está ligada ao atual modo de produção, ao racionalizado e mecanizado processo de trabalho a que as massas estão direta ou indiretamente sujeitas. Esse modo de produção, que engendra temores e ansiedades quanto a desemprego, perda de salário e guerra, tem o seu correlato "não-produtivo" no entretenimento: isto é, num relaxamento que não envolva nenhum esforço de concentração. As pessoas querem divertir-se. Uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress, não impõem tanta solicitação, a ponto de, em seu tempo livre, eles só quererem alívio simultaneamente do tédio e do esforço. (Adorno & Simpson, 1994, p. 136)

Ao oferecer distração, a indústria cultural, em um mesmo movimento, repõe as energias do corpo social para que o indivíduo possa retomar a vida produtiva e condena cada consumidor a adotar o seu modo de ver o mundo. Contrariamente à verdadeira arte, este é o real produto da indústria cultural: ela oferece a segurança do já conhecido, em oposição à experiência disruptiva da arte.

Isso é exatamente o que o jornalismo policial faz. Ao transformar a violência em um espetáculo, é oferecida uma distração familiar e reconhecível (Moura, 2015). Apresenta-se aos indivíduos um material que não lhes exige posicionamento e, ao mesmo tempo, os entretêm. Esse conteúdo é inserido no cotidiano, com apresentações diárias, e consumido como algo trivial. Dessa forma, garante-se um posicionamento apático diante de questões que mereciam uma discussão mais elaborada, como é o caso da criminalidade urbana. Somente uma experiência genuinamente nova com esse conteúdo poderia proporcionar uma ruptura com questões do sistema vigente. Assim, mesmo revestido com um tom de denúncia, o Jornalismo Policial figura como mais um produto que protege o status quo.

Nesse movimento da indústria cultural, fica condenado à mesmice o único espaço na vida individual em que experiências realmente novas poderiam constituir-se, cristalizando as relações do indivíduo com seu mundo circundante. Mas neste ponto surge uma contradição, pois ao buscar sair da monotonia do trabalho o indivíduo se depara com a monotonia da produção cultural. Explica-se, deste modo, a desatenção que com frequência costuma acompanhar a audição da música popular:

A impossibilidade de fugir causa a difundida atitude de falta de atenção na música popular. O momento do reconhecimento é o da sensação sem esforço. A súbita atenção ligada a esse momento se extingue do modo mais instantâneo, relegando o ouvinte ao âmbito da desatenção e da distração. Por um lado, o domínio da produção e da promoção pressupõe distração e, por outro lado, eles a produzem. (Adorno & Simpson, 1994, p. 137)

Vê-se assim que o tempo livre, aquele no qual teoricamente o indivíduo poderia aproveitar os frutos colhidos em seu tempo de trabalho, acaba por tornar-se apenas uma continuação deste. A vida acaba por dissolver-se na velocidade das notícias do telejornal ou na rápida sequência do filme de ação:

Mas a afinidade original entre os negócios e a diversão mostra-se em seu próprio sentido: a apologia da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última ideia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir. A liberação prometida pela diversão é a liberação do pensamento como negação. (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 119)

Essa estereotipia dos produtos da indústria cultural, contudo, não corresponde apenas à estafa dos trabalhadores devido ao ritmo de trabalho, mas é, também, uma contraparte da constante tensão decorrente da ameaça vivida por eles no mundo capitalista. Neste, nunca se está completamente seguro de sua inclusão, e o medo de ser excluído a qualquer dia da totalidade social por não mais estar adequado ao mercado se faz presente.

Por outro lado, ao representar a vida, a indústria cultural não deixa de registrar o aspecto trágico que lhe habita. Ao contrário da ideologia como promessa de uma vida melhor ainda por vir, a ideologia da indústria cultural não esconde que a felicidade, no sistema capitalista, pode apenas parcialmente ser alcançada. Ela chega mesmo ao ponto de apropriar-se dessa tragédia para transformá-la em mercadoria. Seu caráter ideológico está menos no quadro da realidade que ela permite que se entreveja, e mais no fato deste quadro ser apresentado como inelutável.

O trágico da vida, cuja origem residia na resistência daquele que se recusava a conformar-se com as forças míticas, é, assim, transformado em nada mais que o sofrimento inevitável daquele que se resigna ao seu destino, por mais que este seja detestável. O trágico se reduz ao sofrimento causado pela falsa harmonia entre indivíduo e totalidade social. Com isso, a indústria cultural destrói a compreensão histórica do mundo social. Este se petrifica frente aos olhos dos consumidores, torna-se uma lei inexorável do universo. É assim, na afirmação cínica das relações sociais dadas, que a indústria cultural esconde o seu segredo, pois tal cinismo transmite, subentendida, a ideia de que nada há para ser feito:

A mentira não recua diante do trágico. Do mesmo modo que a sociedade total não suprime o sofrimento de seus membros, mas registra e planeja, assim também a cultura de massas faz com o trágico. Eis por que ela teima em tomar empréstimos à arte. A arte fornece a substância trágica que a pura diversão não pode por si só trazer, mas da qual ela precisa, se quiser se manter fiel de uma ou de outra maneira ao princípio da reprodução exata do fenômeno. O trágico, transformado em um aspecto calculado e aceito do mundo, torna-se uma bênção para ele. Ele nos protege da censura de não sermos muito escrupulosos com a verdade, quando de fato nos apropriamos dela com cínico pesar. (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 125)

Atrelada a esse cinismo, a afirmação dos valores ideológicos da sociedade industrial pode prescindir da clareza e da sistematicidade de um conjunto articulado de inverdades. É de forma difusa, muitas vezes sem nomear-se, que o corpus ideológico contemporâneo penetra na vida individual. Os imperativos do consumo, da cooperação, da conformidade, da resiliência são transmitidos de forma sutil, de modo que capturam os indivíduos muito antes que estes tenham qualquer clareza sobre o processo a que estão sendo sujeitados. Essa nebulosidade, consequentemente, não torna a ideologia mais fraca nem mais vulnerável, e sim muito mais penetrante. De modo que o indivíduo, amansado e mutilado, quando defrontando o mosaico das relações sociais de poder, nada pode fazer além de se sentir incapaz. Tudo o que lhe resta é baixar a cabeça e seguir o caminho apontado.

Ao fazer a apologia do que existe e minar no indivíduo a capacidade de transcender a ordem estabelecida, a indústria cultural constrói uma falsa ordem, pois se trata de uma ordem que não se deixa penetrar pelo raciocínio dialético indispensável à verdadeira construção de uma totalidade social. Adorno e Horkheimer falam de uma sociedade de desesperados: o sistema não apenas gera medo no seu próprio interior (medo de desemprego, abandono, violência etc.) como também incute constantemente o medo de que qualquer mudança ocorra. O capitalismo pode até ser visto como um mau sistema social, mas deve ser visto como o único possível - ou, ao menos, o melhor possível.

 

Indústria cultural e mutilação do sujeito

Vemos, assim, como a exposição intensiva à indústria cultural serve para a petrificação do sujeito e da realidade social. Tal como o detalhe da música completamente planejada, o indivíduo conformado à totalidade se transforma em um particular sem vida, sem capacidade de tensionar o todo, sem capacidade de produzir deriva. A partir do momento que a possibilidade de transformação do particular é restringida, limita-se também a possibilidade de transformação do todo, pois uma transformação não existe sem a outra.

Vale lembrar, neste ponto, a centralidade que a experiência estética ocupa no pensamento adorniano voltado para a crítica do sujeito e da sociedade. No texto Sobre música popular (1994), ele e Simpson condenam, inclusive, tentativas de contraposição ao sistema que se utilizam de padrões da indústria cultural como meio de divulgação. Assim, críticas ao capitalismo que tenham por veículo músicas conformadas a estes padrões de composição estariam fadadas a não alcançar seu objetivo, pois o veículo utilizado seria, em si mesmo, repressivo: "Tais inconsistências indicam que convicção política e estrutura sociopsicológica em nada coincidem" (Adorno & Simpson, 1994, p. 139). No fundo, os autores estão defendendo que pouco pode fazer, no nível social, o indivíduo impossibilitado de viver uma verdadeira experiência estética. Ou seja, aquele que é incapaz de reconhecer a padronização operada pela indústria cultural também será incapaz de operar uma mudança social, estando, portanto, condenado a apenas reproduzir o status quo, mesmo que com roupagem de resistência.

Por esta razão, Adorno e Horkheimer (2006, p. 127) afirmam que "[a] liquidação do trágico confirma a eliminação do indivíduo". O indivíduo da sociedade capitalista, marcada pela indústria cultural, tende a tornar-se uma ilusão, pois sua identidade pode existir apenas como identidade com o universal. Ele é padronizado tanto quando ingressa na esfera de trabalho, e deve seguir uma lógica que lhe é imposta, quanto no momento em que liga a televisão e deve conformar-se com o engodo da indústria cultural.

A indústria cultural, ao colonizar os mais diversos aspectos da vida individual, promove a reificação da personalidade. A "mimese compulsiva dos consumidores" (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 138) estabelece padrões de comportamento para quase todo tipo de situação, e a individualidade tende a manifestar-se apenas como pseudo-individualidade, ou seja, aquele efeito que aparentemente destoa do padrão, mas que o faz sempre de forma planejada. O indivíduo que assim se produz é o contrário do sujeito autônomo e independente. Sua capacidade de realizar um julgamento crítico sobre o mundo que o produz fica limitada, e, portanto, a própria condição para a constituição de um verdadeiro regime democrático é abalada.

 

Referências

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Recebido em: 05/11/2018
Aprovado em: 03/11/2019

 

 

1 Obviamente, ainda existem grandes diferenças e conflitos entre aqueles que estão no controle do processo (tanto entre diferentes empresas como dentro de cada empresa). No entanto, como em linhas gerais suas estratégias de ação são muito próximas, não nos parece problemático indicar esse pólo econômico como um todo relativamente unitário.
2 Referir-nos-emos, seguidamente, ao longo do texto, à situação da música no interior da indústria cultural. Este foco se deve à prioridade que a análise da música tem na obra de Adorno. Estes padrões de produção, no entanto, podem ser facilmente identificáveis como aspectos constituintes da indústria cultural como um todo, como a própria obra dos frankfurtianos indica.

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