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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo set./dez. 2020

 

DOSSIÊ - ESTUDOS SOBRE CONTEXTOS DE DESIGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA SÓCIO HISTÓRICA

 

De desamparado a empoderado: o assistencialismo produtivo na era do empreendedorismo

 

From helpless to empowered: the productive assistentialism in the era of entrepreneurship

 

De desamparado al empoderado: el asistencialismo productivo en la era del emprendedorismo

 

 

Antonio Euzébios Filho

Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2005). Concluiu o Mestrado (2007) e o Doutorado (2010) pelo programa de pós-graduação em Psicologia da PUC-Campinas. Tem experiência na área da Psicologia Social, Psicologia Escolar e Educação, atuando principalmente em contextos educativos e comunitários. Atualmente é professor assistente doutor do Instituto de Psicologia da USP, departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Desenvolve estudos de temáticas como: participação política e psicologia e políticas públicas / aeuzebios@hotmail.com

 

 


RESUMO

Ontem, o desamparado. Hoje, empreendedor. O sujeito da pobreza deixa de ser uma preocupação exclusiva do Estado providência e torna-se também objeto de atenção do universo empresarial. A crescente participação do privado nas políticas sociais, provocaram um casamento entre empreendedorismo e empoderamento. O empreenderorismo social é fruto desta união e tem como objetivo ampliar a capacidade de consumo dos mais pobres. Isto ocorre em alinhamento com as transformações do mundo do trabalho. Ainda que tenha havido alterações superficiais, a ação social continua contribuindo para aprimorar o modelo secular do assistencialismo, alcançando o que denominamos de assistencialismo produtivo. Este se caracteriza pela ação social que busca fomentar consumidores sem deixar de romper com o modelo vigente de meritocracia e dominação social. Concluímos que esta nova configuração de assistencialismo responsabiliza ainda mais o indivíduo isolado pelas mazelas do capitalismo, sendo este o principal responsável pelo sucesso ou fracasso consagrados pelo modelo empresarial.

Palavras-chave: Empoderamento; Empreendedorismo; Assistencialismo; Políticas sociais; Pobreza.


ABSTRACT

Yesterday, the helpless. Today, entrepreneur. The subject of poverty ceases to be an exclusive concern of the welfare state and also becomes the object of attention of the business world. The increasing participation of the private in the social policies provoked a marriage between entrepreneurship and empowerment. Social entrepreneurship is the fruit of this union. It aims to increase the consumption capacity of the poorest. This happens considering transformations in the work´s world. Even with superficial modifications, the social still contributing to improve the secular model of assistencialism, reaching what we call productive assistentialism. This is characterized by social action that seeks to promote consumers without breaking the current model of meritocracy and social domination. We conclude that this new configuration of assistentialism further blames the individual isolated by the ills of capitalism, and this is the main responsible for success or failure consecrated by the business model.

Keywords: Empowerment; Entrepreneurship; Assistencialism: Social policies; Poverty.


RESUMEN

Ayer, desamparado. Hoy, emprendedor. El sujeto de la pobreza deja de ser una preocupación exclusiva del Estado providencia y se convierte también objeto del universo empresarial. La creciente participación del privado en las políticas sociales, provocó un matrimonio entre emprendedorismo y empoderamiento. El emprendedorismo social fue fruto de esta unión y tiene como objetivo ampliar la capacidad de consumo de los más pobres. Esto ocurre con las transformaciones del mundo del trabajo. Mismo con modificaciones superficiales, la acción social contribuye para perfeccionar el modelo secular del asistencialismo, alcanzando lo que denominamos del asistencialismo productivo. Este es caracterizado por la acción social que busca fomentar consumidores sin dejar de romper con el modelo vigente de meritocracia y dominación social. Concluimos que esta configuración del asistencialismo responsabiliza aún más al individuo aislado por las mazelas del capitalismo, siendo éste el principal responsable por el éxito o fracaso consagrados por el modelo empresarial.

Palabras clave: Empoderamiento; Emprendimiento; Asistencialismo; Políticas sociales; Pobreza.


 

 

Introdução

Ontem, o desamparado. Hoje, o empreendedor. Há muito que o sujeito da pobreza - isto é, a pessoa que, independentemente da sua vontade não dispõe de condições mínimas de vida digna, dada a posição que ocupa no mundo do trabalho - deixa de ser uma preocupação exclusiva do Estado providência e se torna também objeto de atenção do universo empresarial. Não se caracteriza apenas como temática da política social, mas de um campo mais amplo, porém, difuso (e porque não rentável): a "ação social".

Neste tipo de ação cabe tudo que venha do privado em direção ao campo abstrato do "social" (Cesar, 2008). É uma definição empírica, que engloba tanto ações pontuais como megaprojetos na área da responsabilidade e do empreendedorismo social, além de outros usos e desusos do termo "social". A ação social pode ser executada por todos os atores da sociedade civil e geralmente está localizada no chamado terceiro setor (Montaño, 2002). O agente privilegiado desta ação é o empreendedor social (Oliveira, 2004). Os projetos que desenvolvem podem apresentar rigor científico e metodológico ou simplesmente não requerer nenhuma exigência técnica ou teórica (Montaño, 2002; Oliveira, 2004).

Na área social, valoriza-se, sobretudo, a vontade de mudar o mundo (fincada em uma perspectiva igualmente abstrata de "transformação social"). É o que também parece mover o empreendedorismo social, embora este geralmente vislumbre uma ação social profissional estruturada como uma empresa: análise de impacto, monitoramento e avaliação dos resultados. Diferentemente do simples voluntariado, espera-se do empreendedor social uma combinação de engajamento, pragmatismo (próprio do mundo empresarial) e inovação (Oliveira, 2004).

Neste sentido, Oliveira (2004, p. 10) entende o empreendedorismo social no âmbito do empreendedorismo privado, ressaltando a primazia do profissionalismo de ambas as perspectivas. O que elas divergem, porém, é que o primeiro se diferencia do segundo por não visar lucro. Trata-se de um conjunto de ações de "visionários (...) [mas que, sim] "executam o negócio do social."

Com efeito, é importante informar que este ensaio teórico não se dirige ao questionamento do profissionalismo e da seriedade de determinados agentes e projetos sociais. Também não temos a pretensão de aferir a boa vontade da "ação social", ou ainda questionar a importância de empreender no sentido de criar algo novo. Questionamos o fato de a lógica do "negócio do social" (Oliveira, 2004, p. 10) ter invadido a política social e assim estar contribuindo para o acirramento de um processo de desresponsabilização do Estado. Como uma das consequências práticas, vemos uma acelerada desregulamentação das políticas sociais. Outra consequência - não imediata, mas que para nós é decisiva e constitui o escopo deste artigo - é tornar o discurso da meritocracia, implícito na noção de empreendedorismo social, artifício de culpabilização individual pelo sucesso ou fracasso empresarial.

Por outro lado, seria possível admitir que a ação derivada do mundo dos negócios, que mede os impactos sociais e supostamente produz inovação, geraria uma ação social profissional capaz de substituir o lugar da caridade, cujo princípio constitui a base do assistencialismo. Pode ser verdade, em muitos casos. Mas também é necessário observar que o velho assistencialismo permanece intacto ou que simplesmente convive com uma nova modalidade de voluntarismo: uma espécie de assistencialismo produtivo. Procuramos ao longo do texto elucidar este conceito, que constitui objeto de nossa reflexão.

Argumentaremos que o assistencialismo produtivo deve ser compreendido como toda e qualquer ação social estruturada entre as noções de empreendedorismo e empoderamento, mas que não abre mão do modelo secular de dominação social e econômica, manifestado pela dependência e pela servidão características da relação objetiva entre classes sociais. É um assistencialismo que culpabiliza o indivíduo isolado pelo sucesso ou fracasso empresarial - elevando, assim, o poder de controle inclusive psicossocial - do capital sobre o sujeito potencialmente rebelde ou desajustado, ao mesmo tempo em que atua para aumentar o poder de consumo e de produtividade do pobre, nos marcos exigidos pelo neoliberalismo. É mais um paradoxo dos tempos atuais.

O assistencialismo produtivo se configura em um cenário econômico que demanda reconfigurações da ação social, não mais baseada na caridade, mas que integre o pobre à cadeia produtiva. O alvo das políticas sociais não é mais, necessariamente, o sujeito a ser acolhido ou amparado, mas cobrado pelos resultados em produtividade e consumo. Neste sentido, a relação de poder prescrita no assistencialismo clássico, entre o que dá e o que recebe, permanece intacta. Preconceitos e processos de humilhação social (Gonçalves, 1998) permanecem mediando as relações de poder na dialética da inclusão/exclusão (Sawaia, 1999). E em nada se altera a desigualdade de renda, tampouco de classe.

Assistencialismo pode ser caracterizado, estruturalmente, como ação que busca harmonizar a relação entre classes sociais antagônicas, fomentando a naturalização da "questão social" (Netto, 2007) - assim como da desigualdade social. Historicamente, a ação assistencialista no Brasil confunde-se com a noção de assistência haja vista o trato característico que o Estado brasileiro reserva, no passado e no presente, aos menos favorecidos economicamente (Fidelis, 2005).

Assistência é um termo muito mais amplo. Segundo Fidelis (2005), envolve qualquer tipo de ação em que um agente presta assistência ao outro. O assistencialismo, por sua vez, é uma qualificação desta assistência: também envolve no mínimo dois agentes, um presta assistência ao outro, mas esta relação está caracterizada, fundamentalmente, pela manutenção das relações de poder econômicas, sociais, culturais e políticas.

A ação social mostra seu lado assistencialista pela grande dose de espontaneísmo (em alguns casos, combinado com um pragmatismo) no trato com os direitos sociais, ainda que seja caracterizada, muitas vezes, como um negócio no sentido empresarial (Montaño, 2005). Uma ação aparentemente moderna, mas que apresenta os mesmos traços de colonialidade capitalista daqueles observados por Faleiros (2004) e Antunes (1982), quando estes autores tratam de analisar como o Estado brasileiro, historicamente, vem naturalizando a pobreza e tutorando o pobre como marginal.

Ainda é necessário, mais uma vez, observar que nosso julgamento da ação social empreendedora não é moral. Não é fácil julgar a intenção de quem quer mudar ou não a realidade. Aparentemente, todos querem alguma mudança - a questão é analisar os diferentes significados do que seja mudança social. Interessa-nos, particularmente, o concreto da ação social: mais uma vez, que ela contribui para substituir o Estado. Mais ainda: para o privado substituir o público. Assim, o direito se tornar favor no cenário da desregulamentação das políticas e dos direitos sociais. Também nos interessa refletir sobre a dimensão psicossocial presente no processo de dominação, implícito ao fenômeno do empreendedorismo social.

Sobre o empreendedorismo, cabe informar que ele não se apresenta como novidade. Não se trata de uma invenção do neoliberalismo, embora seja muito útil no contexto social e econômico na atualidade. O conceito anunciou-se nos primórdios do liberalismo (Costa, Barros, & Carvalho, 2011). Empreendedorismo social é que se mostra relativamente novo, pois remete a tempos não tão distantes: da redução do investimento público no campo social, do crescimento do terceiro setor e da participação crescente das empresas nesta área tão abrangente quanto imprecisa (Costa et al., 2011). São estes alguns elementos que impulsionaram a chamada era do empreendedorismo (Costa et al., 2011), que invadiu também o campo social. É o vislumbre de reduzir qualquer aspecto da vida à uma empresa. Pensar, agir e sentir como empresa, diz Ehrenberg (2010).

Com efeito, o que vai se colocando é que, no palco dos projetos sociais o sujeito amparado e sem direito, ávido pela ajuda, não se sustenta mais. O olhar sobre o sujeito pobre (sujeito, por excelência, da ação social) no cenário do capitalismo neoliberal vem demandando reconfigurações. Antes, um sujeito da caridade. Atualmente (também) um sujeito empreendedor, empoderado pelo consumo.

É que a realidade brasileira e mundial mudou substancialmente. O capitalismo em escala global sofre uma crise estrutural que foi intensificada pelo fenômeno da superprodução (Antunes, 2003) e vem sendo caracterizada também pela generalização de processos destrutivos: contra a natureza e contra a vida humana. No que se refere, especificamente, ao mundo do trabalho, é importante notar que houve alterações significativas, sendo algumas delas: flexibilização das leis trabalhistas com as terceirizações, a precarização do trabalho com o rebaixamento das questões salariais, redução de pessoal e aumento da produtividade, entre outros aspectos (Antunes, 2003, 2010). Estes e outros elementos caracterizam elementos fundamentais da crise estrutural do capitalismo.

A precarização das condições de vida e de trabalho pede que os mecanismos de transferência da responsabilidade do Estado para o indivíduo isolado sejam aperfeiçoados. Assim, a política de cidadania dá espaço para o civismo individual, afirma Ehrenberg (2010), que descreve um cenário de desregulamentação, também, das políticas sociais. Além disso, a nova etapa do capitalismo - conhecida como neoliberal - vem demandando ações que ampliem o mercado consumidor, dentre elas, ações de empreendedorismo na área social.

Atualmente, a ação social vem tomando lugar da garantia de direitos e apresenta algumas características. Primeiro: torna-se apêndice do empreendedorismo pela necessidade de gerar consumidores na crise de superprodução do capitalismo (Euzébios, 2010). Segundo: não se trata apenas de formar quaisquer empreendedores: o objetivo é produzir empreendedores de si mesmo, que são responsáveis, inclusive, pelo êxito da ação social que foram alvos. Aí que o empreendedorismo social se torna parte da ideologia dominante1, considerando, dentre outras questões, que ele contribui para fomentar relações de poder por meio da culpabilização do sujeito isolado pelo sucesso ou fracasso, medidos pela régua empresarial.

O viés ideológico do empreendedorismo social também se manifesta quando fomenta narrativas de convencimento do trabalhador e do sujeito pobre, que colocam o desemprego e a pobreza como dados de personalidade (Euzébios, 2010). Pede-se (não sempre educadamente) a eles que entendam que a solução para o problema social e histórico que vivem está em si mesmo (Ehrenberg, 2010). Então, contando apenas consigo, o indivíduo deve ir ao mercado para aquisição não apenas de produtos, mas de uma série de habilidades sócio-emocionais, por exemplo: ser comunicativo, persuasivo, trabalhar em equipe, polivalente, entre outros requisitos de personalidade mediados pela capacidade deste mesmo sujeito se empoderar. Daí que se estabelecem também os discursos de liderança corporativa, apenas para citar mais um exemplo (Casalotti, 2017; Oliveira, 2004).

Discursos e práticas que moldam a figura do trabalhador moderno do toyotismo (Antunes, 2010) vão tornando a ação do setor privado na área social muito mais que uma aventura empreendedora, "sonho" ou ação "visionária" (Oliveira, 2004, p. 12). Trata-se de aprimorar um modelo secular de dominação social e econômica.

Nesta esteira, o terceiro setor torna-se muito mais que uma excrescência da política social. Este outrora atuava apenas como parceiro do Estado, limitando-se a dar cobertura para execução de determinada política pública. Com as terceirizações e a lógica do privado atingindo diretamente a gestão pública, as entidades empresariais do terceiro setor, de diferentes origens e tradições, colocam-se no centro da gestão e do funcionamento das próprias políticas públicas, sejam nas áreas da Saúde, Educação e Assistência Social, para ficar nestes exemplos. Trata-se de uma desregulamentação da política social voltada, paradoxalmente, para regulamentar o setor privado no trato com o "social".

Devemos reconhecer imediatamente que o empreendedorismo social, quando muito, se presta a mudar aspectos particulares da vida de um grupo ou comunidade. Não se propõe a transformar a realidade estrutural, social e econômica. Nem podemos acusá-lo de não o fazer. Sejamos honestos, ele sequer promete o feito. Contudo, o que ele também não anuncia é que continua a aprimorar o modelo secular do assistencialismo ao mesmo tempo em que deve fomentar o consumo individual, manter o modelo vigente de meritocracia e a dominação social, sem se responsabilizar pela mudança social. É desse aprimoramento que discutiremos no artigo.

Essa reinvenção do assistencialismo revela, sem dúvida, a predominância da agenda neoliberal no campo social, construída a partir de duas propostas: a primeira, historicamente baseado na caridade, e a segunda - não excluindo necessariamente a primeira - conforma-se na noção de inclusão pela produtividade: esta entendida não apenas como capacidade de trabalho, mas também de consumo.

Trata-se do resultado histórico da combinação entre assistencialismo e repressão (Faleiros, 2004), como é característico da política social de um país cujos traços econômicos e sociais remetem à uma história temperada na marginalização da população nativa e dos trabalhadores mais pobres. Para estes, os sujeitos desamparados da caridade, restavam o assistencialismo baseado no voluntariado, na segregação econômica e na humilhação social. Mas, atualmente, emerge um tipo diferente do assistencialismo. Voltado ao consumo.

O capitalismo just in time precisa se recriar a todo momento. Mas necessita, sobretudo, de consumidores. É um paradoxo considerando o cenário de precarização e desempregabilidade, que se agrava ainda mais no neoliberalismo.

Pois bem, feita esta introdução torna-se conveniente mencionar que a nossa trajetória argumentativa, organizada nos tópicos que se seguem, se estabeleceu assim: em um primeiro momento, buscamos compreender como nasceram os conceitos de empreendedorismo e empoderamento e o significado destes termos para as transformações recentes no mundo do trabalho, em um cenário de intensificação da agenda neoliberal, inclusive na área "social". Em seguida, trataremos da concepção empreendedora do sujeito pobre, que invade a política social dando novos contornos à noção de assistencialismo. Finalmente, para caracterizar o que denominamos de assistencialismo produtivo, vamos tratar de localizar alguns atores, caracterizar lemas e ações desenvolvidas pelo empreendedorismo social no Brasil.

 

Casamento do Empreendedorismo Social com o Empoderamento: Um Negócio de Sucesso.

Nem o conceito de empreendedorismo nem de empoderamento são contemporâneos. A combinação destes dois e a subordinação do segundo ao primeiro que é relativamente novo. Este casamento foi sacramentado no seio das transformações do mundo do trabalho, decorrentes do que se convencionou chamar de neoliberalismo. O empreendedorismo social foi então moldado para substituir as políticas sociais (Costa et al., 2011).

A noção de empreendedorismo surge nos primórdios do liberalismo. Constitui, como afirmou Costa et al. (2011), elemento importante do período clássico de formação do capitalismo. Neste período, ainda segundo os autores, o empreendedor era aquele que realizava a intermediação entre os produtores e consumidores. Basicamente, remetia a figura do empresário. Era um sujeito considerado inventivo e também apto aos negócios. Comerciante, artesão, pequeno produtor, o homem das finanças e qualquer outro que se atrevesse a interagir com as regras do mercado. Estava dada a possibilidade de o pequeno burguês construir sua própria fortuna e o indivíduo empreendedor já se apresentava como solução para as contradições do capital. Como exemplo de sucesso era apresentada figuras ícones do empreendedorismo. Despontava a ideia de liderança empresarial como uma soma de características da personalidade do líder (Costa et al., 2011).

No período denominado capitalismo monopolista (Costa et al., 2011), a figura do empreendedor sofreu transformações. Este momento histórico foi caracterizado pelo surgimento das grandes empresas, tendência a monopolização associada à concentração de capital, políticas protecionistas e implantação do Estado de Bem-Estar Social em resposta ao momento da luta de classes.

Com a competição das grandes corporações em alta, o empreendedorismo passou a ser mais associado com ações que assegurassem vantagem econômica do que com práticas inovadoras. O mercado exigia, além do "talento empresarial" (Costa et al., 2011, p. 187), um posicionamento do empreendedor na gestão de uma determinada situação ou contexto de negociação. Era aquele que atuava em uma organização ou entidade com seu poder de convencimento para dirigir uma coletividade a bons e eficientes resultados comerciais. Nota-se que a figura do empreendedor vai sendo construída, novamente, com base em supostas características da personalidade. As teorias da liderança passam a cumprir um papel ainda mais fundamental no mundo corporativo. O sujeito com poder de decisão, influenciador, prático, disciplinado e focado em um objetivo maior.

Com a chegada do neoliberalismo, o empreendedor continua a conviver com as exigências anteriores. Tem de dispor de habilidade para lidar com o grupo em favor de resultados de uma corporação, porém, retoma a noção do indivíduo empreendedor, inovador, conforme prescrevia o período clássico, expandindo esta perspectiva a todos os segmentos da sociedade.

O resgate do empreendedor, no entanto, não acontece de forma literal. Algumas alterações e releituras ocorreram em função do mundo atual ser, contextualmente, bastante diferente do final do século XIX. Uma primeira mudança refere-se à ideia de que o empreendedor deixa de ser figura rara: a doutrina neoliberal exige que todos se apresentem socialmente como empreendedores. (Costa et al., 2011, p. 143)

A estreita ligação entre indivíduo e empresa - ou o primeiro tendo de funcionar como o segundo - é o que faz com que Costa et al. (2011) caracterizarem o estado atual das coisas como a era do empreendedorismo.

A era do empreendedor é um termo que se aplica, precisamente, para caracterizar o aprofundamento do processo de mercantilização social e desregulamentação econômica, típicas do neoliberalismo. Em um primeiro momento, a configuração atual do empreendedor origina-se das necessidades decorrentes da reestruturação produtiva. A partir de medos de 1970:

As empresas passaram, inicialmente nos países centrais e posteriormente nos países dependentes, a assimilar muitos aspectos do toyotismo, variante que se originou no Japão do pós Segunda Guerra. Esse sistema, por sua vez, teve origem a partir da experiência norte-americana dos supermercados [o que mostra que a rearticulação do sistema produtivo é global], mantendo estoques os menores possíveis (o chamado estoque mínimo) e originou-se ainda tomando como base a indústria têxtil, onde os trabalhadores operavam com várias máquinas simultaneamente, ao contrário da relação um trabalhador, uma máquina, como era no sistema taylorizado e fordizado (Antunes, 2010, p. 23)

A empresa moderna passou a demandar um trabalhador igualmente moderno, isto é, menos especializado, polivalente, sempre de prontidão para assumir as tarefas que lhe forem solicitadas. Afinal, as crises cíclicas do capital acirram os processos de demissão e precarização do trabalho. O trabalhador moderno deve, ainda, se atentar à formação continuada, sempre estar ocupado com o gerenciamento da própria imagem e carreira. Um empreendedor que também disponha de habilidades sócio-emocionais (Casalotti, 2017) voltadas para comunicação e liderança. Assim, como afirmam Costa et al. (2011, p. 192):

Se em um primeiro momento o empreendedor adquire papel fundamental caracterizado por sua função na sociedade, por exemplo, como artesão, comerciante ou colono (...), com o passar dos anos sua imagem torna-se indissociável de sua própria organização (empreendedor clássico). Aos poucos, já em contexto histórico diferente, a função empreendedora descola-se da figura do empresário e transfere-se para a empresa por ações, que passa a prescindir deste capitalista proprietário individual, que se torna "um capitalista com salário."

O empreendedor no neoliberalismo, portanto, busca um remédio para burlar a precarização do trabalho e fazer com que o indivíduo assuma, como suas, as metas de reprodução de um sistema capitalista marcado pela desregulamentação do trabalho e da economia. O indivíduo-empresa (Ehrenberg, 2010) é responsável pelo sucesso ou fracasso, pelo alcance de suas metas. Por outro lado, o alcance das metas encontra cada vez mais obstáculos, uma vez observada a flexibilização das leis trabalhistas, privatizações, ajustes fiscais e menos recursos nas áreas essenciais, como Saúde, Educação e Assistência Social (Euzébios, 2010, 2016).

Ainda assim, as dificuldades concretas devem aparecer como motivadoras: a superação individual é um fator fundamental. O empreendedor deve ser resiliente, focado, visionário, entre outras características que qualifiquem o sucesso empresarial. Mas, principalmente, ele deve se adaptar a ter menos carteiras assinadas e mais contratos flexíveis, menos segurança e estabilidade na vida e no trabalho (Casalotti, 2017). Como afirmou Antunes (2003, 2010), um sujeito que opere várias máquinas (ou desenvolva diferentes ações), simultaneamente. Ele que tem também uma participação importante na ampliação do mercado consumidor e na maximização das taxas de lucro da empresa. Reduz-se custos trabalhistas, amplia-se o consumo.

É necessário reconhecer, ainda, que o empreendedorismo cumpre uma função importante na tarefa de convencimento ideológico do trabalhador, tratado como responsável não apenas pelo seu sucesso - mediado pela capacidade individual de produzir e consumir - mas pela própria amenização das contradições do sistema capitalista. Para esta última função, em particular, foi criado um personagem específico: empreendedor social.

O empreendedorismo social nasceu com o afrouxamento das fronteiras entre políticas sociais e ações de mercado (Oliveira, 2004). O privado passou a gerir o social e ainda demandar dele ações de fomento para o consumo e o engajamento da marca. Assim, arriscar-se no campo social tem se mostrado uma opção válida (e relativamente barata) para os agentes do mercado. Em primeiro lugar, porque agir com responsabilidade social pode agregar valor à sua própria marca, como empresa ou individuo-empresa - a já consagrada empresa cidadã (Cesar, 2008). Em segundo, porque a ação social pode, efetivamente, contribuir para ampliação do mercado consumidor - o consumo engajado, por exemplo. Em terceiro, tem uma dimensão psicossocial de satisfação àquele que doa tempo livre para fazer um mundo melhor (seja lá o que isto possa significar).

Do ponto de execução, a finalidade do empreendedorismo social tem se dirigido a uma espécie de empoderamento. Um empoderamento que desloca para o indivíduo isolado a responsabilidade de amenização das contradições do capitalismo.

Empoderamento (Empowerment) também não é um conceito criado no neoliberalismo. Como ressalta Baquero (2012), ele remetia à tradição do pensamento religioso de Lutero, com raízes na Reforma Protestante e a perspectiva de acessibilidade do pensamento bíblico aos sujeitos simples das castas e estamentos menos privilegiados da sociedade. Deste modo, estariam todos empoderados do conhecimento oferecido pela bíblia. Os tempos mudaram, evidentemente....

empowerment é um conceito que tem raízes na Reforma Protestante. Contemporaneamente, se expressa nas lutas pelos direitos civis, no movimento feminista e na ideologia da "ação social", presentes nas sociedades dos países desenvolvidos, na segunda metade do século XX. Nos anos 70, esse conceito é influenciado pelos movimentos de auto-ajuda e, nos 80, pela psicologia comunitária. Na década de 1990, recebe o influxo de movimentos que buscam afirmar o direito da cidadania sobre distintas esferas da vida social. (Baquero, 2012, pp. 175-176)

Embora tenha recentemente flertado com cenários de resistência, no campo dos Novos Movimentos Sociais (Gohn, 2011), a noção de empoderamento se transforma cada vez mais em instrumento de reprodução da ideologia capitalista. Antes, no cenário do capitalismo monopolista, a noção de empoderamento individual estava mais ou menos conectada com a de empoderamento coletivo na forma de enfrentamento ou conquista de uma comunidade ou movimentos sociais (Gohn, 2011). Atualmente, a noção de empoderamento individual sobrepõe-se à dimensão coletiva do fenômeno. Assim, vai supervalorizando características individuais de um determinado líder, empreendedor ou sujeito empoderado.

No nível individual, empoderamento refere-se a habilidades das pessoas de ganharem conhecimento e controle sobre forças pessoais, para agir na direção de melhoria de sua situação de vida. Diz respeito ao aumento da capacidade de os indivíduos se sentirem influentes nos processos que determinam suas vidas. (Baquero, 2012, p.176)

O caráter da noção crítica de empoderamento, que atrelava conquistas individuais à coletivas - em direção à uma educação emancipadora (Baquero, 2012), por exemplo - dá lugar ao empoderamento centrado em características da personalidade do sujeito isolado: auto-estima, temperamento, resiliência e outros constructos que permeiam o cardápio da psicologia dominante (Euzébios, 2010). Como coloca Baquero (2012, pp. 179-180):

Embora historicamente o empoderamento esteja associado a formas alternativas de se trabalhar as realidades sociais, suporte mútuo, formas cooperativas, formas de democracia participativa, autogestão e movimentos sociais autônomos, tendo sido a palavra incorporada ao discurso do desenvolvimento alternativo, ocorreu (...) uma apropriação (...) do termo, pelo neoliberalismo. Empoderar, se constitui, hoje, na agenda de vários bancos de desenvolvimento, especialmente do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Documentos são produzidos e divulgados por tais agencias a respeito da relação entre empoderamento e redução da pobreza.

Nota-se que o empoderamento, a exemplo do empreendedorismo social, também assume para si a função de combater individualmente a pobreza. Então, a noção de empoderamento cruza com a de empreendedorismo social em pelo menos quatro direções: (a) no anuncio demagógico do combate às desigualdades; (b) na concepção individualista deste combate; (c) na culpabilização de quem não empreende ou não se empodera; (d) na mistura entre empreendedorismo com assistencialismo.

O objetivo da ação do empreendedor social anuncia-se, muitas vezes, como empoderamento do sujeito pobre ou marginalizado. Contudo, este empoderamento deve passar pelo crivo dos organismos multilaterais e tão logo pode se tornar mesquinha apropriação do mercado - mesmo que isto implique, paradoxalmente, em determinado processo de fortalecimento comunitário.

O sujeito desamparado da caridade, na era do empreendedorismo, deve se tornar indivíduo empoderado para produzir e consumir. No entanto, mesmo que produza e consuma este indivíduo pode continuar desamparado e em situação de pobreza. Isto não lhe garante cidadania e os direitos sociais básicos.

O gerenciamento das políticas sociais se deslocam do setor público para o privado e a cidadania abre caminho para os devaneios do empreendedorismo social. O casamento do empreendedorismo com uma noção igualmente individualista de empoderamento vem produzindo heróis e vilões da ação social.

 

De Desamparado a Empoderado: o Herói e o Vilão na Arena do "Social"

O sujeito da caridade é sem dúvida o sujeito privilegiado (e originário) do assistencialismo no Brasil (Faleiros, 2004, Fidelis, 2005). Ora, em um Estado historicamente dominado pelos coronéis da terra, já assaltado desde sua origem pela coroa portuguesa, a sociedade brasileira em formação não poderia conviver, desde o início, com outra coisa senão a pobreza (Faleiros, 2004).

Como a burguesia nacional embrionária lidaria com a desigualdade social já instada no país? É uma resposta muito complexa. No entanto, podemos afirmar que, sem dúvida, ela não atuou para resolução das disparidades sociais e econômicas. Ao contrário: lidou com indiferença tanto porque naturaliza o processo, sob viés ideológico, e se limita a gerenciar a pobreza de um ponto de vista administrativo, visando lucro e subserviência.

A primeira resposta do Estado no campo da política social, foi combinar repressão com o assistencialismo. Um assistencialismo, diga-se, que fazia jus ao nome. Sem necessidade de maiores disfarces. Acolhia-se o indigente, 'vagabundo', 'desajustado' ou outras classificações comuns à época, para dar-lhe comida e abrigo (Faleiros, 2004). Este personagem à margem do capitalismo hipertardio (Antunes, 1982), o hiperexcluído, deveria obedecer inclusive normativas de caráter moral: seguir valores e costumes vigentes, impostos pelos senhores da aristocracia liberal, sob pena de repressão e exclusão físicas (Faleiros, 2004; Fidelis, 2005).

Mesmo após a Constituição Federal de 1988 e principalmente depois dos inegáveis avanços da Política Nacional de Assistência Social e do Sistema Único de Assistência Social (Sposati, 2007), o assistencialismo nunca deixou de corroer o parco sistema de garantia de direitos sociais. Tornou-se, porém, mais clara a diferença entre favor e direito. Mas ainda não foi capaz de eliminar os traços históricos da sociedade brasileira, que desde de sua fundação promovia caridade a quem de direito: o sujeito passivo da pobreza. Isto é, o que não produz, mas dá sinais de que um dia produzirá. Mas, também, é o sujeito passivo da norma. O sujeito que não confronta o Estado e a ordem social, que não cai nos redutos da militância e/ou promiscuidade. Pobres, prostitutas, criminosos ou loucos se equivaleriam politicamente como sujeitos da eliminação social e física: foram e são excluídos da sociedade, trancafiados ou simplesmente retirados do quadro de competência da caridade e do assistencialismo. Não seriam dignos nem da caridade.

O sujeito da caridade é historicamente aquele indivíduo facilmente dominado. Facilmente amparado, tão vulnerável que está. O sujeito fragmentado de sua coletividade, despolitizado, inferiorizado (Sawaia, 1999). Mais um refém do grupo sem história, como diria Martín-Baró (1998). Sujeito da humilhação social, como quer Gonçalves (1998).

É válido pensar que este sujeito continua sendo útil às pretensões ideológicas do capital: exercer a dominação no plano econômico, mas também uma hegemonia no campo social e psicológico (Gonçalves, 1998). Para tanto, surge um novo ator: o empreendedor social.

Este novo ator é importante para tentar suprir uma demanda da crise econômica: geração de microcrédito. A lógica da inclusão pelo consumo, disseminada nos programas de transferência de renda é exemplo deste processo (Euzébios, 2016). Torna-se consensual entre os dirigentes do capital que a ação social deve cumprir este papel - sem deixar de lado, porém, a prática assistencialista.

O sujeito da caridade outrora assistido isoladamente por entidades filantrópicas e fragmentos do Estado, passou a dividir espaço, então, com o sujeito empreendedor formado em larga escala pelas grandes corporações da "responsabilidade social". Compõem a mão de obra barata e pouco especializada do setor industrial e de serviços (Cesar, 2008).

Cabe a esta mão de obra empreender. Este é o novo objeto da cidadania individual, como denominou Ehrenberg (2010). Sempre a reforçar o individualismo liberal, caracterizando sucesso ou fracasso, individualmente, pelo nível de consumo. Mais do que isto, tornando a culpabilizar o sujeito pelas desigualdades sociais. Como afirma o autor:

não é mais o Estado central que é o ponto de prolongamento da luta contra as desigualdades, mas o direito dos indivíduos. E sob o registro das políticas sociais, não é mais a proteção das populações face aos riscos sociais que caracteriza a luta contra as desigualdades, mas o estabelecimento de condições que permitam, a cada indivíduo, assumir a responsabilidade de sua inserção ou de sua reinserção profissional e social. Dessa forma, entramos, em alguns anos, numa relação com a igualdade que não se concebe mais numa política exclusiva de proteção aos riscos, mas numa busca de mecanismos que permitam cada um assumir esses riscos: é por meio da permissão para que cada um entre em concorrência uns com os outros, e, em particular, aos mais desfavorecidos, a possibilidade de entrar em concorrência é lhes dar a possibilidade de assumir a si mesmos por eles mesmos." (Ehrenberg, 2010, p. 28)

A ação social na era do empreendedorismo passa, então, a adotar uma clara finalidade: formar um sujeito empoderado para empreender, assumir riscos e triunfar pelo consumismo. Não é por acaso que perspectivas performáticas como coaching vigoram nos dias atuais (Casalotti, 2017). O viés motivacional mistura-se com a capacitação técnica do trabalhador, que agora deve se formar como profissional, mas deve adquirir habilidades sócio-emocionais específicas: todas aquelas que estão reunidas na figura do arrojado empreendedor.

A cultura do heroísmo, oriundo da ciência e das práticas esportivas, afirma Ehrenberg (2016), é um dos pilares que define a personalidade do empreendedor. O herói é o cidadão que vence. Para vencer deve estar empoderado pelo consumo, de acordo com sua capacidade produtiva. É o herói que, apesar de todas as dificuldades impostas pelo cenário social e econômico estruturante, é compensando por fragmentos de inclusão (Sawaia, 1999); um benefício, uma bolsa, uma capacitação, um emprego pela cota social etc.

Numa sociedade em que a desestabilização dos sistemas de referência é generalizada, o esporte é o summum principium de uma cultura do heroísmo que nos intimida, não a delirar diante das proezas de seres excepcionais numa identificação com eles - eles não são mais do que suportes de nossa própria modelização, já que agora todos podemos ser excepcionais -, mas nos intimida a inventar nós mesmos contando com nossas únicas forças. (Ehrenberg, 2010, p. 25)

A cultura esportiva dominante, ao cultuar o sujeito excepcional das grandes vitórias, é tomada com facilidade para ampliação da noção de heroísmo na esfera da vida social e econômica. Sob esta ótica, a modalidade de angustia disparada pelo que Gonçalves (1999) denominou de humilhação social, permanece na relação entre o indivíduo comum e o excepcional. Há uma relação clara de poder entre o que aprende e nada ensina. Entre o que manda e obedece (Guareschi, 2001). Entre quem é vitorioso e quem espera pela vitória.

A ação social tem como parâmetro o comportamento heroico do empreendedor, este ser que busca, incessantemente, a excepcionalidade. Assim que se valoriza o treinamento para aquisição de certas habilidades requeridas pelo mercado (Casalotti, 2017). Tornar-se herói, nos termos propostos, é uma questão de livre-arbítrio individual. Também, uma questão de mérito. A aquisição de certas habilidades sócio-emocionais depende de si mesmo. Tudo se resume a um encontro consigo mesmo, afirma Ehrenberg (2010).

A heroinização do empreendedor (...) designa não mais uma acumulação, ainda que sempre se trate de acumular, mas uma maneira de se conduzir: o fato de empreender qualquer coisa. Ela simboliza uma criação pessoal, uma aventura possível para todos. Ao se proliferar a partir desse espaço familiar, os "ganhadores" nos aproximam do universo heroico. Seus itinerários nos parecem acessíveis: desempregados criando suas próprias empresas, inventores de objetos de todo tipo (...). Dizem-nos que tudo é possível em todos os domínios da atividade, desde de que se tenha vontade de ganhar. (Ehrenberg, 2010, p. 48)

Ocorre que este encontro consigo mesmo pode falhar e o sujeito não se tornar vencedor. Afinal, o heroísmo é para poucos! As habilidades pessoais do empreendedor podem não aflorar. Como a vitória no esporte competitivo, para um vencer é necessário o outro perder. O sujeito que falhou individualmente na competição continua excluído, marginalizado. Não consome e não produz. É taxado de desorientado, desestruturado, perdedor. Permanece sujeito da humilhação social, anunciado como culpado pela (falsa) ação de inclusão (Guareschi, 2001; Sawaia, 1999). Do outro lado está o vencedor: o sujeito que vem de baixo (Ehrenberg, 2010) que superou as adversidades, o resiliente, comunicativo, persistente. Em uma palavra: empoderado.

Assim é que Oliveira (2004, p. 21) atribui ao empreendedor as seguintes características: "indivíduos que fazem a diferença"; "sabem explorar ao máximo as oportunidades"; dedicados (incansáveis e loucos pelo trabalho)"; "independentes e constroem o próprio destino"; líderes e formadores de equipes". Entre outras características de personalidade que formam um vencedor.

Nesta relação entre perdedor x vencedor, a junção entre empreendedorismo e empoderamento vai servindo a uma espécie de assistencialismo produtivo. Isto porque o assistencialismo ocupou um novo espaço na esfera produtiva: o consumo. Ou seja, a relação de poder assistencialista permanece, mas sob o pretexto de assistência para capacitação e formação de empreendedores e líderes, sujeito do mercado, finalmente, consumidores. Em uma simples denominação, o sujeito empoderado. Empoderamento para o consumo.

A permanência do assistencialismo, deve-se, fundamentalmente, à continuidade da relação de poder que se estabelece entre o treinador e o treinado, entre o vencedor e o vencido, coach e coachee (treinador e treinado). O modelo de sucesso continua antagonizando o fracasso financeiro.

Novamente, o direito se torna um favor. Ainda mais: espera-se a retribuição do favor prescrito na ação social em forma de produção e consumo. Assim, a garantia do direito social torna-se obrigação do próprio sujeito sem direito...

 

Assistencialismo Produtivo: Construção da Cena e dos Personagens

"Doar não é um ato de caridade, é um exercício de cidadania" [sic]. Assim um empreendedor social concluiu uma aplaudida palestra sobre "microdoação associada ao consumo". Fomos testemunha ocular de uma das inúmeras palestras de um ramo cada vez mais crescente: a doação associada ao consumo. O autor da palestra, procurava exaltar a ideia, também retomada por Oliveira e Zambaldi (2017), de que microdoações podem gerar macroresultados na área social.

Microdoações são entendidas como doações associadas ao mercado de varejo, por exemplo: um percentual da compra do produto é destinado a um projeto social. A atendente pergunta ao cliente se ele quer arredondar o valor do produto para doar os centavos para uma causa e assim por diante.

São ações retratadas pelo palestrante do que foi denominado como "cultura de doação" [sic]. Cultura esta que tem como finalidade consolidar um "Capitalismo Consciente" [sic], conclui. Segundo Paro, Caetano e Gerolamo (2019, p. 9), o "Capitalismo Consciente é um movimento global co-fundado pelo Raj Sisodia, professor da Babson College, e John Mackey, CEO do Whole Foods Market, com a premissa central que os negócios devem atender a todos os seus stakeholders [público estratégico]". Para os entusiastas deste propósito, as empresas que aderem a este modelo de negócios (pois é disso que se trata) além de fidelizarem o público com suas marcas, observam que se tornam mais lucrativas - embora, contraditoriamente, afirmem que não visam dinheiro. Como afirmam Paro et al. (2019, p. 3), as "empresas humanizadas":

São movidas por paixão e por um propósito evolutivo, e não por dinheiro. Elas geram impacto, valor compartilhado e prosperidade para todas as partes interessadas do negócio - clientes, investidores, funcionários, parceiros, comunidades e sociedade. Elas agem de maneira poderosamente positiva para que as partes interessadas as reconheçam, valorizem, confiem, admirem e até tenham uma relação de amor. E assim, elas tornam o mundo melhor pela maneira como fazem negócios - e o mundo responde. Os resultados obtidos comprovam que elas naturalmente são mais lucrativas, e criam regras radicalmente novas, gerando um novo significado de sucesso nos negócios: o valor compartilhado.

Pois bem, segundo o Charities Aid Fundation (Charities Aid Fundation, 2018), o Brasil ocupa a posição de 122º no "Ranking de países solidários" criado pela mesma fundação privada. Baseado em pesquisa realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, a somatória de doações de pessoas físicas no Brasil alcança 0, 23% do Produto Interno Bruto (PIB), uma meta considerada abaixo da média mundial que varia entre 1 e 2% do PIB.

O considerado baixo índice de doações individuais mostram, de acordo com a perspectiva da microdoação, um potencial mercado em expansão. Para se expandir, porém, é necessário não apenas profissionalização e transparência, mas divulgação e marketing social (Charities Aid Fundation, 2018). Para crescimento deste mercado (mais que um mercado, a quantidade de pessoas e instituições envolvidas caracterizam uma espécie de cadeia produtiva da doação), é necessário fomentar, ainda, uma linguagem própria, criar personagens de sucesso no mundo do empreendedorismo, além dos palcos de divulgação, visibilidade e celebração dos projetos. Tudo isto serve - novamente recorrendo ao ilustre palestrante - para criar uma "conexão emocional" [sic] com entre doador e donatário.

São várias as expressões que marcam a sofisticação deste mercado apegado ao mundo corporativo. O estrangeirismo é recorrente e traz certo ar de legitimidade, que associa a prática social ao mundo corporativo, por exemplo: doações mobile, isto é, aplicativos de celular que fornecem conveniência ao doador para doar de onde estiver. Ou para dar mais um exemplo: movimentos de matching, que assim como aplicativos de relacionamento conectam a pessoa com a causa de doação de preferência. Mais do que simples expressões, retratam uma concepção pragmática e conveniente de um mercado cada vez mais segmentado como a doação (Oliveira & Zambaldi, 2017).

O cenário do empreendedorismo social, por sua vez, não poderia ser outro: crise das instituições democráticas, por um lado, e crescimento dos movimentos identitários por outro (Euzébios & Guzzo, 2018). E o mercado está atento à esta conjuntura (Paro et al., 2019), tanto que vê como necessário atrelar o consumo a formas específicas de engajamento, sendo também tarefa do mundo corporativo administrar a reputação da empresa nos nichos, grupos e segmentos da sociedade. Novamente, temos o encontro do empreendedorismo social com o empoderamento.

É necessário que a marca seja sua própria embaixadora, exerça seu próprio tipo de cidadania: a marca feminista, que apoia os movimentos LGBT, aqueles que defendem ou se sensibilizam com causas ambientais - como é o caso de empresas do ramo alimentício que abandonaram o uso de canudos plásticos em prol de um desenvolvimento ambiental sustentável, entre outros exemplos.

E os personagens? Artistas, empresários, digital influencers, figuras públicas ou simplesmente: empreendedores sociais. São pessoas que estabelecem uma mediação entre mercado e o social, que procuram inovação no campo da doação e da ação social.

Os palcos para divulgação e celebração dos projetos são fundamentais na era das redes sociais (e do ativismo pelas redes sociais). São palcos dos mais diversos. Temos os conhecidos TED (abreviação de Technology, Entertainment, Design)Talks, que consistem em vídeos e palestras de influenciadores em diversas áreas, como Educação, por exemplo. É onde pode se encontrar uma plataforma que abre espaço para as "empresas ativistas" (TED, 2018).

Também temos como exemplo de empreendedorismo social diferentes campanhas na área do terceiro setor. Estas campanhas têm se destacado nas áreas socioambientais e com pautas relacionadas ao cotidiano das populações pobres da periferia de grandes centros urbanos, como é o caso do prêmio "empreendedor social" fomentado pelo jornal Folha de São Paulo e por fundação privada ligada ao Fórum Econômico Mundial (Pamplona, 2019). Em geral, pode-se observar no retrato dos 15 anos deste prêmio (Pamplona, 2019) projetos que visam fomentar ações de capacitação profissional, geração de renda, entre outros. Mas acima de tudo, projetos que oferecem modelos de negócios ligados ao "social".

Nestes espaços de celebração e divulgação os projetos, vemos também surgir os protagonistas: o empreendedor que faz muito com pouco e os alvos desta ação social, os exemplos de superação. Daí, devem ser propagandeados traços particulares de exclusão e sofrimento que foram individualmente superados.

Na mesma direção, perguntamos quem não se lembra da campanha da Associação Brasileira de Anunciantes, em 2004: "sou brasileiro e não desisto nunca" (Folha de São Paulo, 2004)? Uma campanha que buscava resgatar a "auto-estima" [sic] do brasileiro, afirma a reportagem ao citar uma frase do responsável pela campanha. Em cada consumidor há um cidadão, completa o personagem benevolente.

O esporte mais uma vez se apresenta como palco de histórias de superação, caracterizadas pela persistência deste ou daquele atleta brasileiro que, em um exemplo hipotético, mesmo não contando com incentivo financeiro, chegou até a olimpíada e cumpriu um bom papel. É o heroísmo de que tratamos anteriormente (Ehrenberg, 2010). O apoio da família, a força interior do atleta, a vontade de provar para os outros que ele é capaz de vencer... Não por acaso que o alvo desta campanha foi um conhecido atleta da seleção brasileira de futebol que, após superar uma lesão no joelho, foi um dos principais responsáveis por trazer o campeonato mundial para o Brasil. A luta incansável do atleta imaginário e a busca pela superação devem ser publicizadas.

Por mais que a vitória seja objeto de consumo, o personagem alvo das campanhas e ações sociais continua, porém, sendo o sujeito diminuído da caridade.

Atualmente, campanhas de empoderamento pululam pelos meios de comunicação e compõe os relatórios de ações sociais dos grandes organismos internacionais como Organização das Nações Unidas e Banco Mundial. Estas campanhas, mais uma vez, demandam a construção de personagens da superação.

Para dar mais um exemplo, o site do Banco Mundial anuncia uma ação exitosa de empoderamento, em 2018 (Banco Mundial, 2018). Em matéria jornalística, retrata a vida de Oumou, uma jovem ativista da Mauritânia. Segundo relato, esta jovem contrariou a perspectiva de seu país, onde a mulher tem de casar e ter filho e foi para o país vizinho, Senegal, para estudar. Lá notou que as mulheres da Mauritânia são desprovidas de direito (como se no seu país de origem fossem diferente), (Banco Mundial, 2018).

Pois bem, retornando ao seu país, participou do curso oferecido pelo Banco Mundial, denominado "Mulheres, Empresas e o Direito". Segundo anunciado, esta oficina tinha como objetivo trabalhar:

em prol do empoderamento das mulheres no país, com o objetivo de aumentar a conscientização sobre o impacto econômico das leis diferenciadas por gênero e capacitar os participantes no uso de dados e evidências para defender reformas em favor da igualdade de gênero. (Banco Mundial, 2018, p. 1)

Ainda segundo a matéria, foi este curso que transformou a personagem em uma ativista pelos direitos das mulheres. Assim, é observado que o empoderamento individual ficou caracterizado com uma causa maior (a questão das mulheres), porém, a formação desta causa prescreve-se no campo das empresas e do impacto econômico (das leis diferenciadas por gênero para causar impacto econômico). O sucesso de Oumou, caracteriza-se pelo fato de seu exemplo particular de superação ter empoderado outras mulheres a enfrentarem a mesma condição de subalternidade. Conseguiu dar este exemplo criando um time de futebol feminino em seu país, anuncia a reportagem no site do organismo multilateral (Banco Mundial, 2018).

Não que a trajetória de Oumou possa ser menosprezado. De modo algum! O que queremos chamar a atenção, contudo, é que os holofotes se viraram para o empreendedorismo resultante de uma ação individual, não propriamente para o enfrentamento político estrutural (de gênero e da classe) que a própria Oumou é parte. Assim, a matéria conclui, com uma descrição da fala de Oumou, exaltando os resultados da ação do próprio Banco Mundial: "Com a oficina, conseguimos melhorar a colaboração entre as organizações e formar uma rede para compartilhar informações e promover o empreendedorismo das mulheres. Oumou é agora um exemplo para as suas conterrâneas (Banco Mundial, 2018, p. 4)".

De empoderamento novamente retornamos ao empreendedorismo. Ainda que se valorize o aspecto moral da igualdade de gênero, o empoderamento feminino, neste caso, é tratado principalmente como um importante fator para o crescimento da economia, assim como vem sendo observado, explicitamente, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organizações das Nações Unidas (ONU) (Casalotti, 2017).

A ação social ocupa a função de gerar crescimento econômico por meio de treinamento, formação ou capacitação voltadas para o empoderamento individual ou coletivo. Entretanto, não é mais o coletivo ou movimento que dá exemplo e forças para o sujeito se empoderar. É o sujeito empoderado (pelo treinamento em oficinas oferecidas pelo Banco Mundial ou qualquer outro órgão, por exemplo), que oferece parâmetros para o empoderamento de um grupo ou coletividade. Empoderamento este, como reafirmado, compreendido nos marcos da economia liberal. O direito das mulheres, no caso citado, só tem espaço na agenda se tratado como fator gerador de renda.

A ação social de Oumou é respeitada e tida como exemplo desde que dela não resulte em formas de enfrentamento de gênero e classe - o que implicaria em enfrentar os grandes financiadores do 'social'. Importante é que este tipo de ação desenvolva a economia e omita as contradições mais agudas do capitalismo. Assim, o feminismo, tal como outras lutas extremamente relevantes, torna-se ativo de mercado. Personagens da cidadania privatizada (Ehrenberg, 2010).

O empoderamento das mulheres também é uma preocupação anunciada pela ONU. Ela se insere como parte da agenda 2030 (que tem a pretensão de anunciar "17 objetivos para mudar nosso mundo") da própria Nações Unidas (ONU, 2015).

Nas mídias do que vem sendo denominado de ONU mulheres (ONU, 2015), por exemplo, pode-se observar que ações de empoderamento feminino são retratadas como ações de capacitação e formação promovidas pela própria organismo multilateral, em consonância com outros organismos e grandes fundações privadas. Assim, são mencionados projetos realizados em parceria com empresas nacionais e multinacionais, que "capacitaram" milhares de trabalhadores e trabalhadoras sobre como lidarem com a desigualdade de gênero.

Nesta direção, são adotados, por exemplo, princípios de gênero na política de compras para privilegiar empresas fornecedoras liderados por mulheres (ONU, 2015). Sem dúvida, uma ação válida, porém, um exemplo típico de empoderamento instrumental do mercado. Também um exemplo de como é possível agregar valor à determinada marca, que se apresenta como solidária aos oprimidos do mercado de trabalho. Mais uma vez se fala em igualdade de gênero sem tocar nas estruturas sociais.

É importante para o cenário idílico da ação social construir novas lideranças do empreendedorismo social. Sustentabilidade, cidadania, empoderamento, resiliência são alguns termos que compõem o vocabulário destes líderes, premiados nacional e internacionalmente.

Têm sido destacadas, por exemplo, diversas Startups sociais constituídas por um conjunto de indivíduos que oferecem um 'cardápio' de soluções práticas para questões sociais, que, ao mesmo tempo, agregam valor econômico a eles próprios ou ao financiador (SEBRAE, 2018). O produto social que se quer replicar ou vender é o que move a ação inovadora.

Mas, como dissemos, as ações inovadoras e soluções práticas devem ser comunicadas à sociedade. A imagem do empreendedor, neste sentido, torna-se fundamental. Ele próprio tem de se construir um sonhador, visionário, antes de mais nada, um vencedor, sujeito da persistência e da inovação. Ele dá exemplo.

Então, cai em desuso aquele velho lema "fazer o bem sem olhar a quem" - característico da ação assistencialista dos velhos tempos, aparentemente despropositadas. Uma vez comunicadas, as ações sociais podem ser veneradas ou simplesmente vendidas. A comunicação é voltada para os próprios pares. Ou seja, os empreendedores sociais encontram diferentes palcos de promoção da imagem e premiação do trabalho social. São palcos construídos pelo terceiro setor e para o terceiro setor. A propaganda do social também é a alma do negócio.

Ainda em tempo, podem ser citadas diferentes organizações sem fins lucrativos com objetivos de acelerar ações ditas socialmente responsáveis. Por exemplo, uma reconhecida entidade que se coloca como pioneira na disseminação e no fomento de negócios de impactos social no Brasil, tem como lema "entre ganhar dinheiro e mudar o mundo fique com os dois" (Artemisia, 2004). É a soma da praticidade empresarial com reponsabilidade social, que se efetiva concretamente pela ação de empoderar os excluídos a partir da noção de empreendedorismo empresarial.

O trabalho com jovens, neste sentido, é imprescindível. Assim é que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), para dar mais um exemplo, se ocupa em promover jovens empreendedores no Brasil e América Latina. Também atrelada à agenda de Desenvolvimento de 2030 da ONU e aos objetivos do desenvolvimento sustentável (ONU, 2015), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) se comprometeu a contribuir para "erradicar a pobreza, promover o crescimento econômico sustentável e inclusivo, com mais e melhores empregos, promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas e não deixar ninguém para trás" (Salazar-Xirinachs & Faieta, 2016, p. 4). Para tanto lançam mão do empreendedorismo juvenil, sob o lema "empoderando vidas, fortalecendo nações" (ONU, 2015).

A partir destes e de outros exemplos, portanto, é que procuramos dar materialidade ao que denominados de assistencialismo produtivo. As práticas que sustentam esta nova modalidade histórica de assistencialismo, assumem as seguintes características: (a) relação instrumental entre mercado e desigualdades sociais - em que se busca extrair o máximo de publicidade e lucro direto da ação social, fatiando-a em nichos de empoderamento; (b) apelo moral e sentimental na forma de encarar a pobreza - vista como resultado de uma soma de trajetórias e/ou fracassos/sucessos individuais; (c) a heroinização do doador (especialmente os grandes), mantendo claramente a relação de vassalagem entre rico e pobre; (d) desmonte das políticas sociais e desvio dos recursos públicos para outras áreas/investimentos.

 

Considerações finais

As mudanças no mundo do trabalho, exigidas no cenário de crise de superprodução, demandaram dois novos atores: o empreendedor social e o sujeito da ação empreendedora. O primeiro é caracterizado como um sonhador, visionário ou apaixonado pelas causas sociais. Aquele que deve ensinar o sujeito da caridade a empreender, a trabalhar, estudar e vencer. A ser um indivíduo-empresa. O segundo não é mais o desamparado, mas o treinado, empoderado, exemplo de superação.

O casamento do empreendedorismo com o empoderamento geram novas possibilidades de gestão das políticas sociais pelo setor privado. Com um discurso mais sofisticado, contando muitas vezes com uma estrutura profissionalizada, as ações sociais tornam-se mais incisivas na geração de renda e no campo da empregabilidade. Porém, não elimina o assistencialismo.

Do culto à meritocracia, passando pela precarização das condições de trabalho, constrói-se um discurso de mudança social que, paradoxalmente, fortalece os valores vigentes na sociedade capitalista. Uma mudança, quando muito, limitada ao plano social mais imediato, executada pelo próprio empreendedor social: o novo salvacionista.

É reconhecendo as relações de poder entre os governantes e os governados da ação social - observada a conjuntura neoliberal que o empreendedorismo social se insere e ao mesmo tempo alimenta - que entendemos o assistencialismo produtivo como um artifício da ideologia dominante. Assume, assim, uma dupla função prática: gerar consumo e amenizar conflitos sociais, naturalizando os mecanismos de inclusão/exclusão da sociedade capitalista.

 

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Recebido em: 05/09/2019
Aprovado em: 10/02/2020

 

 

1 O conceito de ideologia aqui é tomado a partir de Lukács, que a considera responsável pela mediação de conflitos sociais. O fundamental da ideologia, para Lukács, é como os conflitos sociais são manejados, como tomamos consciência deles e o combatemos. Mas, em uma sociedade de classes, ideologia torna-se também veículo prático de manutenção da dominação social. É neste sentido que utilizamos o conceito de ideologia dominante - a ideologia da classe dominante. Para aprofundar esta questão, consultar Lukács (1938/2010).

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