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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo Sept./Dec. 2020

 

DOSSIÊ - ESTUDOS SOBRE CONTEXTOS DE DESIGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA SÓCIO HISTÓRICA

 

Sofrimento ético-político e agentes comunitárias de saúde: relações e cuidados

 

Ethical-political suffering and community health agents: relationships and care

 

Sufrimiento ético-político y agentes de salud comunitaria: relaciones y cuidados

 

 

 

Alessandra de Almeida Rodrigues de SouzaI; Carlos Eduardo MáximoII; Eliane Regina PereiraIII

IPsicóloga, Mestre em Saúde e Gestão Trabalho pela Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, SC / alessandrapsicologasc@gmail.com
IIDoutorado pela UFSC, Docente da Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, SC. http://lattes.cnpq.br/8747526604265633, / carlosemaximo@gmail.com
IIIPós-doutorado pela PUC-SP e Doutorado pela UFSC. Docente da Universidade Federal de Uberlândia, MG. http://lattes.cnpq.br/0023990232502452 / pereira.elianeregina@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo que ora apresentamos é um recorte de uma pesquisa, cujo objetivo foi compreender a relação pessoa, território e sofrimento no contexto da atenção básica. Pesquisa de caráter qualitativo, objetivou- se através de observações participantes, registros em diário de campo e entrevistas com informantes chave. A análise das informações seguiu a perspectiva da análise temática. As falas se articulam com diversos participantes do contexto da pesquisa ganhando caráter explicativo. A organização da apresentação das falas foi feita a partir dos locais onde foram feitos os registros. Para a análise utilizamos os conceitos de Martin-Baró e Agnes Heller. Destacamos a apropriação quanto ao olhar das ACS sobre o lugar e o modo como as pessoas expressam seus sofrimentos situados em seu modo de vida. Frente as questões resultantes deste processo de apropriação propomos uma ação de educação permanente na saúde baseada em atividades grupais com Agentes Comunitárias de Saúde.

Palavras-chave: Território; Atenção Básica a Saúde; Sofrimento; Agentes Comunitários de Saúde.


ABSTRACT

The article that is now presented is the is the snippet of a research whose objective was to comprehend the relation among person, territory and suffering in the context of basic care. The qualitative research was objectified through the observation of participants, records in field journals and interviews with key informants. The analysis of information followed the perspective of the thematic analysis. The speeches are articulated with several participants in the research context, receiving explanatory feature. The speeches presentation organization was made starting from the places where the records were made. For an analysis used in the concepts of Martin-Baró and Agnes Heller. We highlight the appropriation regarding to the look of the ACS over the place and the way how people express their suffering in their ways of life. Facing this issues resulting of this process of appropriation we have proposed an act of permanent education in Health based on group activities with Community health agents.

Keywords: Community health agents; Basic health care; Suffering; Territory.


RESUMEN

El artículo que presentamos aquí es un recorte de una investigación, cuyo objetivo era entender la relación persona, territorio y sufrimiento en el contexto de la atención primaria. La investigación cualitativa, se dirige a través de observaciones participantes, registros de diario de campo y entrevistas con informantes clave. El análisis de las informaciones siguió la perspectiva del análisis temático. Las declaraciones se articulan con varios participantes en el contexto de la investigación que adquiere carácter explicativo. La organización de la presentación de las declaraciones se hizo desde los lugares donde se hicieron los registros. Para el análisis utilizamos los conceptos de Martin-Baró y Agnes Heller. Resaltamos la apropiación de la mirada de las ACS sobre el lugar y cómo la gente expresa sus sufrimientos situados en su forma de vida. Ante las cuestiones derivadas de este proceso de apropiación proponemos una acción permanente de educación sanitaria basada en actividades grupales con los Agentes Comunitarios de Salud.

Palabras clave: Agentes de Salud Comunitarios; Atención Primaria de Salud; Sufrimiento; Territorio.


 

 

Introdução

O processo de transformação político-econômico que houve no Brasil na década de 80 iniciou mudanças também na saúde. A conquista do Sistema Único de Saúde (SUS) abriu o debate sobre a saúde. Neste processo de mudanças na área da saúde a Atenção Básica passa a ser fortalecida com incentivos e programas do Ministério da Saúde (MS). O Programa de Saúde da Família (PSF) é apresentado a partir de embates entre artífices políticos da reforma e governo brasileiro. Se no nome família está presente, na estratégia o território e a comunidade deveriam ser o lócus de ação e o sujeito em diálogo. Para cadastrar as famílias e integrar com as pessoas, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) percorrem o território acompanhando as pessoas em suas casas (Binda, Bianco, & Sousa, 2013).

Como concebido na proposta de atenção básica que se desenvolve no Brasil a partir da década de 90, os ACS são sujeitos chave no desenvolvimento de ações que promovam a saúde no território. No entanto, o início de suas atividades foi permeada por conflitos e indefinições. Sua criação foi em 1991, mas suas atribuições foram definidas em 1997. Em 1999, outro decreto fixou suas diretrizes para o exercício das atividades, mas a regulamentação ocorreu somente em 2002, mais de dez anos após sua criação. Em 2006 o Decreto Lei n. 11.350 determinava que entre as atribuições dos ACS estavam as atividades de prevenção e promoção de saúde, através de ações domiciliares, comunitárias ou individuais. A partir da identificação das necessidades socio cultural e estímulo à participação comunitária nas políticas públicas voltadas para área da saúde. De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica são atribuições dos ACS, promover a integração da equipe da saúde e a população do território, desenvolver atividades educativas, orientar e cadastrar as famílias, entre outras atividades (Gomes, Cotta, Mitre, Batista, & Cherchiglia, 2010).

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) determina que a porta de entrada dos usuários e o centro de comunicação com toda a Rede deve ser a Atenção Básica, orientada pelos princípios da universalidade, da acessibilidade, dos vínculos e da integralidade da atenção. Caracterizando-se por um conjunto de ações de saúde, abrangendo o indivíduo e o grupo, a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos e a redução de danos (Ministério da Saúde, 2012). Campos (2000) aponta uma dupla finalidade para os serviços de saúde, que além de práticas produtoras de cuidados preventivos, também envolve produção de pessoas trabalhadoras autônomas e prazerosas, ou deveria.

Em 2017 o Ministério da Saúde publicou a atualização da PNAB, que teve início em 2016, com proposições que produziram preocupações, devido à publicação da Portaria GM/MS n. 958/2016. Esta portaria alterou a composição da equipe mínima da Estratégia da Saúde da Família (ESF), que abordaremos mais a frente, e considerou a possibilidade de os municípios substituírem os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) por auxiliares ou técnicos de enfermagem. No entanto, tal portaria foi anulada, após o movimento organizado dos agentes (Ministério da Saúde, 2017).

Tais situações tornaram evidentes as tentativas progressivas de desmonte das políticas públicas, em especial o Sistema Único de Saúde (SUS). Este fórum foi realizado por iniciativa do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, em outubro de 2016. Ponderar a substituição dos ACS por técnicos de enfermagem, tem relação direta com o entendimento de que a perspectiva médica e medicalizadora são mais resolutivas. Isso implicaria no enfraquecimento das ações de promoção e educação em saúde, reduzindo o cuidado integral da saúde e desconsiderando o processo das determinações sociais no adoecimento (Morosini & Fonseca, 2017).

O texto da PNAB/2017, não prevê a substituição dos ACS, no entanto, prevê a soma com a equipe de endemias e uma qualificação destes profissionais para que possam exercer as duas atividades. Refere uma consulta pública para rever as qualificações para esses profissionais, na qual o próprio Ministério da Saúde criou as regras para participação e exclusão dos dados levantados na pesquisa. Quanto à gestão, aponta uma autonomia na composição dos profissionais das equipes. Essa autonomia foi atribuída à determinação da carga horária e número de profissionais das equipes de ESF. Com relação aos núcleos de apoio, além de auxiliar as equipes de saúde da família, também passarão a dar suporte a outras equipes da Atenção Básica. Os profissionais de enfermagem, com a nova proposta, se dedicarão as ações de assistência para ampliação do acesso. Quanto ao gerenciamento, o profissional responsável não poderá fazer parte das equipes, sendo assim, há a necessidade da presença de outro da mesma área de atuação.

As mudanças também ocorreram na busca por atendimento, em que as pessoas poderão procurar a unidade de sua escolha, não sendo necessariamente a do seu bairro ou da equipe que acompanha (Ministério da Saúde, 2017). O discurso da modernização e flexibilização podem estar ligados a outros interesses que encobrem a redução de direitos e estreitamento da política de saúde.

O percurso histórico das práticas em saúde instituídas pelas políticas internacionais, se estabeleceram sobre uma base pragmática e biologicista. A consequência desta base metodológica e econômica foi a organização do acesso aos serviços públicos de saúde a partir de um crivo preventivista orientado para o risco. Isto, desconsidera as peculiaridades culturais e consequentemente as vicissitudes humanas e necessidades de cada território. A política de atenção básica no Brasil, no entanto, nasce tensionada por um movimento de crítica as práticas de saúde desenvolvidas no mundo, bastante influenciado pelas proposições de Berlinguer (Fleury, 2015). Assim, ainda que contingenciado por órgãos, como OPAS e Banco Mundial, a proposta brasileira emerge com características comunitárias de base territorial que tinham como intenção fortalecer a população de modo integral, ou seja, não apenas com a redução de doenças e riscos, mas também de forma societária, política e solidária. Com este escopo os ACS teriam papel fundamental na vinculação da população de cada território com o serviço e no fomento a participação das pessoas junto à comunidade para refletir e lutar e por suas necessidades. O fato de poder escolher outro local para o seu atendimento, mina o papel social e político dos ACS. Por serem moradores do bairro, conhecem a realidade social e a cultural do território de atuação. Outra questão levantada, são as dimensões de alguns territórios que dificulta a cobertura dos ACS, e no caso de o ACS possuir curso técnico, deverá, ainda, durante a visita domiciliar, aferir pressão arterial, orientar e apoiar. Este aumento de atribuições dificulta ainda mais o trabalho do ACS.

É importante ressaltar que a Atenção Básica no Brasil tem por referência a Atenção Primária de Saúde (APS) que é um modelo de atenção que está presente em países que optaram, desde as primeiras décadas do século XX, por organizar sistemas públicos de saúde e centrar suas ações em cuidados primários. Quando a base do sistema de saúde é a APS, a possibilidade de um maior desempenho é superior devido à organização do serviço (Oliveira & Pereira, 2013).

No entanto, sem a compreensão do processo saúde-doença vivido pela pessoa no seu contexto, como fenômeno coletivo, as práticas em saúde tornam-se vazias, dificultando a cobertura e o reconhecimento das necessidades cotidianas no território. Entender esse processo como uma intersecção entre pessoa e a sociedade pode apresentar resultados apropriados à realidade desta pessoa. Em uma sociedade que para incluir, exclui, é necessário avaliar essa condição de desigualdade social, ressaltando essa dimensão subjetiva do sofrimento (Spink, 2013).

Sawaia (2007, p. 109) define de ético-político o sofrimento determinado pela situação social dos sujeitos. Ou seja, um sofrimento que não é da ordem dos desajustamentos individuais, mas, "que surge da situação de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade e pelo impedimento de desenvolver, mesmo que uma pequena parte, o seu potencial humano".

Segundo a autora, o desemprego, as dificuldades de retorno ao mercado de trabalho, a falta de moradia ou a perda de contato com a família, conduz a marginalização/exclusão, e esta produz sentimentos que causam dor (Sawaia, 2007).

Este sentimento faz parte da existência humana, Minkowski (2000, p.157) afirma que "pode-se atravessar a vida sem jamais ter-se estado doente. Não se pode atravessá-la sem sofrer". No entanto, no escopo das instituições e organizações da área da saúde, o sofrimento humano não é debatido e respeitado como fenômeno relativo à exclusão social. O sofrimento permitido e reconhecido nas instituições de saúde é supostamente individual e de ordem orgânica.

Deste modo, quando o sofrimento ético-político se apresenta nas unidades de saúde, não é classificado, sendo caracterizado como um sofrimento difuso. O termo "sofrimento difuso" foi utilizado por Valla (2001) e atribuído para as queixas somáticas, como dores de cabeça e no corpo, insônia, nervosismo e problemas gástricos não classificáveis, portanto, característico dos pacientes poliqueixosos.

Segundo o autor, compreender as condições e experiências de vida, como também os movimentos políticos destas populações, é o caminho que deve ser percorrido pelos profissionais na busca do entendimento sobre o sofrimento. Ao perceber tal sofrimento como condição de efeitos sociais e políticos, o autor, aproxima-se de Sawaia em sua proposta de sofrimento ético-político.

 

Intenções, Emergências e Estratégias de Produção de Conhecimento

Para dar conta das reflexões sobre o sofrimento ético-político e os serviços de saúde, realizamos uma pesquisa1 de caráter qualitativo. De acordo com Rey (2005) a epistemologia qualitativa tem um caráter construtivo, interpretativo do conhecimento. Resulta em uma compreensão do conhecimento como produção e não como apropriação direta da realidade. Propõe ainda, uma reflexão aberta como atributo ao processo de comunicação, um processo dialógico.

O autor aponta uma relação de multiplicidades que afeta as pessoas e permite a compreensão do caráter social das produções subjetivas. Para tanto, indica que a compreensão das realidades humanas e sua determinação histórica social, podem ser empreendidas a partir da subjetividade. Constituída mediante a experiência social e expressa nos processos humanos que incluem a linguagem, o corpo, a cognição, os afetos e a emoção, objetivando-se nas palavras, nos gestos e nas práticas compartilhadas entre pessoas e instituições. (Rey, 2005, 2007)

Estas construções permeiam vários momentos da pesquisa, não ocorrendo em ponto determinado e único. Caracterizam-se por uma ação constante, frente ao material coletado. Na pesquisa qualitativa, através da análise temática, os dados são analisados e interpretados de acordo com os padrões (temas) que surgem. O tema está ligado a uma afirmação a respeito de um determinado assunto, que transversalmente se articula com falas distintas de diversos participantes do contexto da pesquisa ganhando caráter explicativo quanto aos saberes emergentes do campo (Minayo, 2014).

A população do município em 2019, segundo o IBGE era 219.536 pessoas, a taxa de educação estava em 97% e a incidência de pobreza registrava 29%. Segundo o Boletim Epidemiológico da secretaria de saúde de Itajaí/SC, do total de 5413 notificações de violência interpessoal e autoprovocada, 2367 (43,72%) foram de negligência/abandono; 2036 (37,61%) foram de violência física; 1091 (20,15%) casos de violência autoprovocada; 830 (15,33%) de violência psicológica/moral; seguido de outras violências totalizando 820 (15,14%); 301 (5,5%) de violência sexual; 47 (0,86%) de violência financeira; 43 (0,79%) de tortura; 05 (0,09%) de trabalho infantil; 04 (0,07%) de intervenção legal e apenas 01 (0,01%) caso de tráfico de pessoas, envolvendo uma adolescente em cárcere privado. Em Itajaí/SC, crianças e adolescentes (de 0 a 18 anos) representam o público mais vulnerável e com maior índice de notificação, apresentando 2750 notificações, o que corresponde a 50,80% dos casos. Destes, 1277 (46 %) foram crianças e adolescentes do sexo masculino; 1468 (53%) do sexo feminino e em 05 (0,2%) casos o sexo foi ignorado.

O cenário no qual aconteceu esta pesquisa foi um dos bairros periféricos do município de Itajaí, em Santa Catarina. As pessoas que participaram desta pesquisa são os residentes do bairro e as ACS. O espaço inicial da busca pela compreensão do sofrimento foi a Unidade Básica de Saúde (UBS) e a aproximação com território foi feita com auxílio dos técnicos da UBS, sendo eles: as Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), médicos, enfermeiros e residentes.

Realizamos observações participantes das práticas coletivas no território. A observação participante considera: a entonação da voz, falas e gestos das pessoas e profissionais; referências a espaços e fatos no território; imersão e vivência do pesquisador junto aos participantes da pesquisa. Utilizamos as conversas do cotidiano como fonte registro, conversas em corredores, sala de espera, bate papo na parada de ônibus, na fila da padaria, bancos de praças, nas atividades da escola, nos esportes da associação dos moradores e conversas no comércio local. Desta forma foi possível uma aproximação com a realidade do território. Quando necessário acrescentamos perguntas para ampliação dos eventos observados. As anotações foram realizadas em diário de campo, preservados todos os dados pessoais, como: nome, endereço, números de documentos, telefones ou informações particulares. A pesquisa foi realizada no primeiro semestre do ano de 2018. Neste artigo separamos os diálogos referentes as ACS. Ao compartilhar as atividades de campo com as ACS, a problemática do sofrimento passou a ser sentida e refletida a partir das possibilidades de acesso. A flagrante produção de sofrimento ético-político se apresentava relegada a um lugar muito menor que os problemas de controle biológico. Assim, emergiu para os pesquisadores uma temática importante que é qual relação os ACS estabelecem com o sofrimento produzido através do território. Este saber de campo foi constituídos transversalmente a partir dos diálogos com as ACS durante o processo de imersão no território. A partir da leitura dos diálogos, começou o encontro com os conceitos dos autores Agnes Heller e Martín-Baró.

 

Trocando Passos e Olhares: o que Emerge da Caminhada com ACS no Território?

Para compreender os diálogos com as pessoas a partir de agora temos que contextualizar a realidade desta região, problematizando não apenas a questão habitacional.

Mesmo após 30 anos de existência do bairro, as condições de moradia no território de pesquisa continuam precárias. Não é possível alcançar todos os detalhes da construção do bairro, no entanto, com o acompanhamento das ACS's, nos aproximamos desta realidade e do trabalho destas profissionais, revelando algumas dificuldades.

A dificuldade está em mapear todas as famílias no território. Segundo as ACS's, em muitos endereços residem mais de uma família no mesmo terreno. Quando são todos de uma família, a exemplo dos pais que moram na casa da frente e os filhos nos fundos, ainda há uma chance de continuação do trabalho, mas quando são casas ou quartos de aluguel é complicado, afirmam as ACS's. Isto devido ao fato das constantes mudanças. Muitas vezes a ACS vai até a casa, faz todo cadastro dos moradores, no retorno a UBS ela atualiza o sistema informatizado do SUS e quando retorna na semana seguinte os moradores não estão mais lá.

Segundo Mendonça e Lacerda (2015), Martín-Baró desenvolveu pesquisas e teorias sobre questão habitacional. Nestes estudos são problematizados a relação entre o modo de morar da população excluída e os preconceitos e justificativas gerados pela classe dominante. Esta situação, de acordo com os autores, acarretaria problemas na dialética do ser humano com seu contexto de vida. Nesta condição social, os sujeitos assumem o olhar do opressor, identificando-se com este e assumindo condutas por vezes violentas, aumentando sua condição de exclusão e fortalecendo a situação de desigualdade social. A questão habitacional está ligada as diferenças entre classes sociais, desigualdade e pobreza extrema, denunciando a sociedade injusta (Mendonça & Lacerda, 2015).

Quando referem suas dificuldades de cumprir a tarefa de cadastro das famílias, as ACS imputam as pessoas e seus comportamentos seu modo de habitar perdendo a dimensão da produção social desta condição. Identificam apenas que são pessoas que em sua maioria chegam ao município em busca de oportunidade de emprego e que muitos também são de outros países, como é o caso da população haitiana.

De acordo com Baeninger e Peres (2017), entre 2010 e 2015, foi registrada pelo SINCRE (Sistema Nacional de Cadastro de Estrangeiros) a entrada, no Brasil, de 28866 imigrantes haitianos. O cenário recente da imigração internacional no Brasil aponta a entrada de imigrantes haitianos a partir de 2010. Esse fato tem indicado a necessidade crescente da ampliação do entendimento dos processos migratórios. A diversidade e a complexidade no processo de redistribuição indicam a emergência de processos sociais, culturais e políticas dos países de origem e de destino. Embora o fluxo de imigrantes haitianos não utilize a categoria jurídica de refugiados para sua permanência no país, ainda sim representa a migração de crise, no âmbito do campo social da migração. Para este processo torna-se necessário considerar os fatores histórico-estruturais que construíram socialmente o processo emigratório no país de origem e articular no país receptor a reconfiguração dessa imigração e suas características no campo social da migração.

Com o número de habitantes aumentando, o bairro foi crescendo de forma desorganizada, com muitas invasões. A solução que o governo encontrou foi à ampliação do bairro, no entanto, as margens da rodovia surgem novos moradores, sem condições de construir sua moradia nos padrões da prefeitura e seguem marginalizados. Na busca por uma vida melhor, emprego para o sustento de suas famílias, muitos moradores se deparam com uma vida diferente da que imaginaram. No banco de uma praça encontro uma moradora que havia visitado, conversamos:

Eu não gosto de morar aqui...por causa dos bandidos...aqui tem muita gente ruim...mas eu trabalhei no projeto da minha casa...e agora é minha...o projeto era pra não ter mais casa de madeira...puxadinho...a prefeitura fiscaliza e vai derrubar. No fim da minha rua invadiram tudo...mas a prefeitura vai tirar porque não pode. (Moradora 18)

A conversa com a moradora 18 indica um mal-estar relativo aos diferentes modos de produzir exclusão social e gerar sofrimento. Conforme afirmam Mendonça e Lacerda (2015), na perspectiva de Martín-Baró, as consequências da aglomeração são a sensação de sufocamento físico e psíquico, agressividade, mudanças na percepção e nas formas de pensar e agir. A situação de violência apontada pelos autores age duplamente nas pessoas. Primeiro como opressão material imposta pela forma de organização excludente nas cidades e simultaneamente como desqualificação destas populações, que, subjetivadas por estas práticas de periferização, entendem-se como perigosas e violentas.

No bairro, à medida que aprofundamos nossa entrada, as moradias se tornam mais precárias, as ruas apresentam problemas. A rua que a moradora 18 relata que havia uma invasão é onde acaba o asfalto. Ao redor dessas casas há um pequeno banhado e algumas fábricas, e o barulho dos carros e das fábricas é alto.

O cenário muda drasticamente, adolescentes nas esquinas, crianças pequenas sozinhas andando pelas ruas. A chuva do dia anterior deixou as ruas com barro e um mato alto cerca as casas.

A ACS nos orienta a andar de cabeça baixa: "Não olhe fixamente para nada e muito menos para eles (apontando adolescentes na esquina)" e ao mesmo tempo passa por nós uma criança, aparentemente com 8 ou 9 anos: - "Olha... olha... eu fiz mais...(a criança corre com notas de cinco e dez reais)".

Segundo as ACS, nesta região o acesso não pode ser feito sozinho, é necessário o acompanhamento dos profissionais da saúde, pois estes possuem uma espécie de autorização para a circulação.

Nesse momento, surge um incômodo imenso e questões reverberam e passam a constituir nossa relação com as ACSs e os moradores: Como assim não podemos olhar fixamente as pessoas? Como profissionais de saúde cuidam sem olhar? Que tipo de olhar oferece? Quem e como definiram a periculosidade do bairro? Como uma profissional de saúde pode olhar para um grupo de crianças e adolescentes, varejistas2 e sentir tanto medo? Como cuidar sentindo medo?

Segundo os Cadernos de Atenção Básica do Ministério da Saúde (Costa, 2000, p. 15) a equipe de saúde da família, deve residir no município onde atua, "trabalhando em regime de dedicação integral. Para garantir a vinculação e identidade cultural com as famílias sob sua responsabilidade, os Agentes Comunitários de Saúde precisam residir nas respectivas áreas de atuação". Quando pensamos nisso, o incômodo com os comentários, aumentam. Afinal, estão as ACS com medo de seus vizinhos? Podem as ACS, naquele momento esquecerem que compõem o bairro e produzir sofrimento com comentários que depreciam moradores apenas por morarem onde moram?

Entretanto o fato de a ACS residir no bairro, que convive com esta realidade diariamente, gerou contradições entre o seu conhecimento sobre o cotidiano das pessoas e suas atribuições. Fato que influencia no seu olhar para o território. Na Unidade Básica de Saúde (UBS) muitos comentários circulam os corredores sobre a busca por atendimento das ACS nos finais de semanas, em suas folgas, em suas casas, pelas pessoas que atendem durante seu horário de trabalho. Estes fatos indicam o processo de sofrimento que o próprio ACS atravessa durante o exercício de suas atribuições.

No meio desta região há uma praça, ou uma tentativa de praça. Dizemos isso, pois a praça apresenta bancos inacabados, a grama já está alta e não há mais brinquedos disponíveis. A ACS nos conta que faziam "Ação" naquele local. A palavra "Ação" refere às atividades realizadas pela UBS para orientação da população. A ação descrita pela ACS é de higiene, medidas preventivas contra doenças sexualmente transmissíveis (DST), principalmente a Sífilis que preocupa o Município, a Hanseníase, o HIV e sobre as doenças crônicas.

O Ministério da Saúde, em 2005, apresenta o Pacto em Defesa da Vida. Este pacto destacava um conjunto de ações e de compromissos sanitários. Entre as prioridades está a promoção, informação e educação em saúde. O percurso para a melhoria da qualidade de vida, segundo as orientações, está em divulgar informativos educativos em saúde fortalecendo o conhecimento no território.

Nossos incômodos aumentam. É de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis que essa população precisa? Sem asfalto, no meio da lama, sem saneamento básico, correndo diariamente o risco de serem expulsos de suas humildes casas, é mesmo sobre higiene que precisamos conversar? Ou será que o compromisso do serviço de saúde é maior? Será que as tais ações não podem ser sobre como melhorar as condições de vida dessa população? Não pode ser sobre o medo que impera entre esses moradores?

Continuando o caminho, encontramos nessa tentativa de praça um grupo de adolescentes conversando. Segundo a ACS todas já são mães e muitas estão no segundo filho. A ACS relata uma história de seus atendimentos, "teve um caso de uma família com três irmãs, em uma família de onze filhos, que as mais velhas engravidaram e a mais nova de 14 anos ficou com ciúmes e engravidou também".

A decisão de engravidar da adolescente nos leva a pensar: será o desconhecimento de métodos contraceptivos que ocasionou a gestação? Ou sua motivação seja a imitação? Para Heller (1970, p. 21) "o indivíduo, o homem, é um ser genérico, um produto de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano". Como em uma tribo, onde se forma uma consciência coletiva, as decisões cotidianas estão acima do individual. O papel social é resultado dos acontecimentos da vida cotidiana. O percurso da história evidencia a função de imitação do homem, não só em suas ações, mas em suas condutas, na maneira de pensar e no comportamento.

Se a escolha do papel social surge das relações, da imitação, conforme o cotidiano em que está inserido, as ações em saúde poderiam ser complementadas com o conhecimento prévio da cultura local, do cotidiano do território e do processo histórico construído no território. Para isso as ACS têm a vivência presente no dia-a-dia do exercício da sua função. Faz parte das suas atividades escutar histórias, anseios e necessidades, todos os dias, mas depois dessas caminhadas, pensamos, o que fazem com as histórias que escutam? Até onde essas trabalhadoras do serviço de saúde estão conseguindo olhar, escutar e cuidar desses sujeitos?

São evidências da necessidade de compreensão ampliada do processo saúde-doença. Sem a compreensão do processo da intersecção entre as pessoas e o território, as práticas em saúde tornam-se vazias. As condições de vida precárias, sem garantias de uma mudança, influenciam diretamente nas questões de saúde da população. Um sistema de saúde que desconsidera a experiência cotidiana no território, responsabilizando a pessoa por seu adoecimento, produz um sofrimento a partir do desenvolvimento de uma sensação de desamparo e impotência.

Estas sensações incorporam o fatalismo, pois dia-a-dia a pessoa aprende que seus esforços não mudaram nada a sua realidade. A resignação submissa foi aprendida na constatação de seu cotidiano, no qual o esforço não alteraria sua natureza marginalizada devido ao sistema socioeconômico excludente. As pessoas são dominadas e não tem reais condições de projetar o seu futuro a partir de suas experiências na vida cotidiana (Martín-Baró, 2017).

Sawaia (2007) aponta que a aceitação da submissão resulta da violência social, que tem variadas faces. Cita o medo da violência e a manipulação política-ideológica constituído no discurso da segurança pública como condutores de sustentação de forças autoritárias. O clamor por mais vigilância, policiamento, justificam o discurso. Segundo a autora "ninguém está livre de ser sua vítima ou de revoltar-se com a violência, mesmo porque ela está espetacularizada pela mídia" (Sawaia, 2007, p. 22).

Em outra visita com as ACS, conhecemos a moradora 44. Senhora de aproximadamente 80 anos, com graves problemas de acumulação. Segundo relato das ACS, os familiares decidiram organizar uma limpeza e resolver o problema da acumulação sem o consentimento dela. Nesta visita com a equipe de saúde, para um atendimento de rotina, a equipe foi surpreendida com a retomada da acumulação. Destacamos aqui, que os profissionais de saúde conversaram com os familiares sobre o uso correto da medicação, fizeram perguntas sobre a alimentação, mas, em nenhum momento as perguntas foram feitas diretamente para a moradora. Durante a visita a moradora quer conversar e não encontra alguém. Ao cruzar nosso olhar, dispara sua fala e revela situações da vida, com o companheiro e de sua infância. Em nossa conversa surgem suas explicações para acumulação, que não são consideradas pela equipe de saúde.

No mesmo dia, visitamos a casa do morador 21 que estava todo arrumado, esperando pela equipe na varanda sentado em uma cadeira. Os familiares comentam que ele se arrumou para as visitas. Novamente, uma visita de rotina onde todas as perguntas são feitas aos familiares. Ao morador restou apenas concordar.

Frente a estas situações, nos questionamos quais os espaços destinados para as pessoas idosas? Que espaço de cuidado oferecem a velhice, ao sequer questionar os idosos sobre sua condição de saúde? Humilhação, desrespeito, vazio, quais sentimentos esse tipo de interação provoca?

No cotidiano, o papel do idoso tem um significado considerável, reflexo de como era sua vida anterior à velhice. Quando surge a aposentadoria, ela vem acompanhada do descanso, da possibilidade de lazer, mas em contrapartida também da desvalorização devido ao encerramento da sua capacidade de produção para o mercado. (Mendes, Gusmão, Faro, & Leite, 2005)

As propostas para uma melhor condição de vida no envelhecimento das pessoas, deveria ir além de um sistema normativo de prescrições para o prolongamento da vida. Mendiondo (2002) aponta que os centros dias, trabalho voluntário, trabalho no domicílio e os trabalhos com a família, necessitam de ampliação. Para o autor é preciso avançar nos modelos de grupos de convivência, criar discussões sobre os direitos e deveres dos idosos com responsabilidade, para não corrermos o risco de criar estereótipos e preconceitos.

 

Quem Educa Quem?: Emergência de Saberes entre Território, ACS e Pesquisador

Muito do que descrevemos até aqui, foram nossos incômodos em relação as visitas realizadas com auxílio das ACS e, o quanto elas aumentam o sofrimento dos usuários que acompanham sem perceber o que fazem. Mas, não consideramos em momento algum que as ACS sejam, responsáveis pelo não saber fazer. Ao contrário, entendemos que é dever do Estado, proporcionar espaços de diálogo no qual possam as ACS, como sujeitos chave no território, ter maior compreensão da complexidade que é sua atuação. Entendemos que, mais do que, cadastro e controle das famílias, o que as ACS fazem, pode e deve, ser considerado, como parte do processo de acolhimento, uma atribuição das equipes da estratégia saúde da família.

Para o Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2010) o acolhimento é um reconhecimento da necessidade do outro em saúde, que deve sustentar a relação entre a equipe e deve ser realizado com uma escuta qualificada com garantia de acesso e efetividade das práticas em saúde.

São muitas as possibilidades para enfrentar o sofrimento, é preciso que os serviços de saúde compreendam as formas como o sofrimento se expressa para que possam buscar alternativas que melhorem a vida das pessoas. Portanto, como potencializar o trabalho das ACS? Como problematizar e gerar estranhamentos sobre os modos de vida no território, sua determinação social e relação com a produção do sofrimento que atravessa as relações entre usuários e profissionais de saúde que compartilham em perspectiva o mesmo território?

Com base na perspectiva histórico-cultural, entendemos que as ACS, como qualquer sujeito, se constituem em relação. Uma constituição cercada por dimensões históricas, econômicas, políticas e culturais, isto é, ao longo de sua existência, o sujeito vai se apropriando das qualidades humanas expressas nos elementos da cultura, em determinado tempo histórico, dotado de relações econômicas e políticas específicas. Este sujeito socialmente constituído também "imprime sua marca no contexto social em que se insere, objetivação esta, mediada pelo que foi socialmente apropriado" (Zanella, Lessa, & Da Ros, 2002, p. 213).

Reconhecemos, portanto, o contexto como produtor de singularidades e especificidades entre sujeitos, que configuram também em expressões das condições sociais, econômicas, políticas e ideológicas. Nesse sentido, as ACS constituem-se também no seu contexto de trabalho, em cada visita que realizam, no bairro onde moram, no cotidiano de cada grupo do qual fazem parte.

Desse modo, defendemos que é fundamental que o Estado se comprometa com espaços de diálogo, no qual o "grupo" se transforme em um encontro com o outro, que potencialize afetos, que o permitam se apropriar de forma sensível do mundo, a ele ofertando novos significados, não aceitando os significados antes naturalizados.

Historicamente, autores da Psicologia Social vêm se dedicando às discussões sobre grupos. A posição tradicional e hegemônica defende que a função do grupo seria a de definir papéis e, por consequência, implicaria garantir a produtividade dos indivíduos e grupos através da manutenção e harmonia das relações sociais, tratando-se de um grupo estruturado, coeso e acabado. Outra posição, por sua vez, enfatiza o caráter da mediação do grupo, afetando a relação entre os indivíduos e a sociedade. Nesta posição, prevalece a preocupação com o processo pelo qual o grupo se produz, considerando as determinações sociais presentes nas relações grupais (Lane, 2001).

Nesse sentido, Zanella e Pereira (2001, p. 107) escrevem que grupo é "tanto um espaço de conjunção de singularidades, instância que remete à diversidade de sujeitos, quanto do compartilhado elo da pluralidade". Para que se constitua um grupo, é necessário, tanto ter algo a ser compartilhado pelos sujeitos, quanto sujeitos compartilhando suas necessidades e singularidades, sem descaracterizá-las. É, portanto, um espaço em que os diferentes sujeitos se expressam, se encontram e desencontram, se confrontam, se transformam e se constituem (Zanella et al., 2002).

Logo, estamos aqui defendendo que a formação das ACS deva ocorrer através de uma atividade grupal. Atividades de grupo, se tornam o espaço de diálogo mais potente para que as ACS problematizem seu lugar no território. Possivelmente, o trabalho em grupo como estratégia pode utilizar de pautas que aproximem estes trabalhadores de suas relações concretas, objetivo/subjetivas com o território. A recuperação da história singular, através de artefatos pessoais como fotos e objetos, além da narrativa oral e escrita, pode gerar sensibilidades que desvelem sua aproximação com os modos de viver e necessidades da população do território. A aproximação sensível com o território é capaz de transformar a condição da equipe de saúde, na medida em que o olhar para o outro, usuário, pode deixar a perspectiva que lhe transforma em exótico (carente, perigoso, impotente) e lhe tomar como sujeito potente para o diálogo de construção de práticas de saúde como aumento de sua potência de vida.

No processo de produção do grupo, as relações sociais são transformadas, para tanto, é fundamental entender o grupo como: constituinte dos sujeitos que se encontram em espaço de negociação, não se esquecendo de que ali se expressa a sociedade como um todo, com seus valores e crenças, sendo ao mesmo tempo possível, via relações sociais, ressignificar essas características (Zanella & Pereira, 2001, p. 107).

A proposta de grupos como espaço de diálogo, objetiva tornar possível a ressignificação do próprio sujeito, a produção de relações sociais diferentes, proporcionar novos movimentos e reflexões. Por fim, esta atuação coletiva produz novas demandas que fazem reviver o trabalho coletivo, este, essencial para uma ação transformadora da sociedade. (Zanella & Pereira, 2001; Zanella et al., 2002)

Nesse sentido, Barros (2009) defende que o grupo é uma ferramenta que acionará a descristalização de lugares e papéis. Para além disso, a autora trabalha com a ideia do grupo enquanto fissura, que se localiza no campo da ruptura, da afirmação de potencialidades, do escape ao que está naturalizado, da invenção e da criação de modos de existência. Juntas, as ACS podem perceber a semelhança entre os problemas de cada usuário do serviço com seus próprios problemas, e entender que são frutos de condições sociais de vida, além do grupo ser um espaço de organização coletiva, no que se refere à busca por soluções para diminuição desse sofrimento.

A concepção de grupo, compartilhada até aqui, traz como elementos fundamentais a produção de um sentido de "nós" e das possibilidades de uma organização coletiva, a busca por problematizar conceitos cristalizados, provocar rupturas, qualificar a existência, isto é, caminhar no sentido da transformação dos sujeitos e da sociedade.

Nesse sentido, vamos tecendo uma concepção de, em que, ao lidar com as vivências subjetivas e objetivas do dia-a-dia de se fazer, as ACS lidam com as vivências subjetivas e a realidade objetiva de cada usuário que atende. Escutando, acolhendo e ressignificando seu sofrimento. Mais especificamente, no que diz respeito ao contexto das ACS, os grupos podem ser muito potentes, na escuta de um compartilhar dificuldades no trabalho, sofrimentos e sucessos, o que dá início a um processo de reflexão sobre seu cotidiano.

Logo, a proposta de realização de grupos com as ACS deve se pautar em uma postura de não-saber, isto é, ouvir os protagonistas do processo com o mínimo de categorias pré-formadas e propostas prontas, a fim de resgatar e conhecer o saber e experiência trazida por eles. Por meio de um movimento conjunto entre atuar e refletir, a ideia proposta é de recolocar as ACS no seu lugar de sujeitos sociais e, portanto, de agentes da própria mudança e da mudança do seu modo de fazer, da sua tarefa de cuidado.

A vinculação entre a metodologia de grupos, com a educação de trabalhadores da saúde e a educação permanentemente transforma o modo de produzir trabalho em conhecimento em saúde. A metodologia de grupos proposta funciona como estratégia de costura de várias dimensões laborais, criativas, cognitivas, afetivas, emocionais e políticas. A Educação permanente com caráter de educação popular e não de capacitação (Ceccim, 2008), é posta como educação pelo trabalho e ativada como pelos encontros dos trabalhadores/trabalhadoras com o território. Assim o desenvolvimento desta estratégia começa com o encontro de um comum (Sawaia & Purin, 2018) realizado com grupos que podem se desenvolver nos espaços das reuniões de equipe. A partir deste comum, ou seja, necessidades, afetos, dificuldades operacionais e políticas do contexto, os/as trabalhadores/trabalhadoras constroem sua estratégia de trabalho, desenvolvem em seu cotidiano e potencialmente transformam a si e aos outros ao agir no contexto. O constante retorno ao grupo serve como espaço de fortalecimento, apoio, construção de laço ético-político com o trabalho e ressignificação de suas relações como trabalhador/trabalhadora.

Em nossa perspectiva, o estranhamento do trabalho de acolhimento pode potencializar a educação permanente tendo como horizonte a qualificação dos processos de sofrimento em cada território. Além disso, ampliar o acolhimento na UBS, reconhecendo as necessidades das pessoas em suas relações com o território, não se tratando apenas da indicação do profissional para atendimento médico ou de antecipação de agendamento. Ele deve ser capaz de incluir, orientar pessoas como protagonistas do processo de cuidado, na medida em que reconhecem suas necessidades no plano singular e comunitário, abrindo possibilidades de resolução dos problemas cotidianos.

Neste processo as ACS dispõem do conhecimento necessário das dificuldades e dos problemas de saúde nas suas regiões. Este conhecimento pode contribuir na construção de políticas públicas que forneçam suporte as UBS. É importante ressaltar que a Política Nacional de Humanização (PNH), de 2010, preconiza o acolhimento como diretriz ético-político do trabalho em saúde. Lembremos brevemente que estamos em um cenário de turbulência institucional na saúde. Turbulência causada pelo choque governamental que fortalece o modelo hegemônico higienista e desmonta décadas importantes de conquistas políticas, técnicas e econômicas que visam mudar as relações da população com as necessidades de saúde. A emergência de estratégias contemporâneas (a partir de 2017) centradas no biológico, nas doenças e nas tecnologias duras, aumentam a preocupação com a sustentabilidade do sistema de saúde no Brasil.

 

Considerações finais

Nas reflexões tecidas no texto que por hora encerramos, estão contidas emergências transversais de um processo de pesquisa baseado nas ciências humanas, psicologia social, no encontro com a realidade da política de saúde brasileira, mais especificamente com as condições humanas do contexto da atenção básica/ESF. A pesquisa que gerou estas transversalidades teve como foco discutir a relação pessoa, território, sofrimento, no contexto da atenção básica. Neste intento, nos encontramos com o olhar dos profissionais que intermediaram o percurso do pesquisador no território.

A proximidade, por vezes íntima, destes trabalhadores da saúde com o território, torna-os sujeitos dos mesmos olhares e padecimentos. Olhares e padecimentos produzidos por relações sociais inscritas em contradições postas nos enfrentamentos entre as pluralidades da sociedade com seus esforços de opressão do capitalismo periférico e momentos de resistência e crítica como o movimento da reforma sanitária e a luta pela conquista do SUS. O lugar de proximidade das trabalhadoras Agentes Comunitárias de Saúde, potência para a compreensão das necessidades do território, é atravessado por forças ideológicas de diferentes campos próprios da história da saúde pública como o higienismo, ou mesmo pela lógica meritocrática do esforço individual que traz prosperidade econômica.

Neste sentido, a questão que nos mobiliza nesta escrita e que deixamos como desafio e proposta política, encaminha-se na direção da educação permanente em saúde. Estratégia consolidada e fortalecida no Ministério da Saúde através da secretaria de gestão do trabalho em saúde, durante governos com compromisso popular, a educação permanente em saúde associada a política de humanização das práticas do SUS, HumanizaSUS, pode assumir a lógica da educação popular. A educação popular assenta-se no domínio dos saberes cotidianos dos sujeitos, seus diálogos possíveis e seus encontros/rupturas com a realidade local a partir de seu estranhamento. Com isto, os grupos de educação com ACS podem fortalecer sua condição de pessoas do território e gerar potência de vida para seus enfrentamentos enquanto trabalhadoras da saúde.

 

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Recebido em: 07/05/2019
Aprovado em: 29/01/2020

 

 

1 A presente pesquisa respeitou todos os requisitos exigidos pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Univali - Universidade do Vale do Itajaí-SC, e foi aprovada, sob o número do Parecer: 2.257.715.
2 Varejistas é o termo utilizado por representantes do Movimento Moleque: Movimento de Mães pelos Direitos dos Adolescentes no Sistema Socioeducativo, para diferenciar os meninos em situação de venda de drogas, de traficantes profissionais. Para maiores informações sobre o Movimento Moleque acesse: http://movimentosocialmoleque.blogspot.com. Para maiores informações sobre o conceito de Varejistas/Varejo, ler Willadino, Nascimento, e Silva (2018).

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