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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo set./dez. 2020

 

DOSSIÊ - ESTUDOS SOBRE CONTEXTOS DE DESIGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA SÓCIO HISTÓRICA

 

Bioética enquanto emoção e consciência em atos e o contexto de exclusão/inclusão do humano

 

Bioethics as emotion and consciousness in acts and the context of human exclusion/inclusion

 

Bioética como emoción y consciencia en actos y el contexto de exclusión/inclusión del humano

 

 

Fátima Fernandes CatãoI; Rui NunesII

IDoutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo- USP. Pós- Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUCSP. Pós- Doutora em Saúde e Bioética pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto-Portugal-FEMUP. Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisadora coordenadora do NEIDH- Núcleo de Estudos Psicossociais da Exclusão/Inclusão e Direitos Humanos / fathimacatao@uol.com.br
IIDoutor em Medicina na área da Bioética. Professor Catedrático, Diretor do Departamento de Ciências Sociais e Saúde, Coordenador Geral do Programa Doutoral em Bioética -FMUP. Presidente da Associação Portuguesa de Bioética. Head of the Research Department International Network UNESCO Chair in Bioethics / ruinunes@med.up.pt

 

 


RESUMO

Atualmente, urge a igualdade de oportunidades, políticas públicas e novas sociabilidades no combate à exclusão social e do humano. Considerando tal cenário, tem-se por objetivo neste artigo refletir sobre o ser humano sujeito e o contexto de exclusão, buscando evidenciar a emoção e a consciência como movimento da Bioética em atos. O contexto de exclusão em análise constitui-se de uma comunidade de baixa renda. O estudo é de caráter descritivo-analítico, desenvolvido à luz da Psicologia Socio-Histórica. Foram realizadas entrevistas semiestruturada com 35 moradores em atendimento no Posto de Saúde/Estratégia de Saúde da Família e/ou no Programa EJA (Educação de jovens e adultos) na comunidade. Utilizou-se a análise de conteúdo para refletir sobre as falas dos participantes do estudo - como se veem, sentem, pensam. Evidencia-se, assim, a Bioética dos cidadãos comprometidos em viver de modo humanizado e a necessidade de ações sensíveis e conscientes.

Palavras-chave: Bioética; Emoção; Consciência; Política; Exclusão/ Inclusão.


ABSTRACT

In the present scenario, which urges the need for opportunity equality, public policies and new sociabilities in fighting social and human exclusion, the objective of this article is to reflect on the human subject and the exclusion context, seeking to evince emotion and consciousness as Bioethics movements in acts. The exclusion context analyzed relates to low-income communities and poverty. The study has a descriptive-analytic approach, developed on the field of Socio-Historical Psychology. A semi-structured interview was performed with 35 inhabitants serviced by a Health Unit/Family Health Strategy (Estratégia de Saúde Familiar - ESF) or the EJA (Young people and Adult Education - Educação de Jovens e Adultos) program. Content analysis was used to reflect on the speech of the participants - how one sees, feels, thinks. It is thus evinced the need for acting sensibly and conscious of the ethics of citizens implied in a humanized way of living.

Keywords: Bioethics; Emotion, Consciousness, Policy, Exclusion/Inclusion


RESUMEN

En el escenario actual, en el que urge la igualdad de oportunidades, políticas públicas y nuevas sociabilidades en el combate a la exclusión social y del humano, se tiene por objetivo en este artículo reflexionar sobre el ser humano sujeto y el contexto de exclusión, buscándose evidenciar la emoción y la consciencia como movimiento de la Bioética en actos. El contexto de exclusión en análisis trata de la comunidad de baja renta y pobreza. El estudio es de carácter descriptivo analítico, desarrollado a la luz de la Psicología Socio-Histórica. Fue realizada una entrevista semiestructurada con 35 moradores en atendimiento en el Puesto de Salud/Estrategia de Salud de la Familia y/o en el Programa EJA (Educación de jóvenes y adultos) en la comunidad. Se utilizó el análisis de contenido para reflexionar sobre las hablas de los participantes - cómo se ve, siente, piensa. Se evidencia, así, la necesidad de acciones sensibles y conscientes, emergentes de la Bioética de los ciudadanos, implicados en vivir de modo humanizado.

Palabras clave: Bioética; Emoción; Consciencia; Política; Exclusión/Inclusión.


 

 

Introdução

Bioética em atos: da servidão à potência de ação

A bioética coloca-se como exercício contínuo e persistente de reflexão, em cada um de nós, em todos nós, em todos os momentos, em todos os espaços, em todos os sentimentos, em todos os pensamentos, em todas as ações. (Catão, 2016, 31)

Como ciência do sentir, pensar e fazer, a Psicologia tem no psicológico a unidade de captura da totalidade do real e de atuação no mundo para a sua transformação como força política e poder de emancipação humana e social. Os seres humanos se produzem na história que constroem por meio dos afetos, da consciência, da linguagem, da atividade. Quando os seres humanos agem no contexto, introduzem modificações neste contexto, em si próprios, por meio da sua atividade (Luria, 1990, Vigotski, 2004a, 2004b).

O dualismo entre emoção e razão tem sido muito questionado, não fazendo parte da matriz paradigmática que caracteriza o tempo presente. As emoções e o seu papel fundamental no comportamento racional humano já foram observados por pensadores e pesquisadores no desenvolvimento de seus estudos, a exemplo de Espinosa (2009), Vigotski (2001, 2003, 2004a, 2004b), Damásio (2000, 2004, 2012, 2013), segundo os quais a emoção e a razão constituem-se em uma unidade, e a emoção, os sentimentos e os afetos contribuem para a razão. Os sentimentos, pois, exercem uma poderosa influência sobre a razão, e essa ligação pode existir tanto em termos anatômicos, como funcionais, daí ao corpo. (Damásio 2013).

Atualmente, o último limite a ser transposto pela ciência da vida é desvendar a mente, e um dos propósitos nesse direcionamento é estudar a conciliação entre emoção e consciência. Bem como o papel central da emoção nas tomadas de decisão do ser humano e na racionalidade. Damásio (2000, 2004, 2012, 2013) afirma que as emoções fundam a maior das novidades, que estão na base da luta pelo avanço da ciência e que o seu estudo, pelos tabus científicos, tem-se tornado virtualmente impossível até a atualidade. Verifica o autor, ainda, a necessidade de se proceder a um conjunto de rupturas epistemológicas, em um direcionamento do desenho dos limites da explicação biológica nos limites das ciências sociais.

Por serem sociais, as emoções são fenômenos históricos, cujo conteúdo e qualidade estão sempre em constituição. Vigotski (1991) acentua que a emoção e o sentimento não são entidades absolutas ou lógicas do nosso psiquismo, mas significados radicados no viver cotidiano, que afetam nosso sistema psicológico pela mediação das intersubjetividades. Os processos psicológicos, as relações exteriores e o organismo biológico se conectam por meio das mediações semióticas, configurando motivos, que são estados portadores de um valor emocional estável, desencadeadores da ação e do pensamento (Sawaia, 2006).

O estudo da emoção e da consciência como Bioética em atos trata do conhecimento do ser humano como sujeito na sua totalidade e em ato, o que sente, reflete e como age no cotidiano vivido, como produto e produtor desse cotidiano. Trata-se de um processo de mediação da emoção e da consciência do sujeito, no questionamento da própria ação, da ação do outro, da ação da cultura, das condições de vida.

Nesse direcionamento, ao estudar a emoção e a consciência do vivido em contextos de exclusão, faz-se necessário indagar sobre a genética biológica e social, bem como sobre o referencial axiológico - o ser humano, a sua dignidade e os seus direitos básicos e inalienáveis como parte integrante da biodiversidade e da sociedade plural (Nunes, 2012, 2013). Ao estudar a emoção e a consciência do vivido, urge estudar o sujeito da emoção e da consciência e as condições de constituição deste ser na sua humanidade. Todos os seres mutáveis possuem consigo e na sua atualização um caráter de processualidade e uma dimensão de potencialidade, ou seja, a faculdade de mudar, a potência da ação humana, não como propriedade do sujeito, mas como possibilidade do vir a ser enquanto capacidade de ser afetado pelo outro, pelos contextos em um processo de possibilidades infinitas de criação e de entrelaçamentos (Espinosa, 2009). Os seres humanos são mutáveis, e sua potencialidade é aberta ao novo, ao que nunca foi.

É nesse movimento e na capacidade de ser afetado que o ser humano se produz, se faz e se potencializa na relação com outros seres humanos e com o mundo (Espinosa, 2014). Com base nessa concepção, os afetos deixam de ser estáticos, com sentido único, e tornam-se processos que se configuram continuamente, segundo os nexos sustentadores do sistema psíquico articulado com a situação social e histórica, que são, por sua vez, mediadas pelos nexos do sistema psicológico; são, pois, reveladores do implícito, do latente, do oculto, do subtexto (Catão, 2007, 2011, 2013; Catão & Grisi, 2014; Sawaia, 2006, 2010 ).

Observa Sawaia (2006) que a principal obra de Espinosa, a Ética, é um tratado das emoções. Nela, para discutir democracia e liberdade, ele reflete sobre paixão. Espinosa apresenta um sistema de ideias em que o psicológico, o social e o político se entrelaçam e se remetem uns aos outros, sendo todos eles fenômenos éticos e da ordem do valor. Neste direcionamento Heller (1977), filósofa neomarxista da escola de Budapeste e leitora de Espinosa, foca suas reflexões sobre o psicológico como ético e sobre a emoção e as necessidades como fenômenos ideológicos e orientadores da vida em sociedade

A preocupação com o ser humano em contextos de exclusão, a emoção e a consciência elaboradas por ele no vivido, o real como uma constituição psicossocio-histórica e ética configurado em contextos de exclusão/inclusão social colocam-se como referência analítica deste estudo. Tem-se por objetivo refletir sobre o ser humano sujeito e o contexto de exclusão, buscando-se evidenciar a emoção e a consciência como movimentos da Bioética em atos; contexto de exclusão em análise constitui-se de uma comunidade de baixa renda.

Adota-se como paradigma analítico o da ética e emancipação humana (2004b; Espinosa, 2014; Nunes, 2010, 2012, 2013; Vigotski, 1991, 1998, 1999, 2000, 2001, 2003, 2004a) na constituição do sujeito da emoção e da consciência. Enfoca-se a subjetividade como intersubjetividade, entendida como sistema complexo de configuração permanente das relações do todo e das partes. Visa-se, também, à elucidação das questões da sociedade, dos seres humanos e dos processos psíquicos, questões que só podem ser entendidas como uma e mesma questão ética e psicossocio-histórica.

A Bioética em atos busca resgatar a emergência da ética nos contextos, nos sujeitos, na política e na vida que se pretende humana (Aurélio, 2014; Espinosa, 2009;; Sawaia, 2006). Construir o conhecimento da Bioética à luz do estudo da ética é construir as bases epistemológicas e ontológicas para se pensar a contemporaneidade (Espinosa, 2009; Lukács, 2013, Marx, 1984).

Apesar de Espinosa, Marx e Vigotski jamais terem trabalhado com o termo "Bioética", as obras desses pensadores tratam diretamente do objeto de estudo dessa área de conhecimento: o humano e a Ética como movimento de emancipação do ser e princípio norteador, respaldando-a teórica e metodologicamente. É nesses autores, em suas concepções de ser humano e de mundo, bem como nas suas categorias conceituais, que buscamos os princípios e as proposições norteadores do estudo em questão.

Foi no fim dos anos de 1960 e início dos anos 1970 que surgiram o conceito e as proposições do estudo da Bioética como ramo da ética aplicada. O termo "bioética", concebido como ponte para o futuro, foi cunhado por Potter (1970, 1972), que revelava, entre outros aspectos, preocupação clara com o meio ambiente. Ao ser justaposto à ética, o prefixo "bio" trouxe para a palavra aspectos da vida de maneira mais direta e palpável.

Van Potter (1970) propôs o termo "bioética" ao escrever o artigo intitulado Bioethcs, the Science of Survival (Potter, 1971), seguido do livro intitulado Bioethics, Bridge to the future (1971). Potter vê, nessa área de reflexão - a Bioética -, um vasto campo de práticas que engloba a proteção da população, a paz, a luta contra a pobreza, a defesa da ecologia e da vida animal, o bem-comum e, por conseguinte, a sobrevivência da espécie humana e do próprio ecossistema (Potter, 1988, 1995, 2001, 2012). Sua visão é ampla e de pretensão interdisciplinar, o que exige uma abordagem que abarque a complexidade, a unidade e a totalidade (Cunha & Lorenzo, 2014). O referido autor trata da questão emergente dos aspectos relativos à sobrevivência da humanidade frente aos desafios da questão ecológica, apresentando, ainda, uma grande preocupação com a relação do problema ambiental e as questões de saúde (Archer, 2006).

Na América Latina, com a abertura democrática, os intelectuais do campo da Bioética tiveram liberdade para dedicar seus estudos e pesquisas aos problemas de seus países: "essa foi a principal razão para a bioética da região ter se transformada em uma espécie de movimento político ou de reforma social" (Carvalho, Shimizu, & Garrafa, 2019, p. 145). A Bioética incorpora como essencial a categoria dos direitos humanos, defendendo o direito coletivo à igualdade e ao direito individual à equidade, na busca de verdadeira cidadania expendida (Garrafa, 2012).

Visa-se com esse estudo contribuir para o debate interdisciplinar - Ciências Humanas, Ciências Sociais e Ciências da Saúde - e para a produção de quadros analíticos operativos sobre o estudo do protagonismo humano e social e as possibilidades de expansão, protagonismo esse mediado pela emoção e pela consciência do vivido na superação da exclusão social e humana. Temos tomado o mundo real, os sujeitos e os contextos concretos, sua gênese, seu desenvolvimento, sua história, sua finalidade como objeto e caminho metodológico (Marx, 1984; Vigotski, 2004a).

 

O percurso analítico da Bioética - emoção e consciência em atos viabilizados pelo percurso ontológico

Explicar o mundo de modo autêntico e verdadeiro é fazer o movimento de volta ao sujeito, é o percurso analítico viabilizado pelo percurso ontológico (Marx, 1984; Lukács, 2013); mergulha-se no real e tenta-se analisar como ele é, desvendando-o. Para promover a captura do mundo real é preciso capturar o ser humano e o seu contexto em atos, pois esse ser humano se faz humano nas condições concretas de existência, nas relações que mantêm sujeito-contexto, contexto-sujeito, sujeito-sujeito (Antunes, 2005, 2009; Marx, 1984; Vigotski, 2001, 2004b).

György Lukács (2013), considerado um clássico do pensamento humanista do século XX, é contra o predomínio a que se viu conduzida a ciência no mundo do capital. A ontologia recoloca o problema filosófico essencial do ser e do seu destino; o ser é analisado como totalidade concreta dialeticamente articulada em totalidades parciais. Analisar o ser social em seu sentido preciso implica, pois, considerar a dinamicidade existente entre os complexos que compõem a sua plena totalidade. O salto ontológico representado pelo trabalho, ao mesmo tempo, funda e constitui o processo de humanização ou de socialização do ser humano.

A volta ao sujeito e à sua relevância na configuração dos fundamentos da Ética e da Bioética é fundamental para que a ciência, o Estado e a sociedade possam se unir frente à grave crise humana, social e econômica de hoje. O estudo da Ética e da Bioética como produção contínua do humano pressupõe, necessariamente, a ideia de sujeito e possibilita seu diálogo com as determinações sociais que provocam submissões e servidão. Considerando que a existência é determinada, mas a finalidade ontológica do fazer humano é livre (Espinosa, 2009), a presença da concepção de sujeito possibilita a elaboração de ideias e a criação de novos significados e sentidos do vivido, capazes de captar o mundo nas relações para se transcender o mundo material em pensamento e ação. "É por essa via analítica que Vigotski sustenta a ideia de ser humano sujeito, que se constitui nas determinações sociais, mas como dimensão de resistência" (Sawaia, 2010, p. 369).

O exercício do fazer humano é ético porque o ser humano age em harmonia com o seu ser, sente, pensa, numa ação concreta desse fazer humano. Essa é a finalidade ontológica do ser, que é integralmente fiel a si mesmo, vive o que é, fazendo sua atividade existencial coincidir plenamente com essa sua realidade essencial, abolindo todas as velhas discrepâncias entre o seu ser e o seu viver e ultrapassando todas as mentiras e falsidades que se põem entre o seu divino ser e o seu humano viver (Espinosa, 2009).

A finalidade ontológica do ser humano, que é a perseveração do humano nas relações do vivido (Antunes, 2005; Catão & Grisi, 2014; Catão & Lucena, 2013; Espinosa 2009; Luckács, 2013; Marx, 1984; Vigotski, 2001, 2004a, 2004b; Sawaia, 2006, 2010), não se refere à perpetuação da espécie ou em se conservar vivo, mas à irredutível força interior direcionada para a expansão do corpo e da mente, de tudo o que lhe é humano. A essa força para se perseverar e expandir humano, também chamada de potência de ação, Espinosa (2009) refere-se como ética, o desejo de perseverar no humano, na construção da liberdade e da felicidade.

A forma como cada um avalia qual é a coisa boa ou má depende dos afetos que dela derivam. Portanto, a vida ética inicia-se no interior dos afetos, das paixões, e essa relação constitui a dimensão ético-afetiva (Chauí, 2005; Vigotski, 2001, 2004a, 2004b, 2010; Sawaia, 2006, 2010). Segundo Espinosa (2009), o ser humano se submete à servidão e se torna passivo quando se encontra em um estado de alienação, de paixão, de desmesura de poder, passando a aceitar viver em função da vontade do outro e/ou naturalizando o estado em que vive.

 

Contextos de exclusão/inclusão social e do humano

Apontado como um dos maiores dilemas bioéticos na contemporaneidade, o sujeito contemporâneo é afetado pela deterioração das relações sociais e pelo amortecimento dos laços sociais comunitários, com práticas individualistas camufladas de pluralismo e de direito à diferença. Os contextos da desigualdade social, do desrespeito às diferenças, do afrontamento à dignidade humana, da cidadania passiva que se limita aos aspectos formais dos ritos democráticos, da cultura da injustiça e da falta de solidariedade têm reduzido o espaço de igualdade entre os seres humanos (Catão, 2007; Catão & Nunes, 2016; Félix & Catão, 2013), provocando, entre os cidadãos, a redução do esforço de perseverar na própria existência. Por que mais e mais os indivíduos tornam-se social e humanamente vulneráveis?

A democracia não é unicamente uma forma de governo; é, sobretudo, um princípio de organização da sociedade que atribui a soberania à totalidade dos indivíduos, razão pela qual Espinosa considera o Estado democrático um Estado "totalmente absoluto", um Estado em que o direito público equivale à "potência da multidão". O filósofo holandês o anuncia, então, como o mais natural dos regimes, como reflete Diogo Pires Aurélio (2014), em sua obra O mais Natural dos Regimes, Espinosa e a Democracia. Ainda na reflexão de Aurélio (2014, p. 7-8),

se de fato, "a natureza não cria nações", como afirma Espinosa, e a organização de um agregado não tem fundamento senão na totalidade das vontades particulares que nele se confrontam ou associam, então, a verdadeira razão de ser da política é criar as condições para que o poder, que por natureza pertence à totalidade, não se torne exclusivo de nenhum particular e todos os indivíduos gozem de liberdade para participar na definição do que se diz comum.

Nas sociedades democráticas, as formas de exclusão, consideradas um atentado à dignidade humana, revelam o paradoxo em relação ao ideário proclamado de igualdade de direitos, notadamente os que figuram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, votados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. Essa Declaração comporta em seus artigos os direitos individuais, políticos, civis, econômicos e culturais, bem como um capítulo sobre direitos sociais (Tosi, 2005; Tosi, Flores, & Catão, 2016).

Da percepção de estar excluído para a certeza de ser excluído, o indivíduo se depara com uma ameaça. A exclusão não constitui apenas uma ameaça à sua vida; associa-se também a um questionamento global do seu bem-estar psicológico e social, da sua autonomia, da sua própria identidade. A exclusão implica, muitas vezes, simbólica e/ou concretamente, um isolamento, uma imagem negativa de si mesmo, a perda do valor de ser humano, a perda ou ausência de seu lugar social, a ausência do gozo dos seus direitos civis, políticos, sociais e da plena pertença social e cidadania (Catão, 2007; Catão & Grisi, 2014).

A concepção marxista (Marx, 1984) sobre o papel da miséria e da servidão no centro mantedor do sistema capitalista constitui a ideia central da dialética exclusão/inclusão, a ideia de que a sociedade inclui o trabalhador alienando-o de seu esforço vital. A exclusão insere-se nas estratégias históricas de manutenção da ordem social, isto é, no movimento proliferador da desigualdade e da concentração de riquezas, as quais se expressam nas mais diversas formas: miséria, violência, expansão dos contextos de exclusão, barbárie, cultura da alienação. Pela análise marxista da alienação, Heller (1977) distingue dois eixos no processo de objetivação do ser humano no cotidiano: o de "ser humano particular" - que se preocupa com o mundo pelos interesses próprios - e o de " ser humano genérico" - que se indigna com o mundo e consigo mesmo, por questões universais.

Segundo Sawaia (2006), ao se falar na dialética da exclusão/inclusão, pensa-se como questão focal pôr no centro de nossa reflexão a ideia de humanidade e, consequentemente, o sujeito e sua relação com o social, seja no contexto da família, do trabalho, do lazer, seja no da sociedade como um todo. "Ao falar de exclusão, fala-se de desejo, temporalidade e de afetividade, ao mesmo tempo de poder, de economia e de direitos humanos e sociais" (Sawaia, 2006, p. 98).

A exclusão social é produto da relação entre dois elementos constitutivos do sistema de exclusão - dos indivíduos e dos contextos - e de toda a complexidade dessa relação. Os contextos formam a trama social que une e atravessa os indivíduos, os quais, por meio de sua prática, mantêm esses contextos e/ou criam outros (Catão 2007; Sawaia, 2006). Os contextos incluem, também, as vivências, as formas como os indivíduos concordam ou não em deles participar.

O conceito de vivência, em russo perejivânie, tem enorme significado e papel metodológico para a ciência psicológica (Vigotski, 2001, 2003, 2004b,). A vivência de alguma situação designa a experiência tanto do mundo externo, pelo sujeito, quanto do seu mundo interno, perpassada pela emoção e pela tomada de consciência, colocando-se como unidade da vida consciente marcada pela dialética dos sistemas psicológicos; pela vivência, configurada por tons emocionais, somos implicados, ou seja, sofremos a ação do ambiente.

Vigotski entende que todo o conteúdo vivenciado implica uma tonalidade afetiva (Toassa, 2009). A situação influencia o indivíduo de maneiras diferentes, dependendo de quanto ele se dá conta de seu sentido e significado, do quanto o sente e tem consciência da situação vivenciada. Para a Psicologia Sócio-histórica, a situação social e as especificidades do ser humano formam uma unidade. Perejivânie, portanto, diz respeito não a uma particularidade do indivíduo, nem ao ambiente social em que ele se encontra, mas à relação entre os dois. Não existe ambiente social sem o indivíduo que o sinta e o interprete; é uma realidade que envolve o ambiente e a pessoa, é o entre (Prestes & Tunes, 2012).

 

Metodologia

Trata-se de um subprojeto do projeto de pesquisa/intervenção intitulado "Projeto de vida, trabalho e políticas públicas: emoção e consciência de jovens, adultos e idosos em contexto de exclusão", desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Psicossociais de uma universidade pública. O estudo é de caráter descritivo-analítico, realizado junto a moradores de uma comunidade de baixa renda em atendimento no Posto de Saúde/Estratégia de Saúde da Família (ESF) e/ou no Programa EJA (Educação de jovens e adultos). O referido projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa, parecer nº 724.513/2014, no período 2015-2016, foi desenvolvido em parceria internacional Brasil-Portugal com apoio da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Participaram do estudo 35 moradores da comunidade de baixa renda, jovens e adultos, homens e mulheres, com idade entre 19 e 58 anos, renda média familiar de um salário mínimo. A escolaridade teve uma variação desde os que não haviam estudado, com 9,68%, até os que concluíram o ensino superior, com 16,13%; no entanto, houve uma prevalência da escolaridade fundamental I completa e incompleta, com 74,39%. Esse público permeia a situação da pobreza, da exclusão social, do trabalho informal, do desemprego, do preconceito, da fome, da falta de infraestrutura, da poluição e dos desastres ambientais. Constitui uma população ribeirinha pouco assistida pelo Estado, a qual sofre com a violência e o tráfico de drogas, a exemplo da maioria das populações de baixa renda do nosso país.

Realizou-se, inicialmente, mapeamento psicossocial da comunidade, com aplicação de questionário semiaberto junto aos líderes comunitários. Em seguida, foram desenvolvidas as escutas com os moradores da comunidade, em atendimento no ESF e ou no EJA, que aceitaram participar do estudo. Foi aplicado questionário semiaberto para a caracterização sociodemográfica e a entrevista semiestruturada. A entrevista semiestruturada foi realizada em dois níveis: nível descritivo da realidade vivida e nível analítico de reflexão sobre o dito/vivido.

No nível descritivo, capturam-se as vivências sobre ser humano e o contexto de exclusão por comunidade de baixa renda - no nível analítico, foi solicitada a reflexão dos participantes sobre as vivências elaboradas enquanto princípios organizadores da emoção e consciência do vivido em contexto de exclusão (Vigotski, 2001, 2004a). Utilizaram-se as indagações indutoras "Quando falo exclusão/inclusão o que lhe vem? o que você pensa/sente sobre isso?; quando falo 'comunidade'(o nome a comunidade), o que lhe vem? o que você pensa/sente sobre isso?; quando falo 'você', o que lhe vem? o que você pensa/sente sobre isso?".

Optou-se pela técnica de análise de conteúdo (Bardin, 1977) orientada pela perspectiva da Psicologia Sócio-histórica a fim de inferir novos conhecimentos a partir dos relatos dos participantes. A análise de conteúdo objetiva o conhecimento crítico do sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou ocultas. Este estudo pôde dar ênfase às emoções e à consciência, enquanto bioética em atos, vivenciadas em contexto de exclusão, como também proporcionou aos participantes um momento de reflexão sobre tal construção. Visualizou-se essa reflexão na medida em que a elaboração/exposição da vivência se entrelaçava ao mundo real

 

Resultados e Discussão

Foi possível organizar a análise realizada em dois eixos relacionados entre si: Vivências de exclusão/inclusão social e do humano; Visão de si. A priori, o foco da atuação deste relato visa contemplar os brados dos seres humanos sujeitos, que envolvem o contexto de exclusão da comunidade de baixa renda.

A comunidade, localizada no Nordeste do Brasil, com 420 famílias e um total de aproximadamente 1461 habitantes, teve sua gênese na década de 1980, quando, durante uma cheia, moradores de uma granja, associados aos movimentos populares da Igreja católica, a partir de protestos pacíficos, começaram a realizar mutirões para arrecadação de comida, vestimentas, e reivindicar moradia.

A comunidade está inserida no contexto brasileiro de desigualdades e injustiças sociais e do consequente sofrimento ético-político dos moradores, expostos à exclusão pela pobreza, a situações de risco, ao envolvimento com drogas e com o crime, ao elevado número de desemprego; ao alcoolismo sem a procura de assistência médica e nem social e ao alto índice de criminalidade. Nela existem adolescentes que entram na marginalidade, adolescentes grávidas que abandonam a escolarização, ausência de trabalhos/atividades que preencham o tempo ocioso dos jovens da comunidade, pessoas que apresentam transtornos mentais, assim como problemas de saneamento básico na população ribeirinha.

Sawaia (2006), na realização de pesquisa com moradores de rua, usando o brado de sofrimento dessa coletividade, como bússola teórico-prática, assim reflete:

aprendemos que é preciso associar duas estratégias de enfrentamento da exclusão, uma de ordem material e jurídica e outra de ordem afetiva e intersubjetiva (compreensão e apreciação do excluído na luta pela cidadania). A 1º estratégia é de responsabilidade do poder público, a 2º depende de cada um de nós. Unindo essas duas dimensões, as políticas públicas se humanizam, capacitando-se para responder aos desejos da alma e do corpo, com sabedoria. Nessa perspectiva, a práxis psicossocial, quer em comunidades, empresas ou escolas, deve preocupar-se com o fortalecimento da legitimidade social de cada um pelo exercício da legitimidade individual, alimentando "bons encontros", com profundidade emocional e continuidade no tempo, mas atuando no presente. (Sawaia, 2006, p. 115)

 

Exclusão/Inclusão Social e do Humano e Visão de si: Vivências em contexto de comunidade de baixa renda

Quando indagados sobre o contexto de exclusão e a questão dos direitos e das políticas públicas capturou-se expressões tais como: "De direitos e políticas públicas não entendo muito, mas tem a ver com os direitos das pessoas, então é algo que deve ser cumprido pra que tudo funcione" (Sexo: Feminino (F), Idade: 43anos), "Eu sei que podia melhorar muito em tudo, mas acredito que, se dessem um jeito no esgoto e colocassem mais atendimento no postinho" (Sexo: Masculino (M), Idade: 57anos); "São os direitos que assiste a gente: água, luz, saneamento básico, até os policiais que nos ajuda. São nossos direitos" (M, 43); "Escolas, creches, é um benefício muito bom. Agora tá melhor" (M, 57); "educação tem que melhorar bastante (F, 45)"; "o que falta aqui é segurança, porque os bandidos pegam nossos meninos e levam para as drogas, se a polícia estivesse presente isso não aconteceria" (M, 47).

Quando indagados sobre suas vivências - o que fazer e o que tem sido feito quanto a ser humano sujeito num contexto de exclusão, bem como a participar de uma comunidade de baixa renda - expressam, por um lado, a vergonha de morar em uma "favela", o que foi enfatizado no comentário de quase todos; expressam também angústia com a situação de morar em uma comunidade de baixa renda, resultado da exclusão social à qual estão submetidos: "quando o povo sabe que a gente mora aqui, todo mundo acha que somos más pessoas, que aqui é cheio de ladrão, é cheio de coisa errada... mas somos gente de bem, só que tem que explicar, isso é chato!" (M, 44); porém, um deles explicita seu orgulho em viver na comunidade, "nasci aqui, me criei aqui, este é o meu lugar. Eu não tenho vergonha de morar aqui não, meu pai teve 12 filhos todos foram homens de bem e este lugar pra mim é bom, muito bom. Só vira vagabundo quem quer" (F, 36).

As vivências atribuídas ao contexto de exclusão da comunidade de baixa renda demonstram a passividade e sugerem a necessidade de novas ações para a transformação dela. As falas expressam a precarização do Estado para com o cidadão, é realidade concreta, mas, ao mesmo tempo, expressam também a comunidade como um lugar agradável em sua essência: "é muito bom, mas precisa muito mais, o que tem ainda é muito pouco (F, 37); "não tenho o que dizer, quem vai à escola é bem educado, quem vai ao posto é bem atendido. Temos o programa pão e leite, tá faltando o leite, mas é bom" (F, 42).

Nas falas, fica claro que a emoção vivida não diz respeito ao eu individual, mas ao sofrimento do excluído, portanto, aos fundamentos da coesão social e da legitimidade social. Elas revelam o sofrimento pela consciência de como a lógica excludente (a qualidade das formas de produção e distribuição da riqueza e dos direitos humanos) opera no plano do sujeito e é amparada pela subjetividade assim constituída. É preciso realizar pesquisas com aqueles que estão sendo instituídos sujeito desqualificado socialmente (deixando-se ser ou resistindo), para ouvir e compreender os seus brados de sofrimento (Sawaia, 2006).

Quando indagados sobre si - ser humano sujeito, expressam, "meu pai me obrigou a trabalhar, eu pensei em estudar pra ver se eu aprendia alguma coisa" (F, 55); "nunca estudei! Minha mãe só me ensinou a fazer carvão e puxar agave no motor... só tinha tempo pra trabalhar" (F, 58); "tenho muito desgosto por não poder ter aprendido a ler direito" (F, 58); "ninguém vai me aceitar da forma que estou, as pessoas não vão me aceitar" (F, 53); "eu não gosto de me olhar, mas eu me acho bonita, eu tenho um bom coração, eu me acho capaz, podendo ajudar o próximo, principalmente os necessitados" (F, 47); "eu me sinto uma pessoa incapaz, por que eu não posso fazer o que eu desejo fazer... trabalhar, estudar. Aí faço aquilo que não gosto, que é cuidar de casa" (F, 36); "não estudei porque tive que trabalhar muito cedo. Estou há mais de um ano na escola e pretendo aprender a ler. Eu sei escrever assim... O meu nome sabe... O resto fica mais complicado" (M, 41); "eu acredito que daqui pra eu terminar a minha etapa eu consiga ler e escrever bem. Eu tenho força de vontade, o problema é que a gente sempre chega aqui cansado, porque a luta é grande" (F, 57 anos).

Sem o questionamento do sofrimento que mutila o cotidiano, a capacidade de autonomia e a subjetividade - a política, inclusive a revolucionária - tornam-se mera abstração e instrumentalização (Sawaia, 2010). Em relação a como se vê, sente, pensa, é expressivo o sofrimento ético-político que aponta a invisibilidade do indivíduo frente às condições objetivas das políticas sociais e à aceitabilidade da sociedade no geral. Tal sofrimento abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma, que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratado e trato o outro na intersubjetividade, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinadas pela organização social; enfim, "revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social" (Sawaia, 2006, p. 96).

Desta forma, ao fazer emergir no ser humano a capacidade de refletir sobre o cotidiano, de forma a expressar as suas vivências acerca da vida, pode-se capturar o sujeito e seu sistema psicológico pela sua ação no mundo e promover o desenvolver da potência de ação na relação consigo, com o mundo e com os problemas sociais para a sua transformação" (Catão, 2011). "Ser presidente e mudar tudo isso (M, 14)"; "meu desejo de trabalhar, assim, de ter pelo menos um dinheirinho pra dar o que eles precisam, (F, 26); "ter uma casinha pra gente morar junto, (M, 26); "quero crescer para poder ajudar a minha mãe a arrumar a casa, lavar pratos" (F, 13).

A naturalização desse fenômeno tem provocado sua reprodução tanto no nível social quanto no individual - "Isso é assim e não há nada para fazer" (M, 42) -, implicando uma fragilização dos seres humanos como sujeitos na construção do vivido. Poucos são os que têm uma perspectiva positiva da vida e de seu projeto. Não pensam em um futuro melhor por acreditarem que estão fadados à sua condição social e, com isso, não tentam modificar o presente em busca de um melhor futuro. As vivências elaboradas configuram-se pelo estabelecimento do diálogo entre a mente e a produção de ideias, pelo discurso interior na mediação com o mundo exterior, pela configuração dos afetos, das paixões, da ética, pela potência da ação humana, e não como propriedade do sujeito, mas como possibilidade de vir a ser, enquanto capacidade de ser afetado pelo outro (Catão, 2007; Sawaia, 2006; Vigotski, 2000).

Cada emoção contém uma multiplicidade de sentidos (positivos e negativos), os quais para serem compreendidos precisam ser inseridos na totalidade psicossocial de cada indivíduo. Não basta definir as emoções que as pessoas sentem, é preciso conhecer o motivo que as originou e as direcionou, para conhecer a implicação do sujeito com a situação que o emociona, ela pode ser boa ou má, dependendo de sua finalidade (Sawaia, 2006, 2010).

 

Considerações finais

É preciso entrar em um momento de reflexão, enveredando pelo caminho da Bioética - emoção e consciência em atos e contextos de exclusão/inclusão social e do humano; precisa-se desenvolver uma política mental de inclusão. O que seria isso? Provocar em nós mesmos e nos outros - da criança ao idoso - a afecção e a consciência do perseverar no humano, de que todos os seres humanos possuem um espaço que é seu, e todos têm um papel ativo a ser desempenhado no mundo.

Temos que começar a agir no olho do tecido social, que são as crianças e os adolescentes. Promover um processo de análise crítica do vivido no sentido de podermos configurar uma nova cultura sobre a emancipação humana, como processo contínuo, provocando, também, a possibilidade de pensar sobre a inclusão com cidadania, a humanização de si, do outro, das relações no convívio com as diferenças, a igualdade de oportunidade, as políticas públicas.

Fica a nossa responsabilidade - como profissionais e, também, como seres humanos, produtos e produtores, tanto da nossa história quanto da história daqueles que interagem conosco de alguma forma em nosso vivido - de formar cada vez mais seres humanos sensíveis e conscientes das relações no vivido, das sociabilidades, da construção de si e do outro nos contextos do vivido. A busca, conceitual e metodológica, de aproximação das esferas sujeito e contextos converge para uma área recente do conhecimento o estudo do cotidiano e humanidades (Heller, 1977).

Refletir sobre os sujeitos e contextos como uma configuração da bioética - emoção e consciência em atos, exige, por um lado, uma compreensão desse entrelaçamento e, por outro, a adoção de referências metodológicas que deem conta dessa realidade - o ser humano e os contextos. De uma forma geral, as ciências humanas, sociais e da saúde têm-se preocupado em entender como somos produzidos pelo social e pelo biológico, mas têm dito pouco, ainda, a respeito de como nós poderíamos produzir o social e até mesmo o biológico, criando, através de mudanças neles provocadas, novas condições de existência pela ação dos seres humanos na relação com os contextos e com os problemas sociais e humanos. (Catão & Nunes, 2016)

O conhecimento crítico e interpretativo do contexto e do sujeito - emoção e consciência em atos - vai além de um conhecimento exploratório de descrição das práticas dos sujeitos e do contexto, enveredando por uma leitura mais ampla, de visualização da totalidade do problema estudado. Desse modo, promove-se uma leitura descritiva, exploratória, seguida de uma leitura analítica, crítica, interpretativa da ação do contexto e dos sujeitos em atos, impulsionando reflexão/ação-transformação/reflexão de novas ações, novos atos, nos quais os aspectos aparentemente ausentes passam a fazer parte do conhecimento agrupado, não arbitrariamente, mas de acordo com a base conceitual metodológica da Bioética, que se perfaz em atos nos sujeitos e contextos no vivido.

A bioética em atos não é senão o movimento de reflexão, isto é, o movimento de interiorização no qual o ser humano interpreta seus afetos e as afecções de seu corpo, destruindo as causas externas imaginárias e descobrindo-se e a seu corpo como causas reais dos apetites e desejos, para expandir-se e perseverar no humano nas relações e condições de existência (Espinosa, 2009; Sawaia, 2006, 2010). "Viver uma vida bem examinada poderá ser um privilégio do exercício diário" (Damásio, 2009, p. 283).

A bioética: emoção e consciência em atos, proposição e contribuição analítica do estudo em questão, emerge como exercício contínuo e persistente de reflexão, de ação no presente com perspectiva de futuro, em movimento descendente/ascendente do humano, em cada um de nós, em todos nós, em todos os momentos, em todos os espaços, em todas as práticas, em todos os sentimentos, em todos os pensamentos, em todas as relações.

 

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Recebido em: 31/07/2019
Aprovado em: 08/03/2020

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