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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.50 São Paulo jan./abr. 2021

 

ENTREVISTA

 

Lucia rabello de castro: a geopolítica do conhecimento científico e a relevância do estudo sobre subjetivação política

 

Lucia rabello de castro: the geopolitics of scientific knowledge and the relevance of the study on political subjectivation

 

 

Frederico Viana MachadoI; Frederico Alves CostaII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre e Doutor em Psicologia pela UFMG. Professor do Bacharelado em Saúde Coletiva e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas, Ações Coletivas e Saúde (LAPPACS/UFRGS) (https://www.ufrgs.br/lappacs/) / frederico.viana@ufrgs.br
IIUniversidade Federal de Alagoas. Mestre e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. Professor no Instituto de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL. Presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP). Coordenador do Núcleo de Psicologia Política da UFAL (https://nppufal.home.blog/) / frederico.costa@ip.ufal.br

 

 

Lucia Rabello de Castro é Professora Titular do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduou-se em Psicologia pela PUC-Rio em 1974. Fez pós-graduação em Psicologia na Universidade de Londres, Grã-Bretanha, onde concluiu o mestrado em 1978 e o doutorado em 1988. Pesquisadora Sênior do CNPq, tem dezenas de publicações e orientações de mestrado e doutorado no campo da psicologia, com ênfase em temas relacionados à infância e juventudes.

Fundou, em 1998, o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa na Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ), que é referência no estudos sobre infância e juventudes. É a Editora chefe da Revista Eletrônica de Divulgação Científica da Infância e Juventude - DESidades, que ajudou a lançar em 2013. Integra diversas redes nacionais e internacionais na área da infância e juventude, bem como associações acadêmicas, nas quais já ocupou cargos importantes.

Nesta entrevista, Lucia Rabello de Castro revisita sua formação - a graduação em psicologia no contexto da ditadura brasileira, o mestrado e doutorado na Inglaterra, a docência no Paraguai e na Índia - relacionando-a ao debate sobre a geopolítica do conhecimento e à sua inserção na psicologia política. A influência de autores/as decoloniais e de uma posição política comprometida com um imaginário geopolítico do Sul está marcada em sua entrevista, tanto nas ideias e reflexões, como nas referências acadêmicas e políticas que evoca.

Ela destaca pontos positivos nas transformações recentes pelas quais a universidade brasileira passou, mas também aponta o burocratismo na gestão institucional e na gestão do cotidiano. Este contexto, segundo a autora, por vezes deixa em segundo plano a tarefa principal da universidade que é escrever e discutir ideias, refletir sobre a sociedade.

Lucia Rabello de Castro localiza sua aproximação com a psicologia política através da produção de estudos críticos sobre infância e juventude. Ao discutir a demarcação do campo da psicologia política defende um conceito aberto para a área, mas aponta a centralidade dos processos de subjetivação e a importância das teorias de sujeito, das teorias de produção da subjetividade, da linguagem e do discurso. A entrevistada discute ainda a ideia de "decrescimento" como possibilidade para abrirmos uma crítica à noções caras ao capitalismo, como as de "crescimento" e "desenvolvimento", que a própria esquerda tem deixado de lado.

Esta entrevista foi realizada em novembro 2020 e, como sempre temos feito1, foi sendo revisada de maneira reflexiva em conjunto. Gostaríamos de agradecer a dedicação, a amizade e o cuidado desta pesquisadora cujo brilhantismo nos honra com esta entrevista.

Junto a entrevista, as/os leitoras/es da Revista Psicologia Política poderão também ler o texto produzido por Lúcia para o Fórum de Internacionalização da ANPEPP, ocorrido no dia 02 de outubro de 2020. Neste texto, como na entrevista, a autora problematiza a colonialidade do saber e propõe um "giro" epistemológico marcado por outros modos de internacionalização, nos quais a produção científica do "Sul" não tenha como horizonte os critérios do "Norte" (construídos hegemonicamente como neutros) e afirme movimentos de localização do conhecimento.

Convidamos todas e todos a conhecerem mais sobre a trajetória intelectual, as reflexões e o pensamento de Lucia Rabello de Castro, as quais consideramos como uma abertura e uma afirmação da luta por descolonização do saber e de enfrentamento a relações de poder que produzem subjetividades subservientes.

P. Conte-nos um pouco da sua formação e de sua trajetória acadêmica.

Acho que a vida da gente é uma interação de acasos com algumas escolhas que a gente pode fazer. E, olhando para trás para compor uma retrospectiva, acho que, no que pude escolher, fui levada pelas propensões 2 das situações... Na idade em que somos instados a fazer uma escolha profissional - que vai durar pela vida afora - conhecemos muito pouco de nós mesmos e da realidade. Eu fui fazer Psicologia sem saber muito se era o que queria. Tinha pensado em fazer Filosofia ou Literatura, mas, na época, minha família passava por dificuldades financeiras, e minha mãe achava que eu tinha que fazer algo mais "prático". Tanto a Filosofia como a Literatura me atraíam porque pareciam campos mais abertos ao questionamento e ao pensamento. Aí a Psicologia apareceu como alternativa. Eu estudei na PUC do Rio, estudava e trabalhava. A situação da repressão era presente o tempo todo, mas ela se tornou crítica na minha vida quando fui trabalhar na Universidade Nacional de Assunção, como professora visitante, logo depois de me formar. Foi um tempo duro ali, vendo os/as alunos/as desaparecerem da sala de aula, amigos sendo presos, e sentindo a repressão muito perto de mim, tipo, cartas violadas, "recados" e intimidações constantes de que eu poderia sofrer alguma dura, vigilância mais ou menos ostensiva dos meus trajetos. Mas foi uma experiência decisiva para mim em termos de formação política e de visão da América Latina.

E aí, hoje eu vejo, e me dou conta, de como a experiência política - ou a experiência com a política - para um/a jovem, e até uma criança, constitui um aspecto fundamental no seu processo de subjetivação. Eu sinto que muito da minha adolescência e juventude, por conta dos muitos problemas da minha família, inclusive os de sobrevivência, limitaram uma relação mais orgânica com o campo da política, o que só veio a acontecer depois que me formei. E a experiência de estar lecionando no Paraguai, no momento em que praticamente todos os países da América Latina sofriam seus "anos de chumbo" de ditaduras militares, selou em mim o que chamo de uma experiência de "latino-americanidade" que é importante até hoje. Essa pode ser, hoje, uma ideia um pouco datada, mas, para mim, ela articula narrativas seminais e visões de mundo desta parte do globo que é a América Latina, a partir de autores como Carlos Mariátegui, Josué de Castro e Darci Ribeiro, dentre outros, além de evocar figuras emblemáticas do continente latino-americano, como Rigoberta Menchú, Che Guevara, Tupac Amaru, Zumbi, Antônio Conselheiro e, atualmente, os "zapatistas", só para citar uns poucos.

Mas o resgate deste sentimento só pôde acontecer no "depois", psicanaliticamente falando, ou seja, mais recentemente. Quando olho para trás, só agora compreendo estes fios invisíveis que articulam o passado com o momento presente esclarecendo o que já aconteceu. Naquele momento, escolher ir para o Paraguai, em vez de ir para a Universidade de Louvain, onde tinha ganho uma bolsa para fazer o Mestrado e o Doutorado, não teve o sentido que hoje posso ver naquela minha propensão, como colocaria Jullien (2005), que considero como um aspecto - talvez um dos mais importantes - para eu compreender minha posição no mundo hoje. Essa experiência de "latino-americanidade" se traduz como um sentimento de lugar e de pertencimento localizado, como também de compartilhamento de uma história e de determinadas possibilidades políticas. Neste sentido, é um sentimento que brota de um "imaginário geopolítico". Não é algo dado que se possa, em um determinado momento, antever e buscar, mas algo que foi se construindo ao longo da vida. Só foi a partir desta vivência dura e difícil da política, durante minha estadia no Paraguai, que isso começou a se construir dentro de mim.3

Aí depois fui para a Inglaterra fazer o Mestrado e o Doutorado. E vivi a experiência da "racialização", termo que só hoje consigo assim nomear para o tipo de relação e tratamento que os britânicos dão àqueles que vêm do Sul estudar nas suas universidades. Isso foi na década de 70, final da década. Eu tinha trabalhado ao longo dos meus anos de graduação como professora da Cultura Inglesa, mas os primeiros comentários dos meus professores, e orientador, na Inglaterra, foram que os latino-americanos eram frequentemente reprovados porque não falavam o inglês. Só para vocês terem uma ideia da visão pré-concebida em relação ao Sul... O Mestrado na Universidade de Londres foi bem puxado, em um ano... eu estudava muito, era um departamento que valorizava métodos quantitativos e estatísticos, muita ralação, fazendo várias disciplinas e a dissertação ao mesmo tempo. A dissertação incluiu um campo empírico nas escolas da zona leste de Londres, bairros mais proletarizados, onde eu pude ver, com meus próprios olhos, os castigos físicos severos que ainda naquela época eram aplicados aos alunos... No final do Mestrado, para que pudéssemos obter o título, ainda tinha a prova que eles chamavam de "Qualifying", que envolve todos os cursos obrigatórios, uma prova abrangente e muito difícil. Surpreendentemente, eu e minha amiga brasileira Nina Leite (que hoje é professora na UNICAMP) obtivemos o grau "Distinction" no título de Mestre - que é um grau que a universidade emite muito raramente. No final das contas, o desempenho das brasileiras do "Sul" foi reconhecido, e superou até mesmo o da inglesada que estudava conosco. Mas, hoje, vejo que tem aí um grau estupendo de dominação, algo que os britânicos sabem fazer bem, o fizeram com muita astúcia na Índia, por exemplo, com dois séculos de dominação lá. O "ser como eles", "ser como o opressor", implica nesta adesão ao outro, aos seus valores, colocando-os como ideal de eu, até no que o opressor tem também de mais abjeto e negativo. 4 Foi algo contra o que Gandhi lutou "ferozmente", quando da luta pela libertação da Índia; contudo, é, em geral, a saída pela qual o oprimido opta para vencer o opressor, e por isso mesmo Gandhi inventou outra estratégia de luta que foi o satyagraha.5

O Doutorado fiz também na mesma universidade, mas em vez de focar sobre problemas de aprendizagem das crianças, realizei uma tese sobre "ideologia ocupacional" dos professores brasileiros. Eu queria fazer uma tese sobre o Brasil, me preocupava em sendo brasileira, estar usando dinheiro público, pesquisar algo que não se relacionasse ao Brasil. Isso me fez voltar de Londres para fazer o campo aqui, e o CNPq não permitia isso na época - como hoje o faz - e aí perdi minha bolsa. Nesta situação, tive que arrumar emprego e o meu Doutorado se arrastou... Neste tempo, em que estava dando aula aqui - consegui emprego na PUC-RIO como professora -, e fazendo o Doutorado lá, atuei também como jornalista free lancer de uma publicação chamada South, financiada por recursos árabes, e que reportava sobre o Terceiro Mundo no tocante à política, cultura, economia, relações internacionais... A revista tinha uma perspectiva terceiro-mundista. A proposta era "furar" o monopólio midiático da Reuters, France Press e outros grupos empresariais globais do Norte, que impõem e difundem uma determinada leitura do Terceiro Mundo, tanto para os próprios países do Terceiro Mundo, como também para o Norte. Significa, por exemplo, que o quê você lê sobre a África ou Ásia -até hoje! - não é o que as mídias locais divulgam, mas como as grandes corporações midiáticas do Norte desejam retratar este noticiário, e as imagens que desejam construir sobre o Terceiro Mundo. Outro dia mesmo estava lendo um artigo do Professor Thandika Mkandawire (2015), do Malawi (África Meridional), e ele comentava como os jornalistas europeus na África tratam os africanos tal como os personagens africanos mudos dos filmes de Tarzan. Quando querem informações, obtêm dos estrangeiros que residem na África. Dizia ele que a situação mudou um pouco quando as equipes da Al Jazeera passaram, há não muito tempo, a cobrir a África e reportar sobre o continente africano.

Essa proposta de escrever para a South me fascinou na época, e quando saí de Londres já tinha acertado para escrever para eles. Eu era paga por cada matéria que escrevia, era pouco dinheiro, mas a causa valia. Fiz matérias sobre tudo: política, religião, economia, foi um tempo também de "ativismo jornalístico". A revista não durou muito, talvez uns dez, doze anos, eu não acompanhei os desdobramentos. Engraçado que hoje, quando recentemente nomeei meu projeto de pesquisa atual como 'Infâncias do Sul', resgatei este meu tempo na revista South. A noção de Sul, não como um lugar geográfico, mas geopolítico, apareceu com mais força e clareza para mim, mais do que naquela época, porque hoje me sinto com muito mais embasamento para discutir e defender esta noção como um conceito importante, estratégico mesmo, para a gente pensar o nosso lugar de pesquisadora e docente em um país, como o Brasil.

Por isso mesmo, quando decidi fazer o pós-doc, isso em 2011, resolvi fazer na Índia, até porque naquele momento já estava há algum tempo interessada nos Estudos Subalternos do Ranajit Guha, e nos estudos pós-coloniais. E a Índia foi outra grande experiência no sentido de me colocar em contato, afetiva e intelectualmente, com uma nação que até hoje se dilacera com as consequências da dominação britânica; uma nação que até hoje tem que se haver com a reelaboração de uma identidade que foi vilipendiada e humilhada. E como coloca Nandy (2010), e outros que trabalham com a questão da dominação (Mbembe, 2013; Mudimbe, 1988), não se trata de recuperar uma identidade da era pré-colonização, mas de enfrentar a tarefa de se haver com uma certa cumplicidade que a relação de dominação invariavelmente encerra. Difícil esta questão...

Então, esquematicamente, minha formação inicial se deu desta maneira. Esta trajetória é que me permitiu um tanto de clareza, e a tranquilidade, para distinguir a estrutura de dominação que fundamenta a posição das instituições do Norte como centros de enunciação do conhecimento. E como isso ainda tem um peso e uma legitimidade enormes no Sul! Fico pasma com isso, de não termos conseguido avançar nem um pouco, da década de 70 do século passado para cá. Ainda hoje vejo levas de colegas e estudantes apostando no ir "pra fora", para o Norte, é claro, como um fetiche que lhes assegura um "dom", algo especial que lhes vai ser acrescido por poderem simplesmente ostentar nos seus CVs que seus doutorados plenos, 'sanduíches' ou pós-doutorados aconteceram nas universidades do Norte, quando, na verdade, trata-se do jogo da própria dominação, que coloca aquele que está em posição mais vantajosa de poder impor uma lógica de hierarquias de valor dos bens culturais e científicos.

P. Como você avalia a universidade brasileira hoje? E quais mudanças você destacaria na universidade nestes anos de docência?

Estou no final da minha trajetória na universidade, digo isso porque estou com 69, e posso estender mais um pouco porque a compulsória passou para 75 anos. Não sei se fico até lá, mas talvez mais alguns anos, para colocar à frente ainda alguns projetos. Não quis me aposentar, acho que ficar na graduação é importante. Então, fazendo as contas é um tempo longo: entrei na PUC-RIO em 1980 e fiquei até 1995, quando fiz concurso para a UFRJ, e estou lá até hoje, como docente ativa, são 40 anos, fora os tempos do Paraguai... A universidade brasileira mudou muito, em muitos sentidos para melhor, hoje temos nitidamente um alunado mais com a cara do Brasil. Por outro lado, acho que as universidades têm passado um mau bocado com tantos ataques, principalmente hoje, no governo atual do capitão B, mas também por conta de práticas de gestão pública ainda completamente cartoriais. Fiquei um ano à frente do Instituto de Psicologia como diretora, e isso me fez entrar em contato com a lerdeza, ineficiência e burocratização absolutamente desnecessárias da gestão pública. Para se comprar uma bomba de caixa d'água, que custa R$ 40,00 se faz um processo de 50 folhas, com um montão de gente assinando, muitos carimbos, e se recebe a bomba depois que já se deu um jeito da água não inundar as salas de aula... Enfim, algo que as gerações futuras vão ter que mudar, não dá para continuar assim. Mas é amarrado, nem sempre porque a universidade assim quer, mas por conta das normas, leis, do TCU, e da administração da coisa pública como um todo. Algumas universidades públicas conseguem fazer isso de forma não tão limitante, como a UFMG, por exemplo.

Essas práticas cartoriais consolidaram também uma burocracia meio fidalga - em oposição, é claro, ao trabalho com o corpo e com as mãos - e que pressupõe, é claro, um séquito de outras funções administrativas subalternas para atender o olimpo da academia (ou outros olimpos, o mais supremo é o STJ com suas túnicas e rapapés...). No entanto, estas práticas têm um efeito negativo nas pessoas, porque as práticas do fazer docente e discente ficam contaminadas com este "excesso de processualidade", o processo parece estabelecer um "regime de verdade", uma ritualística mais importante e "real" do que o próprio trabalho intelectual. Isso se mostra com contundência nos ritos avaliativos que hoje, de cabo a rabo, hierarquizam, por exemplo, os docentes e os cursos de pós-graduação. Os estudantes aprendem, desde cedo, que preencher o Lattes é mais importante que efetivamente enfrentar e dar conta do trabalho duro que é escrever e discutir ideias. O que a gente vê, são Lattes em que o mesmo item se multiplica em vários lugares, ou que qualquer coisa trivial vira um item a ser postado e digno de ser mencionado, só que é a própria "realidade da postagem", nada além disso, que gera os efeitos subjetivos e coletivos de conferir valor àquela trivialidade. Do mesmo modo, vemos os programas de pós-graduação declarando no momento das avaliações isso e aquilo, relatórios da plataforma Sucupira que custam meses de preenchimento e ensandecimento coletivo, cujos efeitos reais são os de servir à burocracia de avaliação, sem quase nenhum desdobramento de propiciar momentos de auto-avaliação aos programas em relação ao seu desempenho das funções de formação e pesquisa.

Tudo isso me faz pensar muito, porque tem a ver com aspectos bem profundos culturais, algo que vai além da ideologia política, e atravessa as diferentes visões e projetos de país e sociedade. Este "meio" - dos processos, de como fazer, como chegar lá, a "gestão das coisas", a "gestão do cotidiano" - fica exacerbado e toma conta, se torna um fim em si mesmo, mas, paradoxalmente, acaba desconectado da visão ideológica de projeto de país, e do tipo de instituições que queremos construir. E por esta razão, se torna um aspecto anódino - algo que não se pauta para discutir, porque parece que não importa muito pensar sobre isso.

Neste sentido, creio que disputar outros modos de "gerir o cotidiano" parece tão importante quanto disputar pautas sobre para onde vamos, que sociedade queremos construir. Essa "gestão do cotidiano", como pauta política, se incluí e se coaduna com uma visão que visa descolonizar a pauta política dos seus arquétipos patriarcais e falocêntricos. Até porque a "gestão do cotidiano" sempre ficou relegada aos subalternos - mulheres, escravos... - que, por exercerem estas funções do "meio", para que o supostamente mais importante aparecesse, permaneceram invisíveis e invisibilizados. Temos que descolonizar essa visão prepotente e patriarcal.

P. Qual a importância da formação e da pesquisa em psicologia política hoje? Qual sua definição de psicologia política e quais os temas, conceitos ou questões você destacaria?

A minha "entrada" no campo da Psicologia Política se deu a partir do campo da infância e juventude. Minha compreensão sobre a infância e juventude foi se afastando rapidamente de uma chave de leitura mais tradicional na Psicologia, que tem sido a Psicologia do Desenvolvimento. Já na década de 80 eu me aproximei dos pesquisadores que, posteriormente, vieram a "fundar", na Associação Internacional de Sociologia (ISA), o comitê da "Sociologia da Infância". Eles eram basicamente sociólogos e antropólogos. Então, a minha nunca foi uma visão conformada ao estabelecido na Psicologia, ao canônico neste campo. Além disso, como descrevi pormenorizadamente no capítulo que escrevi (Castro, 2019b) para o livro que a Silvia Koller coordenou recentemente (Koller, 2019), na época eu estava pesquisando sobre como as transformações do contemporâneo estavam produzindo efeitos de subjetivação nas crianças e jovens, e a perspectiva crítica da Escola de Frankfurt me parecia bastante interessante. Ainda que os aspectos intrapsíquicos também tenham sido, durante algum tempo, de interesse para mim, aos poucos o que tomou vulto foi a posição da criança na sociedade moderna e contemporânea, posição essa subalternizada no âmbito de uma sociedade adultocêntrica, para falar resumidamente. Então, estava aqui posta a aresta que me convocou a pensar sobre a questão da dominação geracional, como parte da problemática geral da dominação.

Além disso, comecei a estabelecer gradualmente uma agenda de pesquisa na interface da infância com a política que comportou um elenco de temáticas e questões afins da política, como por exemplo, a participação social e política das crianças, e, as relações entre território, ação e identidade na infância e juventude. O acúmulo destas pesquisas e discussões foi apontando para a necessidade de trabalhar com outro instrumental teórico e conceitual, necessário para a articulação entre os campos da infância e da política. Até porque a vigência de uma visão da criança como sujeito pré-político, ou a noção de política como ação exclusivamente no âmbito das instituições políticas formais, para citar apenas dois aspectos, teriam que ser revisitadas para que, neste tour de force, se pudesse articular satisfatoriamente estes dois campos tão díspares, como a infância e a política.6 Neste contexto, autores como Jacques Rancière, e Hannah Arendt foram importantes.

Acho que este projeto intelectual não está terminado. Ainda hoje trabalho nestas questões, e vejo que há mais receptividade - do alunado, dos colegas - em relação à ousadia de fazer articulações entre a infância e a política. Mas ainda hoje ouço de muitos aquela pergunta - feita com intenções que podem ser muito diferentes, desde a simploriedade até a impertinência - "ah! Mas você quer dizer que a criança então tinha que poder votar?" E aí, a gente vê como desnaturalizar visões tão óbvias e arraigadas nos obrigam a refinar os argumentos, a refazê-los e torná-los mais simples, buscar reforços e exemplos nas situações do dia-a-dia para poder mostrar que outros cenários de vida e de relações geracionais são possíveis.

Da forma como eu entrei no campo da Psicologia Política, que não foi pelo portão principal, me conduziu também a uma visão menos convencional sobre esse campo. Eu diria que a problemática central que me mobiliza e interessa é os processos de subjetivação política no contemporâneo: como nas atuais condições do fazer societário, tem lugar os processos subjetivos articulados à coletivização de forças que, consequentemente, põe em movimento conflitos, divisões e antagonismos estruturando grupos distintos de interesse, de categorias, de identificações coletivas, de projetos. E o meu trabalho tem se concentrado nos processos de subjetivação política na infância e juventude. Tem sido um trabalho de mais de uma década com muitos desdobramentos.7

É claro que a partir dos processos de subjetivação política, um horizonte de questões se coloca: das identidades, dos movimentos sociais, das relações dos grupos com o Estado, da ação coletiva. Mas, tudo isso fica, a meu ver, atravessado por uma determinada visão de sujeito, de subjetividade, que somente o psicólogo pode trabalhar de modo complexo, caso contrário, todos estes tópicos passam a ser tratados como os sociólogos e os cientistas políticos o fazem, passando de raspão sobre a questão da subjetividade. E incluir os processos de subjetivação implica fazer uso das teorias de sujeito, das teorias de produção da subjetividade, conduzindo a trabalhar com as identificações, a ideologia, a alienação - essa, não como condição social apenas, mas também subjetiva, onde se coloca a questão da linguagem e do discurso.

Essa perspectiva do campo da Psicologia Política me parece fundamental na formação do estudante de Psicologia. Acho lamentável que a disciplina de Psicologia Política não seja frequentemente oferecida nos cursos de graduação, como uma disciplina tout court, aparecendo, em geral, como uma seção da Psicologia Social, quando muito.

Por outro lado, creio que a situação "institucional" da Psicologia Política tem a ver com questões mais estruturais da nossa profissão, com uma visão atávica que se construiu do objeto de estudo da Psicologia como sendo o indivíduo e seus processos individualizados e internos. Daí que também, assim me parece, que o grande contingente de profissionais na Psicologia, assim como na Medicina, carece de uma visão societária mais ampla, uma visão que tanto permita problematizar a própria noção de sujeito individual com que trabalham, como possibilite refletir sobre as determinações múltiplas do saber que produzem. Neste sentido, creio que a Psicologia Política vem para incomodar, porque, de modo geral, nossa categoria profissional parece bem despolitizada no tocante a reconhecer as imbricações entre conhecimento, poder, grupos, interesses e a dinâmica de conflitos e antagonismos.

Pelo fato de achar que a Psicologia Política tem um papel de ruptura, de criar mal-estar em uma estrutura institucionalizada de saber - a Psicologia como disciplina e como profissão -, não defenderia que a Psicologia Política deva ter um "programa" pronto que, de antemão, a caracterize. Torço muito é para que a Psicologia Política possa, sim, surfar nas turbulências e antagonismos desta nossa sociedade em que há tanto para se investigar e perguntas para serem respondidas. Por exemplo, vejo um papel fundamental da Psicologia Política nas discussões que ora tomam vulto e engrossam o debate público, relativas às questões de raça e gênero. Às vezes, este debate fica hegemonizado pelos "especialistas" em raça e gênero, que tentam varrer outras possibilidades de narrativas, despolitizando, desta forma, o debate. A questão do autoritarismo é outra. Esse é um país onde vicejam os autoritarismos, e ainda com muito pouca pesquisa sobre isso. Nossa formação histórica e social esteve imbricada, desde o início, com autoritarismos, e recriamos este modus operandi nas mais diversas esferas da vida social. Neste momento político atual, em que vivemos uma situação do mais vil e hediondo autoritarismo, não parece que temos grande acúmulo de discussão sobre isso. A Psicologia lança mão de quem? Milton Rokeach, Theodor Adorno, talvez Slavoj Zizek... mas, qual autor brasileiro? A Lilia Schwarcz? O Raimundo Faoro? Jessé de Souza? Não acho que os/as psicólogos/as incluam esses últimos nas suas leituras e referências... E mesmo se os incluíssem, qual viria a ser a contribuição que, a partir daí, a Psicologia Política poderia oferecer? Então, me parece que estamos andando bastante devagar em questões pungentes do Brasil. E poderíamos mencionar outras questões que hoje me parecem importantes, como a relação entre religião, moral e vida pública, religião e política. Não estamos na Índia, nem no Irã, mas, certamente, temos que nos preparar para muita discussão em torno destas questões. Ou a questão ambiental e como a Psicologia Política tem que assumir a discussão sobre a relação sujeito humano e natureza.

A vida política no Brasil, nos últimos tempos, tem sido paroxística, mas parece que isso não leva necessariamente à percepção de que a política é uma parte absolutamente essencial da nossa vida, desde a política do condomínio em que se mora, passando por todos os outros níveis e escalas, até nossa inserção neste mundo globalizado pela financeirização, mercantilização e pela comunicação à distância mediada pelos dispositivos tecnológicos. Minha preocupação é em relação a como a política, como atividade inerente à vida em comum, tem sido colocada como vilã das nossas agruras. Mesmo com o voto obrigatório no Brasil, é estarrecedor constatar como os percentuais de pessoas que votam em branco, nulo, ou simplesmente não vão votar aumentam a cada eleição. Me parece que este aspecto diz, é claro, de como os políticos profissionais têm exercido a política, de como a mídia retrata a dinâmica do poder, mas, também, sobretudo, diz da produção de uma subjetividade apolítica nas condições do mundo contemporâneo, subjetividade essa totalmente aderida a um mundo em que as satisfações pessoais e da vida privada estão no primeiro, e único, plano. E invocando o conceito de [Herbert] Marcuse (1960), o de "dessublimação repressiva", nesta nova economia psíquica de satisfação individual, o sujeito está significativamente submetido ao sistema pelo chamamento ao gozo de bens e experiências que o sistema oferece em profusão, e, portanto, menos descolado para poder criticar e interrogar. Assim, a conflituosidade inerente ao próprio sujeito, e também à vida coletiva, passa a ser considerada simplesmente monstruosa, indesejável e detestável. E, na verdade, o mundo neoliberal enseja e corrobora esta formação subjetiva, disposta ao consenso, às coalizões, ou, como coloca Gilbert (2014), formatada pelos valores do mercado onde todas as trocas intersubjetivas passam a ter necessariamente um valor de troca.

Outro dia estava lendo uma entrevista com o Alvaro Garcia Linera, ex-presidente da Bolívia na gestão do Evo [Morales]8 . Gostei do modo como ele define a atividade política. Para ele, ela é, em grande parte, como se disputa pelo horizonte preditivo da sociedade através de projetos em que se vislumbra para onde vamos, em que se acredita nas possibilidades de construção coletiva de um caminho pelo qual vale a pena lutar. Mas, como o Linera também coloca, o campo progressista não pode esquecer que vai haver reações cada vez mais virulentas e de ódio nesta disputa, pois o neoliberalismo se tornou raivoso e radicalmente violento sem qualquer limite moral. O debate político tem que encarar as possibilidades de tentativas de golpes, militares ou paramilitares - das milícias armadas. O Linera também aborda a questão do pós-capitalismo, que achei interessante. Ele diz que a imagem que se tem do socialismo como uma questão a ser disputada meramente pela eleição, tendo a vanguarda na condução da história rumo a uma sociedade pós-capitalista, simplesmente não funciona. Temos é que acompanhar as lutas populares por reconhecimento, participação e distribuição, e só assim haverá uma expansão dos horizontes da sociedade que caberão, então, a um governo socialista acompanhar e apoiar.

E aí me pergunto: Estamos, aqui no Brasil, encarando estes desafios do qual o Linera fala? Acho que não. Temos - o campo progressista - uma certa pressa em "ganhar eleições", e muito pouca paciência, persistência e investimento no trabalho de acompanhamento da expansão das possibilidades societárias rumo a sua emancipação. Também não temos acumulado um debate em como lidar com o campo conservador, e muito menos, como podemos nos preparar para táticas de "tapetão" que se anunciam como iminentes... Por isso, tenho preocupação em relação a como o campo progressista no Brasil vai buscar, e realizar, uma articulação mais orgânica com as lutas e os movimentos populares. É claro que o PSOL tem sido, em geral, uma exceção, com figuras como Guilherme Boulos e Marielle Franco cuja atuação tem sido, ou foi, marcada por uma filiação orgânica aos movimentos de base.

Por outro lado, tem que se reconhecer que muita coisa relevante tem acontecido em coletivos jovens que estão atuando para o fortalecimento de demandas, ou simplesmente, experimentando formas diversas de organização e coletivização, embora isso ganhe pouca visibilidade. Outro dia recebi um convite de um jovem que cursa Ciências Sociais na UNESP, mas mora no interiorzão e, com a pandemia, voltou para sua cidade natal, e lá, junto com outros organizaram redes locais de discussão sobre as políticas locais/municipais e as necessidades de vários segmentos da população. Eles queriam que eu falasse sobre políticas para a infância e juventude. Assim como esse, há uma infinidade de outros pelo Brasil afora, o que aponta para uma vida rica que existe para além dos holofotes das grandes mídias e dos grandes centros urbanos, ainda bem!

P. Quais temas mais te interessam atualmente? O que tem te instigado mais o pensamento? Fale um pouco sobre seus posicionamentos políticos hoje.

Eu gosto da ideia de decrescimento 9 - aquela que põe em questão de modo radical o mundo do capital e da acumulação. A esquerda ainda não faz este debate, e ele é temido por todos, porque há o espectro de que decrescimento signifique perda de empregos e empobrecimento em geral. Mas, não se trata disso, mas de pensar, de fato, um outro mundo em que o 'desenvolvimento' - que foi o mantra que moveu, e tem movido, o capitalismo - seja radicalmente posto em questão. Eu tenho trabalhado esta questão do ponto de vista do imaginário que se construiu sobre a subjetividade humana, interrogando o 'desenvolvimento' como um valor atrelado à racionalidade, à autonomia individual, à capacidade de se posicionar distante e separado dos outros (Castro, no prelo). Talvez o decrescimento seja mesmo uma ideia utópica que questiona a preponderância que o econômico tomou em relação a todos os outros setores da vida social. Muitos terão que aprender a viver com menos, mas eles são a minoria. Em todo o mundo! Mas será um mundo radicalmente diferente no sentido do que passa a ser importante, e o que pode constituir como destino comum. Neste sentido, vejo as possibilidades de a Psicologia Política poder contribuir, porque é preciso se debruçar e dar conta do sofisticado aparato de dominação que se construiu para alijar quaisquer possibilidades de construção subjetiva e societária alternativas.

Voltando essa questão para o trabalho científico e acadêmico, o giro descolonial poderia promover o decrescimento porque nossa trajetória científica - a dos países do Sul - não precisa ser uma cópia atrasada no tempo do quê eles, no Norte, fizeram e como eles fizeram. A academia hoje vive seu momento capitalístico onde vigoram as normas da competitividade, da produção como um fim em si mesmo, da "deserção institucional", da incapacidade de livre pensar e da exacerbação da obediência e do consenso... Será que não podemos desejar, vislumbrar e construir projetos alternativos? É claro que isso é muito complicado dada a impossibilidade de nos isolarmos neste mundo globalizado. Mas, outras alianças que poderiam fortalecer linhas de fuga para os países do Sul poderiam ser construídas. Na América Latina, por exemplo... e, com os países africanos - que se deparam com as mesmas exigências de desenvolvimento a partir da cartilha neoliberal as quais aprofundam cada vez mais as desigualdades.

Esta visão prospectiva contém, é claro, uma convocação aos estudantes de Psicologia para que descubram o campo da Psicologia Política e, quem sabe, se deixem apaixonar por ele. O estudo da Psicologia terá muito mais sentido, e será muito mais prazeroso, se a perspectiva política informar e nutrir as interrogações sobre a subjetividade humana e as vicissitudes dos laços sociais. Além disso, como enfatizei, para os que gostam de pesquisar, há uma urgência de conhecimento científico e debate público que a Psicologia Política pode fomentar, de modo que se possam construir alianças e apostar em outros caminhos societários antes que os retrocessos que vivemos só deixem os escombros de um país com tantos recursos.

P - Como você avalia as contribuições da Associação Brasileira de Psicologia Política para os debates trazidos sobre a geopolítica científica e sobre o contexto político latinoamericano?

A meu ver, a Associação Brasileira de Psicologia Política tem dado uma contribuição decisiva e fundamental para a politização do campo da Psicologia, de forma ampla, e para a construção de interfaces entre a psicologia, a política e a sociedade. O que eu quero dizer com isso? Em primeiro lugar, em relação à politização do campo da Psicologia: tem havido uma clarividência crescente em relação às possibilidades e necessidades de expansão da perspectiva seminal da Psicologia Política que não deveria se ater apenas aos temas clássicos, como comportamento eleitoral, processos grupais, identidades sociais, para mencionar alguns... Neste sentido, vemos, hoje, como algumas áreas da Psicologia têm podido assimilar uma perspectiva política - geopolítica - para si. Veja, por exemplo, a própria Psicologia Social e a Psicologia Comunitária. Houve, sem dúvida, uma politização desta subárea, e que também por conta disso ela também se "des-americanizou", ao poder incluir em seu bojo discussões e autores que não estavam na sua agenda há algumas décadas atrás, como por exemplo o Martin-Baró. Da mesma forma, isso tem acontecido com outras subáreas da Psicologia, como é o caso da Psicologia da Infância e Juventude, onde eu me incluo, e outras subáreas como a Psicologia da Educação que tem podido incluir cada vez mais leituras e autores como Paulo Freire, por exemplo. Vejo, então, que esta politização crescente do campo da Psicologia tem gerado um impacto importante no campo mais amplo da Psicologia em que os próprios estudantes reivindicam um estudo que esteja geopoliticamente localizado. Não somos estudiosos de uma Psicologia, como uma ciência abstrata e universal - até porque se cremos isso é porque desconhecemos solenemente suas condições territoriais, políticas e culturais de produção... Somos estudiosos, sim, de uma Psicologia que se produz a partir de uma localização específica, mesmo que tenhamos durante décadas acreditado que é uma ciência universal que vale para todos e todas igualmente onde quer que estejamos e vivamos. Essa politização do campo da Psicologia tem muito a ver com as ações promovidas pela Associação Brasileira de Psicologia Política. Os Simpósios de Psicologia Política tem convocado cada vez mais estudantes e interessados, atraindo um público cada vez maior e mais diversos. E isso acontece a despeito de que a disciplina Psicologia Política seja muito raramente oferecida nos cursos de graduação. Ou seja, ainda que os estudantes pouco tenham ouvido falar da "Psicologia Política," eles se sentem interpelados a ver uma conexão entre temas aparentemente distantes do espectro temático clássico da Psicologia Política e o campo de debate que a Psicologia Política pode incluir. Por outro lado, de maneira fundamental, o desempenho editorial da Revista Psicologia Política tem sido incansável na tarefa de caracterizar esta subárea da Psicologia quase como uma "matriz", no sentido de conferir legitimidade à transversalidade da política em relação a outras subáreas da Psicologia. Esta percepção arguta, e as ações que os editores da revista têm tomado, tem atraído um número cada vez mais amplo e diverso de autores, como também de subáreas. Por exemplo, assumir editorialmente que o campo da saúde pode ser politizado, assim como o dos processos de transmissão na escola, o das relações entre arte e subjetividade, o das comunicações e das mídias, e assim por diante, e trazer toda esta discussão da pesquisa científica na RPP, tem sido da maior importância. Enfim, vejo que todos esses encaminhamentos têm sido fundamentais e decisivos para uma expansão qualitativa da órbita da Psicologia Política em nosso país, diferentemente do que ocorre em outros lugares onde ela permanece ainda bem acanhada e limitada por uma herança que veio de outros cantos do mundo.

Ainda, como falei, as discussões promovidas no âmbito da ABPP tem instigado crescentemente as interfaces entre psicologia, política e sociedade. Os cientistas políticos não conseguem fazer isso, porque eles entendem muito pouco de subjetividades e de grupos. Ou entendem de um modo muito limitado. Vejo que estas interfaces que estão sendo construídas mostram uma "cara" da Psicologia que sai do privado, e sai do âmbito das relações do sujeito consigo mesmo. Vai para o público. Quando você, Fred Costa, fez a série de entrevistas online sobre a Conjuntura Política na Pandemia, achei super importante esta iniciativa que se propunha a ocupar este espaço de discussão, debate e reflexão a partir da Psicologia. E é a Psicologia Política que pode fazê-lo. Nós, psicólogos, não temos muito frequentemente atentado para a importância de ocupar esses espaços e fornecer narrativas para a sociedade sobre os rumos do país. Uma posição de intelectuais públicos que precisamos cultivar... Estamos aprendendo a sair da "bolha" que tem sido a universidade para falar com aqueles que não a frequentam e nem sabem que ela existe, ou para que.

P - Como você sintetizaria suas contribuições acadêmicas? Como você avalia hoje suas contribuições para o campo da psicologia política brasileira?

Eu diria que a síntese da minha contribuição passa justamente pela "politização" do campo da infância (e juventude), que é aliás o título de um artigo que publiquei na RPP em 2007 (vol. 7). Isso tem implicado desbravar novas formas de pensar a infância, e com isso, espantar os crédulos, como eu diria. No início, lá na década de 80 (do século XX), perseguir este projeto intelectual causou muito mal-estar, espanto e algumas contestações veementes - entre colegas e alunos. Mas creio que naquele momento a vida acadêmica ainda não estava tão premida por exigências tão patéticas que hoje vigem. E por isso, talvez pude usufruir, ainda, uma maior liberdade de experimentar o pensamento. Me ressinto muito de como a vida acadêmica tem se tornado estéril, imitativa e acanhada. Tanto artigo publicado que não acrescenta muito, que não consiste em uma experiência de pensar. Para mim, então, foi a problematização da diferença geracional como um aspecto societário passível de engendrar injustiças e inequidades que tem sido o leitmotiv de uma busca de pesquisa, e também de militância. Aqui se inclui uma análise do problema da dominação que é algo que tem me interessado. A diferença geracional tem se produzido na modernidade a partir de estruturas de dominação, distintas, sem dúvida, de outras estruturas de dominação como as de gênero, raça e classe. Ao mesmo tempo, do ponto de vista de um projeto político mais amplo, continuo pensando que precisamos operar com equivalências em relação às distintas estruturas de dominação tendo em vista não apenas incluir mais um grupo dos "não-contados", como diria J. Rancière, mas a busca inquebrantável deste horizonte radical baseado na justiça e na igualdade. O tema da dominação é complexo, e vejo que a discussão fica frequentemente marcada por insularidades conceituais e teóricas no âmbito das especificidades seja de gênero, raça ou classe. Se teria muito a ganhar se pudéssemos transversalizar esta discussão de modo a aprofundar a compreensão sobre a produção da dominação contemporaneamente neste mundo globalizado. Ao longo dos anos na universidade, acho que tentei lutar por uma maior visibilidade pública do campo da infância e juventude, tanto no âmbito da própria universidade como fora dela. Assim, só para dar alguns exemplos em 1998 co-fundei o NIPIAC - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa da Infância e Adolescência Contemporâneas que continua ativo até hoje com inúmeras realizações. Em 2004, co-fundamos o Simpósio Internacional da Juventude Brasileira que, neste ano, vai para sua oitava edição, e hoje se realiza sob os auspícios da Associação Nacional Rede de Pesquisadores/as da Juventude, a qual ajudei também a fundar. Então, o desafio que tenho topado alia o pensamento, a pesquisa com a ação na sociedade, a mim me parece que são ambos fundamentais. Tudo isso não se faz sozinha, mas nos coletivos que a gente ajuda a criar e dos quais continua participando. Neste sentido, sou muito grata às/aos minhas/meus colegas com quem pude trocar tanto ao longo da minha vida acadêmica. Sou imensamente grata aos meus/minhas filhos/filhas, e aos meus/minhas alunos que me "formaram" com seus questionamentos, críticas, provocações e resistências... Sinto que esta entrevista foi também uma oportunidade valiosa de refletir sobre o que fiz, e o que não fiz ou não pude fazer. Em alguns momentos, esta entrevista foi para mim bem difícil, porque é complicado se olhar, há muitas travas, pontos-cegos e resistências. Sou muito grata a vocês dois por terem me convidado para esta entrevista em que converso com aqueles futuros leitores da RPP que um dia vão ler essa conversa. E, também, agradeço a vocês pela oportunidade que me deram de travar este diálogo com vocês e comigo mesma. É sempre uma experiência de revisão de vida e retomadas.

 

Referências

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Recebido em: 01/09/2019
Aprovado em: 20/03/2020

 

 

1 Esta entrevista dá continuidade ao projeto Memórias da Psicologia Política Brasileira, desenvolvido pelos entrevistadores. A RPP já publicou três entrevistas deste projeto, sendo a primeira com Cornelis Van Stralen (Costa & Machado, 2018), a segunda com Vanessa Andrade Barros (Costa & Machado, 2019) e a terceira com Leoncio Francisco Camino (Costa & Machado, 2020).
2 Noção que o sinólogo François Jullien utiliza para se referir a um modo existencial (mas também das artes bélicas) de explorar o potencial da situação, característico do pensamento chinês; ao contrário de uma visão racionalizada do Ocidente, que fixa finalidades para a ação, o modo existencial das "propensões" tenta "ler" na situação o seu potencial de "plausibilidade" para a ação. E as transformações, os resultados só se podem observar no depois... Ver Jullien (2005).
3 Para alguns autores, este "sentimento", que pode ir além e se assumir como "consciência de lugar", se relaciona à noção de "consciência crioula" de W. Mignolo (2011), ou à noção de "crioulidade", cunhada pelo poeta caribenho Patrick Chamoiseau e cols. (1990).
4 Discuto este ponto mais longamente no artigo publicado no Postcolonial Studies (Castro, 2018b), e que foi traduzido e publicado na RPP (Castro, 2019a), "A subjetividade sob a dominação: um diálogo entre 'intimate enemy ' de Nandy e 'nervous conditions' de Dangarembga".
5 Satyagraha, como coloca o próprio Gandhi, é a reivindicação da verdade, onde reside a força. Seria "a força da verdade" que abdica, portanto, de outros meios para vencer o inimigo. Ver os ensaios "The fear of cowardice" e "Gandhi and the new courage" em Rudolph e Rudolph (2011).
6 Ver, por ex., alguns artigos em que estes temas são trabalhados mais detalhadamente: Castro, 2009, 2010, 2012a 2012b.
7 Ver, por ex., alguns trabalhos mais recentes: Castro (2018a); Castro e Grisolia (2016); Castro e Tavares (2020); Castro e Tumolo (2019).
8 Recuperado de http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/604149-bolivia-nao-tem-seu-destino-garantido-afirma-alvaro-garcia-linera
9 Ver por exemplo, Fernando de la Cuadra (2015).

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