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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.50 São Paulo jan./abr. 2021

 

ARTIGOS

 

O movimento grevista paranaense (abril / 2015) e suas ressonâncias midiáticas

 

The striker movement of paraná (april / 2015) and its mediatic resonances

 

El movimiento huelguista paranaense (abril / 2015) y sus resonancias mediáticas

 

 

Adriel Guilherme PedrosoI; Gustavo ZambenedettiII

IPsicólogo (Unicentro) / adrielguilherme6@gmail.com
IIMestre e Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário, Unicentro/Campus Irati-PR / gugazam@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Esta pesquisa problematizou os discursos veiculados em noticiários digitais sobre a manifestação grevista do dia 29 de abril de 2015 na cidade de Curitiba, Paraná. A análise proposta segue o referencial foucaultiano e analítico-institucional. Foi realizada uma busca de notícias que retrataram os eventos relacionados às manifestações na referida data, constituindo analisadores, os quais possibilitam a compreensão dos jogos de poder-saber envolvidos no engendramento de regimes de visibilidade que sancionam e/ou vetam enunciados. Destacamos os processos de criminalização das manifestações sociais; as práticas divisoras que fixam os papeis de "bom manifestante" e "mau manifestante", em uma perspectiva individualizante e descontextualizadora; e, por fim, a disputa das narrativas em torno do evento analisado.

Palavras-chave: Psicologia social; Análise institucional; Greve; Mídias digitais.


ABSTRACT

In addressing the role of the media in societies, it is understood that discourses, more than true or false, are producers of reality. Therefore, this research problematized the discourses broadcast on digital news on the strike demonstration on April 29, 2015 in the city of Curitiba, Paraná. The proposed analysis follows the Foucaultian and analytic-institutional framework. A search was carried out of news that portrayed the events related to the manifestations on that date, resulting in the construction of a news bank. Among them, we set up analyzers, which make it possible to understand the power-knowledge games involved in engendering regimes of visibility that sanction and / or veto statements. We highlight the processes of criminalization of social movements; the dividing practices that fix the roles of "good protester" and "bad protestor", in an individualizing and decontextualizing perspective; and, finally, the dispute of the narratives on the analyzed event.

Keywords: Social psychology; Institutional analysis; Strikes; Digital media.


RESUMEN

Al abordar el papel de los medios de comunicación en las sociedades, se comprende que los discursos, más que verdaderos o falsos, son productores de realidad. En este sentido, esta investigación problematizó los discursos difundidos en noticieros digitales sobre la manifestación huelguista del 29 de abril de 2015 en la ciudad de Curitiba, Paraná. El análisis propuesto sigue el referencial foucaultiano y analítico- institucional. Se realizó una búsqueda de noticias que retrataron los eventos relacionados con las manifestaciones en esa fecha, resultando en la construcción de un banco de noticias. Entre ellas, establecimos analizadores, los cuales posibilitan la comprensión de los juegos de poder-saber involucrados en el engendramiento de regímenes de visibilidad que sancionan y / o vetan enunciados. Destacamos los procesos de criminalización de los movimientos sociales; las prácticas divisoras que fijan los papeles de "buen manifestante" y "mal manifestante", en una perspectiva individualizante y descontextualizadora; y, por fin, la disputa de las narrativas en torno al evento analizado.

Palabras clave: Psicología social; Análisis institucional; Huelga de empleados; Medios digitales.


 

 

Introdução

Em 19 de março de 2016 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma nota manifestando seu posicionamento acerca da conjuntura política e social brasileira, na qual pontua uma posição contrária ao processo de partidarização, seletividade e parcialização da justiça. A nota também destaca o repúdio às "tentativas de ruptura com o Estado Democrático de Direito e os movimentos em direção a um Estado Policial, com sérias ameaças e violações a democracia" e a condenação do "papel manipulador da mídia" (CFP, 2016, s/p).

Destaca-se, assim, uma posição enquanto categoria profissional que se reconhece comprometida com os fenômenos sociais atinentes a realidade brasileira, expressando o quanto a psicologia, enquanto ciência e profissão, não se constitui de forma apartada do contexto, história e política.

Coimbra e Nascimento (2001) problematizam o modo de constituição da ciência psicológica, fundada em binarismos que insistem em colocar em campos distintos a psicologia e a política: "nossa formação psi tem sido atravessada pelas crenças em uma verdade imutável, universal e, portanto, a-histórica e neutra; numa apreensão objetiva do mundo e do ser humano" (p. 247). Por outro lado, afirmam a política como um dos atravessamentos na constituição do território da psicologia. Na mesma linha de pensamento, Rauter, Passos e Benevides (2002) afirmam a impossibilidade de dissociar o processo de produção de sujeitos dos modos de constituição e produção da realidade.

A referida nota surge como resposta ao momento político vivenciado no Brasil, perpassado por operações de combate à corrupção, disputa de projetos políticos e de reconfiguração de alianças político-partidárias, processo de impedimento da então presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, levando o país a uma situação de instabilidade política, econômica e social.

Antes disso, manifestações iniciadas em 2013 anunciavam o início desse processo de desestabilização. Tais manifestações ficaram conhecidas como "manifestações de junho" ou "manifestações dos 20 centavos", pois tiveram origem em atos contrários ao aumento das passagens de transporte público, agregando-se posteriormente outras pautas, como o combate à corrupção, a crítica ao gasto com eventos esportivos, entre outras. Coloca-se em evidência, neste cenário, formas de manifestação social e, também, modos de resposta do Estado a tais manifestações.

No entanto, estes não foram os únicos aspectos mobilizadores de manifestações. Ao longo do primeiro semestre de 2015, diversos meios de comunicação acompanharam uma expressiva greve que envolveu diversas categorias do funcionalismo público do estado do Paraná, cujos eventos de maior visibilidade se desenrolaram na capital Curitiba. O momento de maior atenção foram os eventos do dia 29 de abril, quando uma ação envolvendo manifestantes e polícia militar deixou centenas de pessoas feridas.

Dias antes a polícia militar já mantinha um cerco de segurança em torno da Assembleia Legislativa (ALEP) solicitado pelo poder executivo, sob o pretexto de proteger o prédio contra invasões, garantindo assim a votação de um polêmico projeto que envolvia, entre outros aspectos, a reestruturação da ParanaPrevidência, responsável pela gestão e pagamento das aposentadorias dos servidores do Estado. O projeto de lei que promovia alterações na ParanáPrevidência havia sido aprovado em primeira votação no dia 27 de abril, sendo que a redação final seria votada no dia 29 do mesmo mês, para ser posteriormente encaminhada à sanção do então governador Beto Richa.

O acontecimento disparou questionamentos em muitas direções, colocando em discussão as relações entre o aparato legal e os direitos humanos; as contradições existentes entre segurança e população e, por fim, o custo público e as justificativas para a montagem de uma "operação de guerra".

Em um período de forte tensão política no cenário nacional e também mundial, um evento que mobiliza tantos questionamentos e significados repercute de maneira diferenciada nos mais variados meios de comunicação.

Delimita-se, então, como objetivo geral da pesquisa: problematizar os discursos veiculados em noticiários digitais acerca da manifestação grevista de 29 de abril de 2015 na cidade de Curitiba (PR).

A fim de amparar esta discussão, desenvolvemos a noção de mídia como dispositivo e a compreensão acerca do microfascismo como uma das forças que compõe os processos de subjetivação e se expressa nas relações da sociedade civil com o Estado.

A mídia como dispositivo

Quando abordamos o papel da mídia nas sociedades de controle, se faz necessário abdicar do escopo binário que situa os discursos na dimensão do verdadeiro/falso. As sociedades de controle, segundo Deleuze (1992), são caracterizadas pela capilarização das estratégias de controle e de um apagamento das tradicionais delimitações espaço-temporais, fazendo com que muitas vezes os sujeitos não se percebam sendo atravessados por tais estratégias. Neste contexto, a mídia desempenha uma importante função, formando e distribuindo formas de fazer ver e falar. O discurso é formado e distribuído a partir de certo número de procedimentos (Foucault, 2014) e, mais do que traduzir, ele produz sistematicamente a realidade (Foucault, 2008). Segundo Gregolin (2007, p. 16):

Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do qual é construída uma "história do presente" como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente.

Através desse papel mediador entre o sujeito e os acontecimentos do presente, os veículos midiáticos operacionalizam também uma função regulamentadora, capaz de sancionar ou vetar enunciados. Na escolha entre os acontecimentos que vão a público (ou não) é possível compreender um complexo jogo de forças políticas que disputam seu lugar nas tramas do saber-poder. Desse modo, compreendemos que a mídia não apenas informa o que acontece - como se houvesse uma verdade intrínseca aos fatos - senão que ela produz, através de seus diversos recursos, modos de ver e fazer falar determinados fenômenos. Ao mesmo tempo em que é produto da sociedade, expressando enunciados que já se encontram em circulação, ela tem uma força de amplificação ou invisibilização, residindo aí a sua importância e o interesse em seu estudo.

Coimbra (2001) identifica um movimento de crescimento dos meios de comunicação de massa no Brasil no contexto da ditadura militar brasileira, aliado a criação de um monopólio da comunicação que perdura até os dias atuais, no qual um pequeno número de famílias administra grandes empresas de comunicação. Tal situação não é exclusiva do Brasil, apresentando correlatos em outros países. Lima (2008) afirma que a concentração dos meios de comunicação é um risco ao sistema democrático de direito, visto que poucas empresas são responsáveis por controlar o que e como informar. Analisa a situação específica do Brasil, em que ocorre o coronelismo eletrônico: "uma prática antidemocrática com profundas raízes históricas na política brasileira que perpassa diferentes governos e partidos políticos" (p. 27). O coronelismo remete a um antigo sistema de troca de votos com base na posse de terra. Em sua versão atualizada, segundo Vecinio Lima (2008), não é a terra que está em jogo como moeda de troca, mas o controle da informação e a capacidade de influenciar a opinião pública. Esse sistema, conforme o autor, resulta do modelo de outorga a empresas privadas da exploração de serviços de rádio e televisão adotado pelo Brasil ainda nos anos 1930. A despeito das novas legislações criadas na década de 1990 e anos 2000, brechas legais possibilitaram que tal lógica fosse mantida, sustentando distorções, como a dispensa de licitação à radiodifusão classificada como educativa, mesmo que ela não venha a desenvolver as finalidades educativas. Segundo Lima (2008, p. 31) "existem inúmeras concessões de radiofusão educativa controladas por diferentes igrejas - lideradas inclusive por políticos - que fazem proselitismo religioso permanente".

Ormay e Rodrigues (2014, pp. 36-37) mencionam que, além de ser concentrada, a mídia brasileira é financiada pelo dinheiro público: "em 2013 cerca de 2,3 bilhões de reais foram repassados como verbas de publicidade do governo federal para as empresas de comunicação. Cerca de 65% dessas verbas foram apenas para a TV". Ao analisarem a série histórica de distribuição do referido financiamento, os autores perceberam uma tendência de manutenção das verbas destinadas às emissoras de televisão, de diminuição para as revistas e jornais impressos e de aumento para as mídias digitais (internet), indicando a importância que estas últimas vêm adquirindo.

Fonseca (2011, p. 42) afirma que "os órgãos da mídia - emissoras de tv, rádios, jornais, revistas, portais - atuantes na esfera pública são em larga medida empresas privadas que, como tal, objetivam o lucro e agem segundo a lógica e os interesses privados dos grupos que representam. Embora a ação da mídia seja complexa, essas características são cruciais para uma definição inicial dessa relação entre agentes privados e esfera pública".

No contexto contemporâneo, outras alterações têm sido experimentadas nos meios de comunicação. Morales, Souza e Rocha (2013, p. 3) destacam que vivemos um cenário midiático em transformação, "focalizando principalmente as potencialidades dos dispositivos móveis inseridos nas redes sociais digitais". Os autores realizaram um estudo de caso em torno de uma mídia digital criada em 2013, que em menos de quatro meses já possuía mais de 120.000 curtidas em uma rede social. Tal mídia se propunha a quebrar a narrativa uníssona da grande imprensa, constituindo-se como uma "mídia alternativa", alavancada pela cobertura das manifestações de junho/julho de 2013 em todo o Brasil.

V. Lima (2015), reconhece as transformações ocasionadas pelo novo contexto tecnológico, especialmente a internet, produzindo mudanças do ponto de vista do uso e distribuição da informação. Entretanto, afirma que não necessariamente são alterados os conteúdos veiculados em massa, visto que, no Brasil, "os grandes veículos na internet continuam sendo dos grandes grupos de mídia G1, UOL, Abril, Estado, R7, então o conteúdo continua vindo do mesmo lugar" (V. Lima, 2015, p. 19).

Essas considerações são pertinentes por possibilitarem situar elementos que atravessam a produção de uma notícia e que fornecem condições de possibilidade específicas para a sua veiculação e circulação, expressando os jogos de poder-saber.

Segundo Fischer (2002), a mídia produz imagens, significações e "saberes que de alguma forma se dirigem à 'educação' das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem" (p. 153). A autora, adotando uma perspectiva foucaultiana, propõe pensar a mídia enquanto um dispositivo, compreendido enquanto um aparato que incita ao discurso, produzindo modos de fazer ver e falar, atravessado pela veiculação de saberes.

Os microfascismos nas relações cotidianas

Foucault (1995) se refere ao fascismo e ao stalinismo afirmando que,

Uma das numerosas razões pelas quais elas são, para nós, tão perturbadoras é que, apesar de sua singularidade histórica, elas não são originais. Elas utilizam e expandem mecanismos já presentes na maioria das sociedades. Mais do que isto: apesar de sua própria loucura interna, utilizaram amplamente as ideias e os artifícios de nossa racionalidade política. (pp. 232-233)

Desse modo, para além de situações históricas específicas, nas quais o fascismo se maximiza, sua existência é percebida nas relações cotidianas, algo que "está em todos nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora" (Foucault, 2011, p. 105). Também aproximando-se desta discussão, Deleuze afirma que "os campos nazistas introduziram em nós a vergonha de ser um homem" (1992, p. 213). A vergonha, segundo o autor, diz respeito ao fato de não haver garantias de que não recairemos na história, reproduzindo movimentos semelhantes.

Começamos então a desnudar formas de fascismo que mesmo antes de homogeneizar uma multidão enfurecida - imagem tão comum no cinema e na literatura - se manifesta nas relações cotidianas enquanto mecanismo a partir do qual algumas vidas assumem maior valor do que outras, que determinados comportamentos e condutas podem legitimar práticas de coerção e violência.

Guattari (1985, p. 181) aponta que as formas de totalitarismo sempre se apoiaram nas máquinas desejantes, dessa forma "toda uma química totalitária trabalha as estruturas do Estado, as estruturas políticas e sindicais, as estruturas institucionais e familiais, e até as estruturas individuais".

Com o fim da segunda guerra mundial, o capitalismo engendra aos poucos formas de totalitarismo que se situam mais ao nível individual. Conforme Guattari (1985), modelos de repressão maciça já não são eficazes, e "o capitalismo é obrigado a construir e impor seus próprios modelos de desejo, e é essencial para sua sobrevivência que consiga fazer com que as massas que ele explora os interiorizem" (p. 188).

A compreensão destes autores contrasta com um discurso insistente que situa os regimes totalitários do século XX enquanto tragédias, acidentes ou monstruosidades. Certa urgência em separar tais acontecimentos com a noção de "humanidade" pode ser percebida pela reação negativa à análise de Hannah Arendt sobre o oficial nazista Adolf Eichmann (Arendt, 1999), na qual destaca que apesar das atrocidades cometidas, nele não havia nada de desumano, mas apenas um sujeito filho de seu tempo.

Por fim, nos resulta enquanto inquietação essas formas diáfanas de totalitarismo que se transformam ao longo do processo histórico, operacionalizam a partir de lugares diferentes e com objetivos distintos. Nessa trama - que é, em suma, um jogo de rupturas, transformações e permanência - é possível compreender o funcionamento de mecanismos discretos, processos de subjetivação que resultam em formas totalitárias de ser no mundo, e que só recebem atenção e são devidamente nomeados em situações extremas, conforme a história nos mostra.

 

Método

A pesquisa1 fundamenta-se no referencial foucaultiano e analítico-institucional. Um dos pontos de convergência entre as abordagens foucaultiana e da análise institucional reside na compreensão de que o exercício da pesquisa envolve a construção de estratégias de desnaturalização do cotidiano, produzindo novas possibilidades de análise e compreensão. Rocha e Aguiar (2003, p. 71) afirmam o exercício da pesquisa como prática desnaturalizadora, "desconstruindo territórios e facultando a criação de novas práticas". Para Foucault (2010) não existe uma verdade enquanto essência, mas regimes de verdade, que envolvem a produção de regras e a regulação dos discursos. Sob esse referencial, problematizar implica em tornar evidente sob que jogos de saber e poder tais regras são constituídas e quais efeitos são produzidos.

O campo de análise foi constituído por notícias veiculadas na internet a respeito dos eventos da manifestação grevista do dia 29 de abril. A partir da plataforma de pesquisa Google, selecionando um recorte temporal personalizado (apenas notícias publicadas entre 26/04/2015 e 06/05/2015), realizamos buscas com as seguintes palavras-chave: "Centro Cívico 29 de Abril"; "Confronto 29 de Abril"; "Greve 29 de Abril"; "Greve Centro Cívico"; "Greve Professores". Enquanto ferramenta auxiliar, utilizamos o aplicativo para Google ChromeFull Page Screen Capture para salvar as notícias em formato de imagem, evitando a perda do conteúdo caso alguma página venha a sair do ar. As buscas foram realizadas entre os meses de fevereiro e julho de 2016, resultando em 58 notícias capturadas.

Enquanto método analítico, nos orientamos pela análise de discurso construída a partir das contribuições de Michel Foucault, considerando suas particularidades teóricas para compreender como esses discursos são produzidos no interior das relações de poder e que "aquele que enuncia um discurso é que traz, em si, uma instituição e manifesta, por si, uma ordem que lhe é anterior e na qual ele está imerso" (Veiga-Neto, 2011, p. 99). Assim, a análise de discurso acaba por desnudar o discurso em seus aspectos de formação e circulação.

Com isso, as discussões que seguem são resultado de um diálogo estabelecido entre as notícias e o arcabouço teórico que vêm embasando nossas análises. As notícias selecionadas para a análise constituem-se como analisadores da problemática em questão. O analisador possibilita colocar em evidência as forças em disputa, os aspectos cristalizados ou disruptivos. Segundo Baremblitt (2002, p. 148), equivale a "qualquer montagem que torne manifesto o jogo de forças, os desejos, interesses e fantasmas dos segmentos organizacionais". No processo de leitura das reportagens, buscamos mapear as tensões que elas colocavam em evidência, fazendo emergir os analisadores, reunidos em três linhas de análise, apresentadas e discutidas a seguir. É importante considerar que não tivemos como objetivo fazer uma análise exaustiva das reportagens, nem de quantifica-las, sendo que as reportagens apresentadas na discussão foram escolhidas pela sua potência de denunciar contradições e tensionamentos, aspecto que conforma o analisador (Baremblitt, 2002).

Para fins de análise de implicação (Baremblitt, 2002), é importante situar que as notícias analisadas referem-se a um episódio vivenciado pelos autores, os quais participaram das manifestações que cercaram o dia 29 de abril de 2015. Os autores, dessa forma, estão imersos no acontecimento-problema, não sendo possível investigá-lo a partir de uma perspectiva externa.

Há de se enfatizar, contudo, que a produção do conhecimento se origina nas problemáticas da realidade (Rocha & Aguiar, 2003), não sendo possível, portanto, pressupor distanciamento entre sujeito e objeto.

 

Resultado e Discussão

Estado e manifestações sociais: sobre os processos de desqualificação do movimento grevista

Inicialmente, partimos da interrogação acerca de como uma ação da polícia que deixou centenas de manifestantes feridos - a maioria, servidores públicos ou estudantes universitários e secundaristas - se justificou. Isto é, enquanto ação premeditada, não havia como os acontecimentos que marcaram o dia 29 de abril se desenrolarem sem que tivessem passado por diversas instâncias burocráticas e autoridades inseridas na máquina pública. Algumas reportagens retrataram os eventos como uma "operação de guerra", fornecendo dados sobre sua dimensão:

custo da operação militar que resultou no confronto entre policiais e professores, no dia 29 de abril, que deixou um saldo de 234 feridos, já chega a quase R$ 1 milhão (e pode ser muito maior). Só o documento apresentado pela Polícia Militar do Paraná (PM-PR) ao Ministério Público de Contas (MPC) mostra um gasto de R$ 948 mil com armas e munições.

Foram disparadas 2323 balas de borracha e 1413 bombas (fumaça, gás lacrimogêneo e efeito moral) - uma bomba para cada 15 professores, uma bala de borracha para cada dez e 20 tiros por minuto. Outros setores do governo ainda devem entregar seus relatórios de gastos. (J. Lima, 2015, s/p)

É necessário interrogar o sistema discursivo no qual esses acontecimentos se inseriram para se legitimarem. O trecho a seguir é um recorte de uma notícia veiculada ao Portal UOL Educação, e consta o fragmento de uma fala do governador Beto Richa (PSDB),

Tem cenas chocantes, ninguém pode ser hipócrita, mas os policiais precisavam se defender (dos black blocs), disse Beto Richa. Segundo ele, adeptos da tática violenta se infiltraram no movimento docente e atacaram os soldados que faziam o cerco à Assembleia. Treze deles teriam sido detidos e levados para o 1º DP. Richa ainda disse não haver motivo para paralisação de professores e vê "instrumentalização" por partidos políticos e CUT. O APP-Sindicato (principal organização de docentes) é um braço sindical do PT e quer o confronto e o desgaste político do governo, porque são meus adversários. (UOL Educação: "PM usa balas de borracha contra Professores e Deixa 213 feridos no PR", 30/04/2015, 11h17min)2

E abaixo, recortes de uma notícia publicada pelo editorial do Jornal Gazeta do Povo.

Por mais que, como mostramos no editorial desta quarta-feira, seja profundamente antidemocrática a atitude dos sindicalistas quando se mostram dispostos a fazer o que for possível para impedir uma sessão do Legislativo estadual, é preciso, sim, mostrar a responsabilidade do governo de Beto Richa neste episódio. Infelizmente, o Executivo estadual não soube conduzir com a inteligência necessária uma situação que, desde o início, mostrava potencial para escapar do controle. ... Pode até haver quem argumentasse que suspender a sessão significaria fazer o jogo dos sindicatos, que desejavam impedir a apreciação do projeto de lei. Mas já não era este o caso. A circunstância era extraordinária. ... Por mais que os sindicatos tenham demonstrado suas intenções antidemocráticas em várias ocasiões, fica evidente que o governo estadual teve a oportunidade de evitar os tristes episódios desta quarta-feira no Centro Cívico. (Gazeta do Povo online: "Batalha no Centro Cívico", 30/04/2015, 00h01min)3

O primeiro recorte expressa o posicionamento do governador e o segundo demostra o posicionamento, via editorial, da Gazeta do Povo, sobre os fatos ocorridos. Enquanto no primeiro atribui-se a responsabilidade do ocorrido aos manifestantes, no segundo, o gestor do Estado também é responsabilizado.

Contudo, em ambos os casos o que está em jogo é a credibilidade dos manifestantes. No primeiro fragmento encontramos enquanto agentes do evento os seguintes termos: black blocs; partidos políticos (que teriam instrumentalizado a paralisação); CUT; APP-Sindicato; PT (que deteria APP-Sindicato enquanto braço sindical).

No segundo encontramos: sindicalistas (que estariam dispostos a suspender a sessão); governo de Beto Richa/Executivo Estadual (que não soube conduzir com a inteligência necessária a situação); Sindicatos (suspender a sessão significaria fazer o jogo dos sindicatos). Em associação com os termos Sindicatos/Sindicalistas encontramos o termo antidemocrática, utilizado com ênfase duas vezes. Já o governo de Beto Richa/Executivo Estadual teve sua participação marcada pelo significante "Infelizmente", seguido de "não soube conduzir com a inteligência necessária uma situação que...".

Os sindicatos, nos dois casos, aparecem como algo associado ao confronto, com intenções antagônicas à democracia, cujo jogo atribuído a eles só poderia ser feito no momento em que a circunstância era extraordinária.

Dito isso, escolhemos essas duas notícias por se utilizarem de um mecanismo em comum, a fim de regulamentar os discursos. Esse mecanismo, conforme Foucault, "trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles" (2014, p. 35). Desse modo, mais importante do que o que se enuncia é quem enuncia e como enuncia.

Trata-se de um sistema de restrição que Foucault (2014, p. 37) classifica enquanto ritual:

o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de signos que deve acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção.

Os enunciados políticos com os quais estamos nos deparando, não são avaliados unicamente em seu conteúdo, mas no seu processo de enunciação. Quem enuncia também deve atender a certo número de requisitos. No caso em questão, pertencer a algum partido ou sindicato já é, por si, um aspecto que permite proceder à desqualificação desses sujeitos. Atribuir a ação a black blocks também é outro modo de buscar desqualificar o movimento e justificar a ação. Em relação a este aspecto, o portal G1 noticia a nota emitida pelo Ministério Público do Paraná:

De acordo com a Defensoria Pública, entre os detidos havia 12 adultos e dois adolescentes. Eles eram professores, servidores e estudantes. Ainda segundo a nota da defensoria, eles "foram acusados da suposta prática dos delitos de resistência, desacato e da contravenção penal de perturbação do trabalho ou sossego alheio. Todos foram ouvidos e, em seguida, liberados, mediante termo de comparecimento a atos processuais futuros". A Defensoria ainda afirma que nenhum objeto foi apreendido com eles. "Destaque-se que nenhuma das pessoas detidas foi autuada em virtude da prática de crime de dano ao patrimônio público ou privado, porte de arma ou artefato explosivo, não havendo nenhum indício de que tais manifestantes sejam integrantes de grupos denominados 'black blocs'", continua a nota. (Portal G1. "Defensoria Pública nega prisões de black blocks em protesto no Paraná". 01/05/2015, 20h:40min)4

Na sequência da reportagem é apresentada a posição do representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB):

Garcia Filho disse ainda que um grupo da OAB também acompanhou as prisões e também negou a presença de "black blocks". "Nossos representantes ficaram no 1º DP até praticamente a meia-noite. Não houve apreensão de armas, de pedras, de coquetéis molotov, de barras de ferro, de pedaços de pau", afirmou (Portal G1: "Defensoria Pública nega prisões de black blocks em protesto no Paraná". 01/05/2015, 20h:40min)

Apesar disso, a Secretaria de Segurança Pública (SESP) manteve a versão de que os manifestantes apreendidos eram parte de black blocks e possuíam armas, pedras, coquetéis molotov. (Portal G1: Defensoria Pública nega prisões de black blocks em protesto no Paraná, 01/05/2015, 20h:40min).

Fica evidente, assim, a tentativa de desqualificação e criminalização do movimento grevista por parte do Estado, visando tornar justificável a ação realizada. Deixa-se de discutir o projeto em disputa e passa-se a (des)qualificar os sujeitos e entidades a eles ligadas, configurando uma estratégia que busca legitimar ou justificar perante a sociedade a ação do Estado, mesmo que fundada em uma materialidade inexistente. Além disso, busca-se constituir o ato de protesto em um crime, gerando penalidades aos que o praticam.

Torna-se evidente, ainda, o processo de desqualificação de partidos políticos e sindicatos. Este aspecto causa estranhamento, visto que partidos políticos e sindicatos são regulamentados por lei e permitidos pela Constituição, sendo direito de qualquer cidadão expressar sua cidadania se envolvendo com algum partido ou sindicato. Segundo o artigo 1º da Lei n. 9.096/1995), "O partido político, pessoa jurídica de direito privado, destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal" (s/p). Do mesmo modo, a greve é um direito do trabalhador, assegurado pelo artigo 9º da Constituição Federal e regulamentado pela Lei n. 7783/1989, devendo ser respaldada por assembleias convocadas por sindicatos nas quais os trabalhadores podem decidir pela paralisação. Aparentemente, o fato de não constituir crime ou irregularidade não significa que a filiação partidária, a participação sindical ou a adesão à greves não estejam sendo criminalizadas.

É exatamente nesse ponto que o microfascismo se evidencia. A participação social de certos grupos, mesmo que amparada pela instância da legalidade, constitui justificativa para a violência ser exercida. Estar associado a essas instâncias que aquela gestão percebe enquanto "adversárias" é um mecanismo de restrição: o discurso desses está associado à desordem, ao crime, mesmo antes de existir qualquer desordem e na ausência de qualquer crime. A noção de microfascismo, assim, designa um processo de subjetivação que promove a distinção e hierarquização de sujeitos, agindo ativamente contra as singularidades.

A criminalização dos movimentos sindicais e sociais5 é um fenômeno em evidência no contexto político-institucional brasileiro (Moraes & Moraes, 2016; Souza, 2015). Essa operação pode ser entendida enquanto um mecanismo de desqualificação dos sujeitos que integram tais movimentos, muitas vezes envolvidos em greves, marchas, manifestações, enquadrando a ação de grupos que reivindicam transformações sociais ou o asseguramento de direitos no nível da criminalidade. Alguns termos (partidos políticos; sindicatos) são submetidos à uma operação que consegue transformar em crime (ou mesmo, terrorismo) práticas que são protegidas e asseguradas pela Constituição de 1988, visando a sustentação de um regime democrático. Desse modo, disseminam-se estigmas vinculados a determinadas pessoas, grupos ou setores da sociedade, justificando ações de repressão, com uso da força policial. Relatório da Organização dos Estados Americanos destaca que "nos últimos anos pode-se perceber uma crescente tendência de iniciar ações penais contra aqueles que participam de manifestações sociais reivindicando direitos, sob o argumento de que supostamente estariam perturbando a ordem pública ou atentando contra a segurança do Estado" (OEA, 2015, p. 30)

Práticas divisoras: o bom e o mau manifestante.

Em uma coluna do site da Revista Veja, são utilizadas duas imagens do dia 29 de abril, as quais retratam uma situação de confronto e tensão entre os policiais e os manifestantes. Na sequência, uma terceira imagem mostra um manifestante usando a bandeira do Brasil, tirando uma foto com os policiais que aparentemente estariam fazendo a segurança de uma manifestação. Contrastando com as duas imagens anteriores, esta retrata uma situação harmônica entre policiais e manifestantes. Entremeando as imagens, segue o texto:

Só tenho uma coisa a dizer sobre o "protesto de professores" no Paraná que "terminou em confronto com a Polícia Militar": Parabéns, manifestantes de 15 de março, 12 de abril e da Marcha Pela Liberdade, que nunca precisaram entrar em confronto com a PM na luta por um Brasil melhor. (Revista Veja online: "Só uma coisa a dizer sobre o "confronto entre professores e PM"", 29/04/2015, 20h02min)6

Nesse caso, a manifestação é qualificada a partir da ação da polícia militar. Os manifestantes de 29 de abril precisaram entrar em confronto, enquanto os manifestantes dos dias 15 de março, 12 de abril e da Marcha pela Liberdade foram parabenizados por não terem precisado confrontar as tropas. Nesse editorial, há uma completa eliminação dos papéis da Polícia Militar, do Executivo estadual e das instâncias sindicais, o único responsável por uma manifestação é o próprio manifestante, não existindo implicações das disputas de poder existentes no país. Elimina-se o contexto, a pauta e as condições nas quais cada uma das manifestações é inserida. Além disso, através de uma prática divisora, cria-se a ideia do bom manifestante (pacífico, que não entra em confronto) e do mau manifestante (aquele que entra em confronto), atualizando um mecanismo que, conforme Foucault, encontra-se presente no processo de disciplinarização social (Foucault, 2004). Foucault descreve um conjunto de práticas disseminadas em nosso cotidiano que visam à produção de sujeitos, utilizando-se de mecanismos espaço-temporais: a fila, o posicionamento na massa, a ordenação do tempo. Estes procedimentos também são chamados de práticas divisoras, pois permitem classificar (sãos ou doentes, loucos ou normais, delinquente ou cidadão) e designar espaços-tempo sociais distintos (hospital, prisão, controle do tempo, etc.). Permite, ainda, hierarquizar e designar tratamentos diferenciados, caso se trate de um "bom doente" ou "mau doente", um "aluno comportado" ou "mal comportado" e, em nosso contexto, um bom ou um mau manifestante, apartado de suas condições de produção. Foucault (2006) nos mostra que o poder psiquiátrico encontrou na política um fecundo campo de atuação a partir do século XIX, podendo discriminar os "bons revolucionários" dos "maus revolucionários", inscrevendo os desviantes nos domínios do poder psiquiátrico.

Em nosso contexto de análise, a atribuição da ação policial como sendo uma resposta a ação de supostos blackblocks visa neutralizar uma contradição: como colocar professores e alunos - os quais são reconhecidos e valorizados socialmente no lugar da produção do saber - na posição de sujeitos passíveis de serem alvo das ações policiais? As práticas divisoras acionadas se insinuam sobre os sujeitos num processo de individualização, visando torná-los "maus manifestantes", justificando a ação policial. Tal mecanismo atualiza uma prática da ditadura civil militar brasileira, caracterizada pela fabricação de fatos que supostamente viriam a justificar as ações do Estado, inclusive as mortes de perseguidos políticos. Conforme Scarparo, Torres e Ecker (2014, p. 61),

É importante destacar essa questão, para que se possa produzir um movimento de estranhamento em relação às configurações sociais atuais, reconhecendo-as como não naturais e marcadas por uma herança ditatorial. O sistema, e os modos de produção que pautam a atualidade, fora desenvolvido por longos períodos de imposições e a partir da eliminação de determinadas formas de se pensar e de organizar a vida.

Confronto, batalha e conflito: a construção discursiva acerca do 29 de abril.

O uso de termos como confronto, batalha, conflito está no cerne de uma disputa cujo alvo é a construção dessa história e a memória sobre o ocorrido. Inúmeras notícias usaram alguns desses três termos para citar os acontecimentos do dia 29 de abril no Centro Cívico. Tal perspectiva é contestada, contudo por alguns editoriais, como podemos perceber a seguir,

De um lado uma tropa de choque armada até os dentes, de outro, professores em greve que lutam por seus direitos. A força policial investe contra os professores, causando ferimentos em centenas. Mas a mídia empresarial diz que é um confronto. Quando um tanque de guerra investe contra uma bicicleta não existe confronto, pois confronto acontece quando duas forças mais ou menos equivalentes se enfrentam. (Portal Vermelho: "Paraná: Não é confronto, é massacre" - 29/04/2015 20h20min) 7

Na indisfarçável tentativa de proteger os governos tucanos, as revistas Veja e Época publicaram, em seus sites, nesta quarta-feira (29), chamadas quase idênticas sobre os ataques da Polícia do governo Beto Richa (PSDB) contra os professores, em Curitiba. As duas publicações, ao invés de noticiarem os fatos como eles realmente estão ocorrendo no Paraná, transformaram o massacre que a PM desfere contra os servidores em "confronto". (Brasil 247: "Massacre Tucano vira "Confronto" em Veja e Época",29/04/2015 19h18min) 8

Ambas as notícias contestam o uso do termo confronto (por este pressupor tensão entre forças equivalentes), utilizando-se então do termo massacre. A escolha do termo surge como expressão dos sentidos conferidos: quando se fala em confronto, produz-se a ideia de dois grupos com a mesma força; já o uso do massacre direciona maior responsabilidade às instituições e aos agentes do Estado, colocando os manifestantes no lugar de quem sofre a ação, de maneira desigual.

Observa-se, nesta disputa narrativa, diferentes estratégias conforme os veículos de informação. Portais como o "Portal Vermelho", "Brasil 247", "Brasil de Fato", tenderam a narrar o episódio como massacre. Ao buscar as descrições desses portais em seus respectivos sites, encontramos afirmações acerca da importância da democratização dos meios de comunicação e informações referentes aos seus posicionamentos, o que poderia situá-los como uma forma de jornalismo ativista. Em relação a portais relacionados ao chamado mass media, grande parte não vincula informações claras sobre a política editorial (Veja, Portal Terra, IstoÉ). A revista Época informa os princípios editoriais do Grupo Globo, relacionados a isenção, correção, agilidade, entre outros. Nestes veículos, houve a tendência ao uso da palavra confronto e/ou batalha, que supostamente designaria neutralidade, ao posicionar professores e policiais com as mesmas forças/recursos de ação. Mencionamos a palavra "tendência" pois encontramos discursos que se hibridizaram em algumas reportagens, não sendo possível operar com um olhar dicotômico. Entretanto, devemos chamar a atenção para a intencionalidade que a escolha de uma palavra implica, na medida em que designa para o público o sentido possível para a ação.

Cardoso (2000) indica que a relação entre narrativa e história constitui-se como objeto de debate no campo da história e das ciências sociais e humanas. Em nossa pesquisa, o desafio reside em produzir uma análise que se constitua como crítica do presente, já que trata-se de narrar fatos históricos no mesmo momento em que acontecem. Entretanto, não está em questão aqui a tentativa de constituir ou delimitar uma narrativa que seria "correta" ou "verídica" em contraposição a outra "incorreta" ou "inverídica", mas sim compreender os movimentos que inserem um discurso no jogo do verdadeiro/falso. Além disso, pensar nas possibilidades de estabelecer experiências da história, as quais podem ser descontínuas e fragmentadas. Em consonância com o pensamento foucaultiano, não se trata de buscar a essência do fenômeno, senão sua dispersão, a instabilidade que o constitui. Dussel (2004) afirma que "Foucault estabeleceu um princípio de heterogeneidade: 'dito de outro modo, a história de alguns não é a história de outros.'" (p. 54). As narrativas do massacre e do confronto servem a grupos distintos, estando atreladas a diferentes relações de saber e poder.

Nossa aposta, neste contexto, é afirmar as ações dos manifestantes enquanto práticas de resistência, que expressam as relações através das quais os mesmos podem se reconhecer como livres. Segundo Dussel (2014), "As práticas de liberdade aparecem como experiências que os sujeitos podem ter no âmbito de certas restrições sociais em suas liberdades, no âmbito de um certo regime de governo que, no entanto, deixa espaço para o desafio e o dissenso" (p. 59). Além disso, conforme Fonseca (2011, p. 41), "independentemente da forma e do sistema de governo uma democracia só poderá ser assim considerada se na esfera pública os diversos interesses puderem se manifestar".

 

Considerações finais

A análise realizada neste artigo permite ampliar a compreensão sobre os mecanismos que operam na relação entre Estado e população em situações de manifestações, neste caso tendo como mote articulador uma greve de servidores públicos do estado do Paraná, Brasil. Esses mecanismos são caracterizados pela desqualificação e criminalização de determinados atores político-institucionais, como os sindicatos e os partidos políticos. Também são ancorados na produção da imagem do que seria um bom e um mau manifestante, cisão essa que justifica o uso da força do Estado. Nosso argumento é respaldado na compreensão de que os microfascismos operam nessas relações, hierarquizando vidas que valem mais ou menos, visando a anulação destas últimas e das pautas atreladas à elas.

Também buscamos evidenciar o modo como a mídia atua como dispositivo, distribuindo e fazendo circular formas de fazer ver e falar as relações entre os aparatos do Estado e os manifestantes. Formas essas que não são neutras, visto que a linguagem utilizada para descrever e informar é perpassada por significações históricas e sociais.

Apesar desta análise circunscrever um episódio específico, ela permite lançar luz sobre mecanismos que operam na relação entre os aparatos do Estado e a população em manifestações, podendo produzir reverberações em outros campos de análise. O contexto de instabilidade que tem sido vivenciado no Brasil, com forte apelo conservador e repressor em relação as manifestações sociais, exige que possamos produzir ferramentas de análise, ampliando a compreensão e as possibilidades de estabelecer resistências frente a tais fenômenos.

Diante disso, a psicologia, perspectivada pelo referencial foucaultiano e analítico-institucional, apresenta importante função de desnaturalização do cotidiano, produzindo formas de interrogar aquilo que nos aparece como cristalizado e resistente à transformação.

 

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Recebido em: 22/06/2019
Aprovado em: 09/12/2019

 

 

1 A pesquisa que deu origem a este artigo foi desenvolvida no âmbito do Programa Institucional de Iniciação Científica, sendo um dos autores bolsista do Programa de Apoio a Inclusão Social - PIBIS (Fundação Araucária) e o outro o orientador da pesquisa.
2 Recuperado de http://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2015/04/30/pm-usa-balas-de-borracha-contra-professores-e-deixa-213-feridos-no-pr.htm#fotoNav=84
3 Recuperado de http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/batalha-no-centro-civico-3zl396zvsu0r1drte9c6n4rek
4 Recuperado de http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/05/defensoria-publica-nega-prisoes-de-black-blocks-em-protesto-no-parana.html
5 Apesar da distinção entre movimentos sociais e sindicais, consideramos que ambos expressam forças contrahegemônicas aos interesses dos setores conservadores da nossa sociedade, possibilitando posicioná-los de modo semelhante nas veiculações midiáticas. Em relação aos movimentos sociais, nos referimos aqueles que agregam sujeitos e lutam em torno de causas ligadas às minorias, populações marginalizadas, direitos humanos, etc. Scherer-Warren (2014) também diferencia movimentos sociais de manifestações sociais. Enquanto o primeiro possui uma organização que perdura no tempo, assim como as organizações sindicais, as manifestações sociais emergem como um "momento de protesto, reivindicação ou visibilidade" (p. 422). Desse modo, movimentos sociais, sindicatos, promovem manifestações e/ou delas participam, mas não se resumem a elas.
6 Recuperado de <http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/cultura/so-uma-coisa-a-dizer-sobre-o-confronto-entre-professores-e-pm/>
7 Recuperado de http://www.vermelho.org.br/noticia/263129-1
8 Recuperado de http://www.brasil247.com/pt/247/parana247/179021/Massacre-tucano-vira-'confronto'-em-Veja-e-%C3%89poca.htm

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