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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2021

 

ARTIGOS

 

Intervenções em territórios apartados: o que a psicologia tem a ver com isso?

 

Interventions in separate territories: what does psychology have to do with it?

 

Intervenciones en territorios apartados: ¿qué tiene que ver la psicología con esto?

 

 

Adriana Barin de AzevedoI; Adriana Rodrigues DominguesII; Jaquelina Maria ImbriziIII

IProfessora Adjunta da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Pesquisadora do Laboratório de Grupos e Pesquisas em Formação e Trabalho em Saúde (LEPETS - UNIFESP/BS), pesquisadora do grupo Análise Institucional e Saúde Coletiva (UNICAMP) e membro do Grupo de Trabalho Subjetividade Contemporânea da ANPEPP. Desenvolve pesquisas e estudos na área da subjetividade, clínica, ética, formação e trabalho em saúde / adribarin@gmail.com
IIProfessora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista, no eixo comum Trabalho em Saúde. Pesquisadora do Laboratório de Grupos e Pesquisas em Formação e Trabalho em Saúde (LEPETS - UNIFESP/BS) e membro do Grupo de Trabalho Subjetividade Contemporânea da ANPEPP. Desenvolve pesquisas e estudos na área da produção de subjetividade, análise institucional, saúde coletiva e políticas da assistência social / adriana.domingues@unifesp.br
IIIProfessora Associada da Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista. Desenvolve atividades na graduação e nos Programas de Pós-graduação Stricto Sensu Ensino em Ciências da Saúde (Modalidade Profissional) e Interdisciplinar em Ciências da Saúde (Mestrado e doutorado acadêmicos). Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (USP) e do Laboratório de Psicanálise (UNIFESP/BS) - Linha de Pesquisa: Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão: Psicanálise, Arte e Sociedade (PAS). Membro do Coletivo Internacional Amarrações - Políticas com Juventudes. Desenvolve pesquisas e estudos na área de Psicologia, com ênfase em Psicanálise e Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: arte, cultura e sociedade; mal-estar e violência; narrativa de história de vida e grupo como dispositivo / jaquelina.imbrizi@unifesp.br

 

 


RESUMO

"Estourar a bolha social" é uma expressão utilizada por estudantes de psicologia para indicar sentimentos de perplexidade e indignação frente à violação de direitos sociais de usuários atendidos em três diferentes espaços de formação acadêmica. Esta expressão explicita o véu de proteção que impede o sujeito de enxergar para além de seu lugar de classe social e conforto socioeconômico. A proposta deste artigo é apresentar experiências que expõem os estudantes ao sofrimento disparado em situações de desigualdades econômicas: a supervisão que problematiza a responsabilidade ética; a intervenção realizada com moradores que foram removidos de suas casas em violentas ações de reintegração de posse; a articulação entre o agir profissional e a produção de narrativas de histórias de vida. Nestas propostas descobre-se o valor da escuta na formação tensionando discursos de saber-poder, por vezes aprisionantes e, por vezes, capazes de dar visibilidade a histórias de vida frequentemente esquecidas.

Palavras-chave: Território; Responsabilidade ética; Desigualdade social; Formação em Psicologia; Escuta clínica.


ABSTRACT

"Burst the social bubble" is an expression used by psychology students to indicate feelings of perplexity and indignation regarding the violation of social rights of users in three different spaces of academic formation. This expression makes explicit the veil of protection that prevents the subject from seeing beyond their place of social class and socioeconomic comfort. The purpose of this article is to present experiences that expose students to sociopolitical suffering triggered in situations of economic inequality: supervision that problematizes ethical responsibility; the intervention carried out with residents who were removed from their homes in violent repossession actions; the articulation between professional acting and the production of life story narratives. In these proposals we discover the value of listening in training by tensioning discourses of knowledge, sometimes imprisoning and sometimes capable of giving visibility to life stories that are often forgotten.

Keywords: Territory; Ethical responsibility; Social inequality, Psychology education; Clinical listening.


RESUMEN

"Estallar la burbuja social" es una expresión utilizada por estudiantes de psicología para indicar sentimientos de perplejidad e indignación hacia a la violación de derechos sociales de usuarios atendidos en espacios de formación académica. Esta expresión evidencia el velo que impide que el sujeto vea más allá de su clase social y confort socioeconómico. Este artículo pretende presentar experiencias que expongan a los estudiantes el sufrimiento sociopolítico desencadenado en situaciones de desigualdad económica: supervisión que problematiza la responsabilidad ética; la intervención llevada a cabo con residentes que fueron retirados de sus hogares en acciones violentas de recuperación; la articulación entre actuación profesional y producción de narraciones de historias de vida. En estas propuestas descubrimos el valor de escuchar en la formación al tensar el discurso de saber-poder, a veces opresor y otras siendo capaces de dar visibilidad a las historias de vida que a menudo se olvidan.

Palabras clave: Territorio; Responsabilidad ética; Desigualdad social; Educación en psicologia; Escucha clínica.


 

 

Introdução

Cada vez mais tem sido importante reforçar o compromisso com a responsabilização coletiva das formações em Psicologia no que se referem às questões urgentes relativas à desassistência do Estado para com alguns grupos populacionais que vivem em situações de violência e vulnerabilidade, decorrentes da desigualdade social que marca a história do Brasil. Sabemos que as universidades, no contexto atual, vêm investindo esforços em uma lógica de produção acelerada com valor em si mesma, pela qual "o científico tende a se naturalizar, o ensino, mesmo público, a operar na lógica da empresa, o cognitivo, a hipertrofiar-se e o tempo a acelerar-se de forma vertiginosa" (Casetto, 2015, p. 1). Essa ênfase num percurso solitário e independente em que cada um - estudante e docente - gerencia suas horas de trabalho, e estudo, com finalidades pré-definidas, de modo produtivista, precisa ser tensionada. Faz-se fundamental recuperar, no espaço de formação, a responsabilidade social e ética de atender às demandas sociais e compor trabalhos comuns entre áreas e entre universidade e comunidade.

Entendemos que é importante buscarmos desregulagens, modos de "furar a bolha", ou seja, provocar deslocamentos no instituído das formações e trazer espaços de invenção.

Avaliando algumas experiências da formação em Psicologia, percebemos uma grande aposta em atuar na promoção, na prevenção e nas intervenções em saúde sobre as situações de risco. Algumas discussões neste campo têm analisado que o foco nos riscos e no seu controle pode operar de modo a criar uma blindagem, uma grande proteção que impediria assimilar experiências novas, variações importantes para o cuidado de si. Roberto Espósito (2010) trata do tema propondo uma discussão sobre imunidade (immunitas) e comunidade (communitas). Segundo o autor, do ponto de vista biológico, a imunidade é a condição que garante a função vital de preservação, de proteção, de sobrevivência, enquanto que, é apenas através de uma experiência de exposição ao risco, a contaminações, que se garante uma abertura ao novo, ou seja, a experiência do communitas:

Se a imunidade tende a encerrar a nossa existência em círculos, ou recintos, incomunicados entre si, a comunidade, mais que um círculo maior que os compreende, é a passagem que, cruzando as suas demarcações fronteiriças, remexe a experiência humana, liberando-a da sua obsessão pela sua segurança ... . A imunidade, necessária para a conservação da vida individual e coletiva - nenhum de nós permaneceria vivo sem o sistema imunitário interno do nosso corpo - acaba por contrapor-se ao seu desenvolvimento, se entendida de forma exclusiva e excludente em relação a qualquer alteridade ambiental e humana. (Espósito, 2013, pp. 2-4)

É desta aposta no communitas que poderíamos pensar o compromisso com a responsabilização coletiva. Tanto no que diz respeito às aberturas necessárias das atuações integradas entre áreas profissionais, permitindo trocas e ampliando o campo de questões de cada uma, quanto no que se refere a uma abertura ao território e a transdisciplinaridade do campo dos saberes e práticas de cada formação. Poderíamos fazer uma correlação aqui dizendo que podemos cruzar as fronteiras das áreas de conhecimento, naquilo que nelas há de excesso de imunidade, em um modelo de saberes e práticas e a ampliá-las em novas contaminações.

Buscando desenvolver experiências que rompam com a bolha social em que vive a universidade, apresentamos a seguir três projetos supervisionados pelas autoras, por meio da atividade docente desenvolvida em universidades. O que estas experiências têm em comum são as apostas nas formas de acessar algumas doses de communitas na formação do profissional de Psicologia.

Primeira experiência: Supervisão na formação em psicologia e responsabilidade ética

Por fim, termino esse módulo como alguém diferente de quem começou. Acredito que mudanças se dão quando entramos em contato com uma experiência que nos marca e nos acrescenta algo que antes não estava presente. Ela nos abre o olhar e adiciona ao nosso comportamento respostas novas. Não saio de narrativas com uma coleção de atitudes elaboradas e guardadas para uso posterior, mas saio com uma série de reflexões para serem melhor pensadas e trabalhadas no resto da graduação e da vida, profissional e pessoal. (RA)

Os espaços de supervisão com grupos de estudantes da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) têm sido importantes locais de produção de conhecimento articulada às experiências de campo que ocorrem em territórios apartados nas diferentes cidades da Baixada Santista, Estado de São Paulo. Nesses espaços evidenciam-se os afetos e as percepções de estudantes que são convidados a romper com a bolha social, escrevendo suas experiências em diários de campo. O objetivo desta discussão é refletir sobre a responsabilidade ética1, tanto a da professora que convida os estudantes para saírem da bolha representada pelo academicismo reduzido ao espaço fechado das universidades, quanto a do estudante que se depara com realidades nunca dantes imaginadas e é convidado a exercitar a reciprocidade e conversar com pessoas que têm seus direitos sociais violados. Palavras duras como hipocrisia, ironia, cinismo ficam nas entrelinhas dos ditos, como também o sentimento de culpa, o medo da perda de privilégios e a angústia frente à dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2016) são afetos que perpassam os escritos sobre os encontros. Trata-se aqui de apontar pistas de como direcionar a transmissão de conhecimentos no espaço de supervisão de modo a produzir uma formação crítica que visa superar a desigualdade social.

Uma aposta que temos feito é na importância de uma universidade pública aberta para todos e todas, sem distinção de raça, gênero, etnia e classe social. A perspectiva de um ideal de que só há formação de um modo geral, e, em psicologia em particular, se ela for crítica e tiver como objetivo superar e transformar as condições sociais que geram a desigualdade social, que, infelizmente, é a marca da sociedade brasileira. Uma formação que inclua a arte e criatividade como a base e antídoto à racionalidade instrumental e aos valores da competitividade e meritocracia. Concordamos com Theodor Adorno (1995) sobre o sentido da educação: ela precisa ser direcionada a uma autorreflexão crítica e precisa contribuir para a construção de um clima de esclarecimento geral sobre as condições que favorecem a barbárie.

Assim, é a ideia de transmissão e o compromisso com a responsabilização coletiva que deveria acompanhá-la que nos importa, pois, a transmissão é pautada no amor, mas que não minimiza a força do ódio. O amor por pessoas, o amor por um país, o amor pelos ideais democráticos. Assim, retomamos as ideias de Jacques Hassoun (1996, pp. 17-18, tradução livre):

A transmissão oferece a quem a recebe um espaço de liberdade e uma base que lhe permite abandonar (o passado) para melhor reencontrá-lo. ... Essa transmissão é sempre tensa, pois há sempre um resto que se refere ao desejo de situar o sujeito no espaço de sua verdade, de sua vida, de sua existência. ... Mais do que isso, transmitir equivaleria a ter em conta que jamais evitaremos aos nossos descendentes o fato de que seu caminho está ceifado de obstáculos na tentativa iminente de conciliar a história passada com o presente do seu desejo subjetivo.

Apresentamos a seguir cenas de supervisão que são realizadas no espaço da universidade ou nos equipamentos (no caso um abrigo vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura de Santos -SEDES -, chamado SEACOLHE e o Centro de Referência da Assistência Social - CRAS - do município de São Vicente) nos quais os participantes são sempre dispostos em roda, onde todos podem se ver, se ouvir e produzir uma interlocução igualitária, pelo menos no que se refere à disposição física e corporal dos envolvidos e à garantia de circulação da palavra.

Apresentamos, a seguir, escritos dos estudantes do segundo semestre de 2017:

A teoria nos ajuda e nos assombra diariamente, provoca discussões e nos faz perder o sono projetando a realidade que emergirá em um futuro próximo. Adoro ler e contemplar aquilo que já foi observado, mas é no campo, na troca com o real que sinto aquele formigamento angustiante que me faz ter sede de avançar, progredir. Cada passo tem sua importância, desde caminharmos por uma região degradada e desprovida da assistência do Estado, até os corredores estreitos e improvisados do Seacolhe, tudo marcava, como uma tatuagem anímica para cada encontro que nos foi proporcionado. (AB)

Neste relato o estudante parece atento à sensação do corpo, ao estado de formigamento angustiante que expressa o modo de ser afetado pela experiência; nas palavras dele, de realizar uma troca "com o real". São os encontros com a experiência de vida destas pessoas em seus territórios que a forçam a pensar. O conhecimento se constrói junto à sensação de estranhamento, de maneira que as teorias não aparecem como escudos interpretativos e aplicativos, mas sim como acesso à realidade a partir da capacidade de ser por ela afetado, ou seja, entrar em contato com a experiência do outro, ouvindo seus próprios afetos, vendo-se implicado e partícipe, pelo seu olhar, da condição de existência do outro. Cabe ressaltar também que o estudante percebe e se incomoda com a visão da degradação do território desta região central da cidade de Santos.

Essa experiência singular provocou em mim e em todos os meus companheiros de classe muita incompreensão sobre o que estava acontecendo, uma ansiedade pelo saber o que fazer que nos incomodava. Nesse contexto, ... a ...experiência no trato de pessoas em situação de vulnerabilidade social. (AB).

Como um verdadeiro grupo de supervisão, com a tarefa explícita de discutir as percepções e dificuldades do trabalho em campo, abrimos em todas as supervisões um leque de reflexões a serem feitas: elas iam desde o pertencimento a um território, problema com drogas, conflitos familiares, até a supressão da subjetividade do indivíduo, indivíduo esse que como foi dito na última supervisão pelo AB., é menos invisível do que somos nós cegos. Em uma dessas supervisões cheguei a mencionar que os narradores pareciam se "desmaterializar", ou seja, quis dizer que eles vão perdendo consistência, visibilidade, são rostos que se misturam e se confundem. (RA)

Nos trechos apresentados os estudantes do curso de Psicologia demonstram certo desconforto ao entrar em contato com uma realidade invisibilizada por alguns setores da sociedade. O contato dos estudantes é com narradores que vivem em um abrigo que não oferece as melhores condições de moradia, e que a caminhada para chegar até o equipamento já demonstra o descaso dos poderes públicos pela região. Provoca, primeiro, incompreensão sobre os efeitos das desigualdades sociais sobre os sujeitos: estes se desculpam por existirem quando em contato com os estudantes; se autoculpabilizam pela situação de vulnerabilidade, o que provoca nos estudantes uma vontade urgente de fazer algo, quase mágico, para mudar e transformar a situação. O que apontamos no decorrer das supervisões é o quanto as mudanças são lentas em uma sociedade de raiz escravocrata como a nossa. Contribuir para um clima de esclarecimento geral é mostrar as agruras da sociedade capitalista e oferecer instrumentos para resistir à dominação e a "desmaterialização" das vidas matáveis. Mais do que isso, deixar emergir a singularidade de cada história de vida dos moradores, escutar as vidas secas (Rosa, 2002) é imprescindível para a formação autoreflexiva e crítica de futuros psicólogos.

No espaço das supervisões, a estudante relata que uma adolescente que participa de grupos no CRAS de São Vicente fez a seguinte afirmativa: "O Bolsonaro vai matar nós tudo, né? Só porque eu sou negra e moro na favela?". O outro estudante está preocupado com a reação do grupo de adolescentes diante do término das atividades de estágio, percebe o aumento da agressividade entre eles e certa agressividade direcionada aos estagiários. Entre uma circulação da palavra e outra, uma estagiária afirma que é muito comum ouvir relatos de violência de gênero nas falas dos adolescentes e de abuso sexual entre pessoas da mesma família. Outro ponto é a fome, pois os estagiários percebem que os jovens passam fome, uma crueldade que eles nunca tinham tido contato. Eles dizem que terminar o estágio e não dar continuidade às atividades parece revelar conivência com a crueldade da sociedade capitalista e que a intervenção fez pouco para mudar as condições de vida destes jovens. Há aqui o apontamento de que o sistema capitalista é que é cruel e que as atividades de estágio estão oferecendo um modo de estar junto para e com estes adolescentes. Houve o encaminhamento para que o grupo de estagiários pudesse criar, com os adolescentes, estratégias coparticipativas para o término do estágio. Juntos, estagiários e adolescentes, tentaram encontrar outros recursos para a manutenção do grupo: autogestão, já que o espaço do CRAS poderia estar disponível, outros centros de juventude na cidade, as ONGs da região etc. A longo prazo, se a causa dos jovens em luta pela vida for uma questão para os estudantes, que eles possam construir redes com pares de diferentes setores para minimizar ou eliminar a violência contra os nossos jovens e as nossas crianças, mas, importa que o peso do mundo não pesasse em suas costas de modo a causar um sentimento que os paralisassem e impedissem ações com vistas à transformação da sociedade.

Portanto, refletir sobre a responsabilidade ética de docentes que convidam os estudantes para saírem da bolha representada pelo academicismo que se reduz ao espaço fechado das universidades e convidá-los para caminhar pelo território, é expô-los aos fatos - o fato histórico da desigualdade social no Brasil e a dimensão sociopolítica do sofrimento daqueles que são cotidianamente constrangidos por terem seus direitos violados. Assim, não cabem explicações e sim cabe colocar o estudante em contato com a própria experiência relatada por eles em vários de seus diários de campo, como a região da cidade de Santos que vai ficando mais precária nos arredores do mercado municipal onde se localiza o abrigo, as pichações nas paredes que remetem ao PCC (Primeiro Comando da Capital) e, consequentemente, os dados de que a maioria dos usuários do abrigo já passou pelas prisões brasileiras. Uma urbe apartada entre a orla e a zona central, pois nas proximidades do SEACOLHE vão se rareando as instituições sociais e os espaços culturais reservados para essa região da cidade de Santos. A invisibilidade dos moradores de rua vai ficando cada vez mais visível, mas agora os estudantes os enxergam, entram em contato com a singularidade de sua trajetória de vida e ajudam cada um deles a contar sua história.

Ressaltamos, nesta primeira experiência, a importância de expor os estudantes à diversidade dos territórios no sentido de despertar em cada um deles certa sensibilidade social: a percepção da articulação entre a constituição subjetiva e cultura. Sabemos também que há estudantes que advém das mesmas classes sociais dos usuários dos equipamentos e, assim, a universidade cumpre seu papel de reconhecer e incluir também a realidade de seus novos componentes que frequentam o ambiente acadêmico na produção de conhecimentos e intervenções.

Segunda experiência: Cartografando territórios em disputa e modos de morar

A segunda experiência refere-se a um projeto de extensão universitária que toma como foco o território conhecido como Cracolândia, localizado no bairro Campos Elíseos, centro de São Paulo. Território marcado pelo tensionamento entre os moradores e os usuários de drogas que circulam pelo fluxo, mas também pela possibilidade iminente de remoção do local devido a uma parceria público-privada que prevê a demolição das quadras para a construção de unidades habitacionais e de um hospital. O empreendimento imobiliário não apenas não atende às necessidades dos moradores do bairro, principalmente por se tratar de uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) - áreas destinadas, predominantemente, à moradia para a população da baixa renda por intermédio de melhorias urbanísticas, recuperação ambiental e regularização fundiária de assentamentos precários e irregulares -, quanto estabelece a demolição de moradias antigas e históricas para a construção dos novos prédios. O modo autoritário e apressado com que as autoridades públicas tratam essa questão gera um clima ainda maior de violência, pois regularmente são feitas ações policiais para revista e dispersão dos usuários de drogas, tomando os moradores também como alvo dessas ações.

A inserção de estudantes do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie ocorreu em outubro de 2017, junto a um grupo formado por diversos atores sociais que se uniram para construir, junto aos moradores, um projeto de moradia que preservasse os modos de vida e a memória do bairro por meio da manutenção dos prédios históricos que ali se encontram. Em conjunto com docentes e estudantes do curso de Arquitetura da mesma universidade, diversas ações foram feitas no território em questão, desde a construção coletiva de uma proposta habitacional que contemplasse as necessidades e os desejos de quem vive no bairro, até a divulgação das histórias de vida colhidas no território e a oferta de uma escuta psicológica para o sofrimento produzido por essas situações. Essa parceria tem proporcionado a compreensão, discussão e articulação de diferentes saberes e formas de intervir no território, e a produção comum de conhecimentos e ações que defendam a garantia de direitos por meio de políticas habitacionais e sociais que diminuam as situações de desigualdade social.

Ao circular pelo território, os estudantes deparam-se com uma paisagem completamente diferente dos espaços organizados e higienizados que costumam frequentar. A maioria dos imóveis é oriunda de hotéis que foram abandonados após a transferência da antiga rodoviária para outro local da cidade e que se tornaram pensões, cortiços ou ocupações, abrigando famílias de baixa renda e oriundas de outras regiões do Brasil. Conhecido também como "boca do lixo", diversas ruas são ocupadas por pontos de comercialização e uso de drogas, além de outros comércios informais e a prostituição (Sampaio & Pereira, 2003).

Para adentrar neste território exige-se dos estudantes o deslocamento das referências de moradia e vizinhança que constroem em suas experiências pessoais para encontrar outras formas de ocupar, habitar e circular pelo espaço; exige, também, que os estudantes vivenciem as complexas tramas sociais que são ali construídas. Nos minúsculos e sufocantes quartos de pensões, conhecem moradores que nasceram e viveram a maior parte do tempo na região; nas ruas e calçadas, interagem com usuários de drogas que fazem do fluxo um lugar protegido para as cenas de uso; ouvem as histórias dos comerciantes que dali retiram seu sustento financeiro; e observam a atuação de diferentes serviços presentes no local que, por vezes, se contrapõem nas formas de abordagem dos que ali se encontram, como relata uma estudante:

No decorrer das idas à campo ... fui compreendendo esse território como um local agitado, vivo e caótico, onde muitas coisas acontecem diariamente. Com música, grande trânsito de pessoas, comércios e crianças brincando, como muitos outros bairros. Porém, a entrada constante de figuras importantes e alheias ao contexto do bairro cria um clima de local "invadido", "de ninguém". Essa impressão me foi causada devido aos diferentes tipos de pessoas que me deparei no território, como: estudantes e pesquisadores em grupos, com suas mochilas, cadernos e canetas; policiais em seus cavalos circulando e fiscalizando os pedestres; a mídia com suas câmeras e filmadoras; carros pretos blindados repletos de segurança para transportar um secretário de estado; trabalhadores dos serviços de saúde e assistência com seus jalecos e crachás. (F)

Os registros dessa experiência são anotados em diários de campo, no qual são construídas narrativas sobre as implicações dos estudantes com o contexto histórico-social em que se vêem inseridos, produzindo um conhecimento sobre a vivência cotidiana do campo a partir das observações dos diversos elementos que o compõe. Compreendem, também, que o território é um espaço dinâmico, vivo e em constante transformação, e que não se resume a uma localização espacial ou geográfica. Com uma identidade única, o território compreende as relações sociais e suas transformações; é a base das trocas materiais, econômicas e simbólicas da vida sobre as quais ele influi; é formado por uma relação dialética estabelecida entre a sociedade e aqueles que o habitam (Lima & Yasui, 2014; Santos, 2001).

Para entender o território é necessário que nele se mergulhe, por ele circule e se deixe afetar por esse emaranhado de relações que o constituem. Para isso, é preciso colocar o corpo no território e, algumas vezes, vivenciar a violência cotidiana relatada pelos que ali vivem. Foi isso que ocorreu em uma das atividades realizadas após a remoção de algumas famílias. Utilizando técnicas sociodramáticas, buscou-se oferecer um espaço de escuta e acolhimento das experiências de sofrimento decorrentes dessas remoções, além de construir um espaço coletivo para discussão e tomada de decisão, aumentando a capacidade de análise dos moradores sobre o ocorrido a fim de diminuir a impotência diante de desafios considerados impossíveis. Buscava-se fortalecer a relação entre os moradores e envolvê-los na luta contra o contexto que os oprime. A cena escolhida pelos moradores para ser dramatizada foi o bloqueio policial que os moradores sofrem cotidianamente, a qual denota a constante vigilância e controle da circulação dos corpos através de violentas ações de impedimento de passagem e revista de bolsas e sacolas de quem por ali tenta passar. Convidado a atuar na cena psicodramática, um aluno relata:

Como guardas municipais, deveríamos continuar não deixando os moradores passar. ... Então, uma das moradoras, C., começou a gritar e falar o que sentia, e que queria nos mandar para o "quinto dos infernos". Depois disso, foi perguntado o que elas queriam ouvir dos guardas nessas situações, e falaram que o mínimo era ouvir desculpas. Então eu encenei este ato, disse para elas que nossas atitudes estavam equivocadas e pedi desculpas pela forma que as tratamos. No final, uma das moradoras fez o papel de guardas municipais e encenou como gostaria que eles tratassem os moradores. Ela foi extremamente cordial e resolveu tudo conversando, deixando as moradoras seguirem seu caminho e irem para casa. (G)

Outra forma de intervir no local foi a coleta e divulgação das histórias de vida dos moradores e comerciantes que se encontram neste território. Ao proporcionar este convite à narração, valorizamos a escuta de suas vivências e garantimos a versão destes na luta pelo direito à moradia e à cidade, como registrada por uma estudante:

Robson nos contou de sua experiência com as demolições, que no caso afetou seu próprio imóvel: em maio de 2017, estavam demolindo o prédio ao lado, acharam que não tinha nada na pensão dele e acabaram por demolir uma parte de seu estabelecimento, inclusive machucando um dos moradores. Ele comenta que nove quartos foram demolidos, que tentou recorrer com ajuda de um advogado que o instruiu a separar todos os documentos que ele tinha do imóvel; mas que mesmo assim teve que arcar com todos os custos da reconstrução dos quartos, totalizando só em material mais de quinze mil reais. (F)

Estas experiências nos fazem apostar que nenhuma formação em Psicologia, por si só, é capaz de fornecer uma compreensão da subjetividade e do sofrimento de quem vive em situações de alta vulnerabilidade social. Por isso, defendemos a importância de proporcionar formas reais de intervenção pautadas nas demandas da realidade. A circulação por estes territórios propicia aos estudantes diferentes olhares sobre a cidade; a produção de narrativas, tanto dos moradores quanto dos estudantes, em seus diários, aumenta a visibilidade e a voz de um território tantas vezes violentado e marginalizado; e, por fim, as intervenções sociodramáticas convoca-os a se indignarem contra as injustiças sociais e a buscarem possíveis saídas para as situações diárias de violência e humilhação.

Entendemos que a inclusão dos estudantes em territórios apartados é uma importante direção ética e política na formação de psicólogos mais engajados com a definição das propostas de atendimento às demandas sociais, e menos imunizados em relação aos discursos e práticas higienizadas e higienistas que muitas vezes escapam em uma formação passiva e distante dos modos de vida que existem nos espaços distintos do mundo acadêmico.

Terceira experiência: Narrativa - despertando histórias de vida esquecidas

A terceira experiência refere-se à disciplina de Psicologia Social, ministrada para as turmas de primeiro ano do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na qual apresenta-se estudos e discussões sobre a história deste campo teórico-prático na América Latina e no Brasil. Optamos pela construção de narrativas de história de vida como dispositivo de atuação no campo da psicologia social em situações contemporâneas e vivenciadas no território habitado pelos narradores. Com a escrita, destas histórias de vida, busca-se consolidar um processo formativo em que o conhecimento se mostra inseparável de um corpo capaz de sentir e de ser afetado pelo outro.

A escolha dos narradores se deu pela proximidade geográfica, ou seja, pela vizinhança entre aqueles que circulam e ocupam territórios comuns, mas não se conhecem e que carregam consigo uma memória de muitas populações esquecidas. Foram convidados: alguns usuários de um CAPS que participavam de um grupo GAM (Gestão Autônoma da Medicação) que acontecia no espaço da universidade e era mediado por outro professor do curso de Psicologia; dois coordenadores deste grupo GAM que eram estudantes e mestrando no curso, alguns mestrandos do curso de Arte e Educação e uma trabalhadora terceirizada que atendia na portaria do prédio onde se encontra o curso de Psicologia. Este híbrido entre narradores vindos de distintos lugares se constitui por serem aqueles que mostraram interesse em contar suas histórias, dificuldades, desafios e potencialidades do meio universitário e das andanças da vida.

Esta aposta formativa que acontecia com invenção e improviso modulando a ementa de uma disciplina não poderia carecer de rigor. Nesse sentido, começamos uma preparação em aula sobre trabalho com narrativas (Casetto, 2013), através de alguns textos, exemplos de outras experiências e uma discussão sobre o uso de diário de campo para registrar a história narrada e as próprias sensações, impressões, surpresas vividas pelos estudantes nos encontros (Henz & Casetto, 2013). Os diários de campo seriam uma das principais ferramentas deste trabalho, pois permitiriam acompanhar os estudantes em suas descobertas.

Os diários de campo foram produzidos pelos estudantes a partir de uma oficina, oferecida por um estudante de Psicologia do último ano, de produção de um caderno artesanal. Com a aposta de desenvolver uma "escrita de si", na esteira do que Michel Foucault (1992) discute a respeito do aparecimento dos Hypomnemata, este caderno opera como material de registro que permite dar materialidade ao processo afetivo dos estudantes no encontro com os narradores, anotando ali as impressões da conversa, algumas vezes desenhando imagens do encontro, outras vezes transcrevendo letras de músicas que ressoavam com a situação vivida.

Trabalhar com narrativas com estudantes de primeiro ano de graduação envolve um experimento de contato com um território estrangeiro em meio ao previsto na grade curricular, o que significa atuar com poucas ferramentas teóricas valorizando a condição de não-saber dos estudantes que exige inventar estratégias para estar com o outro e entrar em contato com a complexidade de uma relação de cuidado através da própria experiência. O caderno se tornaria um apoio importante para registrar este território novo, coabitar este espaço-tempo afetivo e legitimar uma memória a ser produzida em conjunto.

No dia do encontro com os narradores, a turma de estudantes, do primeiro ano, sentiu um frio na barriga e muitas questões ecoavam pela sala: Será que eles vêm? Quem serão eles? O que devo fazer, como começo a conversa? Com a chegada dos narradores instaurou-se um clima de grande acolhimento coletivo, uma aproximação entre estranhos. Ninguém tinha feito esta experiência antes e ninguém sabia se estaria à altura de algo que talvez fosse grande demais.

Antes da chegada dos narradores, um dos estudantes me disse uma frase que me fez duvidar se valia a pena esta tentativa: "Professora, sinto que você está me empurrando em águas profundas, sem que eu tenha aprendido a nadar!". De fato, talvez se tratasse de um convite arriscado, no entanto, havia ali uma aposta de criar uma abertura no paradigma imunitário, defendendo este movimento sem protocolo. Sabíamos e sentíamos que aqueles corpos eram capazes de ser afetados por este estranho-narrador e despertar nele memórias legitimando uma experiência de vida. Confiamos então uns nos outros, no rigor que construiríamos se sustentássemos a experiência neste trabalho comum, em rede e, assim, bancamos aprender a nadar junto com os narradores.

Em duplas, estudantes e seus narradores saem da sala de aula rumo a um passeio peripatético pelo campus para viverem seu "primeiro encontro". O território do campus começava a ser marcado por outras camadas afetivas, ocupando os espaços do bosque, da pista de caminhadas, dos bancos espalhados entre os prédios. As histórias davam a este lugar uma nova configuração, era o território do encontro das narrativas que se instalava ali. Depois deste encontro, outros vieram, investidos em outros espaços da cidade, em cafés, praças, bares, CAPS, passeios. As histórias se construíam nos corpos daqueles que contavam e daqueles que ouviam, os quais também traziam marcas da própria história. O território se irradiava pela cidade, se reinstalava no diário-caderno, se materializava na narrativa. As camadas do corpo, da escrita, da presença, da produção do caderno traziam novas problematizações ao processo formativo. Um dos estudantes escreve no diário: "me senti convocado a sair da minha zona de conforto e vou me arriscar escrever a narrativa dela em forma de poesia, pois é isso que ela desperta em mim". Outro estudante relata: "Se é possível registrar em palavras, com esse contato eu aprendi a amar ainda mais as diversas concepções que se tem a respeito da vida. Com o nosso narrador, eu aprendi a ter esperança, a resistir e a me movimentar mesmo quando não sei direito para onde ir".

Nas supervisões, li e escrevi em seus diários, procurando valorizar o afeto mais forte, sugerindo que contassem a respeito dos fragmentos de memórias ouvidas, valorando aspectos potentes da experiência do outro.

Uma das estudantes que acompanha a história da narradora, recepcionista do prédio, agradece por termos apostado nesta experiência inusitada das narrativas. Ela estava tomada pelo encontro com aquela mulher por quem passava todos os dias e nem sequer cumprimentava. Parecia se dar conta de que havia muitos mundos a serem conhecidos e legitimados, que a desigualdade social, as situações de violência e descaso estão ao nosso lado e em todo lugar e que são fortemente ignoradas. Alguma camada das possíveis atuações e modos de pensar de uma formação em Psicologia parecia se esboçar para esta estudante.

Como ela, muitos deles se mostravam abismados diante das cenas das histórias contadas que explicitavam o lugar das violências sofridas por usuários do CAPS, das experiências de exclusão vividas por alguns narradores acadêmicos das artes, das histórias de superação. Alguma bolha estourava ali quando estes estudantes suportaram escutar os narradores, os quais reciprocamente os acolheram ao relatarem as próprias histórias. Há uma relação de cuidado mútuo (Figueiredo, 2009) e de convite para que todos se conectem, construam algo junto que deverá durar, embora exista o momento da separação.

 

Considerações finais

Você parece ter percorrido e conhecido muitos caminhos escuros. Por meio das nossas conversas, R., tateando na escuridão, achei uma porta. Você sabia o caminho e como um poeta, que um dia carregou outro por caminhos onde as esperanças eram deixadas na porta de entrada, caminhei ao seu lado. Hoje sob uma penumbra consigo ver a luz. (R)

O que há de comum entre as três experiências relatadas é uma proposta de formação que "estoura a bolha social" e que evoca os sentimentos de perplexidade, estarrecimento e indignação ao colocar cada um dos estudantes em contato com pessoas que têm os seus direitos sociais violados cotidianamente. Ao que tudo indica, os estudantes explicitam o véu de proteção que antes os impedia de enxergar para além de seu lugar de classe social e conforto socioeconômico. Ao retirar este véu, esta proposta de formação recebe críticas e é atacada por expor os estudantes a tanto sofrimento. É como se houvesse uma inversão de valores: não são as condições sociais que merecem críticas por produzirem a violação de direitos nas pessoas, mas a proposta político-pedagógica que expõe estudantes universitários à dimensão sociopolítica do sofrimento. O que faz com que sejamos capazes de produzir essa inversão?

Outro ponto comum diz respeito aos afetos e percepções de estudantes que são convidados a romper com a bolha social: qual é o impacto na formação dos estudantes de psicologia ao serem expostos aos efeitos das desigualdades sociais, econômicas e culturais na vida das pessoas? Quais os afetos que afloram nestas situações?

Alguns estudantes da primeira experiência relatada alegaram sentir um pouco de hipocrisia ao irmos até o serviço escutarmos as histórias e, depois de entregarmos as narrativas escritas para o narrador, irmos embora. Apontamos que houve uma troca, pois eles exercitaram a escuta qualificada e os narradores exercitaram a reciprocidade de falar e ser escutado, compartilhar a companhia e a presença de jovens estudantes. Parece que, ao direcionarem estas "farpas", os estudantes pedem que a professora e a universidade resolvam as mazelas da sociedade, como se nunca tivessem parado para pensar sobre a desigualdade social, pois, naturalizadas, vão perdendo suas raízes histórica e social. Outro fantasma que atravessa as supervisões é a ideia de que, ao distribuirmos equitativamente os direitos sociais, muitas pessoas perderiam seus privilégios sociais e econômicos. O que revela angústia dos estudantes ao serem expostos a falas e situações nunca antes imaginadas, como a de tornar visível o sofrimento.

Os sofrimentos que são comumente invisibilizados e "são administrados politicamente com incidência sobre o narcisismo, as identificações, o luto e os afetos tais como o amor, o ódio, a ignorância e a culpa" (Rosa, 2015, p. 9). Para Rosa, a dimensão sociopolítica do sofrimento está diretamente vinculada às situações de violência presentes na sociedade contemporânea, desencadeante da construção de um tipo de laço social que pode produzir no sujeito tanto a destituição subjetiva quanto o desamparo social e discursivo. Žižek (citado por Rosa, 2016, p. 113) aponta também outra forma de violência que se refere ao modo de operar da ideologia contemporânea: "algumas pessoas acreditam que estão vivendo em uma sociedade livre fruto da junção entre sujeitos independentes e autônomos, porque recalcam as relações de dominação e as leis da submissão". Trata-se aqui da ideia de que a ideologia ainda funciona como um véu que impede o sujeito de enxergar a desigualdade social e a dimensão sociopolítica dos sofrimentos.

O exercício da escuta é um dos princípios para a formação de nossos estudantes, uma escuta que se posicione na direção contrária a alguns discursos sociais que tendem a patologizar, culpabilizar e/ou criminalizar o sujeito imerso em situações de vulnerabilidade social (Rosa, 2015). Uma escuta cuja visada seja a de criar laços de reciprocidade entre os estudantes, as professoras, os narradores e as narradoras.

A formação em psicologia, através do encontro com estes territórios geográficos e afetivos onde as pessoas têm seus direitos violados e onde o cuidado pouco acontece na sua integralidade, é modulada por esta experiência, consolidando novos territórios de saber-fazer.

A narrativa é um dispositivo que trama, que ajuda a enxergar as redes de cuidado, as redes da memória que recolocam o corpo em contato com lugares de fortalecimento, dando às situações novos sentidos e às ferramentas de cuidado novos usos.

Parece que nesta interferência construída com as narrativas fazemos dois movimentos: trazer para a universidade pessoas, situações, espaços não investidos, e levar para o território os estudantes que deslocam seu modo de ver de pensar, de sentir, de se ver constituindo-se profissionais. São estes movimentos, estas reconfigurações que permitem instalar outro território para a Psicologia. Através das disciplinas/módulos curriculares, instala-se, com o mínimo de ferramentas, um território que possa acolher sensações, cheiros, memórias, abraços, choros. A experiência parece durar na memória de cada um, e, em especial, nos gestos dos estudantes que ensaiam suas próprias coreografias formativas.

Se há um objetivo em tudo isso é o de que, pelo menos, eles consigam se deslocar, ouvir o que por vezes não se escuta no espaço da universidade, que não se escuta em um corpo blindado com protocolos. As histórias são a expressão de muitas experiências marcadas pelas desigualdades sociais, econômicas, culturais, pelas violações de direitos, pelas dores desta condenação em padecer de sobrevivencialismo.

Nas atividades que propomos aos estudantes, apostamos em uma disposição horizontal dos estudantes em relação às pessoas que encontravam nos espaços em que se davam as intervenções, e no registro dos afetos disparados ao enfrentarem os efeitos da desigualdade social, ou seja, o contato com a dimensão sociopolítica do sofrimento. Por identificação e contágio, o efeito em cada um dos estudantes pode levá-los também ao sofrimento. Trata-se de uma proposta de formação que visa inventar as formas, individuais ou coletivas, da igualdade na transmissão e que tem como objeto de reflexão, e quiçá de transformação, as condições sociais que geram a desigualdade social.

Tais apontamentos nos levam aos seguintes questionamentos: é possível falar em democracia em um país colonizado e atravessado pela desigualdade social e que, por meio de estratégias visíveis e invisíveis, viola os direitos sociais de suas crianças, adolescentes e jovens? De que democracia estamos falando quando adentramos nos espaços físicos precários que são oferecidos para o acolhimento de pessoas em situação de rua? Como construímos social e culturalmente essa nossa tolerância às injustiças sociais, como cada sujeito na universidade se implica para diminuir e, quiçá, eliminar a violência que assola a sociedade contemporânea? O quanto custa para cada um de nós manter o véu que nos impede de enxergar os sofrimentos das pessoas que partilham desse mundo conosco? Com quem aprendemos a valorizar mais uma vida do que outra? Quais são as vidas passíveis de luto?

Talvez seja a proposta de forçar uma capacidade que se ignora, isto é, de produzir uma sensibilidade para as questões do outro, criar espaços para suscitar empatia pela vida e a dor do outro, suportar a escuta do sofrimento e da agressividade do outro. Partilhar essa dimensão sensível é a base da ideia de responsabilidade ética, conforme a frase de Adorno (2008; Butler 2015): é possível ter uma vida boa em uma vida má? É possível ser feliz quando alguns ainda passam fome e sofrem a violação dos seus direitos? Como transmitir o desejo e a vontade de transformar as condições que perpetuam as desigualdades sociais? Como transmitir um sonho de país mais justo, igual e fraterno?

Não deve ser por explicações racionais, mas sim por um modo de estar junto e dar visibilidade aos sofrimentos sociais, mostrar os fatos, mostrar a crueldade da sociedade capitalista criada por nós humanos, expor as nossas feridas, suportar a indignação e a perplexidade dos estudantes que ainda se sensibilizam com a injúria que é passar fome e ser humilhado por estar dormindo na rua. Uma transmissão que consiga distinguir o ódio do amor e o cuidado fraterno da crueldade que vê o outro como inimigo que precisa ser eliminado. Uma transmissão sobre o valor da reciprocidade parece pouco, mas não é e é sempre desafiante.

São jovens em formação que são convidados a exercitar a reciprocidade e conversar com pessoas que têm seus direitos sociais violados, experienciam suportar a escuta das trajetórias violentas no percurso de suas vidas, compartilham uma verdade do sujeito que não precisa ser contestada e sustentam uma responsabilização coletiva no trabalho realizado com essas pessoas.

 

Referências

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Recebido em: 14/08/2019
Aprovado em: 02/04/2020

 

 

1 O termo responsabilidade ética dialoga com autores que estudam as relações entre Psicanálise e Política (Bertol, 2019; Rosa & Cerruti, 2014; Prudente & Rosa, 2015) e que o compreendem como construção social que se dá no encontro com o outro e que resgata a experiência compartilhada no mundo (Rosa & Cerruti, 2014). A palavra responsabilidade retoma a ideia de que estamos inseridos em uma comunidade e que deveríamos viver em uma sociedade que oferece equidade para todos sem exceção. O compromisso com a responsabilização coletiva inclui a ideia de que todos nós precisamos lutar para mudar as condições históricas que produzem a dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2015, 2016). Assim, a responsabilidade ética envolve o exercício de análise das implicações subjetivas do sujeito que, em seus mínimos atos, pode contribuir ou não para a manutenção da desigualdade social (Bertol, 2019; Butler, 2015).

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