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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo May/Aug. 2021

 

ARTIGO

 

Biopolítica e fascismo a brasileira em tempos de pandemia

 

Biopolitics and brazilian fascism in times of pandemic

 

Biopolítica y fascismo brasileño em tiempos de pandemia

 

 

Vinicius FurlanI; Cecília Pescatore AlvesII

IPós-Dr. e Dr. em Psicologia Social pela PUC-SP. Professor do Departamento de Psicologia Social da UNESP-Assis / vinicius_baum@hotmail.com
IIDra. em Psicologia Social PUC-SP. Professora do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social PUC-SP / cpalves@pucsp.br

 

 


RESUMO

Este ensaio busca articular biopolítica, estado totalitário, fascismo brasileiro e pandemia. Se acreditou numa real democracia no Brasil, vê-se o retorno do espectro de um passado tido como superado. Os tempos pandêmicos trouxeram a tona as formas biopolíticas de governo e o fascismo de Estado, que fez coincidir a vida dos cidadãos com a vida nua, com a vida do homo sacer, vidas matáveis e insacrificáveis. Criou-se, no Brasil, numa proporção de território nacional, um campo em que os cidadãos são postos a mortandade que se assemelha aos campos de concentração nazista. É justamente na vida homo sacer que a vida de cada pessoa no Brasil é posta em questão na biopolítica. A população brasileira se tornou referente privilegiado numa proporção inaudita com o homo sacer, nos termos de um governo e Brasil fascista. A vida nua se coincidiu como a vida de qualquer um. Somos todos virtualmente homines sacri.

Palavras chave: Biopolítica; Fascismo; Pandemia; Estado Totalitário; Psicologia Política.


ABSTRACT

This essay seeks to articulate biopolitics, totalitarian state, Brazilian fascism and pandemic. A real democracy in Brazil was believed, now the return of the spectrum from a past that is considered to be overcome is seen. Pandemic times show the biopolitical forms of government and State fascism, which made citizens' lives coincide with the bare life, with the life of the homo sacer, lives that may be killed but not sacrificed. In Brazil, in national territory proportion, a camp was created in which citizens are put to death, resembling Nazi concentration camps. It is precisely in homo sacer life that the life of each person in Brazil is called into question in biopolitics. The Brazilian population has become a privileged reference in an unprecedented proportion with the homo sacer, in terms of a government and fascist Brazil. The bare life coincided with anyone's life. We are all virtually homines sacri.

Keywords: Biopolitics; Fascism; Pandemic; Totalitarian State; Political Psychology.


RESUMEN

Este ensayo busca articular biopolítica, estado totalitario, fascismo brasileño y pandemia. Si se creía una verdadera democracia em Brasil, vemos el retorno del espectro de um pasado considerado superado. Los tiempos de la pandemia sacaron a la luz las formas biopolíticas de gobierno y el fascismo del Estado, lo que hizo que la vida de los ciudadanos coincidiera com la vida desnuda, com la vida del homo sacer, la vida madurable e insacrificable. En Brasil, en una proporción del territorio nacional, se creó un campo em el que se mata a ciudadanos que se asemeja a los campos de concentración nazis. Precisamente em la vida del homo sacer se cuestiona la vida de cada persona en Brasil en biopolítica. La población brasileña se convirtió en una referencia privilegiada en una proporciónsin precedentes con el homo sacer, en términos de um gobierno y un Brasil fascista. La vida desnuda coincidia com la vida de cualquiera. Todos somos prácticamente homines sacri.

Palabras clave: Biopolítica; Fascismo; Pandemia; Estado Totalitario; Psicología Política.


 

 

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente de seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um de seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citational'ordredujour' - e esse dia é justamente o do juízo final. (Benjamin, 1965/1987, p. 223)

 

Introdução

Este ensaio busca articular biopolítica, estado totalitário, fascismo brasileiro e pandemia. Para tal trabalho buscamos articular a concepção política de Giorgio Agamben e Achille Mbembe, que a concebem enquanto biopolítica e necropolítica, com as formas com que o fascismo ascende no Brasil novamente e se radicalizam a bio-necropolítica e o estado totalitário e de exceção nos tempos de pandemia. Ensaiamos acerca das questões bio-necropolíticas que se articulam com estado totalitário e interseccionam o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder, realizando uma leitura das formas de governo fascista no Brasil e a política de morte que se instaurou no país na pandemia do Covid-19. Assim se analisa o fascismo e as formas biopolíticas de governo a partir da pandemia, bem como, as medidas tomadas pelo governo neste tempo. Discutem-se também imagens literárias como intercessores que abrem caminhos analíticos, que colocam em diálogo as problemáticas recuperadas da filosofia política com a atual realidade brasileira.

A gestação do Brasil do século XXI entrará para a história como infeliz. Nos delírios de seu pai de 64 (1964), aos 15 anos (2015) revive a sombra de um país que a muito se imaginava superado. Aquele Brasil que sem governo entregou-se ao jovem Pedro II; ainda patriarcal que, às mãos de uma mulher (presidenta Dilma), se considerava numa nau naufragada.

Um Brasil que, ao completar maioridade, nas disputas partidárias pelo poder, opera pela logística da velha espada e oligárquica república. Que celebra a data da morte do ativista político Tiradentes e vocifera suas perseguições, condena e executa os ativistas e líderes políticos de seu tempo (vale lembrar Marielle).

O Brasil que, na passagem das categorias de base para a profissional, teme a recaída, talvez mortal, pela tomada de poder dos alvores de um passado tido remoto cujo espírito assombra o tempo presente.

O Brasil que por pouco acreditara que os escombros da violência de suas ditaduras estavam superados. Este mesmo que, ao proclamar-se República, acreditara que havia superado os desejos de um país colonial e imperial.

No século XXI, este mesmo Brasil, fundo de uma esperança progressista, assiste os alvores de um país que, se não adormecido, retorna com toda veemência e toda sua força. Que braveja por violência, que clama por ditadura, que tem sede de sangue humano, que aplaude política escravagista.

Como escrevera o pai da psicanálise (Freud, 1980), as reminiscências recalcadas abrem o caminho para a repetição. Se, por um lado, como ouvíamos dos professores de história, é preciso recordar para não repetir os erros do passado, por outro, diria Lacan (1992), que a elaboração dos fantasmas deste passado deixou uma lacuna impreenchível na cadeia de significantes do universo simbólico ao estabelecer uma transferência na conceitualização com seu mestre.

Se, em sua infância e adolescência, pela fantasia de uma real democracia, o Brasil do século XXI acreditara num horizonte progressista; a não-elaboração de seus traumas do passado trouxeram à tona seus monstros adormecidos, e, assim, a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, dirá Marx (2011).

Se por pouco este Brasil enxergou um horizonte próspero, o caleidoscópio que ele utilizou foi jogado às traças por um outro que - devido ao espírito colonial que ainda assombra nossos tempos - propaga o discurso de que a senzala deve agradecimentos e favores a casa grande.

Ao completar maioridade (18 anos - 2018) retrocede e radicaliza as formas fascistas e biopolíticas de governo defronte a um universo pandêmico. O Brasil do século XXI é o aprofundamento do que existiu de pior no século XX.

 

Bio-necropolítica

A investigação de Giogio Agamben (2010) acerca da biopolítica busca concernir dois pontos: (a) correlacionar biopolítica e estado totalitário; (b) interseccionar o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder. Para o autor, essas duas análises não podem ser separadas e a implicação daquilo que denomina de vida nua na esfera política constitui o núcleo originário do poder soberano.

Para Agamben desenvolver sua noção de biopolítica recuperada de Foucault, vale-se também de Hannah Arendt, que, embora não operasse com o conceito de biopolítica, preocupou-se em pensar os modos como a vida biológica passou a ocupar o centro da cena política na modernidade, penetrando suas análises das estruturas dos grandes estados totalitários, aos quais Foucault não deslocou suas investigações.

Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo político seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim (segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii. (Agamben, 2010, p. 14, grifos do autor)

Como afirma Achille Mbembe (2018), matar ou deixar viver constituem os limites da soberania no limiar das políticas de inimizade; para o autor, ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como implantação e manifestação do poder. Para Agamben (2010) o poder soberano tem como fundamento político original a produção da vida nua e como limiar de articulação entre natureza e cultura, zoé e bios.

Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bios da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto - 'a vida nua' - que indicava a sua submissão. Por trás do longo processo antagonístico que leva ao reconhecimento dos direitos e das liberdades formais está, ainda uma vez, o corpo do homem sacro com seu duplo soberano, sua vida insacrificável e, porém, matável. Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender por que, justamente no instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja libertação e felicidade havia dedicado todos seus esforços. (Agamben, 2010, p. 17)

A partir de Agamben (2010), podemos ler que o Brasil que vivemos foi à decadência da democracia moderna e convergiu com os estados totalitários na medida em que têm sua raiz aí nessa aporia, que coloca em íntima relação de solidariedade a democracia e o totalitarismo. Como apontamos na introdução, se por um instante houve um suspiro de esperança de um Brasil progressista no século XXI, ele revelou se derrocar numa ruína sem precedentes. Assim, a política do Brasil de nosso tempo, na execução de sua tarefa, assume a forma de uma biopolítica, que não consegue articular zoé e bios, deixando aberta uma cesura em nomos.

A emergência desse estado tornou-se regra, retormando Walter Benjamin (1987), e o estado de exceção, como o reverso do caminho da revolução, foi justamente a nau em que as revoluções naufragaram. Neste sentido, a biopolítica em Agamben (2008) tem por paradigma o estado de exceção que cria o campo para o poder soberano. Tais formas de soberania, na dimensão da necropolítica, afirma Mbembe (2018), constituem o nomos do espaço político em que vivemos, e, nessa medida, a soberania opera pelas formas de administração do terror, nos termos da necropolítica - tal terror foi escancarado nos tempos pandêmicos.

Tal paradoxo da soberania se enuncia, demarca Agamben (2010), exatamente onde o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico. Ele tem o poder de proclamar o estado de exceção e de suspendê-lo. Assim ele permanece fora do ordenamento jurídico, porém, pertence justamente a ele, pois cabe ao soberano decidir sobre a constituição em que a exceção possa ser suspensa, cabendo-lhe o poder legal de suspender a validade da lei, a qual se coloca legalmente fora dela.

Aquele que ocupa o lugar do soberano exerce poder acima da própria lei em que se estabeleceu o pacto social. Hitler, na Alemanha, passou a ocupar este lugar do soberano na exceção, e exercia poder ilimitado e se determinou acima da lei. O atual presidente do país diz ser ele a própria lei.

Assim Agamben (2010) afirma que o estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei; tal força de lei, na qual potência e ato estão separados de modo radical, é certamente algo como um elemento místico, ou uma ficção por meio da qual o direito busca se atribuir sua própria anomia.

Em que pese a exceção poder representar um estado de anomia, Agamben (2010) destaca que é justamente aí que o soberano cria a própria condição de possibilidade da validade da norma jurídica e seu sentido de autoridade estatal. O soberano, pelo estado de exceção, cria e garante a situação da qual o direito tem necessidade para a própria vigência. A soberania, destaca Mbembe (2018), expressa-se predominantemente como direito de matar, ou seja, a política se conforma como trabalho de morte, isto é, necropolítica. O filósofo desenvolve este conceito ao questionar os limites da soberania do Estado.

Nesse sentido, o estado de exceção é a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (ou desaplica) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Há, assim, uma união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma é operada sob a forma da exceção, isto é, por sua relação; significa que para aplicar a norma é necessário suspendê-la, produzir sua exceção.

Na exceção o excluído está incluído, como um fora da relação com a norma incluída nela. "A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta" (Agamben, 2010, p. 24). O estado de exceção não é o caos que precede a ordem, pelo contrário, é a situação que resulta de sua suspensão, porém, com um novo nomos, o da ordem do soberano. "Mas enquanto a exceção é, no sentido que se viu, uma exclusão inclusiva (que serve, isto é, para incluir o que é expulso), o exemplo funciona antes como uma inclusão exclusiva" (Agamben, 2010, p. 28, grifos do autor).

Agamben (2010), neste sentido, insiste na manutenção da figura do homo sacer do direito romano, em que a lei se aplica de fato ao caso excepcional desaplicando-se, retirando-se deste; do mesmo modo, permanece uma forma de vida na forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade. Eis o caráter duplo da figura do homo sacer: um ser matável e insacrificável.

Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência - a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele - não é classificável nem como sacrifício e nem como sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humanos que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana, e que se trata aqui de tentar compreender. (Agamben, 2010, p. 84)

Soberano e homo sacer possuem relações simétricas: "Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera" (Agamben, 2010, p. 85, grifos do autor).Como afirma Mbembe (2018), a soberania se impõe, nesse caso, como a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é 'descartável' e quem não é; problemática que ficou evidente nas decisões do governo nos tempos pandêmicos.

Uma das afirmações mais elusivas de Agamben está em suas conclusões no final do primeiro tomo de Homo Sacer, de que a vida nua é uma espécie de "rendimento" ao poder soberano (Barbosa, 2014).

O direito, porém, que o soberano possui de dispor sobre a vida dos cidadãos não é um direito que lhe haja sido dado, mas que lhe foi deixado. A sacralidade da vida, que se pretende valer contra o poder soberano como direito fundamental, expressa na origem, ao contrário, justamente a sujeição da vida a um poder de morte. Essa sacralidade da vida é, então, uma produção política ou, noutros termos, a contraparte do poder soberano, do poder de vida e de morte. Do ponto de vista da soberania, autenticamente política é somente a vida nua. Como afirma Techainer (2013) a vida é destituída de qualquer qualidade humana, é a vida nua.

O homo sacer constitui a expressão máxima da separação do humano e do não humano, em que os reconhecidamente não humanos se inscrevem no campo da vida nua, insacrificável, porém, matável, como referente privilegiado da nova soberania da biopolítica. Nessa esteira, a política se confunde com a necropolítica, que "é, portanto, a morte que vive uma vida humana" (Mbembe, 2018, pp. 12-13).

Como demarca Mbembe (2017), o poder necropolítico opera com um tipo de reversão entre a vida e a morte, como se a vida só fosse o meio para a morte. Ele sempre procura abolir a distinção entre os meios e os fins. É por esse motivo que é indiferente aos sinais objetivos de crueldade. Em tempos de pandemia no Brasil observa-se que o genocídio dos vulneráveis: indígenas, negros, homossexuais e das mulheres, já existente no país em larga escala, e ocultado na pena de fome e violência doméstica, se manifesta como um fenômeno pontual, e mais uma vez se oculta a idiossincrasia de crime hediondo produzido pela humanidade preconceituosa, racista e machista.

Agamben (2010) cita como exemplo o caso dos hebreus mortos pelos nazistas. A dimensão na qual o extermínio dos hebreus teve lugar não é nem a religião nem o direito, mas a biopolítica - foram mortos como vida nua. Nessa dimensão da bio-necropolítica transfiguram a figura do homo sacer as tantas execuções a céu aberto, as matanças invisíveis (Mbembe, 2018).

Assim, para Agamben (2008), a dimensão da biopolítica no contemporâneo tem se assemelhado à tanatopolítica. Ao analisar a vida do muçulmano como figura da manutenção do homo sacer, o filosófo afirma que a inversão foucaultiana do fazer morrer e deixar viver do velho poder soberano, que se exerce, sobretudo, como o direito de matar, para o fazer viver e deixar morrer, que é a marca do biopoder moderno, que transforma a estatização do biológico e do cuidado à vida, inscreve-se agora com o novo caráter específico da biopolítica de nosso tempo como o fazer sobreviver. "Nem a vida, nem a morte, mas a produção de uma sobrevivência modulável e virtualmente infinita constitui a tarefa decisiva do biopoder em nosso tempo" (Agamben, 2008, p. 155), como uma vida vegetativa em que se permite a sobrevivência modulável indefinida de um não humano separado do humano. Trata-se de separar a vida orgânica da vida animal, o não humano do humano, o muçulmano da testemunha; é a vida vegetativa mantida mediante técnicas de reanimação da vida consciente, até alcançar um ponto limite que, assim como as fronteiras geopolíticas, é essencialmente móvel e se desloca segundo o progresso das tecnologias científicas e políticas. A ambição do biopoder, em nosso tempo, consiste em produzir em um corpo humano a separação absoluta entre o ser vivo e o ser que fala, entre zoé e bios, o não humano e o humano.

Assim, dirá Agamben (2010, p. 113):

Se é verdadeiro que a figura que o nosso tempo nos propõe é aquela de uma insacrificável, que, todavia, tornou-se matável em uma proporção inaudita, então a vida nua do homo sacer nos diz respeito de modo particular. A sacralidade é uma linha de fuga ainda presente na política contemporânea, que, como tal, até coincidir com a própria vida biológica dos cidadãos. Se hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri.

 

O caso do Brasil: biopolítica e fascismo em tempos pandêmicos

Na atual forma de governo biopolítico que vivemos, defronte a este contexto pandêmico, embora uma verdade difícil de aceitar, mas uma verdade que não podemos cobrir com véus sacrificiais, é que nossa população brasileira se tornou referente privilegiado numa proporção inaudita com o homo sacer, nos termos de um governo e Brasil fascista. Somos todos virtualmente homines sacri. A vida nua se coincidiu como a vida de qualquer um, em particular das populações vulneráveis.

O contexto pandêmico trouxe à tona as formas biopolíticas de governo e da figura do soberano como aquele que decide sobre quem vive e quem morre. O Covid-19, tratado primeiramente como "gripezinha", revelam os traços de seu governo fascista em seu perfil cômico.

Eis um dos elementos centrais que caracteriza o fascismo: os rostos utilizados para representar seu líder precisam parecer cômicos, uma mistura de militar com palhaço de circo carismático. E com isso se estabelece um ponto de ironização absoluta em que se misturam ficção e realidade, e se cria uma confusão entre aquilo que é falso e aquilo é real; se cria uma confusão entre aquilo que é notícia verdadeira ou notícia falsa (hoje chamada fake news); por consequência, se misturam ordem e desordem, se confundem a lei e a anomia, se instaura o caos.

E isto proveio, por sua vez, pela colonização do desejo anti-institucional fascista, como temos visto; se abandona a representação na democracia e se transfere a imanência do poder do povo às mãos de um governo autoritário, que se coloca acima da lei, como soberano, e se estabelece um estado de exceção; com isso seus líderes se colocam acima da lei, falam o que quiserem, expõem o que existe de pior sem preocupação, com uma falsa ideia de uma liberdade conquistada, e demonstram seus desejos de violência.

Eis outro elemento central do fascismo no Brasil: o culto da violência, baseado numa falsa ideia de liberdade que se transforma na liberação e autorização da violência; com autorização do governo a violência, ela se instaura na vida cotidiana. E pudemos ver isso nos contextos em que aqueles que buscam produzir o antagonismo às medidas tomadas pelo soberano foram violentamente agredidos.

Os fascismos e as ditaduras no Brasil não se apresentaram de antemão como forma de guerra. Eles têm antes a forma do sequestro como normalidade. Não sabemos quando, onde ou porque, de repente algum grupo virou seu alvo. No transcorrer da vida cotidiana o fascismo sequestra vidas. E essas vidas são tidas como desprezíveis e matáveis, é a vida nua, a vida sacra, a vida do homo sacer.

É justamente na vida homo sacer que a vida de cada pessoa no Brasil é posta em questão na biopolítica. Virtualmente, na biopolítica, a vida de todos pode ser uma vida que não vale a pena ser vivida, tornando qualquer um matável e insacrificável, na qual a vida é destituída de qualquer qualidade humana, como vida nua. No campo da vida nua, a política desumaniza o sujeito político e seu desejo humano é esvaziado de significado, o que faz com que qualquer reivindicação política perca sua importância, esvaziando o sentido do direito como garantidor de demandas coletivas; a vida nua é a vida produzida na exceção, como vida fora da política que está dentro, excluindo-a.

Para Agamben (2010) não é a exceção que leva à suspensão da regra, mas é a regra que, ao ser suspensa, dá lugar à exceção, isto é, o fato de haver no ordenamento uma lei que permite ao soberano suspender a regra faz com que ela dê lugar à exceção e se mantenha em relação a ela, que revela um dentro e um fora, que exclui o ordenamento sem deixar de estar inserido nele próprio. No Brasil, a exceção como paradigma da biopolítica de fato se instaurou sob a forma da matabilidade. Ou como diria Mbembe (2018), como necropolítica, o poder soberano se instaurou como forma de matança, como aquele que possui o poder de decidir sobre a vida e a morte.

Tal morte não tem nada de trágico. É por isso que o poder necropolítico pode multiplicá-la infinitamente, em pequenas doses (o modo celular e molecular), ou com empurrões espasmódicos - a estratégia dos 'pequenos massacres' surpresa, seguindo uma implacável lógica de separação, de estrangulamento e de vivissecção, como se pode ver em todos os terrenos contemporâneos do terror e do contra-terror. (Mbembe, 2017, p. 56)

Assim, Agamben (2010) afirma que existem campos, de um ponto de vista jurídico, em que se cria o estado de exceção, entre o poder soberano e a vida nua, enquanto suspensão de garantias constitucionais, em que se deixa de estar vinculada uma situação concreta de ameaça externa e tende a converte-se na regra. O campo, para o autor, é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a converter-se em regra; o campo é o local onde se realiza a mais absoluta condição não humana. "O estado de exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo factício e tende a confundir-se com a própria norma" (Agamben, 2010, p. 164, grifos do autor).

despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. Por isso o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão. A questão correta sobre os horrores cometidos nos campos não é, portanto, aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão atrozes para com seres humanos; mais honesto e sobretudo mais útil seria indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integralmente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles qualquer ato não mais se apresentasse como delito (a esta altura, de fato, tudo tinha se tornado verdadeiramente possível). (Agamben, 2010, pp. 166-167)

O campo, que agora se instalou firmemente no interior do Estado-nação, é o novo nomos biopolítico do país, na versão paranóica fascista. O conceito de campo em Agamben é recuperado dos campos de concentração nazistas. O campo é um pedaço de território que é posto fora do ordenamento jurídico normal, mas não é um espaço externo; é a estrutura em que o estado de exceção, sobre o qual se funda o poder soberano, realiza-se de modo estável. Assim, o campo se constitui como o paradigma da biopolítica. Criou-se, no Brasil dos tempos pandêmicos, numa proporção de território nacional, um campo em que os cidadãos são postos a mortandade que se assemelha aos campos de concentração nazista. Neste campo os habitantes do país foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, a homines sacri. Os despojados vivem cotidiana e anonimamente para a morte, ou tentando evitá-la. "E daí?", responde o presidente indagado sobre as milhares de mortes no país. As vidas brasileiras convertem-se em peças do armazém de fabricação de cadáveres. Como afirma Agamben (2010), assim como os judeus nos campos de concentração nazista, são mortos como piolhos.

O estado de exceção e a biopolítica postas no Brasil não se impôs pela restrição de liberdades, do direito de ir e vir, o que na verdade deveriam ter sido elucidadas como medidas de cuidado e proteção, em que as pessoas cuidariam uma das outras em seus lares, mas pela força da abertura e exposição a um vírus letal que colocou as pessoas sujeitas a uma grande matança, tornando o país um dos maiores epicentros da pandemia mundial, atingindo hoje o índice de mais de 160 mil mortos.

Se a questão da pandemia se refere ao cuidado da vida então ela está ligada à biopolítica desde a sua gênese. Pois, a biopolítica se refere aos poderes que organizam a vida, incluindo aqueles que a expõem diferencialmente às vidas em condições precárias como parte de uma administração das populações por meios governamentais ou não, e que estabelecem um conjunto de medidas para a valoração da vida em si. Ao indagar como organizar a própria vida, já estou negociando com as formas de poder. A questão está ligada à biopolítica na medida em que se delineia acerca de que vidas importam e de que vidas não importam. Tais problemáticas colocam em questão acerca de que podemos tomar como garantido o fato de todos os humanos vivos carregarem o estatuto de sujeito que é digno de proteções e direitos, com liberdade e sentido de pertencimento político.

 

Identidades matáveis

Como afirma Ranciére (2018), a vida social está organizada por uma distribuição hierárquica de identidades. Nessa perspectiva podemos conceber que há, neste sentido, identidades matáveis. Há identidades, dentro de uma lógica de distribuição hierárquica axiomática e funcional, que são concebidas como matáveis. São vidas 'severinas', vidas despojadas de estatuto político e do direito de viver, vidas e identidades retratadas na figura dos homines sacri.

A biopolítica de nosso tempo em contexto pandêmico de coronavírus dispôs sobre a dialética entre a vida e a morte, como bem ilustra João Cabral de Melo Neto (1994),

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida
morremos de morte igual
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia.

Postula Ciampa (1987) que Severino, personagem do poema, ao buscar a diferença encontra a igualdade e se revela não mais com nome próprio e sim substantivo comum. Na homogeneização absoluta, a vida severina, se constitui como uma identidade pressuposta pela determinação social personificada na produção da mesmice: vida e morte se coincidem "vidas ainda não vividas e por mortes ainda não morridas, mas que já estão contidas em suas condições atuais e que emergirão como desdobramento de um tempo severino" (Ciampa, 1987, p. 22).

Ao descrever sua identidade Severino revela um tempo severino, a encarnação de um momento da história, condição de vários outros Severinos, determinado socialmente em tempos da "indústria da seca", termo que começou a ser usado na década de 1960 em denúncia a estratégia do Estado na região do semi-árido brasileiro. O sertanejo vive em vulnerabilidade e o genocídio deste contingente populacional é ocultado pelo fenômeno natural, a seca.

Cabe aqui refletir sobre os ditames deste momento histórico no que se refere a identidade humana. Nos estudos sobre identidade Ciampa (1992) discute que a identidade se constitui enquanto processo numa dinâmica constante de metamorfose na relação com o outro. Os processos de regulação/emancipação se dão como possibilidade dependendo das configurações que se apresentam ao sujeito enquanto políticas de identidade. Termo utilizado pelo autor para definir as imposições hegemônicas realizadas por instituições, grupos e coletividades por meio as ações e ideologias. Neste processo apresenta-se ainda enquanto possibilidade identidades políticas que "se referem à condição de sujeito e de autonomia - ou seja, pessoas que desenvolveram um pensamento próprio" (Alves, 2017, p. 3).

A biopolítica do Estado, presente no século XX inaugura o XXI e se potencializa neste momento de pandemia e crise política. Mudanças ideológicas e estruturais que ampliem as reflexões sobre o seu significado na constituição da identidade humana e gerem políticas de identidade que possibilitem identidades políticas são apenas possibilidades que se apresentam. Contudo, em momentos de potencialização dos fenômenos sociais, econômicos tanto na esfera da saúde, como da educação e do meio ambiente apresentam contradições com possibilidades regulatórias frente ao rompimento com a ideologia hegemônica.

O que se evidencia, certamente, é que a biopolítica do Estado, presente no século XX, inaugura o XXI e se potencializa, neste momento de pandemia e crise política, e os processos de identidade, em metamorfose, estão submetidos a políticas totalitárias e fascistas cerceando possibilidades de emancipação na dinâmica cotidiana de vida e morte.

 

Considerações finais

Temos consciência de que alguns desenvolvimentos nesta empreitada de correlacionar biopolítica, estado totalitário, fascismo brasileiro e pandemia são muito mais indicações de estratégias de questionamentos do que conclusões.

Vida e morte, eis as duas questões que atravessam a radicalização da biopolítica em nosso tempo pandêmico. Se a vida boa é o horizonte utópico das lutas sociais, como reivindicação do direito à vida e o direito também a uma morte digna, ela se defronta com a égide que sustenta os modos de operar da biopolítica de nosso tempo: a política de morte.

Nos tempos pandêmicos no Brasil a figura que nos propõem é aquela de uma vida insacrificável, que, todavia, tornou-se matável em uma proporção inaudita, então a vida nua do homo sacer nos diz respeito de modo particular. Tal realidade é uma linha de fuga presente na biopolítica contemporânea, que, como tal, coincide com a própria vida biológica dos cidadãos. Se nestes tempos não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é porque somos todos virtualmente homines sacri.

A figura do homo sacer, neste sentido, constitui-se enquanto télos da biopolítica do fascismo brasileiro. Se a biopolítica tomou uma proporção inaudita nos termos da política dos tempos pandêmicos, tornando a figura do homo sacer capturado nesta esfera, com seu duplo soberano, dominante em seus enquadramentos, tal figura expressa hoje a figura para a qual somos destinados.

No Brasil hoje nós já somos um país fascista. Somos dos últimos países a abolir a escravidão, dos últimos a implementar a república. Somos um país constituído por golpes, desde o golpe de Dom Pedro ao governo de seu pai, e os golpes no Brasil das repúblicas velha e da espada, o golpe de 37, o golpe de 64, o golpe de 2016. Vivemos a sombra de um passado de um país colonizado e coronelista e de uma ditadura que ainda não foram superadas e que ressurgem como retorno do recalcado.

O fascismo a brasileira, sob a forma de governo biopolítico, produziu um campo que abriu espaço para que o estado de exceção se tornasse regra nesses tempos pandêmicos; por consequência, a vida biológica dos cidadãos passou a coincidir com a vida nua, com o homo sacer, na medida em que o poder soberano deu as condições e abertura para a matança já prevista pelos especialistas.

A barbárie do passado voltou a nos assombrar. O passado que não é redimido sempre retorna como um espectro. Com as palavras de Walter Benjamin que iniciamos: só a humanidade redimida cabe o passado em sua inteireza. Só um povo redimido da sombra da violência de seu passado pode caminhar para a libertação.

Retomando a passagem de Walter Benjamin, tal passado remoto, o qual deixa suas marcas no presente, enquanto uma sombra de práticas de um horizonte de violência e matança, só poderá chegar a sua elaboração se levar a cabo a ideia de redenção benjaminiana que apresente uma interrupção desta tradição e caminhe no sentido da emancipação, ou seja, levar o passado a se completar, levá-lo ao fim de uma vez por todas.

 

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Recebido em: 14/07/2020
Aprovado em: 29/11/2020

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