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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021

 

ARTIGO

 

Práticas comunitárias no enfrentamento ao covid-19 sob o olhar do materialismo histórico-dialético

 

Community practices on facing covid-19 through the perspective of historical-dialectical materialism

 

Prácticas comunitarias en el frente al covid-19 desde la perspectiva del materialismo histórico y dialéctico

 

 

Erickaline Bezerra de LimaI; Deyse Cristina Valença GuedesII; Gabriel De Nascimento e SilvaIII

IPsicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGPSI/UFRN) / erickalinelima@hotmail.com
IIPsicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte / deyseguedesss@gmail.com
IIIPsicólogo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestrando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte / gablexmarc@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A pandemia ocasionada pelo Covid-19 tem gerado efeitos nefastos em todo o mundo, expondo contradições e limites do sistema produtivo vigente. Observa-se, frente a isso, a emergência de ações visando o enfrentamento à crise sanitária envolvendo diferentes setores da sociedade. Neste ensaio, sob a ótica do materialismo histórico- -dialético, discutimos práticas comunitárias de solidariedade que surgem como uma face do enfrentamento à crise generalizada no Brasil. Embora tenham caráter transitório e não sejam suficientes para desmantelar a lógica produtiva vigente, tais práticas expressam exercícios conscientes de ação sobre o meio e denunciam a necessidade de uma nova organização societal. Em suma, identificamos ações auto-organizadas, coletivas ou individuais, que resgatam a dimensão ontológica do trabalho e fortalecem o sentido de comunidade, resultando na utilização da força de trabalho em prol de minimizar os impactos da pandemia, sobretudo às populações mais vulneráveis.

Palavras-chave: Covid-19; Práticas comunitárias; Materialismo histórico-dialético; Solidariedade; Capitalismo.


ABSTRACT

The Covid-19 pandemic has caused worldwide harmful effects, exposing contradictions and limits of the current productive system. With this, actions to confront the health crisis arise, involving different sectors of society. In this essay we discuss community practices of solidarity that emerge as a form of facing the generalized crisis in Brazil from a historical-dialectical materialist perspective. Although they are transitory and not sufficient to dismantle the current productive logic, they express conscious actions on the environment and denounce the need for a new society organization. In summary, we identified self-organized actions, collective or individual, that rescue the ontological dimension of labor and strengthens the sense of community in order to minimize the impacts of the pandemic, especially to the most vulnerable populations.

Keyword: Covid-19; Community practices; Historical-dialectical materialism; Solidarity, Capitalism.


RESUMEN

La pandemia causada por Covid-19 ha generado efectos nocivos en todo el mundo, exponiendo contradicciones y límites del sistema productivo actual. En vista de esto, surgen acciones destinadas a abordar la crisis de salud que involucra a diferentes sectores de la sociedad. En este ensayo, desde la perspectiva del materialismo histórico y dialéctico, discutimos las prácticas comunitarias de solidaridad que surgen como una cara para enfrentar la crisis generalizada en Brasil. Aunque tienen un carácter transitorio y no son suficientes para desmantelar la lógica productiva actual, tales prácticas expresan ejercicios conscientes de acción sobre el medio ambiente y denuncian la necesidad de una nueva organización social. En resumen, identificamos acciones autoorganizadas, colectivas o individuales, que rescatan la dimensión ontológica del trabajo y fortalecen el sentido de comunidad, lo que resulta en el uso de la fuerza laboral para minimizar los impactos de la pandemia, especialmente en las poblaciones más vulnerables.

Palabras-clave: Covid-19; Prácticas comunitárias; Materialismo histórico y dialéctico; Solidaridad; Capitalismo.


 

 

Introdução

A situação social provocada pela pandemia do novo coronavírus, também conhecido como Covid-19, em 2020, representou mudanças radicais nos modos de vida em diferentes sociedades e culturas. O vírus, diferente de outros, como H1N1 ou versões anteriores da família Coronaviridae, foi classificado como altamente contagioso, possuindo grande letalidade em pessoas com doenças crônicas e/ou idosas (Huilan, Sheng, Shiqi, Anwen, & Jifang, 2020). Observamos o aumento acelerado no número de contaminados, que implica a necessidade emergente de insumos, equipamentos hospitalares e a presença em massa de profissionais de saúde. Aliado a isto, a emergência de medidas governamentais de proteção econômica e dos sistemas de saúde, sobretudo, através dos decretos de isolamento social e adoção de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), são amplamente recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como estratégia de contenção.

A trajetória do vírus no Brasil apresentou características peculiares, tendo em vista que seu surgimento esteve atrelado a pessoas com maior poder aquisitivo, aquelas que recentemente retornaram de viagens ao exterior, em fevereiro de 2020. Cerca de um mês depois, a transmissão passa a ser comunitária, isto é, circula de modo difuso entre os indivíduos da mesma região (Macedo, Ornellas, & Bomfim, 2020). Diante disso, diversos foram os efeitos sociais desencadeados, atingindo todas as camadas da sociedade e produzindo mudanças significativas nas relações sociais. Contudo, é nas classes pobres que essa situação apresenta um caráter mais crítico.

Sobre isso, lançando mão da noção dos determinantes sociais da saúde, entendemos que a produção e reprodução da vida social gera diversos atravessamentos no cuidado em saúde (Albuquerque & Silva, 2014), significativos da prevenção ao tratamento dos adoecimentos. É possível perceber, mediante a pandemia, que camadas pauperizadas da população apresentam dificuldades em cumprir medidas de prevenção de contágio do vírus, tendo em vista o não acesso a condições dignas de habitação e a itens básicos de higiene. Em soma, importantes atravessamentos raciais são evidenciados, a população indígena e negra enfrenta maiores adversidades no acesso aos serviços da atenção básica à alta complexidade, descaso do Estado e escassez de políticas públicas específicas voltadas ao combate ao Covid-19 (Calmon, 2020).

Santos (2020) comenta que a situação pandêmica torna visível os efeitos do modo de vida que levamos. A crise evidencia as incongruências do capitalismo enquanto modelo societário e as políticas neoliberais agindo para cercear as possibilidades de resposta dos Estados. No entanto, também aponta que se coloca em xeque a naturalização dos modos de viver na contemporaneidade, fazendo emergir novas relações de consumo e trabalho.

É bem verdade que o atual contexto de pandemia nos obriga a um novo modo de vida e de produção, ainda que transitório, com o fechamento dos grandes centros comerciais e a reorganização das atividades produtivas. Esse novo momento parece querer nos convencer de uma suposta fluidez e efemeridade das coisas e das relações. Contudo, a conjuntura traz consigo uma contradição: a crise e a reestruturação do capital. Todas essas transformações sociais demonstram, no entanto, que essencialmente tudo permanece o mesmo. A lógica produtivista e a mercantilização da vida seguem sendo os ordenadores nesse mundo supostamente mutante.

O embargo dos grandes capitalistas contra as medidas protetivas, bem como a flexibilização por parte do Estado, como ocorre no contexto brasileiro, expõem a contradição fundamental entre o trabalhador e o capital. Nessa lógica, a atividade produtiva não pode parar, mesmo às custas da saúde do trabalhador. Ratifica-se, assim, o papel paradoxal do Estado burguês como instrumento balizador da manutenção do sistema capitalista, atuando através da opressão e controle da classe trabalhadora. Frente às divergências irreconciliáveis da sociedade, o Estado age no sentido de conter as tensões entre as classes (Engels, 1884/2009). Com isso, suas normativas, embora anunciem o bem comum, como no caso das medidas de proteção, só são efetivamente acessíveis a uma fração seleta da sociedade.

Todavia, a situação pandêmica tem convocado a população para o desenvolvimento de ações voluntárias individuais e coletivas que buscam minimizar os impactos negativos na saúde e nas condições de vida, sobretudo, das camadas empobrecidas da sociedade, que expressamente são as mais prejudicadas. Medidas estas que buscam suprir a ineficiente ação do Estado na assistência à população. Esse momento de crise tornou visível estratégias de enfrentamento e cuidado que continuamente vem emergindo a nível comunitário em prol de um bem comum, são as práticas de solidariedade, as quais se concretizam na arrecadação e doação de alimentos e EPI, insumos, ações de promoção e prevenção em saúde, dentre outras.

Neste sentido, o presente ensaio pretende discutir práticas comunitárias de solidariedade emergentes no contexto de crise generalizada no Brasil, ocasionada pelo Covid-19. Utilizamos, para tanto, os fundamentos teórico-filosóficos do materialismo histórico-dialético como meio de desvelar a atual conjuntura, destacando a crise pandêmica que expõe as contradições e limites do sistema produtivo vigente e, consequentemente, denuncia a necessidade de uma nova organização sócio-política e econômica. Nessa perspectiva, parte-se da primazia ontológica do real, considerando a processualidade e a totalidade social do fenômeno, num esforço de revelar suas mediações, contradições e repercussões na atualidade. Entendemos que não é dada a transparência da realidade e, portanto, o esforço científico está na aproximação das determinações histórico-sociais do objeto para desmascarar a experiência do presente (Pasqualini & Martins, 2015).

Adiante, discorremos sobre como se constitui a relação sujeito-mundo vista pela ótica materialista histórico-dialética. Apontamos que o desenvolvimento de uma sociedade gera condições complexas de existência para controle da natureza e, assim, com o atravessamento econômico, as amálgamas do sistema capitalista se engendram (Lukács, 1984/2013; Marx, 1932/2004; Marx & Engels, 1933/2007). No contraste do modo de vida instituído por essa lógica produtivista, em meio a uma crise sanitária, denunciamos algumas das grandes contradições do sistema (Béria, 2014; Harvey, 2016), ao mesmo tempo que apresentamos certas particularidades mediante este cenário. Por fim, vemos algumas das reações da população afetada que, ao construírem ações solidárias em contexto de comunidade, mesmo que de caráter provisório, têm demonstrado efeitos que podem vir a atuar no desenvolvimento de práticas ético-políticas significativas.

 

Contradições do capitalismo e sua expressão na pandemia

Na prerrogativa de entender o atual contexto que nos sobressai devido à pandemia do novo coronavírus, faz-se necessário um resgate acerca do modo de vida numa sociedade de classes e, consequentemente, suas contradições fundamentais que possibilitam a emergência das ações comunitárias.

Marx (2004) situa a realidade numa conjuntura amparada na ação humana, baseada na produção de uma materialidade que ao longo da história procura suprir suas necessidades imediatas, ou seja, por meio do trabalho. Nessa perspectiva, "o primeiro ato histórico, portanto, ato fundador da especificidade do homem é a criação de meios para satisfação de necessidades..." (Marx & Engels, 2007, p. 50), processo constante que age no desenvolvimento do sujeito e da humanidade.

Esse fator ontológico e complexo do desenvolvimento genérico humano expõe a natureza como um conjunto da realidade, constituída tanto de um ambiente natural, quanto das modificações concretas gerenciadas pelo sujeito que moldou com suas mãos a matéria da natureza para seu usufruto. Esta exposição, evidenciada em manuscritos de Marx (1939/2011), demonstra a totalidade concreta e assume a premissa ontológica pelo qual o sujeito deve ser compreendido enquanto ser social, numa relação, ao considerar vida e atividade humana. Seguindo tais princípios, não se pode compreender o atual contexto desvinculado do processo histórico, concreto e material. Essas ações, reconhecidas como processos de trabalho, tornam-se conscientes e direcionadas, seguindo propósitos que levam a uma organização estrutural.

No entanto, importa ressaltar que o sujeito é capaz de modificar sua realidade, porque dela é parte, e não uma partícula dissociada, pois é justamente por estar contido nela que a produção humana é efetiva, tendo em vista que "a compreensão dialética do processo de trabalho como um momento metabólico implica que as ideias não podem surgir do nada" (Harvey, 2010, p. 114). Segundo Kosik (1976, p. 10):

No trato prático utilitário com as coisas - em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas - o indivíduo 'em situação' cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.

Do excerto, extrai-se as dimensões de subjetivação, objetivação e exteriorização da práxis humana. Os três elementos supracitados são aspectos fundamentais para reconhecer a natureza intencional do trabalho, um meio de propagação e organização material que fornece ao ser humano o status de ser social, um salto qualitativo que diferencia ele dos demais animais (Lukács, 2013). Do processo de trabalho se compreende os modos de vida que sucedem, isto é, todas as formas de ser na constituição de uma natureza socializada, que os torna cada vez mais objetivados e determinados pelo meio. Daí podemos entender a necessidade do sujeito de agir em prol da resolução de problemas cotidianos, oferecendo melhores condições de existência a si e aos seus.

Ao traduzir a força humana consciente e objetivada como trabalho, chega-se ao sentido autêntico, global da vida humana, a qual só pode ser entendida em relação a outras categorias, sejam estas biológicas, sociais, simbólicas, em "uma inextricável imbricação" (Lukács, 2013, p. 41). Porém, no interior do sistema capitalista, a práxis humana amplamente elucidada por teóricos como atividade essencial de desenvolvimento humano, ao aderir à dimensão econômica, em uma nova lógica de produção, tende a deturpar essas características essenciais (Lukács, 2013; Marx, 2011). Nesse sentido, a externalização que outrora se destacava como parte da socialidade do trabalho, assume a conotação de não pertencimento para o sujeito, acerca de si mesmo e do seu processo (Marx & Engels, 2007, 2011). Situação ocasionada, principalmente, pela exploração e comercialização de sua força de trabalho, que o impede de reconhecer suas ações como suas e o mundo como seu.

O advento econômico, bem como sua organização baseada na mais-valia, são frutos de um processo histórico humano que caminha rumo a condições cada vez mais complexas de existência, assim Marx (2004) pontuava. O sistema produtivo capitalista se destaca, então, como um modo de organização econômica elaborada pelo sujeito para controle e exploração, que passa a definir como moeda de troca a força humana e tudo que dela decorre. A ascendência do trabalho assalariado se constitui como apelo individualista para acumulação de riquezas e seu produto como instrumento de alienação, em que o sujeito se reconhece separado da sua coletividade e o processo de trabalho nem sempre reflete seus anseios de autorrealização. Na maioria das vezes, os objetivos do trabalho se direcionam, exclusivamente, para garantia de acesso a bens de consumo e subsistência (Melo, 2011; Peto & Veríssimo, 2018). Ou seja, tais aspectos demonstram as variadas formas da alienação, desde a relação do trabalhador com seu produto, no ato da produção, na própria atividade e, por fim, a alienação de si mesmo (Marx, 2011).

A alienação no trabalho é considerada por Marx como "o ventre materno de todas as alienações - a raiz do 'estranhamento' que lançava no sofrimento e na inconsciência o homem comum do mundo moderno" (Barros, 2011, p. 229), conceito pelo qual foi abordado em diferentes momentos da vida do autor e em suas diferentes possibilidades relacionais. Constitui, portanto, como uma medida onde tudo que se aparta do ser humano e de suas ações sobre o mundo, fragmenta e dissipa a consciência, de modo a torná-lo um "animal desnaturalizado" ou um maquinário a realizar ações estranhas a si.

Percebe-se até aqui sob que bases se estrutura a sociedade. Contudo, não vamos nos ater ao processo histórico social evidenciado por Marx em seus detalhes, no qual capta as questões da burguesia e proletariado dentro de sua época, pois o que nos interessa nesta discussão é como esse processo da lógica produtivista se expressa e interfere nas diferentes esferas da vida do sujeito até os nossos dias, principalmente, em um contexto demarcado por uma crise sanitária.

É justamente no modo de vida atrelado a lógica de produtividade que se instaura a recorrente mais-valia no processo de trabalho. Com isso, todo resultado da atividade volta para a produção de capital, numa relação incessante de consumo, troca e venda. As implicações desse ideal definem os comportamentos, hábitos e relações sociais, as quais passam a ser baseadas da mesma forma que se subjuga a força de trabalho, como mercadoria. A educação, o trabalho, as diversas interações engendram um ritmo no modo de vida do sujeito em que é válida a utilização máxima das capacidades produtivas, a coisificação do sujeito e de seus modos de convivência. Algo mencionado por Marx e Engels no Manifesto Comunista (1848/2011), onde expõem que as relações produtivas alteram todos os segmentos da vida social, reduzindo-a a reprodução das relações monetárias.

Em vias do que hoje se vivencia na sociedade, vemos claramente a interferência do sistema socioeconômico nas atitudes dos sujeitos frente à pandemia, atitudes estas que ora ratificam a lógica, ora contrapõem-se. Esse movimento de contradição esteve presente em toda história, com maior ou menor intensidade, mas, mesmo que sucintamente, deslocam zonas de fuga para sua superação. Os ideais humanos se transformam, o próprio sentido de existência e as relações sociais se tornam produtos de prateleira para fins de consumo. Tal sistema vigora em toda sua potência, mas suas contradições parecem se acentuar, em especial, nos momentos de crise (Harvey, 2016; Santos, 2020).

Para David Harvey (2016), em suas análises das obras O capital e os Grundrisses de Marx, as contradições se separam em grandes grupos, o que ele nomeia de contradições fundamentais, contradições mutáveis e contradições perigosas. São estes aspectos que, diluídos nas condições de vida da sociedade em suas diferentes configurações, entram em conflito com o capital. Longe de esgotar a ampla discussão proposta pelo autor, importa destacar que nas contradições fundamentais se concebem as circunstâncias essenciais, sob as quais o capitalismo se sustenta nas diferentes épocas e processos. Nas contradições mutáveis, como o próprio nome revela, alteram seus meios em acordo com o momento histórico-material ao qual está situado. E, por fim, as contradições perigosas que poderiam nos levar à superação da lógica produtivista.

Apesar de não ser nosso interesse esmiuçar a teoria das contradições de Harvey (2016), é importante entender por esses contornos que a problematização da dialética marxista se ancora fortemente na crítica e exposição desses aspectos situados na realidade, porém nem sempre nítidos. De todo modo, a temática das contradições é de interesse de vários autores, já que evidencia os postulados do materialismo histórico-dialético. Visto em Béria (2014), é possível reconhecer contradições concretas que se expressam entre o discurso dominante e a realidade manifesta, em uma relação dialética que alimenta as condições alienantes e de sofrimento dos indivíduos. Na contradição concreta se expõe os excluídos por motivos alheios a suas vontades, na realidade dos fatos. Béria (2014, p. 299) exemplifica: "em uma sociedade que discursa sobre liberdade e igualdade" seja admitido "que uns fossem escravizados [...] como se esse construto fosse natural". Ao transpor isso para a realidade de pandemia pelo novo coronavírus vemos semelhanças nos discursos que evidenciam a naturalização do contágio e das mortes para que a economia fique assegurada, quando, na verdade, tais riscos são assumidos, quase que exclusivamente, pela mão-de-obra dos mais vulneráveis.

O sistema projeta, sobremaneira, nas circunstâncias geradas pelo vírus, a descartabilidade humana, tendo em vista que os "menos produtivos" na ótica do sistema são os mais atingidos: idosos, doentes crônicos, portadores de deficiência em situação de risco, pessoas em situação de rua, por exemplo. Além destes, dentre os considerados "mais produtivos" também há os que, pela condição de estarem dentro de grupos de risco, podem ser substituídos por aqueles que não possuem limitações. Ao assumir como fatalidade a eventual morte dos mais vulneráveis, exime-se a responsabilidade de não fornecer assistência e outros cuidados para que sobrevivam os que conseguem alimentar progressivamente o sistema de produção, juntamente com a classe dominante.

Sobre essa população continuamente excluída e pauperizada, entendemos, conforme Iamamoto (2001), sua produção e reprodução como resultado da divisão em classes da sociedade capitalista, em articulação com relações desiguais de raça, gênero e território que compõem a relação centro-periferia no Brasil. Constitui-se, por um lado, recortes populacionais inaptos a integrar o sistema produtivo, por outro, uma população apta e excluída do processo, que se origina e potencializa no avanço da reprodução do capital. Tal configuração, atrelada ao desenvolvimento tecnológico e científico, possibilita o aumento da produção de mais-valia em um menor intervalo de tempo e, consequentemente, diminui a força humana incluída na produção, originando uma massa de pessoas supostamente supérfluas à reprodução do capital.

Durante a pandemia, percebe-se essa dinâmica de exclusão a partir da análise das medidas de proteção socioeconômicas do Estado brasileiro, como por exemplo o "auxílio emergencial", pautadas em princípios neoliberais. Destarte, constituem-se como garantia de circulação de capital dos que já alimentavam a engrenagem produtivista, ao passo que não é assegurada a proteção econômica dos mais necessitados, já que o acesso a esse direito tem-se demonstrado demorado, burocrático e pouco acessível.

As defesas institucionais, quanto a propagação do vírus, podem ainda nos mostrar outras evidências contraditórias. Destacamos as medidas de contenção da contaminação chamadas de isolamento social horizontal (ou supressão) e vertical (ou mitigação), que expõem nitidamente como agem as diferenças de classe, divisão de trabalho e acumulação de riquezas. Pela medida horizontal, constitui-se a sensação de cuidado coletivo: todos, sem distinção, precisam cumprir as ações de isolamento e distanciamento, mantendo-se somente as atividades produtivas essenciais. Ao verticalizar o isolamento, defende-se estritamente a proteção das pessoas do grupo de risco (idosos, pessoas com doenças crônicas, dentre outros), no entanto, o risco de contaminação e morte pode aumentar exponencialmente tanto à população geral quanto ao segmento supostamente protegido (Schuchmann et al., 2020).

O Estado brasileiro, juntamente a setores produtivos, tem demonstrado tendência à verticalização das medidas de isolamento, em contrapartida às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e às experiências positivas na contenção do número de mortes em países que adotaram a supressão (Schuchmann et al., 2020). As ações mais restritivas, tal como o isolamento horizontal, entretanto, mostram-se como as principais inimigas da lógica capitalista, por gerar ruptura abrupta às relações de mercado. Mudanças drásticas naquilo que até então estava naturalizado, nos diferentes setores, classes e relações, à nível de comprometer o andamento normativo do ciclo de produção.

A falta de procura por alguns serviços e produtos nesse novo contexto tem gerado inconsistências que resultam em medidas radicais. Se aos grandes empresários torna-se válida a demissão em massa, narrada como única alternativa, aos trabalhadores resta, muitas vezes, procurar funções possíveis de serem exercidas. Além disso, a busca pela abertura do comércio por trabalhadores - às custas de sua própria saúde - exemplifica o quadro de vulnerabilidade social e descartabilidade da vida.

Outras funções se sobressaem e ganham força nesse contexto, como é o caso das modalidades de trabalho remoto (home office). Com isso, aparecem novas formas de exploração e precarização do trabalho a partir do maior entrelaçamento da vida pública e privada, dos momentos de lazer e das atividades laborais. Atua como fator limitante o próprio território de moradia - tendo em vista a infraestrutura e tecnologias demandadas pelo trabalho remoto (Silveira, Rossi, & Vuono, 2020) - bem como o manejo das atividades domésticas e familiares, evidenciando desigualdades de gênero que persistem e afetam a produtividade feminina.

Está claro, contudo, que é nos momentos de crise que a aparente solidez e ordem do sistema socioeconômico vigente é posta em questionamento, em uma situação onde milhares de pessoas estão sob o risco iminente de contágio e morte, ou reféns de condições ainda mais precárias de existência. Lukács (2003) expõe que as questões subjacentes em meio à crise abrem possibilidades para a superação das contradições ou sua eliminação, por evidenciar tendências reais do processo societário, convocando assim as pessoas à ação consciente e coletiva.

Em função do limiar da alienação e conformação que se sustenta no capitalismo, destacamos estratégias de cuidado e enfrentamento produzidas por indivíduos, movimentos sociais e coletivos diversos, tidos como "redes de solidariedade", em prol do outro que se encontra de alguma forma vulnerável. A seguir, examinaremos essas práticas comunitárias e leituras de sua atividade no que se refere à possibilidade de tensionamentos ao projeto capitalista.

 

Comunidades em resistência ao Covid: solidariedade em questão

Para refletir sobre as práticas solidárias emergentes é preciso compreendê-las situadas no plano materialista histórico-dialético. Partimos do pressuposto que enquanto práxis humana a solidariedade se faz na objetivação, fundada pela ação de satisfazer necessidades de existência. Nesse caso, conforme aponta Bertucci (2010) a solidariedade torna-se um meio de resistência da classe trabalhadora aos processos de precarização de suas condições de vida. Em complemento, encontramos em Germano (2007) que a solidariedade pressupõe o estabelecimento de laços de identidade, pertencimento e interesses, dizendo da potencialização de um sentimento de nós e de responsabilidade para com o outro.

Em face a esses aspectos, é preciso apontar que momentos de catástrofes são potencializadores de uma sensibilidade solidária sem que necessariamente haja vínculo efetivo entre grupos e sujeitos, em contraposição à sensibilidade frente às estruturas sociais que perduram sistemas de opressão (Germano, 2007). Neste tópico discutiremos, então, dois eixos em relação dialética: as práticas solidárias e a emergência de um sentido de comunidade no contexto de pandemia. De antemão, reconhecemos que essas práticas solidárias aparecem como uma tentativa de enfrentamento às condições desiguais de acesso aos bens e serviços básicos, evidenciando a insuficiência do Estado em suprir essas necessidades. Contudo, convém indagarmos: estariam essas ações promovendo mudanças efetivas no tensionamento a realidade ou apenas ratificando esse modo de produção opressor?

Recordamos que ações solidárias semelhantes às que observamos hoje no contexto da pandemia já vinham sendo realizadas em outrora como forma de lidar com as múltiplas expressões da questão social, inclusive conduzidas por ideais capitalistas, principalmente, na captação de força de trabalho para compor o quadro produtivo de atividades subalternas (Coutinho, 2005). No decorrer do século XX, no contexto brasileiro, as práticas desenvolvidas por instituições religiosas, filantrópicas, organizações não-governamentais (ONG's) e o voluntariado de forma geral, os que compõem o chamado terceiro setor, surgem como uma resposta ao contexto de precarização que assola grande parte da população e oferecem algumas soluções aos problemas sociais (Iamamoto, 2001).

Contudo é importante frisar que muitas têm suas ações alimentadas numa interdependência, tanto com o Estado quanto com empresas privadas que balizam as práticas aos seus reais interesses. Isto é, importa reconhecer que essas ações podem estar atreladas a pelo menos dois caminhos ideológicos distintos: em uma perspectiva assistencialista/caritativa, vinculado a um caráter moralista, pontual e que retroalimenta os interesses neoliberais; ou, num posicionamento crítico-reflexivo que, através da conscientização, prima pela garantia de direitos e visa promover a transformação social.

Em tempos de pandemia é perceptível que as ações solidárias são recorrentes, como forma histórica materializada das ações humanas, cujas posições ético-políticas podem apontar tanto para negação quanto para afirmação dos preceitos do sistema capitalista. Contudo, um novo problema se coloca: é possível pensar nessas práticas, até então pontuais, como inspiradoras de transformações sociais?

Na tentativa de tecer alguns comentários a esse respeito, apontamos a noção de comunidade como um lócus articulador para o desenvolvimento de estratégias que promovam a conscientização. Com isso, é pertinente problematizar de que forma compreendemos a organização comunitária e a que ponto as ações de solidariedade empreendidas nesse contexto tornam-se efetivas no tensionamento à realidade pandêmica.

A ideia de comunidade ganha visibilidade a partir das reflexões acerca do humano em sociedade, sobretudo no embate entre os ideais coletivistas e individualistas. Sendo seu conceito complexo, polissêmico e controverso, passando por diferentes leituras de acordo com as transformações do mundo e dos contextos histórico-locais. Inclusive, apresenta conceituação que remete a um sentido próximo das noções de solidariedade expressadas no preâmbulo deste tópico, algo que nos permite destacar a convergência dessas duas noções. O sentimento de solidariedade, nessa perspectiva, pode ser aspecto ordenador das relações e da própria constituição de comunidade, como também, fruto desse contexto.

Sob essa égide, o pensamento marxista influenciou na compreensão de comunidade à medida em que prega a necessidade da luta em prol de um bem comum para a classe trabalhadora, ou seja, visa a construção de uma "ética da vida social digna e justa" (Sawaia, 1996, p. 42). A noção de comunidade, a partir desse pressuposto teórico, passa a ser considerada como esse lugar que reúne a classe trabalhadora, os agentes capazes de promover mudanças sociais. Com isso, o conceito ganha uma perspectiva transnacional e aponta para a potência revolucionária de irradiar mudanças em um nível macropolítico (Svartman & Galeão-Silva, 2016).

Todavia, cabe ressaltar que essa compreensão não deve ficar presa a uma noção de unidade ou uniformidade, como se a comunidade fosse um local sem contradições e homogêneo. Pois, representa um espaço intermediário entre o indivíduo e a sociedade, lugar de convivência mais direta entre os sujeitos (Sawaia, 1996; Montero, 2004), em que "estão presentes fortes contradições, conflitos, resistência, solidariedade e esperança" (Góis, 2008, p. 82). A despeito da polêmica em torno da temática, não podemos perder de vista que:

Pensar o conceito de comunidade fora de um pequeno espaço físico-social peculiar (território) de uma sociedade é ampliá-lo demasiado para compreendê-la nos processos mais diretos de uma cotidianeidade próxima, a qual afeta diretamente aos indivíduos que ali vivem e que, por isso, podem intervir quase que imediatamente nela. (Góis, 2005, p. 70)

Na ampliação do entendimento de comunidade, Montero (2004), por sua vez, chama atenção para a necessidade de pensar a comunidade como um sentimento, e não só como um lugar. Sobre isso ela escreve:

la comunidad supone relaciones, interacciones tanto de hacer y conocer como de sentir, por el hecho de compartir esos aspectos comunes. Y esas relaciones no son a distancia, se dan en un ámbito social en el cual se han desarrollado histórica y culturalmente determinados intereses o ciertas necesidades; un ámbito determinado por circunstancias específicas que, para bien o para mal, afectan en mayor o menor grado a un conjunto de personas que se reconocen como partícipes, que desarrollan una forma de identidad social debido a esa historia compartida y que construyen un sentido de comunidade. (p. 95)

Diante disto, podemos pensar a comunidade como um grupo social dinâmico, histórico e culturalmente construído, desenvolvido e em evolução. O grupo compartilha interesses, objetivos, afetos, necessidades e problemas num espaço e tempo determinados que propiciam coletivamente uma identidade. A existência do sentido de comunidade gera um sentimento de pertença e de importância mútua do qual nos apropriamos e que nos apropria, em um movimento dialético. É o ponto de encontro entre os interesses pessoais e os coletivos articulados na perspectiva de uma ética do bem comum que só pode se efetivar na luta contra o que a impede, ou seja, através da conscientização e enfrentamento às estruturas sociais desiguais (Góis, 2005, 2008; Montero, 2004; Svartman & Galeão-Silva, 2016).

No contexto pandêmico, somos obrigados a reconhecer que nossas ações repercutem no outro, bem como as ações dos outros reverberam em nós. Isso tem mobilizado esforços para uma ação solidária em prol de um bem comum. Constata-se que a atividade comunitária tem possibilitado micro transformações, ainda que restritas ao nível local, através da ação conjunta, da solidariedade e da cooperação. Como apontado por Góis (2005, p. 68), a comunidade "reflete a sociedade e, ao mesmo tempo, se diferencia dela, em função de suas particularidades". É no interior das relações comunitárias que observamos o jogo de forças antagônicas e os movimentos de resistência que revelam sua potência no território.

No Brasil, o combate à pandemia tem encontrado obstáculos para atingir todas as camadas da população. Na periferia, por exemplo, intervenções básicas que auxiliam a prevenção e promoção da saúde se mostram falhas ou quase inexistentes, escancarando dificuldades em realizar orientações, isolamento social e medidas sanitárias (Calmon, 2020). Este é um dos motivadores principais para a reação das populações subalternas, que desemboca nas ditas ações solidárias.

Essas práticas têm sido recorrentes ao envolver cada vez mais a sociedade, inclusive os mais afetados pela crise. A mídia tem colocado em exposição diferentes iniciativas que vêm ocorrendo em todo o país. Evidenciamos as notícias veiculadas como meio de expressar aspectos determinados da realidade que, ao mesmo tempo que bebem do concreto, contribuem para sua modificação. Dessa forma, compreendemos tais representações como vertentes de exposição das relações materiais a serem discutidas.

O portal G1(2020), por exemplo, realizou no dia 13 de maio do corrente ano uma matéria sobre a iniciativa de uma família residente de um bairro periférico da cidade de Natal/RN que passou a produzir e disponibilizar gratuitamente máscaras de proteção para prevenir a comunidade do contágio. Para isso, utilizam de capital próprio ou doações de terceiros para sua continuidade. Essas máscaras eram distribuídas num período em que houve uma alta nos preços e escassez no comércio, impossibilitando a aquisição dos equipamentos pela população mais vulnerabilizada. Em face a esta situação, os sujeitos são convocados a pensar sobre suas capacidades na construção da realidade como resposta consciente às necessidades identificadas no dia-a-dia da comunidade.

Por outro lado, observa-se a apropriação dessa atividade, a exemplo da produção de máscaras, pela dinâmica de mercado. Se ampliarmos em relação dialética, entendemos como uma oportunidade encontrada não somente pelas pessoas que perderam seus empregos na pandemia, para assim continuar sobrevivendo aos ditames econômicos, mesmo exercendo um trabalho autônomo e pontual, mas também por empresas privadas que buscam mão-de-obra lucrativa a fim de deter o monopólio de uma produção em larga-escala (Oliveira & Stampa, 2018). Aspecto este que se intensificou pela obrigatoriedade do uso de máscaras, tornando-se um produto indispensável. Essa condição demonstra o modo no qual o capitalismo se reestrutura através dos ordenadores que nascem de suas contradições e encontra espaço para se afirmar por meio da alienação do trabalhador.

Portanto, a partir do exposto, percebemos que no interior de uma atividade já recorrente antes da pandemia, como a prática de costura, a ação solidária emerge em um confronto entre a necessidade do uso de máscara versus a existência de pessoas que não podem adquiri-la, sendo esse o principal contraponto à relação capitalista do trabalho. Esse impasse contribui para a construção de novas lógicas de convivência e compromisso social a ponto de envolver novos agentes da comunidade.

Nessa direção, o site de notícias Brasil de Fato (Sudré, 2020), em matéria do dia 23 de março de 2020, expõe que moradores de regiões periféricas de São Paulo estão desenvolvendo, de forma auto-organizada, ações de conscientização e campanhas de arrecadação de alimentos e produtos de higiene nas comunidades. A iniciativa emerge a partir da percepção dos residentes de que os maiores afetados serão os mais pobres, bem como de que lhes faltam informações básicas acerca da prevenção. Tal fato resultou na criação do Comitê Popular de Enfrentamento a Covid-19 cujas premissas são socializar informações sobre prevenção e distribuir os materiais arrecadados nos territórios periféricos. Essas ações resgatam o sentido autêntico do trabalho enquanto atividade consciente e teleológica e o direcionam para uma possível superação das condições materiais postas (Lukács, 2013; Marx, 2004).

Tais atitudes não são exclusivas de uma única região do país, mas se expressam em diferentes localidades de modo semelhante. Por não se caracterizarem como casos fortuitos, essas ações demonstram como a consciência coletiva tem ganhado força a ponto de se tornarem propostas cada vez mais organizadas e gerenciadas sobre o meio. As redes de solidariedade, associações de bairros, igrejas, grupos comunitários e sindicatos podem atuar para que as ações não tenham início e fim em si mesmas, mas venham a se expandir e envolver outras camadas da sociedade.

Não obstante, convém mencionar o papel dos movimentos sociais consolidados que encontram respaldo no contexto atual, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o maior movimento social da América Latina na luta pela reforma agrária (Baldi & Orso, 2013). Neste momento a entidade tem se organizado a nível nacional e local no combate à insegurança alimentar e fornecimento de insumos em saúde através de movimentos solidários, conforme matéria do dia 07 de maio de 2020 publicada no site do MST (Tarlau, 2020). Os assentados situados em pequenas cidades organizam, em parcerias com outros movimentos, ações direcionadas à população em vulnerabilidade, como a doação de alimentos produzidos na agricultura familiar e a manutenção de clínicas de saúde comunitária por todo o país.

O movimento soma em suas atividades momentos de debate e reflexão sobre a conjuntura, postula uma organização social que propositalmente nega a lógica da propriedade em contexto rural e atua na direção de construir novas relações de mundo em derrubada ao capital. O encontro junto às comunidades se mostra potente por promover uma aproximação com o próprio MST, conectando interesses à medida que os sujeitos da comunidade reconhecem pessoas semelhantes a si - que em um determinado momento foram privadas de direitos básicos - desempenhando agora ações em seus territórios. Isto é, se constitui uma relação horizontalizada que rompe com o modus operandi de solidariedade comumente praticado, em que as ações voluntárias tendiam a advir de camadas de maior poder aquisitivo.

A partir das três notícias descritas neste artigo, vislumbramos o desenvolvimento das práticas solidárias em diferentes circunstâncias dentro de comunidades e, apesar das eventuais limitações informacionais sobre os fatos narrados, alguns dos aspectos são passíveis de problematização. Na primeira, o movimento se concebe de um único núcleo familiar para o entorno fora dele, organizando uma prática solidária (produção e distribuição de máscaras) que se efetiva no encontro dos sujeitos que ali residem - inclusive desconhecidos -, firmando novas relações sociais que circulam no próprio território comunitário.

A segunda notícia exemplificou diferentes sujeitos em mobilização em uma iniciativa que se torna ainda mais abrangente pela identificação de outras demandas e possibilidades de ação no contexto comunitário, principalmente na organização das ações a partir de comitê próprio. E, por fim, a ação do MST se configura como um movimento organizado que parte para intervenções entre comunidades (de assentamentos a territórios comunitários diversos), as quais possuem estruturas sociais já firmadas. Nesses contextos, promove ações que não somente tentam sanar as dificuldades materiais dos sujeitos, mas produzir neles efeitos de conscientização sobre a realidade na busca de construir alternativas para modificá-la.

Frente a esse estado de coisas, mesmo que haja o despertar ou o reforço de atividades que visam o desenvolvimento de uma consciência coletiva, isso não significa que as ações por si só produzam mudanças permanentes ou suficientes para desmantelar a lógica produtiva vigente. Porém, causam estranhamentos que podem levar os indivíduos a refletirem sobre suas ações e sobre os impactos na coletividade. Todavia, somente em estudos vindouros poderemos analisar o que de fato, em meio ao Covid-19, resultou em conscientização e rupturas com um sistema cada vez mais enrijecedor das capacidades humanas.

 

Considerações finais

Em tempos de Covid-19, os modos de vida dos brasileiros vêm sendo afetados por conta da disseminação do vírus, bem como pela resposta do Estado através de decretos, como os de isolamento social. O momento expõe que o modelo de produção capitalista não é capaz de suprir as necessidades humanas básicas de todos, ao contrário, na crise, aprofundam-se as desigualdades sociais. Como reflexo, a quantidade de atingidos vai muito além dos contaminados pela doença, já que atinge de forma sistemática a cadeia produtiva do país. Soma-se a tragédia de mortos em decorrência do vírus: o número de pessoas desempregadas, trabalhadores informais que perderam suas rendas, as novas formas de exploração do trabalho, aqueles que já se encontravam na pobreza antes da pandemia e a incapacidade do Estado em garantir a proteção social básica para todos.

Em face a essa situação, observa-se o aparecimento de práticas, por todo o Brasil, descritas pela mídia como redes de solidariedade, as quais se constituem como iniciativas que visam auxiliar quem se encontra em situação de vulnerabilidade social. Dentro do contexto comunitário, essas ações nos levam a refletir sobre os modos de enfrentamentos desenvolvidos por esses indivíduos ou coletivos ao utilizar suas potencialidades e força de trabalho. Contudo, evidenciamos que tais práticas, em algumas circunstâncias, são erigidas não com a finalidade de obter lucro, mas em prol de um bem-estar comum.

A potência das resistências comunitárias está no fato de que as pessoas, ao conviverem em um certo contexto com características e condições específicas - como os efeitos do novo coronavírus -, têm desenvolvido formas de enfrentamento e desejam empenhar mudanças. Uma tomada de consciência que expõe que em uma situação que assola as grandes massas, somos convocados a pensar sobre nossa capacidade de construir o futuro em resposta às necessidades cotidianas. As ações de conscientização, de fabricação e doação de máscaras, arrecadação de alimentos e manutenção de clínicas de saúde comunitárias, discutidas no texto, exemplificam propostas interventivas cada vez mais comum no contexto de enfrentamento coletivo à pandemia que tensionam as relações individualistas do capitalismo.

Não obstante, estes exemplos serviram de ponte para retomar a discussão acerca da condição ontológica do trabalho, como uma ação consciente que conduz a relação dialética do ser humano na transformação de si e de seu meio. Isto é, por um lado, tais práticas demonstram indícios de um contraponto à condição de alienação desencadeada pelos ditames do sistema produtivista, e o trabalho - aqui reconhecido no seio das práticas solidárias - torna possível ao sujeito projetar suas ações no sentido de se comunicar e aprimorar as condições de sobrevivência (Marx, 2004). Por outro lado, não estão imunes ao processo alienatório, podendo inclusive, contribuir ativamente com a engrenagem de mercado a partir da monetarização de suas atividades, ou mesmo se expressar em meio às desigualdades do sistema produtivo como ações superficiais que tendem a mascarar e não sanar a insuficiência do Estado capitalista.

Sendo assim, entende-se que essas atividades estão passíveis a um constante processo de reorganização, tanto em função da estrutura macroeconômica que as permeia, quanto pelo caráter transitório do contexto no qual se constituem, de crise sanitária, política e econômica. Somente em um decurso histórico-material futuro poderemos efetivamente perceber a permanência ou não das mobilizações e seus eventuais desdobramentos.

 

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Recebido em: 19/07/2020
Aprovado em: 11/11/2020

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