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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021

 

ARTIGO

 

Biopoder, necropolítica e a oferta de serviços psicológicos remotos em tempos de pandemia

 

Biopower, necropolitics and the offer of remote psychological services in times of pandemics

 

Biopoder, necropolítica y la oferta de servicios psicológicos a distancia en tiempos de pandemia

 

 

Luís Fernando de Oliveira SaraivaI; Dailza PinedaII; Thaís Seltzer GoldsteinIII

IMestrado e Doutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo / luisfos@uol.com.br
IIGraduação e Mestrado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo /dailzapineda@gmail.com
IIIDoutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo / gold.thais@gmail.com

 

 


RESUMO

Diante da pandemia de Covid-19, parece ter crescido a oferta de serviços psicológicos remotos, tanto de iniciativas individuais, quanto coletivas e institucionais, visando ao cuidado e atenção frente aos efeitos produzidos pela atual conjuntura. Nesse contexto, este artigo objetiva compreender lógicas presentes na organização e oferta desses serviços, buscando captar forças medicalizantes e despolitizantes, cotejando possíveis efeitos no cuidado das pessoas. Para tanto, realiza levantamento bibliográfico da produção da psicologia brasileira sobre a pandemia e a análise do discurso foucaultiana das apresentações de nove serviços psicológicos surgidos nesse momento, considerando suas missões, objetivos, públicos-alvo e concepções a respeito da pandemia que os lastreiam. Percebe- se que hegemonicamente os serviços consideram a pandemia um acontecimento biológico, produtor de sofrimentos e transtornos psíquicos, de forma a ofertarem atendimentos que busquem a adaptação das pessoas, desconsiderando o contexto e particularidades da condução da pandemia no Brasil e apoiando-se em valores do filantropismo e voluntarismo.

Palavras-chave: Atendimento psicológico; Pandemia; Medicalização; Biopoder; Análise do discurso.


ABSTRACT

In view of the Covid-19 pandemic, the offer of remote psychological services seem to have increased, both individual, collective and institutional initiatives, aiming at providing care and attention to the effects produced by the current situation. In this context, this article aims to understand logics present in the organization and offer of these services, seeking to capture medicalizing and depoliticizing forces, comparing possible effects on people's care. Therefore, it carries out a bibliographical survey of the production of Brazilian Psychology on the pandemic and the analysis of the Foucaultian discourse found in nine psychological services presentations that emerged at that time, considering their missions, objectives, target audiences and conceptions about the pandemic that underpin them. It is noticed that the majority of the services consider the pandemic a biological event, producing suffering and psychological disorders, in order to offer services that seek people's adaptation, disregarding the context and particularities of the conduct of the pandemic in Brazil and relying on values of philanthropism and volunteerism.

Keywords: Psychological care; Pandemic; Medicalization; Biopower; Discourse analysis.


RESUMEN

Ante la pandemia de la Covid-19 parece haber aumentado la oferta de servicios psicológicos a distancia, tanto por parte de iniciativas individuales como colectivas e institucionales, pretendiendo el cuidado y atención frente a los efectos producidos en la actual coyuntura. En este contexto, el artículo pone el foco en comprender las lógicas presentes en la organización y oferta de esos servicios, buscando captar fuerzas que medicalicen y despoliticen, cotejando posibles efectos en el cuidado de las personas. Para ello, realiza el análisis bibliográfico de la producción de la psicología brasileña sobre la actual pandemia y el análisis del discurso foucaultiano de las presentaciones de nueve servicios psicológicos surgidos en este momento, considerando sus misiones, objetivos, público destinatario y concepciones respecto a la pandemia que los lastra. Se percibe que hegemónicamente los servicios consideran la pandemia un acontecimiento biológico, generador de sufrimientos y trastornos psíquicos, encaminados a ofrecer servicios de atención que busquen la adaptación de las personas, sin considerar el contexto y las particularidades de la conducción de la pandemia en Brasil y apoyándose en valores filantrópicos y de voluntariado.

Palabras clave: Atención psicológica; Pandemia; Medicalización; Biopoder; Análisis de discurso.


 

 

Apresentação

Diante da pandemia de Covid-19, parece ter crescido a oferta de serviços e atendimentos psicológicos remotos, tanto de iniciativas individuais, quanto coletivas e institucionais, muitas vezes com caráter voluntário e gratuito, visando ao cuidado e atenção frente aos efeitos produzidos pela atual conjuntura. O distanciamento/isolamento social, a convivência cotidiana em quarentena, a mudança das rotinas, o medo do contágio, as perdas - de pessoas, do trabalho, da vida existente até poucos meses atrás -, o desgaste no enfrentamento da pandemia, sobretudo pelos profissionais da chamada linha de frente, são algumas das situações que demandariam cuidado psicológico.

A Organização das Nações Unidas (ONU, 2020) aponta o aumento de sintomas como depressão, ansiedade e insônia - especialmente entre profissionais da saúde da linha de frente -, da sobrecarga de mulheres, da vulnerabilidade de crianças e do consumo de álcool. Tal cenário se agrava pela interrupção de serviços de saúde mental - o que gerou recomendação do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2020) para a realização de ações de atenção em saúde mental, tanto aos trabalhadores da saúde, quanto à população em geral.

As mudanças ocasionadas pela pandemia mereceram a atenção do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2020a, 2020b), na alteração das regras para o cadastro de atendimentos on-line, a fim de facilitar que profissionais pudessem oferecer tal modalidade de atendimento em conformidade com a legislação profissional. Ocorreu o mesmo na orientação a profissionais frente ao trabalho voluntário, ressaltando-se que a divulgação de serviços não deve fazer referência a valores nem à gratuidade. Em suas orientações, o CFP parece se ater a aspectos técnicos, pouco colocando em questão aspectos ético-políticos da atuação profissional, tais como os propósitos dos serviços - para além de "contribuir para que a sociedade coloque em prática as medidas de prevenção preconizadas pelo Ministério da Saúde e pelas demais autoridades (municipais, estaduais, federal), sendo a principal medida a realização de quarentena" (2020b) - e efeitos de novas montagens dos atendimentos. Outra ação do CFP deu-se diante da Portaria nº 639/2020 do Ministério de Saúde (2020), que criou a Ação Estratégica "O Brasil Conta Comigo - Profissionais da Saúde", voltada à capacitação e ao cadastramento de profissionais da área de saúde - dentre eles, psicólogas(os) -, para o enfrentamento à pandemia, de modo centralizado pelo Ministério. A notícia de que o cadastramento seria obrigatório gerou preocupações na categoria, implicando em posicionamentos e ações da autarquia que redundaram em orientações para a tranquilizar (CFP, 2020c).

Nesse contexto, torna-se premente compreender o que vem lastreando os serviços psicológicos surgidos durante a pandemia, a fim de lidar com os efeitos dela. É de se imaginar que tais iniciativas compreendam a pandemia e seus efeitos de diferentes maneiras, o que, possivelmente, impactará na montagem e objetivos de cada serviço. Partimos da hipótese de que muitos desses serviços são organizados a partir de uma lógica medicalizante, que despolitiza e psicologiza questões sociais e coletivas, pouco articulando sua oferta a um contexto de saúde pública e a afirmando a partir de valores de voluntarismo e de filantropia. Este artigo visa a compreender a lógica presente na organização e oferta desses serviços, buscando captar a interferência de forças medicalizantes e despolitizantes, cotejando possíveis efeitos no cuidado das pessoas. Para tanto, situaremos as recentes publicações que abordam contribuições da Psicologia ao enfrentamento da pandemia em um contexto biopolitizante, para, em seguida, analisarmos serviços psicológicos surgidos durante esse momento.

 

Daquilo que não se diz: a crise não começa com a Pandemia

Na obra "A cruel pedagogia do vírus", o sociólogo português Boaventura Sousa Santos (2020) problematiza a ideia de que a pandemia da Covid-19 seria uma crise contraposta a uma suposta situação de normalidade, anterior a ela. Para tanto, ele usa o termo "normalidade de exceção", associando-o aos desdobramentos neoliberais do sistema capitalista, que se rendeu progressivamente ao setor financeiro, desde a década de 1980 e empurrou diversos estados à adoção de políticas de austeridade, com cortes nas políticas sociais e nos salários, sob o argumento da necessidade de enfrentar a crise; crise esta que, no entanto, nunca passa. O objetivo da "crise permanente", afirma o autor, é nunca ser resolvida, já que ela serve para justificar a perpetuação das desigualdades sociais (uma vez que o Estado privilegia salvar os bancos e não, a população), e isentar o Estado da responsabilidade de impedir - ou mesmo atenuar - a iminente catástrofe ecológica produzida pelo próprio funcionamento predatório do capitalismo. Essa crise permanente parece ter sido escancarada com o vírus que, como "a outra face da morte que reina", teria nos colocado "ao pé da encruzilhada que tacitamente estruturou a [nossa] existência: economia ou vida" (Monólogo do vírus, 2020). Algo que remete às articulações entre biopoder e racismo.

Na transição para a Modernidade, Foucault (1999) percebe uma transformação na maneira como o poder do Estado se configura: se até então o poder soberano se exercia ao tirar a vida - e fazer morrer -, com a formação dos Estados Modernos, passa a dominar um poder que busca controlar a vida, mantendo-a, prolongando-a, majorando suas forças, suspendendo a morte que precocemente alcançava populações desprovidas de saneamento básico, redes de transporte e abastecimento, segurança pública etc. Ou seja, a presença de ações estatais configura também um exercício do biopoder por meio das tecnologias de sustentação e prolongamento da vida - de modo progressivamente disciplinar e regulamentador. No exercício de fazer viver, o racismo seria "o meio de introduzir, afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve viver" (p. 304), permitindo estabelecer uma relação positiva com a morte, de tal forma que "a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura" (p. 305).

A necropolítica, conforme Mbembe (2016), é justamente a materialização dessa relação positiva com a morte, pela qual o Estado adota políticas para a morte, de forma a conduzir determinadas pessoas à morte. Trata-se de situações nas quais a ideia de paz fica oficialmente atrelada à guerra, havendo uma base normativa para que o Estado exerça o direito de fabricar e usar tecnologias de morte, sob pretexto de combater o mal e eliminar aqueles que considera seus inimigos internos, seja por meios diretos e intencionais, seja pelo abandono à própria sorte. Nesse sentido, Almeida (2019) destaca que "a justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade. Diante disso, a lógica da colônia materializa-se na gestão praticada pelos Estados Contemporâneos, especialmente nos países na periferia do capitalismo" (p. 125).

Essas são ideias fundamentais para refletirmos sobre a condução da pandemia em nosso país. Afinal, a pandemia parece ganhar outros relevos no contexto brasileiro. Estamos no início de dezembro de 2020 com quase 173 mil mortos e mais de seis milhões de infectados no Brasil, de acordo com os números oficiais divulgados pelo Ministério da Saúde. Testemunhamos, dia após dia, a normalização dos riscos de contágio, a morte em massa, além de políticas irresponsáveis de reabertura precoce de comércio e serviços, ocorridas com curvas de contágio e de mortes que continuavam crescentes ou, quando muito, estabilizadas em números alarmantes. Como veremos adiante, tais situações parecem passar despercebidas pela Psicologia brasileira e pelos serviços psicológicos.

 

A Psicologia em tempos de pandemia

Já é possível encontrar uma produção acadêmica da Psicologia brasileira sobre a pandemia de Covid-19 e seus efeitos. Examinados artigos disponíveis na Scielo, a maioria parece coadunar com aquilo que Linhares e Enumo (2020) sintetizam, ao discutir os efeitos do isolamento no ambiente familiar no desenvolvimento infantil: "de forma inquestionável, a pandemia da Covid-19 ameaça a saúde física e mental da população na contemporaneidade" (p. 1).

Grande parte das referências apoia-se na análise de dados relativos à ansiedade, estresse, medo e depressão em decorrência da pandemia produzidos por outros estudos científicos (Crepaldi, Schmidt, Noal, Bolze & Gabarra, 2020; Schmidt, Crepaldi, Bolze, Neiva-Silva & Demenech, 2020; Zanon, Dellazzana-Zanon, Wechsler, Fabretti, & Rocha, 2020). Partindo de resultados obtidos em outros países, esses artigos parecem desconsiderar as particularidades do contexto brasileiro, nos aspectos político, social, econômico, além da constante precarização e desmonte do nosso Sistema Único de Saúde.

Schmidt et al. (2020) buscaram indicar possibilidades e desafios para as intervenções psicológicas no cenário atual, enfatizando intervenções psicoeducativas, de caráter informativo e que visem à promoção de bem-estar e à minimização de efeitos negativos da pandemia. O grande desafio identificado diz respeito às dificuldades de acesso à internet, pela população, e à possibilidade de baixa adesão dos profissionais da saúde aos cuidados psicológicos, muitas vezes considerados secundários. Por sua vez, Zanon et al. (2020) apresentam contribuições da Psicologia Positiva, apostando no desenvolvimento de resiliência, por meio da incorporação de ações que envolvam autocompaixão, criatividade, otimismo e meditação. Em ambas as referências, é visível que a aprendizagem é colocada como central, para que as pessoas possam lidar com as próprias emoções e possíveis sofrimentos, a fim de se adaptarem ao mundo e suas contingências, o que é explicitado na cartilha produzida por Enumo, Weide, Vicentini, Araujo e Machado (2020) e Weide, Vicentini, Araujo, Machado e Enumo (2020). Complicações para o processo de luto e elaboração de sentido para as perdas são trazidas por Crepaldi et al. (2020), diante da impossibilidade de realização de rituais funerários, como velórios e enterros.

Apenas duas referências analisam o contexto e os dados brasileiros. Costa (2020) buscou identificar a percepção de risco de contágio pelo novo coronavírus. Constata que a percepção de suscetibilidade foi maior entre as pessoas que usam transporte público e os mais pobres, que também veem os sintomas como mais severos. Já Do Bu, Alexandre, Bezerra, Sá-Serafim e Coutinho (2020) buscaram apreender representações sociais relacionadas à Covid-19 em diferentes contextos sociais brasileiros, identificando que a gênese dessas representações é marcada por preocupações referentes à sua disseminação e às implicações psicossociais e afetivas, enquanto as representações do tratamento enfatizam a remissão ou a amenização dos sintomas causados pela doença. Finalizam, alertando para possíveis riscos de generalizações sobre os impactos subjetivos da pandemia, destacando que as experiências podem permitir apreensões múltiplas, mesmo em um contexto massivo como este.

De um modo geral, pode-se dizer que as produções da psicologia brasileira não consideram a crise da pandemia de Covid-19 em sua relação com outras crises (social, política, econômica e ambiental), tampouco o fato de que inseguranças e incertezas já povoavam a vida de milhões de brasileiros, antes mesmo do início da pandemia, sendo por ela melhor visibilizadas e agravadas. Revela-se um discurso psicológico despolitizado e descontextualizado em termos históricos e sociais: é como se apenas a pandemia fosse o problema em si, e não, a sua gestão nem os contextos populacionais concretos em que ela se dissemina. Há, ainda, uma preocupação com a condição de saúde mental dos profissionais de saúde, a qual, em momento algum, é associada às condições de trabalho costumeiramente precarizadas na saúde pública, especialmente após a ascensão de políticas neoliberais na gestão pública. Partindo de dados e discussões internacionais, não necessariamente condizentes com o contexto brasileiro, grande parte das referências tende a operar na lógica da generalização e da universalização dos fenômenos e das respostas dos sujeitos a eles.

Destacamos o fato de as produções, hegemonicamente, terem como foco a necessidade de adaptação dos sujeitos a seu contexto, sem que, entretanto, analisem criticamente o que produz seus sintomas e "desadaptações". Há, assim, uma indicação para que o problema seja meramente aplacado. Neste sentido, caberia à Psicologia disponibilizar instrumentos para os sujeitos permanecerem bem, sobretudo em momentos como este, em que a busca do almejado bem-estar contínuo se apresenta ameaçada. À ideia desse bem-estar como um constructo individual, associa-se à de saúde mental, como se esta também estivesse sob o controle de cada um, com as próprias capacidades individuais de lidar com as intempéries e empreender o bem-estar.

 

Método

Entendemos o método como um modo de olhar que constitui os estudos e seus resultados desde o início. Assim, presumimos que o recorte que fazemos acerca de nosso objeto de estudo é invariavelmente intencionado e ativo. Uma vez que "o conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se encontra situado... seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que não fosse obrigatoriamente parcial, oblíquo, perspectivo" (Foucault, 1973/2003 p. 25).

Baseados no conceito de Foucault (1970/2006), depreendemos que o discurso se faz como jogo de forças. O modo como se diz algo - o que se mostra, os pressupostos e tensionamentos que se travam ao dizê-lo e, ainda, o que não se diz - produz efeitos concretos na realidade, configura lugares sociais e modos de subjetivação. De tal forma que o discurso não é apenas um conteúdo de fala, mas tudo aquilo que diz, no que mostra, oculta e dispõe, ou seja, discurso é exercício.

Visando a compreender lógicas presentes na organização e oferta de serviços psicológicos remotos surgidos durante a pandemia para lidar com os seus efeitos, serão analisados nove serviços, a partir da autoapresentação que fazem. Tais serviços foram selecionados a partir dos seguintes critérios: (a) terem sido divulgados aos autores, logo no início da pandemia no país, entre os meses de março e maio, por meio de seus contatos pessoais e profissionais, principalmente por meio de aplicativos e plataformas sociais virtuais largamente difundidas como Whatsapp, Instagram e Facebook; (b) terem sido localizados em sítios de busca a partir do cruzamento dos termos "atendimento psicológico", "serviço psicológico", "psicoterapia" e "pandemia"; (c) terem surgido durante a pandemia; (d) contarem com fonte própria (como sítio ou perfil em rede social); (e) oferecerem atendimentos psicológicos a públicos diversos; (f) terem caráter de serviço e não, de conglomerado de profissionais.

A partir da análise da apresentação que os serviços fazem de si mesmos, quer dizer, do discurso que (re)produzem, pretende-se identificar o que oferecem, a quem se destinam e como atendem, buscando também compreender como eles se articulam com o contexto amplo da epidemia no cenário brasileiro. Tomando tais serviços como práticas sociais contemporâneas, buscamos, nas análises que se seguem, construir certas regularidades de enunciados, a partir de sua dispersão, contradições e descontinuidades, mostrando como aparecem e se distribuem.

 

Serviços psicológicos surgidos durante a pandemia

Os serviços analisados surgiram a partir de diferentes iniciativas, justificativas, objetivos e ofertas. Quatro deles decorreram da iniciativa de profissionais: o Serviço 1 apresenta-se como uma "rede filantrópica" com 60 psicólogas(os) e oferece até seis atendimentos on-line; o Serviço 2 identifica-se como uma "plataforma que conecta trabalhadores da saúde que estão na linha de frente do combate ao Covid-19 a [mais de quatro mil] psicólogas e psicólogos voluntários dispostos a atendê-los", oferecendo "um apoio pontual durante o período de isolamento social" e contando com a gestão do gabinete de uma deputada estadual; o Serviço 3 é um "projeto solidário, composto por [mais de 800] psicólogas e psicólogos de todo o Brasil, que possam atender solidariamente / voluntariamente", em plantão psicológico; o Serviço 4 compreende um grupo de 56 "psicólogos voluntários unidos", que oferecem "apoio psicológico". Já o Serviço 5 foi criado por um grupo de estudos e projetos já existente, conta com 68 psicólogas(os) e oferece "um atendimento em caráter emergencial e psicoeducativo nesse momento de crise". O Serviço 6 foi criado dentro de uma plataforma de atendimento que, aparentemente, surgiu concomitante com a pandemia e oferece atendimento em plantão psicológico online. O Serviço 7 é um programa criado a partir da parceria entre uma multinacional e duas startups relacionadas ao autocuidado e saúde mental e oferece, gratuitamente, "7.600 consultas de terapia online com psicólogos . . . e ilimitadas conversas de texto através [de] plataforma que faz uso de inteligência artificial para solucionar problemas de saúde emocional com dicas e exercícios de autocuidado". O Serviço 8 é um projeto de uma faculdade pública estadual de Psicologia, que oferece "um atendimento pontual, uma única ou, eventualmente, poucas sessões". E, o Serviço 9 é um projeto do Ministério da Saúde em parceria com um hospital público universitário e oferece teleconsulta psicológica e psiquiátrica. Desta forma, poderíamos ainda destacar na expressão dos últimos dois serviços (8 e 9) sua natureza ou origem pública, diferente dos demais aqui apresentados, surgidos a partir de iniciativas de coletivos profissionais e de empresas.

A fim de caracterizar as pessoas ou grupos aos quais esses serviços psicológicos se dirigem, destacamos uma primeira vertente discursiva que qualifica seu potencial usuário como: necessitado, desprovido de recursos - emocionais ou materiais, alguém que atravessa dificuldades. Dessa forma, podemos compor a imagem de um sujeito desacolhido, meio claudicante, que precisa de ajuda. Foram encontradas as seguintes referências sobre os públicos-alvo dos serviços: "às pessoas que buscam por sua ajuda" (Serviço 6); "Solicite se estiver necessitando de atendimento . . . precisando desenvolver recursos para lidar com esta crise" (Serviço 1).

Depreendemos, ainda, que o público-alvo é muitas vezes tomado por um supostamente inescapável impacto dos abalos psicológicos considerados inerentes ao momento, apresentando sintomas ou fragilidades psíquicas. Neste sentido, é visto como angustiado, ansioso, deprimido, estressado ou emocionalmente vulnerável: "esse serviço destina-se a você que sente-se (sic) angustiado, ansioso ou deprimido diante do cenário de emergência em saúde mental" (Serviço 5); "para acolher os sentimentos e emoções, a vulnerabilidade e o estresse" (Serviço 4); "para manejo de estresse, ansiedade, depressão e irritabilidade" (Serviço 9).

Debruçamo-nos sobre o que aparece com mais recorrência como foco dos serviços: o atendimento a grupos específicos, sobretudo aos profissionais da saúde, aqui descritos como uma espécie de tropa combatente, ao mesmo tempo feita de heróis e de mártires. O Serviço 2, por exemplo, diz que eles não seriam apenas os mais expostos à covid, "como também são os grandes responsáveis por salvar milhares de vidas . . . Essa é uma crise de proporções gigantescas, e enfrentá-la cara a cara provavelmente será o maior desafio da vida destes profissionais" [grifos nossos]. Já o Serviço 7 considera que "o combate ao Covid-19 tem exigido imenso esforço e dedicação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente atuando em resposta ao novo vírus" [grifos nossos]; por fim, o Serviço 3 destaca o oferecimento de "escuta terapêutica para profissionais da saúde em contato direto com o vírus", apontando-os como aqueles que "estão na linha de frente do combate" [grifos nossos].

Como aqueles combatentes de guerra cujos corpos estão mais expostos ao inimigo, cria-se uma espécie de dívida simbólica em relação a esses trabalhadores, propondo uma equivalência de cuidados - o psicológico, em troca dos cuidados médico-hospitalares contra a pandemia -, de tal forma que a psicologia entra como uma espécie de retribuição; afinal, como afirma o Serviço 2, "se eles estão cuidando de milhares de pessoas, alguém precisa cuidar deles também".

Vale mencionar que, por vezes, a alcunha "da saúde" designa algumas poucas categorias profissionais de nível superior que, tal como em uma unidade militar, possuem patentes mais elevadas e prestigiadas. O Serviço 7, por exemplo, oferece atendimento apenas a médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, condicionando-o ao preenchimento do número de registro profissional e à informação da unidade de saúde em que atuam, enquanto o Serviço 3 oferece "apoio psicológico aos profissionais de saúde em geral (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas etc.)".

Seguindo esta linha de raciocínio, atentamos à possibilidade do estabelecimento de uma lógica meritocrática no interior da oferta dos serviços. Como se algumas pessoas, pelo esforço, coragem, missão ou risco a que se submetem, fossem mais dignas e merecedoras de usufruir de tais recursos. Ocorrem outras indicações de "exclusividades", como a oferta restrita à comunidade de determinada universidade: "Atenderemos exclusivamente a comunidade [nome da universidade]" (Serviço 8), e a priorização a profissionais do Sistema Único de Saúde: "profissionais da saúde que estejam atuando no SUS" (Serviço 9).

Ilustramos algumas indicações acerca do público-alvo dos serviços: por um lado, caracterizamos um sujeito desvalido, vulnerável e passível de abalos; por outro, sem pretender excluir ambivalências, emerge um sujeito heroico, mártir e merecedor do reconhecimento coletivo.

O lugar da pandemia e a forma como ela marca presença na caracterização dos serviços parecem-nos elementos cruciais para compreender sua fundamentação. Como dissemos anteriormente, os serviços aqui elencados foram criados após a ocorrência da atual circunstância epidemiológica.

O contexto é descrito de forma alarmante, por meio de palavras como "crise" (Serviço 5), "situação de emergência" (Serviço 1) e "calamidade pública" (Serviço 4), indicando as particularidades e o ineditismo da situação. Seria uma forma de argumentar a favor da criação das ditas novas estratégias de atendimento: "trata-se de um atendimento em caráter emergencial e psicoeducativo nesse momento de crise" (Serviço 5), "visando intervenção psicossocial em situação de emergência" (Serviço 1); e, "acolher os sentimentos e emoções, a vulnerabilidade e o estresse gerado pela situação de calamidade pública" (Serviço 4).

Vemos, assim, o pareamento inequívoco entre as especificidades e as rupturas desta ocasião, sobretudo compreendidas por seu potencial trágico, assim como a certeza do surgimento de desarranjos psíquicos danosos: "pensando na realidade trazida pelo vírus Covid-19, estamos disponibilizando esse espaço . . . possibilitando assim, que esse momento não evolua para algum transtorno psicológico" [grifos nossos] (Serviço 6); "preocupados com as dificuldades psicológicas que surgem neste momento o [nome da faculdade] está oferecendo, de modo público e gratuito, o atendimento" [grifos nossos] (Serviço 8); "idealizado a partir de constatações dos impactos nocivos à saúde mental e emocional decorrentes do cenário brasileiro de pandemia" [grifos nossos] (Serviço 5); E, "diferentes modalidades de psicoterapia para problemas emocionais durante a pandemia" (Serviço 9).

Somos levados a levantar a hipótese de que possíveis tendências psicologizantes e patologizantes estejam operando na disseminação desses serviços, no sentido de individualizar e tornar unidirecional a produção de acontecimentos eminentemente sociais. Parece que, muito rapidamente, os serviços tendem a concluir que a crise tem um desfecho negativo para a vida emocional de seus viventes, sem questionar se o momento anterior de fato oferecia equilíbrio e plenitude. Nota-se, por último, que apenas um dos nove serviços apresentados cita possíveis especificidades da conjuntura brasileira no atravessamento desta pandemia.

Cabe-nos refletir sobre a posição onde a psicologia se insere, a partir dos enunciados do corpus apresentado. No que tange à natureza dos serviços aqui pesquisados, observamos que muitos estão associados a valores como filantropia, solidariedade e voluntariado, convidando-nos a pensar na proposta de uma missão social compartilhada: "trabalho filantrópico realizado em até seis atendimentos" (Serviço 1); "se temos uma certeza é de que a solidariedade é nossa maior força" (Serviço 2), "este é um projeto solidário, formado por Psicólogas e Psicólogos de todo o Brasil, com o intuito de atender voluntariamente" (Serviço 3); "psicólogos voluntários unidos para oferecer apoio" (Serviço 4); "proposta de ação interventiva de acolhimento e suporte psicológico voluntário" (Serviço 5); e, ainda, "contando com o trabalho voluntário de profissionais certificados" (Serviço 6).

Identificamos, dentre as qualificações atribuídas aos profissionais da psicologia, o destaque da solicitude: "psicólogas e psicólogos voluntários dispostos a atendê-los . . . vai estar esperando o contato" (Serviço 2); "preocupados com as dificuldades psicológicas que surgem" (Serviço 8); "honrar com o compromisso de colocar o nosso trabalho a serviço da sociedade" (Serviço 6); assim como, "somos um grupo de psicólogos mobilizados" (Serviço 3).

Por outro lado, chamamos a atenção para o fato de que os atendimentos disponibilizados são em sua maioria gratuitos, como uma espécie de doação ou contribuição da Psicologia, neste momento, às pessoas interessadas: "Os atendimentos devem ser online, gratuitos e pontuais" (Serviço 2); "de modo público e gratuito" (Serviço 8); "todos os atendimentos serão gratuitos" (Serviço 6).

Quanto à intenção das práticas apresentadas, destacamos a identidade por negação, isto é, os serviços explicitam o que não são, talvez mostrando a suposição do que seria esperado da Psicologia, ainda hoje - a boa e velha psicoterapia: "diferenciando-se assim de um tratamento psicoterapêutico" (Serviço 8); e, "não é uma psicoterapia" (Serviço 5).

No geral, as ações são descritas nas vias do apoio, plantão, suporte, acolhimento e psicoeducação: "oferece apoio psicossocial" (Serviço 1); "apoio psicológico online" (Serviço 8); "oferecer apoio psicológico" (Serviço 4); "enquanto durar nosso plantão . . . a fim de prestarmos suporte emocional" (Serviço 6); "em plantão psicológico on-line" (Serviço 3); "proposta de ação interventiva de acolhimento e suporte psicológico . . . em caráter emergencial e psicoeducativo" (Serviço 5); "dar suporte emocional a profissionais de saúde" (Serviço 7); "vídeos de suporte . . . vídeos de psicoeducação" (Serviço 9); "acolher os sentimentos e emoções" (Serviço 4); e, "acolher os profissionais das unidades de saúde" (Serviço 3). Chama a atenção que "consultas de terapia online com psicólogos" convivam com "ilimitadas conversas de texto através da . . . plataforma que faz uso de inteligência artificial para solucionar problemas de saúde emocional com dicas e exercícios de autocuidado", no Serviço 7.

Realçamos um aspecto curioso de alguns desses serviços: a presença de intermediários entre o psicólogo e sua audiência. De tal forma, que algumas iniciativas parecem exteriores à psicologia, como se ela própria fosse parte destinatária ou clientela: "para conectar trabalhadores da saúde a psicólogos" (Serviço 2); "não gerando nenhum tipo de cobrança . . . por parte dos psicólogos nem dos pacientes" (Serviço 6); ou, "a empresa une pessoas e organizações para universalizar a saúde emocional" (Serviço 7). Preocupações mercadológicas parecem presentes nesses enunciados.

Percebe-se, também, uma preocupação frequente em apresentar a garantia e qualidade dos serviços ofertados, seja em termos éticos - condizentes com a legislação profissional -; seja em termos técnicos - atrelados a técnicas psicológicas reconhecidas e profissionais qualificados. São feitas referências a atendimentos "norteados pelo código de ética profissional" (Serviço 5); presença de "profissionais certificados e verificados pela plataforma" (Serviço 6) e de "especialistas em saúde mental" (Serviço 7); utilização de "métodos embasados em evidências científicas" e de "modalidades de psicoterapia eficazes" (Serviço 9), "profissionais plantonistas para atendimento de qualidade, pautado na ética e princípios morais, com total sigilo às informações prestadas" (Serviço 6). Tais referências aparecem quase sempre de modo genérico e abstrato, a ponto de o Serviço 5 oferecer "suporte psicológico adequado", sem dizer ao certo o que entende por adequação e tampouco quais outros suportes não seriam adequados.

Esta análise possivelmente seja ampliada, adiante. Para arrematar as reflexões iniciais, reforçamos algumas considerações. É curioso que a ideia de uma ação voluntária esteja fortemente associada aos serviços oferecidos, de tal modo que o Serviço 3 se associa ao valor de "projeto solidário", enquanto o Serviço 1 se declara uma "linda rede filantrópica com seus dutos afetivos". Três serviços usam, como justificativas, supostos compromissos sociais e profissionais, já que "a psicologia está fazendo seu papel nesse momento" (Serviço 5) e a "solidariedade é nossa maior força neste momento" (Serviço 2), sendo a psicologia colocada notoriamente como uma missão social.

Há várias justificativas para os serviços relacionadas à vivência de sofrimento psíquico e ao aparecimento de sintomas diante da pandemia. Alguns serviços apoiam-se na ideia do aumento de sintomas como ansiedade, depressão, pânico, alteração do humor, medo e estresse. O Serviço 6 é exemplar quanto a isso, ao considerar que a pandemia ocasiona o "rompimento . . . do estado de normalidade, possibilitando o aparecimento de transtornos e traumas psicológicos". Os sintomas descritos pela maior parte dos serviços seriam decorrentes: das mudanças trazidas pela pandemia, relacionadas ao isolamento ou distanciamento social, confinamento, medo de contágio e de morrer; aumento das demandas de trabalho aos profissionais da linha de frente. Resultariam, também, da necessidade de reorganização dos modos de vida. Se o que justifica o oferecimento dos atendimentos está relacionado, sobretudo, ao aparecimento de sintomas que produzem mais sofrimentos, os serviços, em sua maioria, buscam enfrentá-los.

Alguns serviços destacam a necessidade de adaptação ao novo cenário trazido pela pandemia, buscando "ajudar você a . . . conseguir se adaptar melhor às demandas desta nova fase" (Serviço 1) e "auxiliando no restabelecimento da saúde mental e adaptação a este cenário de isolamento" (Serviço 6).

Examinemos um elenco de objetivos: "conectar trabalhadores da saúde a psicólogos e psicólogas por todo o Brasil que querem voluntariar seu tempo para ajudá-los" (Serviço 2); "dar atendimento online" (Serviço 4); "acolher os sentimentos e emoções, a vulnerabilidade e o estresse" (Serviço 4); "acolher e oferecer o suporte psicológico adequado nesse momento tão difícil" (Serviço 5); "dar suporte emocional a profissionais de saúde que dedicam suas vidas a salvar outras" (Serviço 7); "atender voluntariamente, em plantão psicológico on-line" (Serviço 3). Essas metas parecem tornar os serviços uma finalidade em si mesma. De tal forma, que apresentam como objetivo, justamente, a própria oferta de seus serviços.

 

Algumas considerações

A análise dos serviços psicológicos criados durante a pandemia, associada à recente produção da psicologia brasileira, faz pensar que eles a concebem como um fenômeno biológico, resultado da ação de um vírus em escala global, capaz de provocar, quase que por si só, graves sofrimentos e transtornos psicológicos.

A complexidade da conjuntura em que a pandemia emerge, e o modo desastroso como ela tem sido gerida no Brasil, não aparecem na maioria dos discursos analisados: é como se a situação não fosse crítica, mesmo antes de a pandemia chegar. A suposição de que a crise tenha sido exclusivamente deflagrada pelo vírus, e de que o isolamento social seja um denominador comum à maioria do público-alvo, sugere a visão de mundo própria de uma classe média urbana e branca, que naturalizou seus privilégios e tende a considerar a própria condição como padrão de "normalidade". Na mesma direção, a expressão "novo normal" tem sido recorrente nos meios de comunicação, dando a entender que o grande desafio é encontrar estratégias adaptativas eficazes para se retomar a "normalidade" perdida. Mas que normalidade é essa? Para quem? A lógica adaptacionista está patente no discurso de vários dos serviços, evidenciada em modalidades e estratégias de atendimento que priorizam orientações objetivas e didáticas. A tal ponto, que um mecanismo de inteligência artificial seja considerado capaz de prestar apoio a questões de saúde mental. A proposta parece investir na criação da normalidade, sem questionar se os modos de vida anteriores eram efetivamente saudáveis.

Ora, o emaranhado de crises - política, social, econômica, sanitária, ambiental, climática, ética - no qual a pandemia se funde e se dissemina, especialmente pela omissão criminosa do Estado é também uma catástrofe. O negacionismo reinante, comprova aquilo que Safatle (2020) denominou como "estado suicidário".

Se a pandemia fosse um fenômeno meramente biológico, por que ela mataria três vezes mais pessoas negras, pobres e periféricas, do que pessoas brancas de classe média? Esses dados explicitam uma política que escolhe não evitar dezenas de milhares de mortes nem o trauma de não poder se viver o luto entre os seus.

É fácil perceber que a pandemia não tem natureza apenas biológica e sanitária nem é uma catástrofe isolada, uma vez que emerge no interior de outras, conferindo-lhes novos relevos, produzindo sofrimentos, modos de viver e de lhe fazer frente, também por vias comunitárias. No caso dos serviços analisados, predomina a lógica de que os problemas daqueles que estão na pandemia são individuais, às vezes dando a entender que os psicólogos estão fora dela. Essas ofertas, na maioria das vezes, apontam para saídas individuais, como orientações rumo à conquista de um bem-estar associado à produtividade e ao cumprimento de papéis sociais. A ideia de rede, coletivo ou grupo não aparece, a não ser quando associada à expressão "grupo de risco", ou seja, com um sentido biológico e preocupante. Não há menção ao grupo enquanto experiência que pode ser potente para partilhar repertórios, fazer laços sociais, produzir cuidados individual e coletivo. Essa constatação vai ao encontro de nossa hipótese inicial: a de que forças medicalizantes e despolitizantes operam no seio das práticas discursivas psicológicas, e isso produz efeitos na concepção do problema e na oferta de cuidado.

No material analisado, há uma hierarquização silenciosa - de pessoas e grupos - que opera no modo como a questão do esforço e do estresse é abordada: se, por um lado, é fácil oferecer atendimento psicológico pensando no estresse dos profissionais de saúde da linha de frente - sobretudo médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, dado que recepcionistas, motoristas de ambulância, técnicos, cozinheiros e trabalhadores da limpeza são designados como "etc." -, por outro, passa despercebido o estresse das pessoas que trabalham em atividades essenciais e não podem fazer quarentena, tendo que utilizar transporte público e se expor diariamente ao risco -, como motoristas de ônibus, caixas e repositores de supermercados, trabalhadores da limpeza e entregadores. Também não se considera o estresse das pessoas que perderam seu trabalho ou tiveram suas condições precarizadas; das que dependem da incerta e burocratizada renda emergencial e temem passar fome; das que não sabem se chegarão vivas até o fim do dia, por conta da violência policial nas periferias. Para esses grupos, o risco de contrair o vírus é só mais um risco entre outros. Ignorar essa realidade indica adesão a uma lógica racista e necropolítica (Foucault, 1999; Mbembe, 2016), uma vez que se naturaliza a ideia de que há vidas que valem menos, e que podem morrer, e há vidas que podem enlouquecer - e essas vão precisar de psicólogos.

Desvela-se, assim, a seguinte contradição: o caráter "caritativo" e "filantrópico" assumido por vários desses serviços não atina para a realidade de dezenas de milhões de brasileiros. Se assim fosse, visariam as pessoas que, cotidianamente, lutam para sobreviver e driblar a morte em condições desumanas; mas essas, usualmente, não são o público hegemônico da psicologia. Mais uma vez, o filantropismo é seletivo - o que pode explicar a ambivalência da categoria, incomodada com uma possível convocação para o trabalho presencial pelo Ministério da Saúde, e animada em oferecer atendimentos voluntários remotos durante a pandemia. Nota-se, assim, que a despeito de mais de quatro décadas de produção de conhecimento psicológico em perspectiva crítica, a produção discursiva desses serviços retoma uma psicologia historicamente hegemônica, elitizada, escolarizada e branca.

Se a Psicologia não puder considerar a crise da pandemia amalgamada em crises estruturais mais amplas e profundas - que requerem conhecimento histórico, pensamento (auto)crítico, leituras de complexidade e racializadas dos dispositivos de poder que promovem a vida, para uns, e a morte, para outros -, ela corre o risco de reforçar compreensões e ofertas restritas, medicalizantes e despolitizadas, que passam ao largo do compromisso ético-político de superação dos processos de segregação que assolam desastrosamente o país desde a colonização, produzindo sofrimento, indiferença, alienação e loucura.

 

Referências

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Recebido em: 04/08/2020
Aprovado em: 01/12/2020

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