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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.53 São Paulo ene./abr. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Kit gay: Mapeando controvérsias nas redes de uma ofensiva antigênero

 

Gay kit: Mapping controversies in the networks of an anti-gender offensive

 

Kit gay: Mapeo de controversias en las redes de una ofensiva antigénero

 

João Gabriel MaracciI; Paula Sandrine MachadoII

IDoutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Psicologia Social) da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, Brasil. jmaraccicardoso@gmail.com
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil. machadops@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo discute os resultados obtidos a partir de um mapeamento de controvérsias realizado sobre a polêmica do Kit Gay, em materiais virtuais entre os anos de 2011 e 2018. A partir de tal empreendimento, apontamos a relação contingente de aproximação e afastamento entre os significantes Kit Gay e Escola sem Homofobia, sua configuração como objeto dobrado e coordenado, bem como os desdobramentos de tal polêmica em políticas recentes, principalmente a partir de sua associação à chamada "ideologia de gênero". Por fim, visamos a inserir tais perspectivas em um campo mais amplo de estudos sobre as ofensivas antigênero e contextos de redução do espaço democrático.

Palavras-chaves: Gênero; Sexualidade; Kit Gay; Ideologia de Gênero.


ABSTRACT

This article aims to discuss the results obtained from a mapping of controversies carried out on the "gay kit" in online sources published from 2011 to 2018. From this methodological undertaking, we point out the contingent relation between the signifiers "Gay Kit" and "Escola sem Homofobia", its configuration as a folded and coordinated object, as well as the unfolding of such controversy in recent political issues, mainly from the association with the called "gender ideology". Finally, we aim to insert such perspectives into a broader field of studies on anti-gender offensives and contexts of reduction of democratic space.

Keywords: Gender; Sexuality; Gay Kit, Gender Ideology.


RESUMEN

Este articulo discute los resultados obtenidos de un mapeo de controversias realizado sobre la polémica Kit Gay en materiales virtuales entre los años 2011 y 2018. A través de esta metodología, señalamos la relación contingente de aproximación y distancia entre los significantes "Kit Gay" y "Escola sem Homofobia", su configuración como un objeto plegado y coordinado, así como los desarrollos de tal polémica en políticas recientes, sobretodo a partir de su asociación con la llamada "ideología de género". Finalmente, buscamos insertar tales perspectivas en un campo más amplio de estudios sobre ofensivas anti- género y contextos de reducción del espacio democrático.

Palabras clave: Género; Sexualidad; Kit Gay; Ideología de Género.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo se insere no conjunto de análises de uma pesquisa mais ampla1, desenvolvida pelos dois autores entre os anos de 2018 e 2019, tendo como foco as disputas acerca da verdade e da política mobilizadas pela polêmica do Kit Gay2 (Maracci, 2019). Esse estranho objeto, que habita o imaginário da política brasileira há cerca de dez anos, foi retomado ao longo do tempo em diversas cenas do nosso espaço público, atualizando debates sobre o gênero, a sexualidade, a infância e, mais recentemente, as delimitações entre verdade e mentira - como pode ser visto em suas inúmeras repercussões midiáticas durante as eleições de 2018, quando foi utilizado como pauta de mobilização pela campanha vencedora à Presidência da República.

Para acompanhar as redes nas quais tal polêmica transita, utilizamos as premissas teórico-metodológicas dos Estudos da Ciência e Tecnologia (STS - Science and Technology Studies) e da Teoria Ator Rede (ANT - Actor-Network Theory), reconhecendo a agência de atores humanos e não-humanos na composição e mobilização do Kit Gay (Latour, 2016). Sob tal perspectiva, realizamos um mapeamento de controvérsias no campo da internet, perseguindo, ao longo de oito anos, momentos de estabilização, rupturas e descontinuidades em suas cadeias performativas. A partir desses fluxos, compreendemos o Kit Gay enquanto um objeto dobrado (M'charek, 2014) e coordenado (Mol, 2007), conforme será exposto a seguir.

Apresentaremos, aqui, as dimensões da controvérsia, as bases metodológicas construídas para mapeá-la e algumas considerações extraídas do processo de pesquisa, enfocando sua importância na atual arena política brasileira, onde a diversidade sexual e de gênero aparece constantemente sob a forma de ameaça e medo coletivo. Buscamos, desse modo, inserir nossas reflexões em um campo mais amplo de pensamento, que vem se debruçando sobre os ataques internacionais e assimilações que envolvem o feminismo e as pautas LGBT em contextos de autoritarismo e redução do espaço democrático, reconhecidos academicamente como uma "ofensiva antigênero" (Prado & Corrêa, 2018), efetivada na agremiação entre Estado, igrejas, canais de comunicação, partidos políticos e diversos outros atores3. O que as disputas em torno do chamado Kit Gay podem nos informar sobre esse contexto?

 

O KIT GAY

Primeiramente, é necessário estabilizar o que estamos falando quando dizemos Kit Gay. Já reconhecendo, de antemão, que tal significante pode remeter a inúmeras coisas diferentes, realizamos uma revisão bibliográfica a fim de apreender os modos como a controvérsia é abordada pelo viés acadêmico. Com a análise de sete trabalhos de pesquisa4, constatamos um argumento similar, com amplo respaldo em sua apreensão social: o Kit Gay aparece enquanto um falseamento, um nome pejorativo para o projeto Escola sem Homofobia, financiado pelo Ministério da Educação (MEC) e vetado por Dilma Rousseff em maio de 2011.

Isaías Oliveira e Eliane Maio (2017, 2015) remontam uma linha cronológica do Kit Gay, assumido como nome falacioso de seu programa de referência, o Escola sem Homofobia. Segundo os autores, o projeto deu seguimento a políticas de inclusão desenvolvidas durante os governos Lula, como a ação interministerial "Brasil sem Homofobia". Em 2009, como continuidade dessa política na área da Educação, criou-se o referido programa, contando com com três eixos principais: a capacitação de gestores públicos para o bom atendimento da população LGBT, a elaboração de uma pesquisa acerca da homofobia no âmbito escolar e, por fim, a composição de um material didático, financiado pelo MEC, que seria distribuído em escolas públicas brasileiras ao final daquele ano.

Foi esse terceiro eixo que incitou uma polêmica nacional, envolvendo o parlamento, a Presidência da República, canais de telecomunicação e redes sociais digitais, onde se desenvolveu um verdadeiro repúdio público ao projeto apelidado de Kit Gay. Contando com cadernos didáticos, cartazes e vídeos (destinados ao trabalho em sala de aula e também na capacitação de professores), o material era nomeado por seus defensores como "kit anti-homofobia", mas é sabido que o significante pejorativo tomou mais amplitude no campo político, de modo que tenha ficado conhecido sobretudo por sua alcunha depreciativa.5

Um dos principais atores do processo foi o então deputado federal Jair Bolsonaro, que divulgava os perigos do suposto kit em pronunciamentos na câmara e programas de televisão aberta, logo se convertendo em vídeos curtos, publicados na plataforma Youtube e amplamente compartilhados em sites como o Facebook e o Twitter. Nesse momento da polêmica, tomavam destaque os materiais audiovisuais presentes no projeto, que se tornaram virais na época dado seu compartilhamento em larga escala, principalmente em forma de crítica. No viés de seus antagonistas, o Kit Gay impunha um perigo às crianças, que seriam expostas precocemente ao "homossexualismo" e se tornariam "alvos fáceis para pedófilos", nas palavras de Bolsonaro.

Após alguns meses de polêmica, é de conhecimento popular o anúncio feito pela então Presidente da República, Dilma Rousseff, ao cancelar a distribuição da cartilha presente no projeto Escola sem Homofobia: "Não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais nem de nenhuma forma nós podemos interferir na vida privada das pessoas"6(Passarinho, 2011). Tal recuo, de acordo com Oliveira e Maio (2015), não foi um caso isolado nas deliberações presidenciais; pelo contrário, marcou o início de uma nova organização política do poder executivo acerca das temáticas de gênero e sexualidade (bem como nas correlacionadas esferas de outros direitos civis): a cultura do desagendamento nas políticas públicas, que consiste no recuo governamental quanto à elaboração e distribuição de materiais voltados à redução do preconceito em contextos escolares.

No entanto, se tal desagendamento indica um descompromisso estatal com os temas de Direitos Humanos, sobretudo em relação às temáticas de gênero e sexualidade, não poderíamos supor que o cancelamento abrupto do programa estabilizou os ânimos de seus opositores. Como podemos acompanhar na última década da política brasileira, o Kit Gay seguiu sendo um ator de ampla relevância em inúmeros momentos, aparecendo como eixo de destaque na campanha presidencial vitoriosa na eleição de 2018. Nessa, Jair Bolsonaro apresentava corriqueiramente o livro Aparelho Sexual e Cia como um espécie do Kit Gay a que se opunha há tantos anos, demonstrando seu histórico de denúncias contra as ameaças à infância e a família tradicional promovidas pelos perigosos materiais.

Esses atos de campanha foram muitas vezes abordados por veículos de comunicação e por candidatos rivais como mentirosos, posto que o livro citado não compunha a cartilha financiada pelo MEC e vetada por Rousseff oito anos antes. Nesse sentido, vemos uma continuidade entre a repercussão social do Kit Gay e as produções acadêmicas mapeadas: o termo aparece como apelido pejorativo dos materiais pedagógicos que sequer foram distribuídos em escolas, cujo cancelamento se deu após a fatídica polêmica nacional. Assim, a relação entre os dois entes - Kit Gay e Escola sem Homofobia - é apresentada de modo linear e não controversa: o primeiro funciona como apelido pejorativo para uma parte do segundo e, dado o seu cancelamento, poderíamos afirmar sem dúvidas que o Kit Gay não mais existe.

Contudo, se perseguimos o desenvolvimento da controvérsia até o ano de 2018, quando o Kit Gay é performado como um incontornável ator eleitoral, poderíamos continuar assumindo apenas essa relação de continuidade entre os dois entes? Quando o então candidato à Presidência da República anuncia os perigos de um suposto o kit, atrelado discursivamente ao que nomeia como "ideologia de gênero"7, estaria ele, ainda hoje, dizendo respeito ao mesmo material há oito anos desativado? Será que, ao delimitarmos uma conexão a priori entre as duas nomenclaturas, não acabaríamos por perder a complexidade desse estranho objeto que é o Kit Gay? Será que estamos, de fato, falando sobre a mesma coisa?

 

MAPEAMENTO DE CONTROVÉRSIAS

Para responder a essas perguntas, lançamos mão de uma metodologia inspirada nos STS e na ANT, que visa a perseguir os conflitos entre diferentes atores na composição de controvérsias públicas (Latour, 2016). Segundo Tommaso Venturini, controvérsias são "situações onde atores discordam (ou melhor, concordam com sua discordância)" (2010, p. 261, tradução livre). O enunciado entre parêntesis complexifica a dimensão que a discórdia assume - não basta apenas a emergência de dois campos de atores distintos promovendo versões diferentes sobre algo que pode ser entendido como um mesmo. É necessário que o seu desacordo apareça como ponto de tensão, e que, na arena formada, um lado reconheça o outro na disputa. Reconhecer, aqui, não significa acolher suas premissas, ou compor consensualmente um sentido comum a partir de lugares antagônicos; pelo contrário, o reconhecimento implica apenas na identificação do problema na forma de conflito.

É justamente nessa configuração que o Kit Gay emerge no debate público, tendo sua existência disputada entre pelo menos dois campos de atores: de um lado, aqueles que contestam sua veracidade, relacionando-o a um projeto há anos abandonado, e, de outro, os que o performam como uma verdade incontestável, provocadora de danos e ameaças para a infância e a um ideal de família. Para nos inserirmos nas redes dessa querela, tomamos como premissa os dois procedimentos básicos de um mapeamento propostos por Venturini (2010): acompanhar e descrever a controvérsia, reconhecendo os atores que se conjugam na produção de estabilidades e rupturas para a temática perseguida.

Por essa via, o método construído se deu pela análise de materiais online divulgados ao longo dos oito anos de edificação da polêmica do Kit Gay. Objetivando um panorama amplo e diverso sobre tal, analisamos ao menos cinco publicações de cada um desses anos - 2011 a 2018 -, atentando para os atores articulados e suas modificações ao longo do tempo. Ao todo, compuseram o mapeamento 30 notícias, 14 colunas de opinião, 7 vídeos no Youtube, 3 documentos de órgãos governamentais, 3 tweets e 4 materiais de outros tipos - somando 61 publicações mapeadas.

O acesso aos materiais se deu a partir da busca pelo descritor "Kit Gay" na ferramenta de pesquisas gerais na internet da plataforma Google, configurada para exibir resultados referentes a cada um dos anos delimitados. Além disso, para auxiliar na escolha dos materiais jornalísticos, utilizamos a ferramenta Social Animal, que informa o número de engajamentos que matérias de grande circulação receberam em redes sociais populares como Facebook e Twitter. Com esse panorama, pudemos acompanhar distintos modos de performação da controvérsia, seja em canais de grande circulação, como sites de notícias, ou mesmo em portais de nicho, destinados a um público específico e mais restrito.

Face aos muitos resultados obtidos pelo trabalho metodológico, enfocaremos nos próximos tópicos dois pontos que consideramos relevantes para uma apreensão mais complexa da controvérsia, tendo em vista seu desenvolvimento ao longo da história e também seu uso como articulador político em anos recentes. Dessa forma, destacamos, em primeiro lugar, a relação de contingência entre os significantes Kit Gay e Escola sem Homofobia, delimitando a controvérsia enquanto um "objeto dobrado e coordenado", para, em seguida, analisar como tal conexão se desdobra no cenário recente de redução do espaço democrático e ofensiva antigênero.

 

KIT GAY NO ARMÁRIO

Seja nas produções acadêmicas mapeadas, seja nos veículos que contestam a veracidade do Kit Gay, podemos estabelecer um modo consensual de performá-lo: o significante é remetido ao falseamento e pejorativização de um projeto real, há anos vetado pela administração pública. Por essa razão, sua retomada no debate político indicaria uma mentira, ou mesmo um espécime da chamada "pós-verdade", como nos informam textos científicos ou midiáticos (Alves, 2018; Jornalistas Livres, 2018).

No entanto, a retórica que afirma seu caráter verdadeiro parece percorrer rumos menos lineares, pelos quais a associação entre Kit Gay e Escola sem Homofobia é acionada de forma contingente e maleável. Acerca do segundo mês de 2011, por exemplo, é possível identificar uma notícia do portal G1 sobre o pronunciamento do parlamentar Jair Bolsonaro contrário à implementação do programa financiado pelo MEC, já nomeado em seu discurso pelo apelido pejorativo tantas vezes aqui repetido. Nas palavras do deputado: "este ano está sendo distribuindo um 'kit gay' que estimula o homossexualismo e a promiscuidade. Temos de trazer esse tema aqui para dentro ... e não deixar que o governo leve esse tema para a garotada" (G1, 2011).

É interessante apontar que tal manifestação antecede a apresentação do Escola sem Homofobia no Congresso Nacional, que ocorreu em maio daquele ano. Nesse sentido, a menção ao Kit Gay é anterior à exposição do controverso projeto financiado pelo MEC, de forma que esse já emergia no debate público enquanto elemento retórico de oposição, associado aos perigos da homossexualidade e da promiscuidade. De fato, desde o ano anterior, o deputado Jair Bolsonaro já divulgava tais ameaças em programas de televisão aberta, de modo que o material, mesmo na sua fase de elaboração, era assumido midiaticamente sob o viés da polêmica e do perigo.

Porém, na segunda metade do ano de 2011, notamos uma importante redistribuição da controvérsia, também a partir de um discurso proferido pelo mesmo parlamentar. Em junho, Bolsonaro pronuncia-se como opositor de uma conferência que seria realizada em Brasília no dezembro seguinte, abordando as temáticas da diversidade sexual e de gênero no âmbito da Educação. Em seu pronunciamento, disponível em vídeo por muitos canais do Youtube, o deputado nomeia o evento enquanto "Kit Gay 2" - assumindo uma continuidade entre tal encontro e o material Escola sem Homofobia, que já havia sido vetado por Rousseff naquele momento (Parlatubebrasil, 2019).

Essa afirmação é relevante para acompanhar o movimento que tanto conecta quanto afasta os dois entes. Para o deputado, o Governo Federal havia suspendido um programa por ele nomeado como Kit Gay 1, enquanto a conferência em questão passa a ser nomeada de Kit Gay 2. Nesse sentido, o programa abandonado é referido em sua manifestação pelo número "1", enquanto o significante "Kit Gay" permanece na referência a outra situação, enunciada pelo número "2". Efetua-se, assim, uma separação discursiva entre o Kit Gay e o Escola sem Homofobia, dado que o primeiro passa a delimitar outros eventos que não aqueles referentes ao projeto associado ao MEC.

A dinâmica se desdobra no ano seguinte, tomando palco em circunstâncias mais restritas: durante as eleições municipais, José Serra disputava o pleito em São Paulo com Fernando Haddad, e acusava seu rival de fazer "apologia ao bissexualismo", dado seu cargo de Ministro da Educação no período da querela do Kit Gay. O tucano foi surpreendido, na reta final da campanha, por uma coluna no periódico Folha de São Paulo, que relacionava um material elaborado em sua gestão como governador daquele estado, cujo nome era "Preconceito de Discriminação no Contexto Escolar", com o mesmo significante: Kit Gay. Na argumentação da jornalista Mônica Bergamo, a cartilha se assemelhava ao Escola sem Homofobia por abordar a redução do preconceito em escolas públicas, compartilhando até mesmo um vídeo, chamado "Boneca na Mochila" (Bergamo, 2012).

O curioso desenlace para a acusação de Serra nos é útil para compreender a amplitude de significações que o termo Kit Gay passa a assumir ao longo dos anos. Se esse era usado na campanha contrária ao ex-ministro petista, em uma associação linear à polêmica instaurada durante sua gestão, a coluna da jornalista passa a performá-lo de modo visivelmente distinto, tomando como Kit Gay não mais a cartilha específica, mas sim um tipo de cartilha, que contempla também aquela organizada pelo próprio opositor José Serra. Assim, vemos que a relação entre os dois entes vai assumindo uma elasticidade, podendo indicar tanto um sinônimo para o projeto Escola sem Homofobia, quanto qualquer outro material que evoque o trabalho com a diversidade sexual e de gênero no campo da Educação.

No ano de 2014, a relação entre ambos passa a ser evocada de modo ainda mais complexo, tomando espaço nos debates acerca do Plano Nacional de Educação (PNE), que foi votado naquele abril. Conforme matéria do portal GNN, o ponto principal do projeto era a destinação de 10% dos recursos do PIB brasileiro para a Educação, mas foi um trecho específico que gerou, novamente, uma comoção nacional envolvendo o Congresso, mídias sociais e veículos de comunicação (Alves, 2014). Contendo um item referente ao combate ao preconceito por gênero e orientação sexual no campo escolar, deputados manifestaram-se contrariamente ao ponto específico, de modo que o PNE tenha sido aprovado apenas após a retirada de qualquer menção a tais assuntos tidos como perigosos. O jornal destaca a fala de dois parlamentares:

Pastor Eurico alegou que as questões de gênero são reflexo de "ideologias marxistas" e, por isso, devem ficar de fora das salas de aula. "Não somos contrários à educação no Brasil e destacamos que não há uma ditadura religiosa nessa comissão. Mas devemos reconhecer que apesar da laicidade do Estado, a maioria da população é cristã. Não vemos por que razão um movimento ... quer introduzir no PNE a ideologia de gênero. A ideologia de gênero é marxista, é a mesma que se espalhou pela Europa e, no futuro, [os que a defendem] vão perceber que estão trabalhando contra si próprios", sustentou o Pastor. ... Bolsonaro, por sua vez, aproveitou a oportunidade para ressaltar que a rejeição desse artigo livra as escolas brasileiras, em definitivo, do que ele classificou como "kit gay". "Com o não acolhimento desse destaque, ficaria de fora o Plano Nacional de Promoção de Cidadania e Direitos Humanos de LGBT. Esse é o kit gay que Dilma Rousseff disse que tinha recolhido, mas que está saindo do armário", afirmou, em alusão ao projeto enterrado pelo PT em 2011 (Alves, 2014).

Com esse trecho, podemos acompanhar dois importantes caminhos de performação da controvérsia. Em primeiro lugar, a fala de Eurico expõe um modo de entendimento para as polêmicas acerca da diversidade sexual e de gênero no campo educacional, que passa a ser frequente desde o citado momento: sua associação à chamada "ideologia de gênero", indicando-as como parte específica de um projeto mais amplo, de conotação transnacional, que promove ameaças à infância e a um ideal de família. A suposta "ideologia de gênero" desenvolve uma coordenação entre diferentes situações experimentadas em âmbito nacional - como o Kit Gay -, tornando-as parte de uma mesma investida, que encontra parâmetros e similaridades com outros países, de modo a ameaçar a própria soberania nacional.

A conexão do PNE com a "ideologia de gênero" se desdobra no discurso de Bolsonaro, alargando a ideia de Kit Gay como uma referência a conteúdos gerais que abordam a sexualidade e o gênero no campo da Educação. Utilizando a metáfora do armário - frequentemente referida no imaginário popular ao ato de assumir-se homossexual -, o parlamentar indica que aquele trecho do plano trazia à cena algo que antes não estava visível, colocando de volta à luz o perigoso elemento escondido por trás das portas de um armário. Kit Gay, dessa forma, não é tomado simplesmente como referência à cartilha de 2011, mas sim como uma menção a seu eminente perigo, indicando um "resto", uma continuidade presente que não cessou com o veto presidencial ao Escola sem Homofobia.

Nesse sentido, a ampla gama de conteúdos que o Kit Gay passa a significar, para além de seu projeto de referência, estabelece, ao mesmo tempo, uma relação de contiguidade com ele, à medida que nunca é totalmente superado. Sempre há o perigo de sua retomada, de sua assim nomeada "saída do armário". A metáfora de Bolsonaro parece exemplificar de modo conciso as formas como o Kit Gay adentra o espaço público e o debate político brasileiro: alargando-se para muito além do Escola sem Homofobia - de modo a contemplar qualquer material que indique o trabalho com gênero e sexualidade em escolas -, mas mantendo a cartilha que nunca entrou em vigência como uma zona exterior de realidade, que lhe confere um caráter de veridicção. Kit Gay, assim, supera o Escola sem Homofobia, mas o mantém como ponto basal, desdobrando-se em muitas polêmicas ao largo da última década.

O pequeno panorama histórico aqui mapeado nos é útil para compreender os modos não lineares com os quais o Kit Gay tornou-se um fato político em diferentes momentos dos anos recentes da democracia brasileira. Associando-se a atores distintos ao largo de seu desenvolvimento, tal controvérsia teve momentos de maior ou menor interesse em pesquisas da internet ou canais de telecomunicação, mas manteve-se continuamente presente, seja em portais virtuais, seja na retórica dos referidos agentes institucionais da política. A partir de tais considerações, podemos esboçar um entendimento sobre sua aparição intensa e reiterada no contexto das eleições de 2018, quando ocupou um espaço central na campanha vitoriosa à Presidência da República.

 

UM OBJETO DOBRADO E COORDENADO

Se, como vimos, a resposta de meios críticos ao Kit Gay pautou-se quase exclusivamente pela rejeição de seu caráter verdadeiro, performando-o como uma mentira ou mero falseamento, como poderíamos avaliar o êxito político e mobilizatório que obteve tal controvérsia na cena pública brasileira? Como entender esse "estranho objeto" que, a parte de inúmeras contestações sobre sua existência, adquire um caráter verídico incontestável pelos veículos que o afirmam como uma ameaça à infância e à família? Que ferramentas teórico-conceituais poderiam auxiliar nesse procedimento?

Perseguindo a trama dos Estudos da Ciência e Tecnologia, encontramos respaldo nas pesquisas de Amade M'charek (2014), que buscam introduzir o aspecto temporal nas praticalidades que compõem uma rede. Sob tal perspectiva, podemos entender o Kit Gay como um objeto dobrado, que conjuga em si mesmo uma série de temporalidades distintas, conectadas em uma prática comum. A metáfora do armário, referida por Bolsonaro ao propor uma continuidade entre a querela de 2011 e outros elementos subsequentes, permite uma imagem precisa para tal desdobramento.

Considerando que a cartilha presente no programa Escola sem Homofobia já havia sido vetada há mais de três anos no momento desse ato de fala, a ameaça referida ao material pedagógico parece indicar não um perigo literal de seu retorno, mas sim um perigo mais amplo, uma espécie de fantasma da política pública, percebido como "resquício" presente em qualquer possibilidade de abordar a diversidade sexual e de gênero no contexto educacional. A dobra do Kit Gay, nesse sentido, é o próprio pânico da homossexualidade, materializado nos diferentes nódulos de performação que acompanham o desenrolar da controvérsia ao largo dos oito anos mapeados.

Por essa via, tomamos o Kit Gay como um objeto em constante movimento, capaz de alargar sua rede de conexões e contemplar, cada vez mais, elementos coordenados (Mol, 2007) como parte de si mesmo. Nesse sentido, é importante atermo-nos aos modos como tal coordenação é efetuada, considerando os elementos reiterados ao largo de suas cadeias performativas, e também aqueles deixados de lado, restritos circunstancialmente às contingências presentes. Por exemplo, no nódulo perseguido em 2012, acompanhamos um circuito restrito da controvérsia - a eleição municipal de São Paulo -, no qual foi elencado como ator do Kit Gay o material elaborado pela gestão de José Serra enquanto governador do estado. Nos anos seguintes, tal associação se desfaz, de modo que a performação específica do objeto não se sustenta ao longo do tempo.

No entanto, pudemos perseguir outros fluxos performativos que se mostraram constantes nos desdobramentos da querela, sobrepostos em um agrupamento temporal. Por exemplo, o livro Aparelho Sexual e Cia, apresentado inúmeras vezes por Bolsonaro em sua campanha à presidência em 2018, se relacionava diretamente à polêmica do Escola sem Homofobia, bem como às disputas em torno do PNE. Percebemos, no desenrolar da pesquisa, que o aglutinador das pautas do Kit Gay, que permite a coordenação de coisas distintas sob um mesmo nome, desenvolve-se através de dois campos conjugados: primeiramente, a menção aos perigos da homossexualidade, associada à pedofilia e a promiscuidade de crianças; por outro lado, o seu uso como elemento de oposição ao Partido dos Trabalhadores, ou até mesmo a um campo de pautas relacionadas à esquerda de modo generalista.

É esse duplo direcionamento que possibilita uma compreensão mais ampla para seu êxito político e mobilizatório. Se o Kit Gay se dobra, contemplando momentos e circunstâncias distintas como parte de uma mesma nomenclatura, é a coordenação entre o pânico da diversidade e a oposição a determinados projetos políticos que dá ensejo às suas conexões. Tal arranjo parece sofrer uma importante dinamização a partir do ano de 2014, com a inserção da "ideologia de gênero" como ator integrado ao Kit Gay, sobretudo após os debates em torno do PNE.

Em muitos materiais encontrados após esse episódio, o Kit Gay é assumido como ponto local da "ideologia de gênero" - ou seja, como o espécime particular de um contexto maior, globalizado, que transpassa fronteiras nacionais. Tal associação promove à controvérsia um grau ainda maior de veridicção, encontrando respaldo em décadas de elocubrações acerca dessa suposta investida de cunho marxista, veiculadora da "teoria de gênero", que contestaria a autoridade familiar sobre a criação de seus filhos (Junqueira, 2018; Prado & Corrêa, 2018).

Acerca da "ideologia de gênero", retomamos trabalhos que enfocam sua configuração de pânico moral (Junqueira, 2018; Miskolci & Campana, 2017). Esse conceito indica a situação pela qual uma pessoa ou grupo passa a ser produzido e entendido de forma coletiva como uma ameaça ao bom funcionamento da sociedade, sobretudo a partir de estereótipos e ridicularizações. O procedimento abriria espaço a uma "resposta" social, fundada especialmente nos sentimentos de medo e perigo, servindo de substrato para ações reativas e hostis contrárias aos sujeitos demarcados por esses signos de inteligibilidade.

Se os citados autores utilizam tal perspectiva para compreender a "ideologia de gênero" e seus efeitos, o mesmo procedimento pode ser travado para o entendimento do Kit Gay e suas repercussões na política, à medida que os dois entes são usualmente apresentados de forma correlata: Kit Gay como parte da "ideologia de gênero", ou como um importante elemento na tentativa de sua implementação no contexto brasileiro.

É por essa razão que, ao analisar a emergência do Kit Gay como elemento de uma grande querela pública no ano de 2018, dado seu uso na campanha eleitoral, devemos levar em consideração as suas importantes diferenças em relação à polêmica de 2011. Nessa passagem de oito anos, foi-se intensificado tanto o seu campo de significação quanto sua capacidade mobilizatória, de modo a ampliar largamente a polêmica na dimensão espacial e também temporal, algo que o duplo movimento de dobra e coordenação permite compreender.

Sob tal entendimento, constatamos que a controvérsia do Kit Gay estabelece um esquema de inteligibilidade para a ameaça do gênero e da diversidade sexual em políticas de Estado, que parecem ameaçar a própria estabilidade da nação. Tal esquema de inteligibilidade parte do reconhecimento de uma ameaça comum e da consequente mobilização para uma resposta que a suprima, tal qual acompanhamos ao longo do mapeamento em suas duas tendências mencionadas: a elevação das temáticas de gênero e sexualidade à categoria de perigo seguida de objeção a agentes políticos supostamente a elas associados. No ano de 2018, esses dois fluxos parecem ter sido performados de modo especialmente coordenado, considerando que as sensações de medo ou pânico tenham sido estimulantes para uma escolha eleitoral. Nessa coordenação tão bem sucedida de entes que indicam um mesmo investimento - contrário à família e perigoso à infância -, até mesmo o Kit Gay pode se ausentar, de modo que o esquema de compreensão permaneça intacto, conforme será apresentado no tópico a seguir.

Esses dados nos fornecem pistas para compreender a ineficácia dos meios críticos em formular uma oposição efetiva aos desdobramentos do Kit Gay. Conforme apontado pelo empreendimento metodológico, percebemos que as respostas à controvérsia, desenvolvidas tanto em veículos considerados de esquerda quanto naqueles que compõem a chamada mídia tradicional, encontram-se no mesmo argumento: Kit Gay seria apenas o nome pejorativo que havia recebido o projeto financiado pelo MEC e abandonado ainda no ano de 2011. O recorrente argumento parece não encarar com seriedade a controvérsia, deixando de lado o enorme campo de associações que seguiu sendo mobilizado após o veto de Dilma Rousseff à cartilha financiada por seu próprio governo.

Na ausência de um debate sério sobre a necessidade do trabalho com a diversidade sexual e de gênero no âmbito de Educação, os meios críticos empenharam-se apenas em contestar a veracidade de um fato político fortemente consolidado. Face ao corriqueiro argumento "o Kit Gay é uma mentira", tal objeto seguiu sendo produzido como verdade, performando equivalências entre setores políticos que passaram a se aglutinar pelas duas vias: pelo repúdio à diversidade e pela oposição a partidos e temáticas compreendidos como "de esquerda". Se tal associação mostrou-se amplamente bem sucedida no contexto eleitoral, como podemos avaliar o que ocorre hoje, no país que se remonta após a posse de Jair Bolsonaro no primeiro dia de 2019?

 

CENÁRIO PÓS-ELEIÇÃO

Tornou-se corriqueira, nos âmbitos acadêmicos e jornalísticos, a apreensão de que vivemos atualmente uma redução do espaço democrático, seja a nível nacional quanto internacional. Sob perspectivas distintas, autores diversos encontram-se na constatação comum: a democracia liberal, concebida a partir dos pesos e contrapesos colocados na relação entre Estado e sociedade, encontra hoje um limite com a ascensão de líderes políticos associados ao populismo de extrema-direita, em circunstâncias usualmente referidas como uma "crise na democracia" (Castells, 2018; Levitsky & Ziblatt, 2018; Mounk, 2019). Tal reconfiguração do espaço político difere-se daquelas experiências históricas nas quais o campo democrático fora restringido com a ausência de eleições presidenciais, por exemplo - como nas ditaduras latinoamericanas da segunda metade do século XX. O que tais autores apontam é, justamente, que a presente crise não se edifica no rompimento total com as instituições democráticas - como o sufrágio -, mas sim na sua apropriação frente a projetos políticos específicos.

Por essa via, parece constituir um traço comum da redução do espaço democrático em diferentes locais do globo uma oposição às temáticas de gênero e sexualidade, efetuada de formas distintas por agentes estatais. Por exemplo, é de conhecimento popular o rechaço do primeiro ministro húngaro, Viktor Orban, ao estudo das questões LGBT e feministas, tendo recentemente removido os "estudos de gênero" da lista de diplomas com credenciamento oficial nas universidades de seu país (Bechara, 2018).

Algo similar ocorre no Brasil de 2019, com amostras disponíveis em todos os níveis da administração pública. No âmbito federal, temos pronunciamentos do Presidente da República convocando seu Ministério da Educação a elaborar um projeto de lei contrário à "ideologia de gênero" nas escolas (Correio Brasiliense, 2019). Referente aos estados, o governador de São Paulo protagonizou mais um evento de repúdio às temáticas da diversidade sexual e de gênero no campo da Educação, retirando de escolas um material supostamente apológico à "ideologia de gênero", que abordava questões como identidade e orientação sexual (Pinho & Martínez-Vargas, 2019). Quanto aos municípios, podemos citar o prefeito do Rio de Janeiro, que exigiu a retirada de uma história em quadrinhos da Bienal do Livro Rio, causando uma nova querela entre Estado, veículos de comunicação e sociedade civil (Cerioni, 2019).

As três figuras públicas mencionadas são heterogêneas, pertencem a partidos distintos e situam-se até mesmo com rivalidades entre si, mas encontram-se em um campo político comum: a associação das temáticas de gênero e sexualidade a noções de perigo e dano, principalmente quando referidas a crianças e adolescentes no âmbito escolar. Como o mapeamento já demonstrou, essa não é uma associação nova em terreno brasileiro, podendo ser observados paralelos desde, pelo menos, as polêmicas de 2011 na administração de Rousseff. Não discordamos, contudo, de que as experiências recentes apresentam uma descontinuidade quanto aos anos anteriores, mas apostamos em outro modo de leitura: não tomando o atual cenário enquanto uma ruptura radical, mas sim a partir de uma história fragmentada e coordenada, que se reatualiza constantemente a partir de seus novos engendramentos.

Poderíamos assumir alguma relação entre as ações da esfera federal, estadual e municipal já indicadas e as controvérsias do Kit Gay? Notamos que, nas repercussões sociais das polêmicas recentes, tal significante não compôs um núcleo retórico explícito, tendo sido pouco mencionado enquanto argumento - contrário ou a favor - das cartilhas pedagógicas ou revistas em quadrinhos que aproximam a diversidade sexual de gênero no campo da infância. Teria o Kit Gay, finalmente, deixado a cena pública brasileira?

Como acompanhamos no mapeamento, os mais de oito anos de controvérsia edificaram não apenas o nome para uma polêmica, mas sim um campo complexo de compreensão e prática sobre a diversidade, sustentado em redes densas, com muitos espécimes coordenados enquanto parte de uma suposta investida comum. Escola sem Homofobia, Plano Nacional de Educação, seminários sobre gênero e sexualidade, outras políticas públicas, além de livros e materiais didáticos de ordens diversas foram aproximados como partes de uma mesma coisa, referentes ao mesmo Kit Gay, à mesma "ideologia de gênero". Nessa tão bem sucedida coordenação, acreditamos que o significante Kit Gay já pode se ausentar de sua própria rede, posto que os nódulos nela conectados passaram e se sustentar de forma autônoma.

Nesse sentido, as associações entre materiais pedagógicos e os perigos da diversidade sexual, relacionados às ideias de pedofilia e promiscuidade, não mais ocupam somente o tempo de tribuna de um caricato parlamentar. Tampouco se restringem ao governo federal em questão, ou mesmo a estados e municípios específicos. O pânico moral a que nos referimos está na ordem do dia, capilarizado na vida cotidiana do Brasil recente.

É por essa razão que enfocamos a inabilidade da crítica em formular respostas efetivas ao Kit Gay e sua de oposição à diversidade no âmbito da política. Frente ao ímpeto constante de negar sua veracidade, a controvérsia consolidou-se como fato político incontestável, situando-se como ponto de grande importância para compreendermos o Brasil tal qual se apresenta contemporaneamente.

Dessa forma, apontamos a necessidade de construir outros argumentos e aglutinações de pautas, encarando o problema sem a confortável esquiva de que o Kit Gay - ou qualquer outra nomenclatura que tais controvérsias podem vir a assumir - "na verdade nunca existiu". Se vivemos o avanço de uma ofensiva antigênero, que se movimenta para além das fronteiras nacionais8, é apenas nessa configuração que pode se insurgir uma resposta. Não pela negação de sua veracidade, mas encarando o problema na sua forma de problema.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo pautou-se pela mobilização dos dados de nossa pesquisa como analisadores dos desdobramentos da polêmica mapeada, que excedem a terminologia Kit Gay, mas persistem como importantes atores da cena política brasileira. Primeiramente, buscamos demonstrar, a partir da metodologia do mapeamento de controvérsias, que a relação entre os significantes Kit Gay e Escola sem Homofobia não é linear, mas sim exercida em movimentos contingentes de aproximação e afastamento. Tal compreensão é dinamizada quando nos deparamos com a afirmação de Bolsonaro, que informa o Kit Gay como um "resto" da política pública, permanentemente escondido sob as portas de um armário como um "eterno retorno possível".

A partir de então, apostamos em uma retomada histórica da controvérsia, enfocando o modo como tal história não se delimita apenas pela linha cronológica de seus anos, mas sim como uma sobreposição temporal e espacial. Como vimos, esse movimento nos permite entender o Kit Gay como um objeto dobrado e coordenado (M'Charek, 2014; Mol, 2007), que se delimita a partir de duas linhas principais: de um lado, o pânico da diversidade sexual e de gênero; de outro, a oposição constante a partidos e pautas entendidos como "de esquerda".

Nessa complexa rede performativa, apontamos a ineficácia de respostas que se fundamentam apenas na negação de sua veracidade, posto que suas dobras e coordenações são, justamente, os modos como o objeto adquire graus de veridição em suas redes performativas. Nesse sentido, acreditamos ser necessário um embate político efetivo, pautado não pela esquiva, mas sim pela afirmação da importância do trabalho com gênero e sexualidade no campo educacional, sustentando os pilares do mundo comum que visamos a construir.

Por fim, frente ao cenário de redução do espaço democrático, no qual o Brasil compartilha a nível internacional os vetores de uma ofensiva antigênero, enfatizamos a importância de mapear tais investidas em suas linhas temporais. Assim, é necessário reconhecer o que o presente não é apenas resultado de um rompimento radical com experiências anteriores, mas se relaciona com essas através de movimentos não lineares, a partir dos quais o passado é reencenado nos eventos contemporâneos. Por essa razão, Kit Gay persiste como um importante nódulo da história recente de nossa democracia.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 30/11/2019
Aprovado em: 22/06/2020
Financiamento: Bolsa de Mestrado fornecida pela CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, com edital realizado no ano de 2017.

 

 

1 Trata-se da dissertação de mestrado do primeiro autor, defendida em agosto de 2019 no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação da segunda autora.
2 Optamos por escrever o termo Kit Gay sem aspas e com letra inicial maiúscula no intento de não reduzir a discussão, previamente, a uma disputa entre verdade e mentira, como será abordado a seguir. De todo modo, o termo foi utilizado em itálico, para demarcar uma posição de estranhamento frente ao significante
3 Para maiores informações, indicamos a leitura do número 43 da Revista Psicologia Política, publicada em dezembro de 2018, que aborda em seus artigos diferentes dimensões da ofensiva antigênero.
4 Oliveira e Maio (2015, 2016, 2017); Silva (2015); Nardi, Rios e Machado (2012); Carreira (2015); Lacerda (2016).
5 No ano de 2015, a Revista Nova Escola, em parceria com a ONG ALGBT, divulgou em sua página virtual os cadernos referentes ao Escola sem Homofobia, além do compartilhamento dos vídeos, que já estavam presentes na plataforma Youtube (Soares, 2015). Curiosamente, os materiais audiovisuais divulgados pela revista dizem respeito canais conservadores, como o de Carlos Bolsonaro, que os utilizavam como comprovação do caráter ameaçador do Kit Gay. Por essa via, é interessante notar como o mesmo material - articulado a elementos distintos - pode informar tanto a defesa quanto a denúncia de seu próprio conteúdo (Maracci, 2019).
6 Na época, veículos jornalísticos noticiaram que o recuo de Rousseff se dava em função de que, caso o programa fosse efetivado, a bancada de deputados religiosos ameaçava convocar o então Ministro-Chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, para depor sobre sua evolução de patrimônio (Campanerut & Yamamoto, 2011).
7 O termo será mantido com as iniciais minúsculas e entre aspas, como referência às produções acadêmicas recentes sobre o tema, que afirmam a importância de desnaturalizar e colocar tal nomenclatura em dúvida e questionamento (Prado & Corrêa, 2018).
8 Os estudos acerca das ofensivas antigênero enfocam a importância de seu caráter de difusão transnacional. A origem de tais movimentos remonta documentos produzidos pelo Vaticano na década de 1990 como oposição a políticas feministas e, desde então, tais vocabulários e estratégias são capilarizados de forma global, se conectando a particularidades dos locais onde se inserem. Para mais informações e discussões acerca desse movimento, ver: Junqueira (2018); Cornejo-Valle e Pichardo (2018); Patternote e Kuhar (2018); Bernini (2018); Butler (2019); Corrêa e Kalil (2020).

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