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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.53 São Paulo ene./abr. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Vida danificada e liderança autoritária: Declínio do indivíduo e agitação fascista em Adorno*

 

Damaged life and authority leadership: Decline of the individual and fascist agitation in Adorno

 

Vida dañada y liderazgo autoritario: Declive del individuo y agitación fascista en Adorno

 

 

Rafael da Silva ShirakavaI; Gustavo Henrique DionisioII

IPsicólogo pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Campus de Assis/SP. Mestre em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Campus de Assis/SP. Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Campus de Marília/SP. rafael.2015.shirakava@gmail.com
IIProfessor Assistente Doutor no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista - Assis e no Programa de Pós-Graduação "Psicologia e Sociedade" da mesma instituição. gustavohdionisio@gmail.com

 

 

 


RESUMO

O artigo tem o objetivo de analisar alguns aspectos acerca da vida danificada, tal como descrita nos aforismos de Theodor W. Adorno na obra Minima moralia (1951/1993), e suas relações com a emergência da liderança autoritária, principalmente no que concerne ao discurso fascista e à adesão dos indivíduos a este tipo de grupo. Para tanto, analisou-se os ensaios de Adorno acerca da agitação fascista norte-americana, que, para este pensador, está alinhada em larga medida com as receitas hitlerianas utilizadas na Alemanha na década de 1930

Palavras-chave: Theodor W. Adorno; Vida danificada; Autoritarismo; Teoria Crítica.


ABSTRACT

The article aims to analyze some aspects of damaged life, as described in Theodor W. Adorno's aphorisms in the work Minima moralia (1951/1993), and its relations with the emergence of authoritarian leadership, especially with regard to the fascist movement discourse and the adherence of individuals to this type of group. In order to do so, we analyzed Adorno's essays on the North American Fascist agitation which, for this thinker, is largely aligned with the Hitlerian recipes used in Germany in the 1930s.

Keywords: Theodor W. Adorno; Damaged life; Authoritarianism; Critical Theory.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo analizar algunos aspectos de la vida dañada, tal como se describe en los aforismos de Theodor W. Adorno en la obra Minima moralia (1951/1993), y sus relaciones con el surgimiento de liderazgos autoritarios, especialmente en lo que respecta al discurso del movimiento fascista y la adhesión de los individuos a este tipo de grupo. Para ello, analizamos los ensayos de Adorno sobre la agitación fascista norteamericana que, para este pensador, se alinea en gran medida con las recetas hitlerianas utilizadas en la Alemania de los años 1930.

Palabras-clave: Theodor W. Adorno; Vida dañada; Autoritarismo; Teoría Crítica.


 

 

O caráter fragmentário no modelo crítico adorniano

Escrita de forma aforística no período de exílio norte-americano1, a obra Minima moralia é o testemunho de Theodor W. Adorno sobre a degradação do indivíduo pelo capitalismo tardio. Nesse sentido, os 153 aforismos redigidos entre 1944 e 1947 levam a cabo teses que podemos encontrar na Dialética do esclarecimento (1944/2006), escrita em parceria com Max Horkheimer. Uma delas, de acordo com Musse (2011), é a denúncia do caráter autodestrutivo do esclarecimento (Aufklärung) que danificada a vida do sujeito compelindo-o à reprodução de suas mazelas e que, em larga medida, contribui para a eliminação da diferença, do não-idêntico (Adorno, 1966/2009).

Ultrapassando o caráter autobiográfico, Adorno empreende sua crítica por meio de uma escrita complexa cujos elementos sobrepõem-se e que, se forem lidos apressadamente, correm o risco de serem incompreendidos. Por isso, é possível dizer que, ao se debruçar sobre Minima moralia, é necessário que o leitor, antes de tudo, dê "três passos de distância" (Adorno, 1951/1993, p. 110) para analisar o objeto, tomar fôlego e, a partir disso, extrair algum fragmento singular na tentativa de compreender a totalidade da obra. Além disso, entende-se que esse aspecto da escrita adorniana almeja ir na contramão de toda a filosofia organizada em sistemas - a rigor, trata-se de uma crítica endereçada aos sistemas filosóficos clássicos, como o idealismo alemão, por exemplo. Nesse sentido, o aforismo consistirá essencialmente naquilo que Walter Benjamin buscou descrever em sua filosofia como constelação e que, de modo significativo, ressoa nas obras de Adorno - da qual Dialética negativa é um exemplo notável (Musse, 2009; Tiburi, 2005).

No que concerne à Minima moralia, Musse (2011) sublinha as semelhanças dessa obra com a de Benjamin, Rua de mão única (1995). Ali é possível observar a configuração da "constelação", na qual "não se procura capturar o objeto numa definição, mas por meio de um conjunto de coordenadas que se aproximam dele" (Musse, 2011, p. 174).2 Nesse movimento investigativo, objetiva-se decifrar a totalidade pela via do singular, haja vista que, para Adorno, em Dialética negativa (1966/2009, p. 142),

O conhecimento do objeto em sua constelação é o conhecimento do processo que ele acumula em si. Enquanto constelação, o pensamento teórico circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-fortes bem guardados; não apenas por meio de uma única chave ou um único número, mas de uma combinação numérica.

Segundo Franco (2015), por conter a chave de compreensão do todo, o fragmento pode ser visto como uma estrela no céu, e, para a análise da totalidade (a constelação, no caso) é necessário atentar-se a um corpo celeste em relação a outro, de modo que seja possível ter uma visão múltipla do fenômeno. De maneira similar, Zuin, Pucci e Lastória (2015) apontam que

a ideia de constelação parte do pressuposto de que o conceito, tomado como individual, é insuficiente para iluminar o objeto em sua densidade; é preciso reunir outros conceitos, em forma de uma configuração, em torno de um mesmo fenômeno, para alcançar aquilo que foi esquecido, reprimido nesse processo. (2015, pp. 68-69 [grifo dos autores])

Tais aspectos, na obra adorniana, caracterizam-se por modelos críticos, nos quais o singular tem papel de destaque em detrimento da totalidade - a abstração conceitual de matriz hegeliana, que reprime o não-idêntico a favor de uma filosofia da identidade (Adorno, 1966/2009; Musse, 2009; Tiburi, 2005; Zuin, Pucci, & Lastória, 2015). Assim, a teoria crítica de Adorno versa por uma reflexão na contramão dos sistemas filosóficos que, fechados em si mesmos, abrem mão de uma crítica radical dos processos de racionalização que os constituem e que, na ausência de autocrítica, levam a uma deterioração do singular tanto no campo abstrato como concreto (histórico-social). Portanto, o que se tem aqui é uma abordagem micrológica dos fenômenos (sejam eles quais forem), na qual há uma priorização do aspecto fragmentário. Em outras palavras, pode-se afirmar que se trata, acima de tudo, de uma análise crítica pela via do negativo, isto é, daquilo que foi desconsiderado pelos sistemas clássicos de pensamento (Adorno, 1966/2009, Musse, 2009; Tiburi, 2005). Com isso, almeja-se "a defesa da diferença qualitativa, da particularidade, da individualidade ameaçadas pelo avanço da sociedade como totalidade integrada e tendencialmente assimiladora universal'' (Cohn, 1986, p. 23).

Ademais, Adorno, em Minima moralia, metaforiza sua condição de exilado com o objetivo de construir uma teoria acerca da degradação do indivíduo na sociedade administrada, na qual "o intelectual é coagido por condições objetivas ao isolamento, tal qual o agente econômico, embora alimente a ilusão de que sua solidão decorra de uma livre escolha" (Musse, 2011, p. 170). Assim sendo, a experiência norte-americana fornece ao teórico crítico objetos para pensar temas que configuram sua obra como um todo: a irracionalidade da sociedade administrada, a massificação dos indivíduos pelos produtos da indústria cultural, o declínio do pensamento crítico e, acima de tudo, a queda tanto da individualidade como da autonomia em prol do culto às personalidades autoritárias e ao status quo. Logo, entende-se que nas linhas que compõem Minima moralia encontra-se, na verdade, a experiência de um pensador refugiado que presencia, em um país supostamente democrático, a emergência fascista, levando-o a considerar que o terror que assombrava a Europa seria produto de um clima cultural que permeava, inclusive, a sociedade norte-americana.

Nesse sentido, Musse (2011) argumenta que será no exílio, na fuga pela sobrevivência, que o filósofo alemão constrói pertinentes reflexões sobre a situação do "intelectual na emigração, adicionando às observações de teor sociológico ou antropológico reflexões que tangenciam o campo da psicanálise, da filosofia, da estética, dos saberes que se propõem a compreender, em alguma medida, o âmbito da subjetividade" (2011, p. 171). Acerca disso, no aforismo vinte e cinco, 'Ninguém se lembre deles', Adorno sublinha o seguinte:

A vida pregressa do emigrante, como se sabe, está anulada. Antigamente eram os mandados de captura, hoje é a experiência espiritual que é declarada intransferível e simplesmente exótica. O que não está reificado e não pode ser contado nem medido, deixa de existir. Mas, não bastasse isso, a reificação estende-se ao seu próprio contrário, à vida como que não ser imediatamente atualizada; ao que se subsiste como pensamento e lembrança. Para isso inventaram uma rubrica própria, que se chama background, que aparece nos formulários após o sexo, idade e profissão. A vida profanada é ainda por cima arrastada sobre o carro triunfal dos estatísticos unidos, e o próprio passado não está mais a salvo do presente, que o condena mais uma vez ao esquecimento no instante que o recorda. (Adorno, 1951/1993, p. 39 [grifo nosso])

O que nos interessa nessa obra do teórico alemão é a crítica à perda de substância experimentada pelo indivíduo e sua inevitável degradação em prol do mundo administrado, isto é, a cultura, a totalidade racionalizada. Tal perspectiva é revelada em uma evidente crítica ao pensamento hegeliano que, ao sistematizar a realização do Espírito Absoluto (leia-se: a Ideia, o Conceito), mortifica as particularidades determinantes de efetivação deste Espírito, que, em sua concretização, "esquece" suas determinações históricas (Adorno, 1951/1993). Segundo essa linha de raciocínio, a individuação é considerada inferior, pois, na realização harmônica proposta por Hegel, o particular é liquidado na síntese com o Universal. Por isso, Adorno argumenta que:

Na medida em que hipostasia a sociedade civil, assim como sua categoria fundamental, o indivíduo, Hegel não soluciona verdadeira a dialética entre ambos. Decerto ele percebe, com a teoria econômica clássica, que a própria totalidade se produz e reproduz a partir da conexão de interesses antagônicos de seus membros. Mas o indivíduo enquanto tal continua a ser por ele tomado, ingenuamente, como aquele dado irredutível que ele dissolve precisamente na teoria do conhecimento. Na sociedade individualista, porém, não somente o universal se efetiva através da atuação conjugada dos indivíduos, mas a sociedade é essencialmente a sustância do indivíduo. (1951/1993, p. 9)

Essa característica delineada por Adorno possui correspondência com as obras de outros pensadores da primeira geração da Escola de Frankfurt como, por exemplo, Max Horkheimer (1947/2015) e Herbert Marcuse (1964/2015). Grosso modo, pode-se estabelecer um traço comum nessa etapa da Teoria Crítica da Sociedade: a crítica à sociedade administrada, ou, mais precisamente, ao casamento funesto entre o progresso e a barbárie que desembocou nas duas Grandes Guerras que marcaram a primeira metade do século XX3 e que determinaram, de modo expressivo, os rumos posteriores da história da Humanidade. Em suma, esses pensadores orientam-se teoricamente para o desvelamento do caráter regressivo da ratio burguesa, isto é, buscam analisar os elementos que estruturam a dominação social do mundo administrado (Adorno, 1951/1993; 1967/1995b; Adorno & Horkheimer, 1944/2006; Horkheimer, 1947/2015; Marcuse, 1964/2015).

Adorno e Horkheimer, por exemplo, em Dialética do esclarecimento (1944/2006), apontam uma estreita relação entre a barbárie e as relações reificadas que sedimentam o capitalismo tardio, cujas origens podem ser diagnosticadas nas aventuras do herói da Odisseia, Ulisses, que fazia uso unilateral da razão para a dominação da natureza tanto interna quanto externa. Para esses pensadores, a demasiada racionalização do mundo, que buscou afastar os mitos ou qualquer elemento que não estivesse ligado à lógica formal (leia-se: princípio de identidade, A=A), resultou em um esclarecimento total, no qual os sujeitos, incapazes de pensar para além das formalidades da aplicações técnicas, apenas relacionam-se uns com os outros de maneira fria, coisificada e, no seu extremo, desumana - tese essa que é bastante próxima à primeira parte da obra de Herbert Marcuse, O homem unidimensional (1964/2015), na qual ele explicita os mecanismos tecnológicos e políticos que produzem o ajustamento do indivíduo à sociedade industrial, onde há um nivelamento (padronização) da capacidade de julgar, gerando, a partir disso, submissão e conformismo. Portanto, para os teóricos críticos, há um movimento autodestrutivo na Aufklärung, no qual os indivíduos, destituídos de força crítica para enxergar as contradições do mundo administrado, são dominados tanto pela irracionalidade que marca o capitalismo tardio (Adorno & Horkheimer, 1944/2006) quanto pelo fascínio das paranoias fascistas bastante comuns nessa etapa da sociedade capitalista (Adorno, 2015a, 2015b). Pois, para Adorno e Horkheimer, "a naturalização dos homens hoje não é dissociável do progresso social ... O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 14).

Nesse cenário, em que a vida se resume à reprodução da ideologia unidimensional (Marcuse, 1964/2015), a reflexão crítica é obstruída pela instrumentalidade racional, de caráter positivista, que opera pela autopreservação do indivíduo em detrimento da coletividade e de seus fins últimos (Adorno & Horkheimer, 1944/2006; Horkheimer, 1947/2015). Assim, nessa complexa rede de relações e consciências coisificadas, tem-se a anulação da singularidade em prol de uma intensa massificação, na qual inválida-se qualquer forma de resistência (Adorno, 1993, 2009; Moraes, 2006). Em suma, segundo a lógica da sociedade administrada, busca-se eliminar qualquer resquício de não-identidade (Adorno, 1966/2009; Tiburi, 2005), isto é, daquilo que é desviante aos olhos do princípio de identidade, que rege tanto a abstração conceitual quanto às relações humanas. Pois, conforme Pucci (2012, p. 5),

O não-idêntico não se expressa apenas no categorial, na desproporção entre aquilo que o conceito diz ser e o que, de fato, ele o é. O não-idêntico é, antes de tudo, o homem real, histórico, concreto que não comunga de nossa familiaridade, que não é um dos nossos.

Portanto, no registro da sociedade totalitária, em que a individualidade é pulverizada em nome de uma socialização degradante (Adorno, 1951/1993; Horkheimer, 1947/2015; Marcuse, 1964/2015), o papel da teoria crítica adorniana consiste em extrair do singular os elementos para entendimento da totalidade, uma vez que, segundo Adorno (1951/1993, p. 7), "o olhar lançado à vida transformou-se em ideologia, que tenta nos iludir escondendo o fato de que não há mais vida", onde "meio e fim veem-se confundidos". Nesse sentido, conforme o argumento de Cohn (1986), a inflexão adorniana é orientada para uma crítica à falsa consciência subjacente à formação do imaginário social. Ou seja, busca-se investigar a maneira pela qual os dados mediados da experiência são transformados em dados imediatos, isto é, objetiva-se compreender a construção da ideologia como instrumento de ofuscamento da realidade - um processo social complexo, diga-se de passagem, que envolve diversos elementos em níveis multifacetados, nos quais "as ideias e as representações são apenas as formas mais acabadas e, portanto, mais diretamente acessíveis à experiência cotidiana" (Cohn, 1986, p. 11).

Com essas considerações iniciais acerca do modelo crítico adorniano, partimos para análise de alguns aforismos que contribuem para a reflexão dos motivos que levam os sujeitos à aderência ao fascismo, para, em seguida, discutirmos a violência autoritária propriamente dita.

 

A VIDA DANIFICADA EM SEUS "MÍNIMOS GESTOS"

Para Cohn (1986), Adorno pode ser descrito como um filósofo dos "mínimos gestos". Tal perspectiva pode ser atestada na medida em que lançamos um olhar atento para alguns aforismos de Minima moralia. Ali encontramos a preocupação do teórico crítico em desvelar aspectos da vida cotidiana degradada - que vai, por exemplo, desde uma troca de presentes, ou mesmo um aperto de mão, ao declínio do indivíduo operado pelos aspectos destrutivos e irracionais da Aufklärung. Esses aspectos que estruturam o clima cultural da sociedade capitalista em sua fase tardia também estão presentes na manifestação propriamente autoritária - a agitação fascista -, pois sua irracionalidade é, na verdade, um espectro da "loucura da realidade política" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 168), de modo que "a orientação economicamente determinada da sociedade em seu todo (que sempre prevaleceu na constituição física e espiritual dos homens) provoca a atrofia dos órgãos do indivíduo que atuavam no sentido uma organização autônoma da sua existência" (1944/2006, p. 168).

Assim, os mínimos gestos, levando em consideração o caráter micrológico de análise adorniana, podem ser um eixo investigativo de suma importância na tentativa de lançar luz sobre os escombros deixados pela marcha do progresso (Benjamin, 1940/1994; Adorno, 1951/1993; Adorno & Horkheimer, 1944/2006) e que balizam a vida social. Em síntese, trata-se de "fazer falar o emudecido" (Cohn, 1986, p. 23), visto que um dos pontos que caracteriza a crítica de Adorno é a observação das "mínimas falhas" que, em sua aparente insignificância, suplantam as injustiças. Frente a isso, salienta Cohn (1986, p. 23), "Adorno é o perscrutador atento das nuances, dos pequenos gestos, do sutil jogo entre a opressão e libertação que se trava, não nas arenas grandiosas dos embates políticos ou armados, mas no tecido fino da vida social."

Isso pode ser exemplificado no aforismo 'Longe dos tiros', no qual o filósofo alemão argumenta que as notícias sobre a guerra, os repórteres e suas mortes heróicas, acopladas à mistura de informações manipuladas e planejadas, bem como às ações inconscientes, parecem transmitir certa "normalidade" à brutalidade expressa diariamente nos jornais. Tamanha avalanche de informações, em sua maioria esvaziadas de sentido crítico, denota um dos principais elementos que configuram o mundo administrado: a frieza como resultado da falta de experiência, que, por sua vez, associa-se à tecnificação da razão. Dessa forma, para o frankfurtiano, as notícias sensacionalistas acompanhadas de discursos e esquemas de fácil assimilação preparam os homens para a catástrofe administrada, de modo que esses "são rebaixados a atores de monstruoso documentário, para o qual há mais espectadores, pois todo, até o último, tomam parte da ação que se passa na tela" (Adorno, 1951/1993, p. 46).

Lembremos que tal conformidade com a vida danificada, marcada pela frieza das relações tanto públicas como privadas, deve-se à perda de experiência que foi extensamente discutida por Adorno juntamente com Max Horkheimer, em Dialética do esclarecimento (1944/2006), ao apontarem, por exemplo, a expropriação do esquematismo operado pela indústria cultural que auxilia na suplantação da razão objetiva. Essa, que deveria pensar as questões éticas e metafísicas da aplicabilidade técnica, eclipsa-se diante da autoconservação manipulada, principalmente, pela razão subjetiva (Horkheimer, 1947/2015). Desse modo, vivendo sob o signo da razão instrumental, isto é, do positivismo científico que se alastra na vida cotidiana, os homens são transformados em "apêndices", uma vez que a sustância para a realização do gênero humano, a autonomia do pensamento, é corrompida e, nesse sentido, torna-se "órgão" (organum) de reprodução da atividade laboral.

Com isso, na perspectiva de Adorno, os pequenos gestos, os mínimos detalhes, evidenciam o que acontece no todo (a sociedade administrada). No aforismo cinco, 'Isso não é bonito de sua parte, senhor doutor!', o filósofo evidencia que nenhuma ação é inofensiva: as pequenas alegrias representam não apenas a tolice de querer fugir da realidade social em que está articulada, "de um impiedoso não querer ver", mas também "colocam-se a serviço do imediato a serviço do que lhes é mais contrário". Nesse registro, até o nascimento de uma árvore participa dessa complexa trama quando se percebe sem sobressalto, sem sustos. Nisso, até mesmo uma simples interjeição, "Que beleza!", por exemplo, está acoplada à vida danificada, pois "torna-se expressão para a ignomínia da existência que é diversa ..." (Adorno, 1951/1993, p. 19).

Assim sendo, o frankfurtiano sublinha que o olhar distraído e cansado não desconfia da ingenuidade das coisas. Por isso é sempre pertinente "desconfiar de tudo que é ingênuo, descontraído, de todo descuidar-se que envolva condescendia em relação à prepotência de tudo o que existe" (Adorno, 1951/1993, p. 19), visto que a estupidez contida a uma "simples" ida ao cinema, um aperto de mão ou em uma conversa descontraída não podem ser vistos como gestos gratuitos, pois sempre escondem alguma coisa - no extremo, algum interesse. Essa caracterização de Adorno, que, a princípio, pode conter um matiz exagerado, adquire um novo sentido na medida em que avançamos no aforismo em questão:

A própria sociabilidade é participação na injustiça, na medida em que se finge ser este mundo morto um do mundo no qual ainda podemos conversar uns com os outros, e a palavra solta, sociável, contribuiu para perpetuar o silêncio, na medida em que as concessões feitas ao interlocutor humilha de novo a pessoa que fala. O princípio mau, que sempre esteve escondido na afabilidade, desenvolve-se, no espírito igualitário, em direção à sua plena bestialidade. Condescendência e falta de presunção são o mesmo. Ajustando-nos à fraqueza dos oprimidos, confirmamos nesta fraqueza o pressuposto da dominação e desenvolvemos nós próprios a medida da grosseira, obtusidade e brutalidade que é necessária para o exercício da dominação. Quando, na fase mais recente, o gesto da condescendência desaparece e só o ajustamento se torna visível, é então precisamente, nesta completa ofuscação do poder, que a relação de classe disfarçada se impõe de maneira mais implacável. ... Toda colaboração, todo humanitarismo por trato e envolvimento é mera máscara para aceitação tácita do que é desumano. É com sofrimento dos homens que se deve ser solidário: o menor passo no sentido de diverti-los é um passo para enrijecer o sofrimento. (Adorno, 1951/1993, pp. 19-20 [grifo nosso])

Se há um tom de exagero por parte do filósofo frankfurtiano, deve-se, acima de tudo, à sua tentativa de elaborar uma teoria crítica em que a sociabilidade seja o tema central e que, ao mesmo tempo, possa construir hipóteses acerca dos elementos que auxiliam no entendimento acerca de sua autodestruição.

Nesse processo, graças à falta de autenticidade de gestos, o pensamento como possibilidade de libertação e autonomia é suplantado. Segundo esse diagnóstico, a sociedade que um dia sonhou com a realização da razão, isto é, almejou ideais de liberdade e autonomia (o uso livre da razão), encontra-se bloqueada desses potenciais emancipatórios (Adorno & Horkheimer, 1944/2006). Logo, a razão, aquilo que poderia servir como instrumento de comunicação entre os homens, tornou-se no capitalismo tardio um aparelho vinculado ao modo de produção e reprodução do capital e de suas mazelas.

Diante disso, lembremos que a razão instrumental se pauta, majoritariamente, na aplicação de conceitos técnicos esvaziados de sentido crítico e que são bastante difundidos sob o argumento falacioso de neutralidade científica. Tamanha falácia, que analisa os fatos como se a realidade sócio-histórica estivesse apartada da investigação epistemológica, foi o que possibilitou, em larga medida, os assassinatos em massa administrados pelo Estado alemão na Shoah. Por isso,

Adorno não hesita em afirmar que tudo aquilo que concerne às regras mínimas da ação, à doutrina da "vida reta", inclusive o termo "vida", encontra-se - após ter se deslocado para o âmbito do mundo privado - reduzido à esfera do mero consumo, com a implicação adicional de que tal esfera, hoje, nada mais é que um apêndice, destituído de autonomia e de substância própria, do processo de produção material. (Musse, 2011, p. 176)

Nesse registro a pressão social exercida sobre o sujeito evidencia, inclusive, a inexistência de um espaço para relaxamento (Moraes, 2006), uma vez que o entretenimento massificante fornecido pela indústria cultural (Adorno & Horkheimer, 1944/2006) funciona como uma argamassa que impele o sujeito ao conformismo e a práticas sociais desumanas, de modo que ele não tenha que confrontar as contradições sob o véu tecnológico. Por isso, as relações construídas no regime do mundo administrado "escondem o interesse geral de nunca ir além do contato superficial" (Moraes, 2006, p. 135).

Tal aspecto pode ser melhor observado no aforismo três, 'Peixe n'água', no qual Adorno elucida acerca da superficialidade das relações no campo privado - no espaço "familiar" - , que na configuração atual do capitalismo tornou-se, por assim dizer, o espaço de agentes comerciários, isto é, de sujeitos que reproduzem as atividades econômicas dos setores público e laboral. De acordo com o frankfurtiano, as operações executadas no âmbito comercial atravessam a vida privada, de modo que nesse território soe estranho caso as relações não se orientem para algum fim (interesse), uma vez que a irracionalidade contida no sistema capitalista captura não apenas a forma de pensar do sujeito, moldando-o, mas também sua experiência e a maneira como ele se relaciona com os outros homens. Portanto, no declínio de uma experiência verdadeira é no mínimo suspeito dizer que "nada quer", tendo em vista que

Inúmeras pessoas fazem sua profissão de um estado que decorre da liquidação da profissão. São aquelas pessoas amáveis, estimadas, que são amigas de todos, os justos, que desculpam humanitariamente qualquer infâmia e repelem inflexivelmente toda emoção não convencional como sentimental. Elas são imprescindíveis por seu conhecimento de todos os canais e esgotos do poder, adivinham seus juízos mais secretos e vivem de sua pronta comunicação. Encontram-se em todos os campos políticos, mesmo lá onde a recusa do sistema é tida como óbvia e deu origem a um conformismo sui generis, lasso e matreiro. Frequentemente seduzem por uma certa bondade, uma compassiva participação na vida dos outros: altruísmo por especulação. São espertas, bem-humoradas, sensíveis e capazes de reagir: elas poliram o velho espírito de negociante com as últimas novidades da Psicologia. De tudo são capazes, até mesmo de amar, conquanto sempre deslealmente. Elas não enganam por instinto, e sim por princípio: a si mesmas avaliam como lucro, que a nenhum outro concedem. Ao espírito vinculam-nos uma afinidade eletiva e ódio: são uma tentação para os meditativos, mas são também os piores inimigos destes. Pois são aquelas pessoas que sutilmente conquistam e arruínam os últimos refúgios de resistência; as horas que ficam livres das exigências da maquinaria. Seu individualismo tardio envenena o que porventura ainda restou do indivíduo. (Adorno, 1951/1993, p. 18)

Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (1999) sublinham que a lógica matemática, que alicerça a razão instrumental, estende-se às relações afetivas, que apresentam, no registro da ordem esclarecida, um funcionamento bastante parecido com a lógica de intercâmbio das mercadorias. Isso fica evidente, por exemplo, no sorriso esboçado após o ganho de um presente, visto que nesse gesto aparentemente inofensivo

esconde-se a imediata equação que associa a imagem do favorecido com a grife do presente escolhido. Se realmente for uma marca que possibilita a certificação social e particular de uma pessoa de "valor", a sensação de felicidade é imediata. Se não ocorrer uma correspondência instantânea entre a quantidade de afeto que alguém imagina que o outro sinta por nós e a quantidade de dinheiro gasta para a compra do presente, sente-se uma pessoa "desvalorizada." (Zuin, Pucci, & Ramos-de-Oliveira, 1999, p. 69)

Com isso, observa-se que Adorno não analisou o sujeito desvinculado de suas relações sociais, uma vez que seu diagnóstico se orientou na corroboração acerca da sociabilidade danificada, cujas possibilidades de libertação foram pulverizadas pela racionalidade da totalidade técnica.

Para Adorno e Horkheimer (1944/2006), a coerção social é o que impossibilita o sujeito de obter uma vida autêntica, pois a dominação perpetua a complacência dos homens com a autoridade, resultando em uma subserviência aos mais fortes e uma desconsideração com os mais fracos. Esse aspecto contido no cerne do processo civilizador é o que aparece na agitação autoritária, denotando que a vida cotidiana já prepara subterraneamente aquilo que no autoritarismo se apresenta de maneira funesta: a violência desmedida.

O comportamento antissemita é desencadeado em situações em que os indivíduos obcecados e privados de sua subjetividade se veem soltos enquanto sujeitos. Para as pessoas envolvidas, seus gestos são reações letais e, no entanto, sem sentido, como as que os behavioristas constatam sem interpretar. O antissemitismo é um esquema profundamente arraigado, um ritual da civilização, e os pogroms são os verdadeiros assassinatos rituais. Neles fica demonstrada a impotência daquilo que poderia refreá-los, a impotência da reflexão, da significação e, por fim, da verdade. O passamento pueril do homicídio é uma confirmação da vida estúpida a que as pessoas se conformam. (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, pp. 141-142)

Portanto, constata-se que a imposição externa da vida danificada produz um embrutecimento do sujeito tanto de sua capacidade reflexiva quanto afetiva, uma vez que sua sensibilidade é pulverizada no ajustamento social. Assim, na tentativa de sobreviverem no mundo administrado, "as pessoas recalcam a história dentro de si mesmas e dentro das outras, por medo de que ela possa recordar a ruína de sua própria vida, ruína essa que consiste em larga medida no recalcamento da história" (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 178).

Segundo Adorno (1967/1995b), foi a falta de empatia com o sofrimento alheio que possibilitou a existência de Auschwitz, uma vez que, como se sabe, médicos e engenheiros, pautados com o discurso neutralidade científica, levaram a cabo o extermínio de indivíduos considerados inferiores. Tamanha incapacidade de se sensibilizar com outro, ou mesmo de amar, relaciona-se tanto com as exigências psíquicas, de uma falta de experiência oriunda da dominação social, quanto da forma pela qual os indivíduos lidam com a técnica (Adorno, 1967/1995b). Nesse registro, o frankfurtiano observa que, quando levada ao extremo, e percebida como um fim em si mesma, a técnica é executada de maneira fria e, ao mesmo tempo, justificada pela ordem esclarecida (Adorno, 1967/1995b).

Frente a isso, compreende-se que a transformação dos homens e do pensamento em engrenagens da maquinaria social não teria seu êxito destrutivo se o componente da frieza não estivesse presente e que, segundo Crochík (2006), possibilita ao indivíduo reificado não se angustiar diante dos conflitos oriundos das mazelas sociais, e nem se identificar com aqueles que foram excluídos. O aforismo 'Não bater à porta' ilustra isso de modo apurado:

A tecnificação torna, entrementes, precisos e rudes os gestos, e com isso os homens. Ela expulsa das maneiras toda hesitação, toda ponderação, toda civilidade, subordinando-as às exigências intransigentes e como que a-históricas das coisas. Desse modo, desaprende-se a fechar uma porta de maneira silenciosa, cuidadosa e, no entanto, firme. As portas dos carros e das geladeiras são para serem batidas, outras têm a tendência a fechar-se por si mesmas, incentivando naqueles que entram no mau costume de não olhar para trás, de ignorar o interior da casa que os acolhe. Não se faz justiça ao novo tipo de homem, se não se tem consciência daquilo a que está incessantemente exposto pelas coisas do mundo ao seu redor, até em suas mais secretas inervações. O que significa para o sujeito que não existem mais janelas que se abram como asas, mas somente vidraças de correr para serem bruscamente impelidas? Que não existem mais trincos de portas, e sim maçanetas giratórias, que não existam mais vestíbulos, nem soleiras dando para a rua, nem muros ao redor do jardim? E qual o motorista que já não foi tentado pela potência do motor do seu veículo a atropelar a piolhada da rua, pedestres, crianças e ciclistas? Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que delas se servem localizam-se já a violência, os espancamentos, a incessante progressão aos solavancos das brutalidades fascistas. No deperecimento da experiência, um fato possui uma considerável responsabilidade: que as coisas, sob a lei de sua pura funcionalidade, adquirem uma forma que restringe o trato delas a um mero manejo, sem tolerar um só excedente - seja em termos de liberdade de comportamento, seja de independência da coisa - que subsista como núcleo da experiência porque não é consumido pelo instante da ação. (Adorno, 1951/1993, p. 33, [grifo nosso])

 

AUTORITARISMO E ELIMINAÇÃO DA DIFERENÇA (NÃO-IDÊNTICO)

Com isso exposto, pode-se afirmar que o exílio norte-americano atestou para Adorno a tendência regressiva da cultura, principalmente no que concerne à degradação do indivíduo. Essa, na análise do frankfurtiano, não deixa de ter certo alinhamento com a aceitação da panfletagem autoritária, pois há uma relação sine qua non na construção da personalidade e o conjunto de valores e ideias que formam a consciência social (Adorno, 2019a). A rigor, deve-se considerar o fascismo como um índice do movimento irracional que sedimenta a Aufklärung e que visa administrar tanto o plano socioeconômico quanto o aparato psíquico (subjetivo) dos indivíduos por meio de enunciados psicotécnicos (Adorno & Horkheimer, 1944/2006). Tal fato tem seu êxito tenebroso graças à expropriação da capacidade de julgar executada pelas formas de produção econômica que organizam a vida social. Nesse registro, o conflito interno (julgamento), produto de uma dialética entre pulsões, consciência e conservação, é apaziguado, de modo que o sujeito não precise tomar nenhuma decisão, pois,

para as pessoas na esfera profissional, as decisões são tomadas pela hierarquia que vai das associações até a administração nacional; na esfera da vida privada, pelo esquema da cultura de massa, que desapropria seus consumidores forçados de seus últimos impulsos internos. (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 167)

Nesse sentido, Adorno argumenta que o nazismo "ativou" em cada cidadão alemão o seu potencial antidemocrático (Adorno, 1950/2019a). Todavia, o filósofo observa que tal aspecto não seria diferente nos Estados Unidos, pois para que isso fosse possível era preciso contar com o apoio das pessoas ou, pelo menos, com a falta de resistência dessas à propaganda autoritária (Adorno, 1951/2015b, 1950/2019a, 1951/2019b). Por isso não soa descabido quando o frankfurtiano compara as receitas da agitação fascista hitleriana com aquelas proferidas pelos pequenos grandes homens americanos (Adorno, 1951/2015b). Ambos lançam mão de técnicas discursivas que se coadunam com a mentalidade rígida e estereotipada dos seus seguidores e com isso estabelecem em seus discursos quem é "bom" e quem é "mau", de modo que o estranho (não-idêntico) é considerado inferior, suspeito; e, por esse motivo, hostilizado pelo grupo (Adorno, 1951/2015b, 1950/2019a).

Pode-se observar que o interesse dessa agitação não se centra em uma política democrática efetiva, uma vez que seu caráter antidemocrático quebra a noção de pacto social. Logo, o agitador autoritário almeja o controle, isto é, o poder sobre as massas, fazendo uso de um falso carisma, de modo que as pessoas depositem sua confiança nele (Adorno, 1951/2019b). Todavia, Adorno (1951/2015b) observa que demasiada confiança, na verdade, revela-se como uma grande impostura, um teatro, que está estritamente alinhada à condição na qual as pessoas são incapazes de decidir e determinar seu próprio destino. Tal aspecto deriva de uma desilusão, ou, no mínimo, uma desconfiança tanto na autenticidade quanto na efetividade dos "processos políticos democráticos" (1951/2019b, p. 1). Por isso, as pessoas "são tentadas a entregar sua substância de autodeterminação democrática e arriscar sua sorte com aqueles que ao menos consideram poderosos: seus líderes" (Adorno, 1951/2019b, p. 1).

Para o teórico crítico, as pessoas aceitam as sugestões do líder autoritário não somente porque lhes faltam uma confrontação da realidade, de modo que possam assumir em suas próprias mãos o destino de suas vidas, mas também porque o discurso fascista caracteriza-se por uma dinâmica similar das propagandas do rádio e da TV (ou seja os elementos que constituíam, em larga medida, a industrial cultural naquele período e que contribuíam na formação da consciência social): repetição incessante de slogans batidos com frases de efeitos, seguidos de gritos. Por isso, Adorno denomina o líder autoritário de "incitador da turba", pois seus dispositivos estão calcados em cálculos psicológicos que se relacionam com o jogo sujo da manipulação ao invés de "angariar seus seguidores através da colocação racional de fins racionais" (1951/2015b, p. 154). Portanto, seu principal objetivo consiste na transformação dos indivíduos em turbas, isto é, em massas inclinadas a ações sem uma finalidade política minimamente sensata.

Além disso, os discursos do líder autoritário caracterizam-se por uma abordagem sistemática, padronizada. Com isso, ele visa, no tom monótono do seu falatório - de caráter oral e, portanto, histérico -, abolir a democracia com o auxílio das próprias massas (Adorno, 1951/2015a). Para tanto, sua miséria discursiva opera de maneira eficaz, graças à condição de seus seguidores que apresentam uma capacidade reflexiva rudimentar, ou, no mínimo, uma certa indisposição para "abrir os olhos" (Adorno, 1951/2015a), que resulta das circunstâncias apresentadas acerca da vida danificada. Por isso, argumenta Adorno, o líder não espera que a audiência se aborreça com aquilo que ele diz, pois

acredita que é a pobreza intelectual de seu quadro de referência que fornece o halo de auto-evidência, senão uma atração peculiar, àqueles que sabem o que podem esperar para si mesmos da mesma forma como as crianças desfrutam da repetição literal e interminável de uma mesma história ou cançoneta. (Adorno, 1946/2019b, p. 4)

Adorno (1946/2015a, 1951/2015b), numa atenta leitura da psicologia social freudiana, principalmente de O mal-estar na civilização e a Psicologia de massa e análise do Eu, salienta que o líder autoritário almeja, com suas falas desinibidas, incitar uma parcela da herança arcaica dos integrantes de seu grupo, de modo a proporcioná-los o prazer de agressão que há muito estava inibido em sua meta. Para isso, ele enfatiza sempre que possível que os integrantes do grupo (in-group) são melhores do que aqueles que estão do lado de fora (out-group).

Além disso, o agitador oferece gratificação ao seu público quando se posiciona como um líder forte, encarnando, com isso, a imagem do pai da horda primeva descrita por Freud em Totem e tabu (1912-193/2012). Esse ponto consiste, para Adorno, na raiz última da personalização da propaganda autoritária em que o agitador objetiva transcender o pai individual, tornando-se, desse modo, o grande pai (Adorno, 1951/2015b). Nesse segmento, por meio de cálculos psicológicos, busca a reiteração incessante de "supostos grandes homens", impulsionando, a partir disso, a mobilização dos seus seguidores para uma posição passivo-masoquista. No engrandecimento de sua personalidade, ele fornece um ganho narcísico àqueles que o seguem. Para isso, ele exalta sua imagem para que os indivíduos se identifiquem com ela, e promove a agitação autoritária ao culpar os outros, o out-group, pelos males que assolam a sociedade (Adorno, 1951/2015b, 1951/2019b), pois na estrutura de funcionamento do fascismo há um "desejo de extermínio que está conectado com as ideias de sujeira e podridão, caminhando lado a lado com a ênfase exagerada em valores físicos externos, como asseio e limpeza" (Adorno, 1951/2019b, p. 4).

Nesse registro, de modo geral, as pessoas deixam-se seduzir pelo encantamento do discurso autoritário porque não possuem o "conflito moderno característico entre uma instância do eu racional, fortemente desenvolvida e auto conservadora, e o contínuo fracasso em satisfazer as demandas do seu próprio eu" (Adorno, 1951/2015b, p. 169), cujo resultado pode ser expresso pelos fortes impulsos narcísicos que são satisfeitos pela idealização. Nesse sentido, em sua leitura de Freud, Adorno indica que o sujeito ao amar o líder investe sua libido nesse, sem saber conscientemente que, no fundo, ama a sua própria imagem e com isso livrar-se "das manchas de frustração e mal-estar que desfiguram a imagem de seu próprio eu empírico" (Adorno, 1951/2015b, p. 169). Em Antissemitismo e propaganda fascista (1946/2015a), o filósofo sublinha outra característica encontrada nos agitadores e que está intrinsecamente alinhada com os esquemas localizados na vida danificada: trata-se das performances, dos shows apresentados pelos líderes e que, na perspectiva adorniana, não está distante dos anúncios de venda da indústria cultural da novela, na qual sempre se oferta alguma coisa. Com isso, o teórico crítico alerta que no autoritarismo, geralmente, o que se vende são os "próprios defeitos psicológicos" (1946/2015a), de modo que possa alcançar uma "similitude", um "truque de unidade" entre os "incitadores da turba" e seus seguidores. Para tal fim, não hesitam em lançar mão de imagens ultrapassadas, mais precisamente daquilo que foram no passado. Autoproclamam-se e, com isso, facilitam a aspiração e aderência do rebanho iludido.

Nesse ínterim, Adorno aponta que, ao mobilizar os sujeitos para o grupo, o líder autoritário promove uma espécie de ritual com significativas diferenciações hierárquicas. Assim, apresenta-se como um homem honesto, limpo, com notáveis êxitos, de modo que as estruturas hierárquicas construídas no interior da massa possam ser integradas ao desejo sadomasoquista de seu público. Nesse registro opera-se a tendência de pisar nos debaixo, que consiste no afastamento e hostilização daqueles que são considerados diferentes, inferiores, abjetos.

Tal tendência, sublinha Crochík (2006), funciona como um atenuador da sensação de fragilidade contida nos próprios integrantes do grupo e que é registrada, principalmente, pela história das renúncias que cada sujeito precisou fazer em nome da civilização. Assim, para que essa lógica de pisotear os mais fracos tenha êxito, de certa forma, é preciso que o sujeito se identifique com os valores culturais estabelecidos, isto é, com o status quo. Por sua vez, na medida em que esses valores se apresentam inflexíveis e onipotentes, abarcando a vida em sua totalidade, os indivíduos tendem a se tornar rígidos e destituídos de substância autônoma, de modo que seus pensamentos e ações são orientados de maneira hierárquica (Horkheimer & Adorno, 1956/1973).

Nesse sentido, Horkheimer e Adorno (1956/1973) destacam que certos aspectos da infância do sujeito participam dessa congregação autoritária porque, para esses pensadores, o sujeito autoritário sofreu graves traumas ligados a um pai muito severo ou por falta de afeto do mesmo. Para os filósofos, isso parece justificar parcialmente a precária afetividade dos sujeitos no mundo administrado, no qual a superficialidade de sentimentos, inclusive com pessoas muito próximas, mostrou-se como característica central nas pesquisas sobre a personalidade autoritária. Além disso, indicam que esse tipo de caráter possui uma estrutura relativamente rígida e que se submete à autoridade de modo subserviente, independente da ideologia política e, por isso, adentra no grupo de maneira cega, reforçando valores convencionais, e muitas vezes obsoletos, posando como cidadão bem-comportado, de conduta reta e invejável, diligente, limpo, capacitado para trabalhar, gozando de boa saúde física e mental. Coloca-se, diante disso, como um sujeito normal:

apesar de procurarem adotar as atitudes de pessoas normais - e é até possível que sejam, no sentido de um bom comportamento funcional, na vida prática - trata-se de indivíduos com profundas lesões psíquicas, prisioneiros de seu ego vulnerável e fraco, incapazes de ter acesso a tudo o que estiver além de seus interesses, pessoas ou grupos limitados. (Horkheimer & Adorno, 1956/1973, pp. 179-180)

Essa caracterização relaciona-se com a dinâmica da sociedade administrada, tal como descrita por Adorno nos aforismos de Minima moralia, em que os indivíduos, imersos na burocratização da convivência reificada, não enxergam as relações de dominação que muito determinam seus desejos - esses, como se sabe, devem estar em consonância com os produtos que são ofertados pela indústria cultural (Adorno & Horkheimer, 1944/2006). Desse modo, nas condições aqui apresentadas, os indivíduos não podem se permitir a nenhum desejo além daqueles impostos pelas regras sociais que organizam a sociedade administrada, visto que eles "têm por obrigação seguir as leis da produção capitalista, a lei do trabalho em vista da mais-valia (e não da realização pessoal ou coletiva), a lei da sexualidade familiar e higiênica com papéis sexuais bem determinados" (Gagnebin, 2006, p. 85). Portanto, compreende-se que na ordem social esclarecida, a liberdade individual, e consequentemente a noção de autonomia, apresenta-se como mera aparência, pois a totalidade das relações sociais se sobrepõem ao indivíduo, mutilando-o objetivamente e subjetivamente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como consideração final, vale expor que Adorno não lança receitas para alívio do mal-estar e nem acredita, por exemplo, que seja possível "conversar" com fascistas, uma vez que estes "têm resposta" para tudo (Adorno & Horkheimer, 1944/2006, p. 173). Todavia, na década de 1960, o teórico crítico argumentou em suas palestras e conferências acerca da necessidade da não repetição da barbárie, Auschwitz, e que esse imperativo deveria ser o objetivo último no campo educativo (Adorno, 1967/1995b) realizando-se, acima de tudo, no desvelamento das estruturas que determinam a regressão ao irracionalismo autoritário.

Nesse sentido, o presente artigo centrou-se em ser uma mensagem na garrafa (Adorno, 1993/1996), no sentido adorniano do termo, apontando alguns mecanismos que ainda possibilitam a adesão dos sujeitos aos discursos e grupos fascistas e, que nessas primeiras décadas do século XXI, retornam de maneira sombria, visto que ainda não foi possível escrevermos nossa história a contrapelo (Benjamin, 1940/1994). Pois, conforme salientado por Adorno (1959/1995a, p. 49), "o passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas".

 

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Recebido 07/6/2019
Revisado 29/11/2019
Aprovado 23/4/2020
Financiamento: Pesquisa fomentada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) sob o número de processo 17/11435-9.

 

 

* O presente artigo é resultado dos estudos que compõem a Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Campus de Assis/SP, em setembro de 2019, sob a orientação do Prof. Dr. Gustavo Henrique Dionisio. Pesquisa fomentada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) sob o número de processo 17/11435-9.
1 Theodor W. Adorno permaneceu exilado nos Estados Unidos no período de 1938 a 1949.
2 Sobre outras figuras de estilo que aparecem na obra adorniana ver Musse (2011).
3 Contudo, o diagnóstico desses pensadores não se limitou somente aos conflitos bélicos e ao totalitarismo que compõem o complexo cenário no início do século XX. Dito de outro modo: afirmar-se que, no interior da Escola de Frankfurt, há mudanças de perspectivas, reformulações e reconsiderações acerca dos temas explorados, visto que estes pensadores adotam uma perspectiva dialética dos fenômenos, sejam eles quais forem, diferenciando-se, portanto, das perspectivas positivistas, isto é, da teoria tradicional, tal como Horkheimer caracterizou no ensaio Teoria tradicional e teoria crítica. Entretanto, salienta-se que foge do objetivo deste artigo tratar desse tema na sua amplitude e densidade teórica; assim, para maior compreensão acerca do tema, ver Safatle (2019) e Fleck (2017, 2019). Além disso, ainda é possível afirmar que a teoria crítica, principalmente a adorniana, ainda possui relevância significativa na análise dos fenômenos psicossociais do nosso tempo presente, visto que as condições que os determinam ainda não foram extintas (a indústria cultural, por exemplo, continua massificando os homens, levando-os a uma adaptação dócil ao status quo). As teorias de Axel Honneth (2009) e Jürgen Habermas (2000) trazem ao debate filosófico e sociológico perspectivas que precisam ser pensadas acerca da crítica adorniana. Esses autores questionam a atualidade da crítica de Adorno ao mundo reificado, apontando aporias em seu pensamento, principalmente no que tange à Dialética do esclarecimento - como é o caso de Habermas - ou de um déficit sociológico no pensamento crítico de Adorno - tal como sublinhado por Honneth. De todo modo, seguindo a linha de raciocínio de Safatle, em Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (2019), ressalta-se que a teoria adorniana ainda possui expressiva pertinência na crítica social, haja vista que sua perspectiva dialética ainda nos auxilia a olhar para o presente e, com isso, vislumbrar novas formas de compreensão, pois, como o próprio Adorno afirmava em sua Dialética negativa, "A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização" (Adorno, 1966/2009, p. 11).

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