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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.53 São Paulo Jan./Apr. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Desocupa já! Eu quero aula: Aspectos psicossociais que motivam o Movimento Desocupa

 

Vacate now! I want to take class: Psychosocial aspects that motivate the Desocupa Movement

 

¡Desocupar ahora! Yo quiero tener clases: Aspectos psicosociales que motivan el Movimiento Desocupa

 

 

Karina Oliveira Martins

Psicóloga clínica. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia/GO, Brasil. kar1na.oliveira@hotmail.com

 

 


RESUMO

O movimento de ocupação de instituições de ensino em 2016 contrário à Proposta de Emenda Constitucional 241/55 foi um marco na história recente do país. Em reação a tal movimento veio o movimento "Desocupa", que apesar de pouca expressividade é um movimento relevante para entender a direita brasileira atual. Nesta pesquisa, tal movimento é interpretado por meio de análise documental de suas redes sociais. É apreendido aspectos psicossociais presentes na mobilização do movimento "Desocupa" a partir das categorias de Vida Cotidiana de Agnes Heller e Consciência Política de Salvador Sandoval. Identifica-se a defesa da particularidade, uma defesa simbólica do Eu e a presença da consciência cotidiana como algo central para o movimento, uma identidade política embrionária, uma meta coletiva bem definida e a crença na eficácia política do próprio movimento, valores, normas, expectativas próprias ao modo de produção capitalista e uma defesa de neutralidade política e pluralidade, entre outras questões.

Palavras-chave: Desocupação; Estudantes; Direita; Consciência Política, Vida Cotidiana.


ABSTRACT

The movement to occupy educational institutions in 2016 against the Proposal for Constitutional Amendment 241/55 was a milestone in the country's recent history. In reaction to this movement came the "Desocupa" movement, which despite not being very expressive is a relevant movement to understand the current Brazilian Right. In this research, such movement is interpreted through documentary analysis of their social networks. Psychosocial aspects present in the mobilization of the "Desocupa" movement are apprehended from the categories of Daily Life by Agnes Heller and Political Consciousness of Salvador Sandoval. It identifies the defense of particularity, a symbolic defense of the Self and the presence of everyday consciousness as a central element to the movement, an embryonic political identity, a well-defined collective goal and the belief in the political effectiveness of the movement itself, values, norms, specific expectations to the capitalist mode of production and a defense of political neutrality and plurality, among other issues.

Keywords: Unoccupancy; Students; Right-wing Politics; Political Consciousness, Everyday Life.


RESUMEN

El movimiento de ocupación de las instituciones de enseñanza en 2016 en contra de la Propuesta de Enmienda Constitucional 241/55 fue un hito en la historia reciente del país. Como reacción surgió el movimiento "Desocupa", que a pesar de ser poco expresivo es un movimiento relevante para comprender la derecha brasileña actual. En esta investigación, dicho movimiento es interpretado a través del análisis documental de sus redes sociales. Los aspectos psicosociales presentes en la movilización del movimiento "Desocupa" son aprehendidos a partir de las categorías Vida Cotidiana, de Agnes Heller, y Conciencia Política, de Salvador Sandoval. Se identifica la defensa de la particularidad, una defensa simbólica del Yo y la presencia de la conciencia cotidiana como elemento central del movimiento, una identidad política embrionaria, un objetivo colectivo bien definido y la creencia en la efecacia política del movimiento mismo, valores, normas, expectativas propias del modo de producción capitalista y una defensa de la neutralidad política y la pluralidad, entre otras cuestiones.

Palabras clave: Desocupación; Estudiantes; Derecha; Conciencia política, Vida cotidiana.


 

 

INTRODUÇÃO

Em 2016, estudantes brasileiros ocuparam 1.154 instituições públicas de ensino no país, o maior número de ocupações já visto na história. Iniciada em 4 de outubro em São José dos Pinhais-PR, as ocupações se alastraram e envolveram 22 dos 24 estados brasileiros, mais o Distrito Federal. Atingiram universidades, institutos e principalmente escolas secundaristas, envolvendo a esfera estadual, federal e mesmo a municipal com a ocupação da Câmara Municipal de Guarulhos (SP) (Abrantes, 2016).

As ocupações se deram em resistência à Proposta de Emenda Constitucional 241/55 (PEC 241/55) e a Reforma do Ensino Médio, com a primeira ganhando centralidade. A PEC 241 (no senado ela se tornou a PEC 55) foi apresentada em 15 de junho de 2016, pelo então presidente Michel Temer do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e aprovada no senado no dia 13 de dezembro de 2016. Tal emenda instituiu um Novo Regime Fiscal. Com base nos gastos de 2017, as despesas estatais primárias, como saúde e educação, foram congeladas por 20 anos, com o aumento de gastos restringindo-se a reposição inflacionária, o que na prática implicou uma opção de jogar o ônus da crise econômica brasileira aos mais pobres, aprofundando a desigualdade (Conselho Federal de Economia [COFECON], 2016).

Em reação as ocupações teve-se o movimento desocupa. Não foram encontrados estudos ou relatos sistematizados sobre seu surgimento e alcance. Apesar disto, o movimento desocupa é relevante na medida que marca uma transformação na mobilização da direita brasileira. Após junho de 2013 a direita redescobriu às ruas, mobilizando-se desde então em manifestações nacionais, às vezes caracterizadas por atos massivos, como os atos anticorrupções e pró-impeachment convocados por grupos que ganharam notoriedade, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem pra Rua. Outrora, caracterizada por atos minúsculos, como os em defesa da ditadura militar convocados por pequenos grupos de extrema-direita. O movimento desocupa pode ser considerado uma mudança qualitativa nestas mobilizações, a expressão de um embrião de enraizamento desta direita que passou a atuar em mobilizações menores, contínuas, locais, com pautas imediatas e concretas e usando as redes sociais como ferramenta fundamental, o que não significa que os grandes grupos estivessem alheios a tais mobilizações e nem que haja uma oposição entre tais táticas.

Esta pesquisa analisa os aspectos psicossociais presentes nas mobilizações do movimento desocupa. Entende-se que a caracterização do movimento como direita não implica uma identificação de seus participantes como tal. Isto é, entre a prática concreta do movimento, seu discurso e a consciência de seus participantes pode haver contradições significativas que ajudam na compreensão do aspecto mobilizador deste movimento. Para tal análise esta pesquisa fundamenta-se na Teoria do Cotidiano de Agnes Heller e na categoria de Consciência Política de Salvador Sandoval.

Fundamentada no materialismo histórico-dialético, Agnes Heller faz uma análise ontológica do cotidiano, na qual afirma que há duas dimensões inelimináveis do ser humano: a genérica e a particular. A vida cotidiana é o lugar de excelência da particularidade, é nela que o particular reproduz sua existência, o que não significa que haja necessariamente uma alienação em relação a dimensão genérica. É possível ter uma relação estranhada ou consciente e intencional com a genericidade, cuja tendência é determinada pelo modo de produção. O modo de produção capitalista se organiza a partir da exploração do trabalho para a extração de mais-valia, o que faz com que a maioria da humanidade fique restrita a própria vida cotidiana. A maioria da classe trabalhadora têm a vida reduzida a busca por reproduzir a própria existência, a vida fica restrita a vida cotidiana cujo centro é a própria particularidade, desenvolvendo uma dimensão alienada com a genericidade e mantendo parcas relações com a dimensão não-cotidiana da vida, como ciência e arte (Heller, 1987).

Salvador Sandoval dialoga com Agnes Heller e inúmeros outros autores para a formulação do conceito de consciência política (Silva, 2001). A consciência política é um aspecto constitutivo da consciência composta por dimensões sociais e psíquicas entrelaçadas, cuja relevância e papel de cada dimensão podem ser compreendidos mediante a análise individual. No entanto, aqui tal categoria é apropriada não para apreender a consciência política individual dos participantes do movimento desocupa, mas para apreender os aspectos psicossociais coletivos presentes na mobilização de tal movimento. As dimensões da consciência política são: identidade coletiva; crenças, valores e expectativas societais; identificação de adversários e interesses antagônicos; eficácia política; vontade de agir coletivamente e metas de ação coletiva. Tais dimensões contêm sentimentos afetivos que atribuem significados e relevâncias para determinados aspectos destas dimensões, influenciando diretamente no comportamento das pessoas. Os sentimentos são responsáveis por possibilitar a implicação do sujeito neste processo. Nesta perspectiva, não há oposição de razão e emoção, pelo contrário, os sentimentos são basilares e constitutivos da razão. Assim, pensamento, sentimento e percepção aparecem entrelaçados, não sendo possível separá-los (Sandoval & Silva, 2016).

Para alcançar tal objetivo optou-se pela análise documental. Entende-se que "os documentos são registros escritos que proporcionam informações em prol da compreensão dos fatos e relações, ou seja, possibilitam conhecer o período histórico e social das ações e reconstruir os fatos e seus antecedentes, pois se constituem em manifestações registradas de aspectos da vida social de determinado grupo" (Sousa, Kantorski, & Luíz, 2011, p. 223). A análise documental permite a apreensão das relações constituídas entre os agentes envolvidos no documento, os aspectos da vida social e da história, constituindo uma rica fonte de análise. Ademais, tais documentos podem expressar elementos psicossociais de um tempo ou grupo, inclusive, aspectos afetivos.

No caso desta pesquisa, tais documentos são entrevistas de membros do desocupa, vídeos e páginas de facebook que participaram ativamente na defesa das desocupações de instituições de ensino. Tal escolha se deve a centralidade que as redes sociais tiveram como meio de mobilização e comunicação. Foram analisados 15 vídeos de momentos de desocupação, entrevistas, conferência e 11 páginas1: Desocupa; Desocupa IFC2; Desocupa JÁ - PUCRS; Desocupa Paraná; Desocupa UFRGS; Desocupa UNIRIO; UFG livre; UNEL; UFPE Livre; UFRN Livre; Queremos Aula. Além do grupo de Facebook Volta as aulas UFRGS- - NÃO SE CALE. Tais páginas são tanto de páginas oficiais do movimento desocupa, como de grupos que protagonizaram tal movimento à nível local.

Para chegar em tais páginas foi feita uma pesquisa das páginas no Facebook com as palavras chaves "Desocupa" e "Desocupação". Nestas páginas foram encontradas as entrevistas analisadas. Foram selecionadas páginas ativas no período das ocupações, com um mínimo de postagem de três vezes por semana e um mínimo de 100 curtidas. Apesar de o aspecto geográfico não entrar como critério de escolha, acabou-se por adotar páginas de diversos estados e regiões do país.

Tais documentos foram redigidos e/ou protagonizados pelos próprios agentes dos movimentos desocupas. Portanto, são documentos dinâmicos cuja produção se deu no intuito de comunicação direta com simpatizantes do movimento. São a forma oficial de expressão e mobilização do movimento.

Por meio de leituras sucessivas e sistemáticas de todo o material foi possível identificar aspectos comuns que possibilitaram uma visão total do material e a sua análise por meio de conceitos chaves. O artigo é dividido em caracterização do movimento e aspectos psicossociais, que são: identificação de adversários e interesses antagônicos; vida cotidiana, particularidade e genérico-humano; identidade, valores, normas e expectativa societais; eficácia política, vontade de agir coletivamente e metas de ação coletiva.

 

MOVIMENTO DESOCUPA: CARACTERIZAÇÃO

O Movimento Desocupa era formado por estudantes, professores, pais e participantes de movimentos de direita contrários as ocupações. Era descentralizado, organizado à nível local e centrado na defesa das desocupações de instituições de ensino. Apesar do caráter local os grandes grupos de direita não ficaram alheios a tal mobilização, com destaque para o Movimento Brasil Livre (MBL).

O MBL é um grupo de direita liberal, favorável a PEC 241/55 e que acusava professores de esquerda de doutrinarem estudantes e as ocupações de serem financiadas por partidos políticos e sindicatos com interesses de oposição ao governo federal (MBL, 2016).

 

 

O MBL atuou diretamente na formação de movimentos desocupas. Fez vaquinha online para ajudar em desocupações e ganhou até um outdoor de agradecimento por sua atuação nas desocupações, embora o mesmo conte com uma assinatura genérica, levantando dúvidas sobre a veracidade do agradecimento (MBL, 2016). Instigou a criação de movimentos desocupas locais e de uma rede de contato nacional, agiu diretamente na desocupação de escolas, organizou manifestações locais, transmitiu desocupações ao vivo e chegou até a ser acusado de violência física contra ocupantes (Paraná Portal, 2016).

Têm-se já uma motivação para o movimento desocupa: uma perspectiva ideológica que orienta a visão da sociedade. Assim, há uma clara oposição entre projetos societários, um liberal, que busca reduzir o papel do Estado, e um outro que defende direitos sociais como um dever do Estado. Percebe-se a existência de interesses antagônicos com adversários definidos, de forma que o conflito é inevitável. Contudo, este caráter ideológico, apesar de também estar presente em diversos movimentos desocupa não esgota os aspectos psicossociais presentes na mobilização do movimento, inclusive, a maioria dos desocupas analisados não entram diretamente na questão de esquerda e direita, tampouco, se posicionam sobre a PEC. De todo modo, é inegável a influência e o papel relevante que o MBL teve neste processo.

Dos movimentos analisados apenas dois se manifestaram favoráveis à PEC 241/55, são elas: Desocupa JÁ - PUCRS e Queremos aula. Três páginas declararam-se anti-esquerda: Desocupa JÁ - PUCRS, Desocupa UNIRIO e UNEL. Não houve nas páginas uma correlação explícita entre ser anti-esquerda e ser favorável a PEC 241/55, pois somente a página Desocupa JÁ - PUCRS se colocava ao mesmo tempo favorável à PEC e anti-esquerda. As demais se colocaram neutras diante da PEC e em relação a direita e esquerda, muitas chegando nem mesmo a citar tais questões.

Repete-se como argumento nas 11 páginas e vídeos analisados, que as ocupações são prejudiciais para os estudantes, a presença de pessoas externas à escola, a acusação de interesses partidários. Questiona-se a legitimidade das assembleias que decidiram por ocupação, acusando-as de antidemocráticas, ilegais e ineficazes e defendem o direito e a liberdade dos estudantes estudarem. Usaram tantos aspectos mobilizadores imediatos e particulares, como o prejuízo das ocupações, quanto questões genéricas, como democracia e liberdade, além de questionarem a própria eficácia política das ocupações.

Como táticas de desocupação utilizaram desocupações forçadas, pressão e negociação com autoridades (reitores, diretores, OAB, AGU), abaixo-assinado, reuniões e entrada na justiça com medidas legais.

 

MOVIMENTO DESOCUPA: ASPECTOS PSICOSSOCIAIS

IDENTIFICAÇÃO DE ADVERSÁRIOS E INTERESSES ANTAGÔNICOS

Dos 11 movimentos analisados, um assumia relações explícitas com o MBL, o Desocupa IFC. Em sua página, o grupo fez um post dizendo "Obrigado pelo apoio do MBL!! Vamos desocupar TODAS escolas do Brasil! #DesocupaIFC". (Desocupa IFC, 2016). A proximidade com o MBL, demonstra uma identidade ou ao menos proximidade com perspectivas, projetos e valores liberais. Projetos que por princípio são contrários as ocupações em oposição a PEC 241/55.

Os movimentos de desocupação anti-esquerda (Desocupa JÁ - PUCRS, Desocupa UNIRIO e UNEL) fazem uma relação direta entre ocupação e esquerda e expressam uma visão ideológica que nega completamente a esquerda, atribuindo inúmeros valores negativos a ela. Como se percebe no seguinte post:

Estamos na luta contra essa vagabundagem, estaremos ao lado de todos os estudantes que estão cansados de serem doutrinados e ameaçados por esse bando de psicopatas de esquerda. Somos o Movimento Desocupa Já ! Fora vagabundos, Queremos nossas escolas Livres! (Desocupa Já - PUCRS, 2016)

Esta parte anti-esquerda do movimento desocupa defende uma relação das ocupações com partidos e sindicatos de esquerda, insinuando ou dizendo explicitamente haver interesses políticos partidários por trás das ocupações. Relacionam a esquerda com valores pejorativos como vagabundagem e autoritarismo. Para estes grupos há um conflito ideológico. De um lado, têm-se os ocupantes identificados como vândalos e vagabundos, de outro, os demais estudantes, interessados em estudar e que não compartilham e/ou se opõem a valores, práticas e interesses que julgam serem de esquerda. É interessante observar que tais grupos não definem o que é esquerda, o que permite um uso instrumental e oportuno de tal categoria, e em nenhum momento se colocam explicitamente como direita. Ou seja, há uma identificação dos adversários e interesses antagônicos, mas enquanto caracteriza-se o adversário, ainda que de modo amplo e abstrato, não há tal caracterização de si. Ainda que toda negação contenha algo de afirmação, ao centrarem-se na negação, tais grupos valorizaram a autoconstrução e valorização a partir da oposição e destruição do que atribuem aos seus opositores, sem ter uma construção sólida e coesa de valores próprios. Assim, não há uma defesa de princípios tão claros e explícitos, como os presentes nas ocupações, mas uma negação de diversos valores atribuídos aos ocupantes em que implicitamente afirma-se como seu oposto.

Percebe-se sentimentos de aversão, raiva e repúdio a esquerda. Ela aparece como condenável e desprezível, assim como tudo relacionado a ela e por conseguinte, as ocupações. Há também um sentimento de justiça, de um lado a esquerda - que é vagabunda e doutrinadora - e do outro, não a direita, mas todas as pessoas de bem que não compactuam com isso. Tais sentimentos emotivos, segundo Sandoval e Silva (2016) são significantes e auto-significantes, são valorativos e quanto mais intensos mais atuam no comportamento das pessoas. Isto é, ao relacionar a ocupação com a esquerda e atribuir inúmeros valores negativos a ela, concomitante atribui-se valores positivos ao movimento desocupa. A recorrência dos ataques à esquerda, tal como a firmeza destes tendem a intensificar os sentimentos de repulsa à esquerda naqueles que já o possuem, engajando-os mais no movimento.

Para estes, as ocupações são significadas não como uma tática contra a PEC 241/55, mas como uma manobra da esquerda pela luta pelo poder. Com isto, deslegitima-se os ocupantes e os estudantes do desocupa aparecem como os estudantes legítimos e esclarecidos que não caem no jogo partidário e na manipulação de docentes.

 

 

Tal figura expressa o uso comum de memes nestas páginas. Há conteúdos claros e irônicos que nomeiam diretamente os que julgam serem responsáveis pelas ocupações: partidos, sindicatos e professores. Tais memes deslegitimam toda produção e ação do movimento das ocupações, colocando os estudantes como marionetes que aceitam cegamente iniciativas de grupos com interesses escusos, portanto, nada do que dizem ou fazem possuem valor. Em vídeo intitulado "Invasões das escolas dentro dos planos esquerdistas de caos", um dos estudantes contrário a ocupação afirma ... os movimentos sociais - União da Juventude Socialista, UNE - está tudo se infiltrando nos estudantes com a desculpa da PEC 241, porém eles estão lutando é a favor do socialismo e contra a sociedade porque essa PEC 241, galera, quem não leu, ela é benéfica para a população (Barcellos, 2016). Como palavra de ordem, no mesmo vídeo, alunos em protesto gritam "a nossa escola jamais será vermelha". Outro estudante afirma "o que eles estão fazendo aqui nada mais é do que o mando de uma articulação política manipulada por CUT, PT, PCdoB pelos partidos de esquerda" E outro estudante defende que "a nossa luta primeiro foi tirar Dilma, agora é desdoutrinar as escolas" (Barcellos, 2016).

Tais afirmações emitem diversos sentimentos emotivos e significados. Há um sentimento de repúdio e raiva às organizações identificadas como responsáveis pelas ocupações devido a um suposto oportunismo e manipulação dos colegas, além de um misto de desprezo e piedade com as/os ocupantes por prejudicarem os/as demais colegas e serem vítimas de docentes e organizações de esquerda. O que seria também uma injustiça, logo, o movimento desocupa seria aquele que luta por justiça. Percebe-se também um sentimento de superioridade intelectual, uma vez que colocam de um lado estudantes esclarecidos, participantes do desocupa, e do outro, estudantes ignorantes.

Esta parte do movimento identifica uma oposição e interesses antagônicos presentes entre ocupantes e desocupantes não só no tocante a ocupação, mas em um aspecto mais profundo. Estes identificam-se como opositores não de outros estudantes, sua luta é maior e mais honrada, são contrários a todos aqueles doutrinadores de esquerda que estão usando os pobres colegas estudantes ignorantes. O conflito não aparece meramente enquanto uma defesa de voltas as aulas e nem da PEC, a questão é percebida como um projeto de sociedade, valores e interesses antagônicos que supera a esfera escolar. Tal percepção dá uma gama de significados profundos e intensos, dotados dos mais diversos sentimentos, sendo então uma fonte intensa de motivação para a atuação no movimento desocupa. Neste caso, os interesses antagônicos e oposição não se superam com o fim das ocupações.

Questão bem diferente no caso de estudantes que não tem como questão motivadora as questões ideológicas, orientando-se por uma questão pragmática de interesse nas aulas. Neste caso, a oposição e interesse antagônico restringe-se a estudantes e apoiadores pró e os contrários a ocupação.

VIDA COTIDIANA: GENÉRICO E PARTICULAR

Exceto os três movimentos favoráveis a PEC, nos vídeos e nas páginas busca-se uma dissociação com ela, não havendo posicionamentos sobre, centrando o debate na questão dos estudos. O Desocupa IFC (2016,) afirma nos comentários de uma discussão "Não há somente alunos do último ano apoiando nosso movimento. Nossos argumentos não são baseados em formaturas, opiniões sobre pec's ou qualquer mudança, mas sim sobre o nosso direito de estudar. Estamos na escola tentando recuperar nosso direito, diferente de muitos alunos que votaram a favor da ocupação e estão em casa. Por favor não diminua nosso movimento!". Em um post, o Queremos aula afirma

 

 

É recorrente nestas páginas uma negação da exclusividade e da predominância de interesses particulares e uma negação a um objetivo político do movimento desocupa, omite-se qualquer posicionamento sobre a PEC 241/55. Afirma-se que a questão é mais genérica, trata-se da soberania do direito aos estudos que está sendo retirado pelo movimento de ocupação. Inclusive, é relevante uma defesa de pluralidade e neutralidade, afirmando que o movimento está acima de questões ideológicas e políticas. Como no seguinte post

Gostariamos [sic]também de reforçar que a UFRN Democrática não tem qualquer controle sobre quem fala no microfone (e nem queremos ter), e gostaríamos de pedir que não confudam [sic] a opinião pessoal das pessoas com a proposta do movimento, aproveitando para esclarecer também que toda ofensa ali atribuída a qualquer pessoa vai contra nossos princípios. Estamos tentando representar os alunos CONTRA a greve, sejam eles de esquerda, direita, liberais ou anarquistas. (UFRN Livre, 2016)

Seguindo esta perspectiva de neutralidade, o UFPE Livre (2016) postou:

Se você ainda não entendeu, tudo bem, a UFPE LIVRE esclarece:

• Ser contra essas ocupações não é ser a favor da PEC 55;

• Ser contra a PEC 55 não é ser a favor dessas ocupações.

• Ser a favor da PEC 55 não é ser a favor do governo;

• Ser fascista não é ser contrário a suas posições

• Ser a favor da PEC55 não é querer o que aconteça o que você diz que vai acontecer. Sua previsão é só mais uma das várias.

• Ser contra essas ocupações não é ser a favor do governo;

• Ser a favor de ter aulas não é ser contra o direito de protesto;

• Ser contra essas ocupações não é ser contra haver ocupações.

• Ser a favor de ter aulas curriculares não é ser contra aulas públicas.

Tais posts expressam um posicionamento hegemônico dos movimentos analisados, em que há uma omissão em relação ao posicionamento da PEC 241/55, foco na questão imediata em torno das aulas e a tentativa constante de se separar de qualquer posicionamento e espectro político, defendendo uma neutralidade que favorece uma pluralidade do movimento. Assim, ocupantes são colocados como aqueles ideológicos e com objetivos políticos enquanto os desocupantes aparecem como aqueles neutros descaracterizados politicamente.

No entanto, uma vez que as ocupações são uma tática para barrar a PEC 241/55 na prática há uma vinculação direta entre ela e as ocupações. A dissociação destas refere-se a uma desvinculação no plano da consciência da vida cotidiana - os estudos - com a esfera não cotidiana - a política. Ironicamente, isto se dá por meio da ação política, já que um agrupamento organizado em torno de interesses comuns é justamente o que Heller (1987) define ṕor política. Apesar da fragmentação da consciência, a vida cotidiana não se aparta da esfera não-cotidiana, elas se determinam mutuamente e não existem sem a outra, logo, só há uma autonomia relativa entre elas (Heller, 1970).

Tal desvinculação manifesta uma consciência fragmentada, própria à consciência cotidiana, que separa as esferas cotidianas e as não-cotidianas, fazendo com que a centralidade da consciência fique restrita a particularidade. Manifesta-se assim características da consciência do senso comum na esfera política, de forma que o antrophos presente é o do cotidiano, isto é, um pensamento extremamente concreto, incapaz de fazer abstração, em que o útil se confunde com o verdadeiro, um pensamento orientado unicamente a partir de si e uma representação da realidade social análoga a própria vida particular (Heller, 1970).

Ao se apropriarem da instituição de ensino os estudantes rompem com a reprodução própria ao modo de produção capitalista, de forma a suspender tal cotidiano, trazendo momentos não-cotidianos. A espontaneidade própria ao cotidiano é questionada, assim como as expectativas e reproduções da norma, isto é, a própria vida cotidiana é desnaturalizada e colocada em questão (Heller, 1987). Tal suspensão do cotidiano retira as referências e as certezas existentes. Ao invés da segurança própria a repetição e cumprimento das normas e expectativas, têm-se instabilidade, imprevisibilidade e incerteza, assim como a demanda permanente de uma reprodução cotidiana outra, em que deve-se assumir o controle do próprio cotidiano. Nas ocupações torna-se necessário para a própria reprodução particular a orientação genérica, um pensar além de si. As questões próprias ao cotidiano e executadas de modo espontâneo, como dormir e comer, tornam-se questões de interesse comum e discutidas coletivamente por meio de assembleias. Tais assembleias incorporam o não-cotidiano (a política) ao cotidiano, o que faz com que tais atividades não orientem-se meramente para a própria autorreprodução, mas para o bem comum do movimento, caso contrário, a ocupação é implodida. As ocupações demandam um outro modo de se relacionar e existir. O não-cotidiano passa a se expressar em vários momentos em meio ao cotidiano, inclusive, contraditoriamente, torna-se necessário para garanti-lo, por isto, é possível falar de uma certa suspensão da vida cotidiana.

Mesmo o movimento desocupa é expressão desta suspensão cotidiana, contudo, tal mobilização se dá justamente para reivindicar o retorno do cotidiano próprio ao capitalismo. Portanto, também a defesa daquela segurança e estabilidade rompida com as ocupações. Expressa-se também uma consciência cotidiana, portanto, caracterizada por fragmentação, centralidade no particular, imediatismo e pragmatismo (Heller, 1987).

Ao recusar uma análise sobre a PEC e sua relação com as ocupações, omite-se um debate sobre os possíveis prejuízos, individuais e sociais, causados por ela a médio e longo prazo em detrimento do prejuízo imediato das ocupações. Já que as ocupações prejudicam os estudos no âmbito imediato assume-se que ela é completamente inútil e problemática e deve ser combatida. Percebe-se um reducionismo pragmático em que o útil mistura-se com o verdadeiro. Ao fazer tal desassociação a aprovação da PEC é favorecida, já que combate-se a tática mais significativa de enfrentamento a ela, sem construir alternativas reais. Há uma total desassociação do particular com o genérico. Deste modo, aparece como um dos aspectos de motivação justamente a vontade da volta do cotidiano, orientado pela consciência do senso comum.

 

 

Em entrevista a um jornal um estudante, membro do desocupa e dono do grupo "Volta as aulas UFRGS - Não se cale", após argumentar sobre o caráter ilegal e deslegitimo das assembleias, afirma:

um absurdo a pessoa estudar, se esforçar tanto pra entrar numa URGS da vida, numa federal, pra daqui a pouco tu perceber que não vai ter aula ou então uma pessoa que tá se formando perceber que a formação vai ser atrasada. O que são danos irreparáveis pra formação, pra própria vida." (Eu digo não a invasão, 2016, grifo nosso)

Em vídeo de tentativa de desocupação de pais em uma escola em Porto Alegre, mães repetiam aos gritos "a minha filha tem direito" "meu filho tem direito de estudar", "nossos filhos têm direito de estudar" (Uma mãe que participava de uma tentativa forçada de desocupação de uma escola em Porto Alegre gritava "a minha filha tem direito de estudar" (Gauchazh, 2016).

 

 

É muito significativo nestas falas a ênfase na primeira pessoa e um apelo ao próprio futuro, que contém uma noção de mérito e esforço pessoal que está sendo desrespeitado. Há uma contraposição entre os direitos individuais e coletivos, no qual reivindica-se a primazia do primeiro. Há um centro no Eu, "minha escola, meu direito, minha filha, meu esforço", evidenciando a centralidade do antrophos do cotidiano. Não há um projeto coletivo enquanto movimento que vise mudar a realidade de algum modo. A causa é a permanência da competição por meio de esforços particulares. Pode-se dizer que há o que Nascimento (1997) chamou de ações coletivas. Um grupo de Eus aglutinados pragmaticamente por interesses comuns que não possuem projeto de transformação e sim de uma reorganização da desigualdade, no qual a particularidade se sobrepõe ao genérico.

Há também sentimentos de raiva e desprezo aos ocupantes que aparecem como aqueles que não querem um futuro e ainda atrapalham os que querem. Percebe-se ainda um sentimento de violação do Eu. Um sentimento de abuso e desrespeito ao Eu, já que há outros que estão impedindo os direitos deste Eu de ter sua vontade respeitada. Pode-se dizer que a luta contra as ocupações é uma defesa do Eu não só no sentido pragmático, de volta às aulas e cotidiano, mas também no sentido psíquico e simbólico, de um Eu que foi violado de seus direitos, vontades e expectativas e luta para retomá-lo. Tal violação do Eu implica a violação do conjunto da existência do sujeito, isto é, seus comportamentos, ideias, relações e expectativas (Heller, 1987). No caso, tais crenças se assentam na naturalização da realidade, logo, a ocupação aparece como uma afronta a toda estrutura psíquica construída sobre tal base. Portanto, a defesa da desocupação é também uma defesa simbólica desse Eu.

IDENTIDADE COLETIVA, VALORES, NORMAS E EXPECTATIVAS SOCIETAIS

Ainda que se trate de uma aglutinação de Eus, não chegando a constituir uma identidade coletiva, para formar um movimento é necessária uma mínima noção de Nós, o que se percebe em vários posts.

A descrição do grupo Volta as aulas UFRGS - Não se cale (2016) é:

Chega de nos submetermos a uma minoria autoritária que se traveste de representante da maioria. Chega! Independentemente do seu posicionamento em relação a pec, ocupar a ufrgs é além de um ato prepotente, burrice, uma verdadeira ''brincadeira de revolução''. Diga-me: você quer ter aula em janeiro porque estudantes de outros cursos decidiram algo e você não fez nada a respeito? Eu não! Não deixaremos protoditadores falarem por nós. Desocupa ufrgs!!! [sic]

Em um post a UNEL (2016) diz

os verdadeiros estudantes, aqueles interessados em ter aulas e a aprender, ficam impedidos de ter acesso a um direito garantido pela constituição: educação. Mais uma vez a esquerda, através de falsas bandeiras, põe seus interesses egoístas acima dos interesses do país.

Percebe-se um antagonismo entre os ocupantes, tratados como quem não quer estudar, vândalos, vagabundos, egoístas e autoritários em oposição aos demais estudantes cujo único interesse é estudar. Acusa-se os ocupantes de serem motivados por questões particulares, o que seria condenável, logo, colocam-se como defensores de interesses genéricos em oposição aos interesses particulares. A identidade defendida é de um estudante como sinônimo daquele que cumpre as normas, não causa prejuízo e se restringe aos estudos.

Em vídeo do discurso na Assembleia Legislativa do Paraná, um estudante do movimento desocupa discursou sobre um assassinato de um estudante cometido por outro estudante dentro de uma ocupação de escola no Paraná

mas será que ninguém percebe que são sim vítimas da sociedade, são vítimas de uma sociedade criada através da partidarização das escolas, de uma sociedade criada onde só teriam direito e não deveres, de uma sociedade criada com pensamento único, onde raciocinar passou a ser um pecado mortal, são vítimas de uma sociedade onde trabalhar, conquistar coisas, ter sucesso e dinheiro pelo próprio esforço passou a ser sinônimo de vergonha, uma sociedade lindíssima na mente dos socialistas, mas que no mundo real é muito diferente. (Pinheiro, 2016)

Afirmações semelhantes são comuns em todas as páginas e vídeos analisados. Os valores, normas e expectativas societais manifestos vão ao encontro dos aspectos hegemônicas na sociedade capitalista. Afirmam-se as relações vigentes, as hierarquias sociais, a escola como espaço de formação da força de trabalho, a desassociação da escola com a vida política. Há uma naturalização da desigualdade social, já que supostamente uns esforçam-se e outros não e os que se esforçam merecem uma vida melhor. A ocupação é uma contraposição a tais posicionamentos conservadores, é uma quebra destas normas, valores e expectativas, é a violação do Eu já antes mencionada. Assim, a ocupação aparece como algo isento de sentido para os desocupantes.

 

 

Percebe-se que a escolha pela imagem do pedreiro é intencional, um trabalho manual de baixa remuneração. Endossa-se a possibilidade de um crescimento, de "vencer na vida", mediante sua luta pessoal diária, enquanto os ocupantes não buscam tal crescimento e praticam "vagabundagem" e chamam isso de luta.

Em um post ironizando as ocupações o Desocupa UNIRIO (2016) afirma:

Nesse colégio aí a ocupação funcionou...a gente ocupava segunda-feira logo cedo e só saía na sexta à tarde... Às vezes a ocupação se estendia pelo fim de semana também...Era tudo nosso, os ocupantes eram responsáveis pela limpeza e arrumação dos alojamentos, por manter o bom estado das salas de aula e das demais instalações. Eles chamavam de "serviço". Ali a ideologia deu certo... tudo era comum, vivíamos em comum, comendo o mesmo alimento, dormindo em camas iguais, acordando e dormindo no mesmo horário. Nossas manifestações eram contagiantes... passávamos todos juntos, gritando tanto que os corações mais fracos chegavam a estremecer. Saudades de quando minha preocupação era só o boletim.

O post é finalizado com uma foto de estudantes do colégio militar.

Há uma ironia no post ao reafirmar os valores defendidos pelo movimento de ocupação, mas por meio de aulas no colégio militar, no qual os estudantes devem cumprir normas e disciplina rígida. É uma afirmação que exalta a ordem capitalista com suas hierarquias sociais e instituições de controle. Há uma rechaço a qualquer prática autônoma e uma defesa intransigente da heteronorma. Ademais, a escolha pelos militares expressa uma defesa do punitivismo estatal como resposta ao confronto com a ordem capitalista, algo característico da direita.

Tais afirmações ordeiras são comuns no movimento de desocupação e explicitam um conformismo com a realidade social. Não se cogita qualquer transformação social que não a ascensão individual. É uma percepção restrita a manutenção do cotidiano capitalista com sua relação muda com a genericidade. Colocam-se como sujeito, mas só de sua própria história, responsável pelo próprio futuro e estudo, mas não da História Humana. Há um sentimento de merecimento e de orgulho do próprio esforço, sentimentos que são confrontados com a ocupação.

Pelo conjunto dos elementos expostos percebe-se que há um esboço de uma identidade coletiva que se dá na reafirmação dos valores próprios ao modo de produção capitalista como a competitividade, o mérito e o esforço individual. É um Nós bastante amplo que não chega a se constituir enquanto uma identidade coletiva ao não construir um sentido de Nós coeso e explícito, mas é suficiente para instigar as mobilizações de Eus. Há uma percepção de não pertencimento ao grupo dos ocupantes, um sentimento de repulsa a tal grupo e aos valores, normas e expectativas manifestas e/ou atribuídas a eles e elementos embrionários da construção de uma identidade comum do movimento desocupa assentado na ordem e disciplina capitalista.

EFICÁCIA POLÍTICA, VONTADE DE AGIR COLETIVAMENTE E METAS DE AÇÃO COLETIVA

O sentimento de eficácia política do movimento desocupa é alta, uma vez que acreditam serem a maioria e serem vítima de injustiça, além de acreditarem na própria capacidade de transformar a própria vida à nível imediato. Concomitante a isto, não atribuem eficácia política ao movimento de ocupação. Apesar da maioria dos grupos analisados não se posicionarem sobre a PEC, por vezes ela é citada para defender a ineficácia das ocupações, seja porque elas não têm poder de afetar o alto escalão político ou porque qualquer resistência seria inútil, uma vez que a aprovação da PEC já estava encaminhada. Desacredita-se na eficácia política e nas metas coletivas das ocupações, desestimulando, inclusive, a vontade de atuação nela, o que pode contribuir para a vontade de participação no desocupa. Afinal, se as ocupações são inúteis, elas não valem o risco de participação e nem trariam benefícios, pelo contrário, só traria prejuízos. Já o movimento de desocupação aparece como o movimento que tem possibilidades reais de alcançar suas metas coletivas, isto é, acabar com as ocupações, evitando prejuízo aos estudantes.

Após a informação de desocupação o Queremos Aula (2016) informou

Segundo o portal do IFMG até sexta os desocupados desocupam o instituo. Parabéns pelas conquistas:

• R$ 3 milhões de gastos adicionais nas eleições;

• R$ 10 milhões em gastos no Enem;

• 240 mil estudantes prejudicados no Enem;

• 1 semestre letivo perdido pra milhares de estudantes que pretendiam entrar na faculdade no primeiro semestre de 2017.

• E a PEC 55, MP continua do mesmo jeito

Ou seja a única coisa que fizeram foi prejudicar a vocês mesmo e aos seus colegas. Pra não conseguirem nada. ... Só posso falar uma coisa pra esse movimento que brincou de revolução: INÚTIL. "Parabéns" aos envolvidos por suas "conquistas". E agora vamos estudar (quando deveríamos estar entrando de férias). Essa é a verdadeira luta do estudante. Pra que serviu essas ocupações: NADA.

Tal post se dá após a ocupação e nega qualquer conquista ao movimento de ocupação, reafirmando o quanto ela é inútil e só prejudica os estudantes, além de reafirmar que a única luta do estudante é estudar. Nega-se assim, qualquer possível vitória com outras ações que não o estudo. Os estudos particulares aparecem como a única meta dos estudantes.

A página Desocupa (2016) disse em um comentário:

Débora, o intuito do movimento não é ser a favor da PEC 241 nem reprimir a liberdade de expressão de nenhum grupo, mas nos posicionar de forma contrária às ocupações. Acreditamos que as ocupações são não só antidemocráticas, por forçar pessoas que não tem nada a ver com a manifestação a se aderir a ela, mas também violadora de direitos básicos como o de ir e vir. Ademais, as quase 1000 ocupações do país têm se mostrado extremamente ineficiente para a causa, visto que o texto-base da PEC passou no congresso com 359 votos favoráveis, frente 116 contrários. Acreditamos que possam haver formas melhores, mais eficientes e mais democráticas de manifestação.

Tais dizeres são comuns aos grupos de desocupação. A vontade de agir coletivamente no movimento desocupa se dá em torno de algo pragmático, uma vez que os valores esboçados são valores individuais meritocráticos. Está diretamente relacionada com a eficácia política que vêm no próprio movimento e na ineficácia política que atribuem as ocupações, cuja diferença se dá porquê o próprio movimento é assentado em pauta imediata, cotidiana e de enfrentamento direto enquanto as pautas das ocupações são não-cotidianas e seu enfrentamento ao poder público é mediado pela ação na escola. Com isto, não percebem uma meta coletiva factível ao movimento de ocupação e percebem a própria meta como factível e justa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo que se trate de um movimento com grupos locais e descentralizados foi possível apreender aspectos comuns entre tais grupos. Percebe-se a defesa ao retorno da vida cotidiana com seu centro na particularidade, em que privilegia-se o imediatismo, desassociando a vida particular da vida genérica. As ocupações constituem uma espécie de ameaça ao Eu à nível concreto e simbólico. O movimento desocupa assenta-se na particularidade e como tal expressa a consciência do cotidiano, mantendo uma relação muda com a dimensão genérica, ainda que por vezes aparece uma defesa de princípios genéricos e críticas a interesses particulares, mas eles são usados justamente para a defesa da primazia da particularidade. A defesa de tal centro na particularidade se expressa pela defesa do cumprimento absoluto as normas e exigências das instituições sociais, portanto, na negação de qualquer autonomia ao sujeito. Ao reduzir o indíviduo a um papel passivo diante do existente, ou seja, ao separar o particular do genérico, tal individualismo acaba por negar o próprio indivíduo enquanto sujeito.

Os valores, expectativas e normas assumidos e defendidos são próprios ao modo de produção capitalista, com isto, há uma naturalização da realidade a ponto de negarem-se como sujeitos históricos, portanto, percebem as ocupações como ineficazes para alcançarem suas metas coletivas, enquanto o movimento desocupa, por se tratar de uma reivindicação imediata e direta, é percebido como eficaz. Na maioria dos movimentos analisados a esquerda não aparece como oponente claro, destacam somente os ocupantes, apoiadores e grupos políticos. No entanto, alguns movimentos fazem claramente tal identificação, mas a esquerda nunca é bem definida, aparece como sinônimo de baderna, manipulação e autoritarismo e não como um posicionamento político, tornando-se uma espécie de espantalho e bode expiatório. Na maioria dos grupos analisados também não aparece uma identificação como direita, como se estivessem fora da disputa política e fossem agentes justos e corretos que só querem cumṕrir as normas existentes. Mesmo nos que se declaram como direita, não aparece uma conceituação mínima do que se identificam, possibilitando um uso oportuno. Ou seja, se colocam como pessoas boas e corretas na luta contra o mal. A PEC 241/55, central para as ocupações, nos movimentos analisados ou não aparece ou aparece de modo marginal, tal despolitização da pauta do próprio movimento parece ser estratégica para a defesa de sua neutralidade, pluralidade e desinteresse político.

Nestes aspectos psicossociais comuns foi possível identificar uma ausência de projeto e de identidade coletiva, que ao mesmo tempo que dificulta uma coesão grupal, possibilita uma pluralidade. Esta ausência se dá devido à sua pauta reivindicatória restringir-se ao retorno da normalidade cotidiana e porque o movimento constitui-se principalmente pela negação à ocupação e a valores atribuídos em detrimento do desenvolvimento de aspectos próprios. O movimento constitui-se principalmente pelo que diz não ser e não querer. Apesar disto percebe-se um embrião de uma identidade coletiva em formação em que afirma-se valores ordeiros, hierárquicos, de subordinação e supostamente neutros que rechaça qualquer enfrentamento a tais valores e a posicionamentos políticos explícitos, algo próximo da ideologia do "cidadão de bem". A sua constituição enquanto grupos locais, pequenos e protagonizados por agentes políticos aparentemente neutros podem ter contribuído para o crescimento e enraizamento de tais valores, o que pode ter sido importante para a formação e ampliação dos movimentos de direita que se consolidaram pós 2016.

Percebe-se uma relação de diversos elementos psicossociais relacionados entre si e que só podem ser compreendidos conjuntamente. O tipo de análise escolhida por centrar em materiais públicos do movimento, portanto, materiais cujas divulgações são estratégicas, dificultou a apreensão dos sentimentos, mas dos mais apreendidos, percebe-se a raiva devido a privação das aulas, um desprezo as ocupações e aos ocupantes, especialmente um desprezo intelectual, e um senso de justiça e autovalorização do próprio movimento e de si individualmente ao se valorar como um indivíduo correto e batalhador.

As conclusões não podem ser transpostas em sua totalidade para todos os membros do desocupa e nem mesmo necessariamente para o movimento desocupa em si, pois trata-se de uma pesquisa inicial e com pequena amostragem. Mais estudos precisam ser feitos sobre o movimento desocupa, sobre os indivíduos que participaram dele e sobre sua relação com o desenvolvimento dos movimentos de direita no Brasil nos últimos anos, que foram conseguindo esboçar a identidade coletiva ainda incipiente no movimento analisado e exacerbaram elementos já presentes neste movimento.

 

REFERÊNCIAS

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Desocupa UFRGS. (2016). As ocupações na UFRGS impedem alunos, professores e pesquisadores de fazerem seu trabalho. A Universidade NÃO precisa parar pra gente discutir política [Facebook]. https://www.facebook.com/desocupaufrgs/?ref=ts&fref=ts        [ Links ]

Desocupa UNIRIO. (2016). Página de cunho contra as ocupações, mas aberta ao debate do ponto de vista de ambos os lados. Tem como meta conscientizar os estudantes da UINRIO [Facebook]. https://www.facebook.com/desocupaaunirio/?ref=br_rs        [ Links ]

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Recebido em: 30/11/2019
Aprovado em: 24/08/2020

 

 

1 Outras quatro páginas foram analisadas, mas as mesmas não existem mais, são elas: Desocupa, Desocupa Dulce, Desocupa IFRJ, Desocupa CEP e Paraná. A segunda era anti-esquerda e tinha uma relação pública com o MBL, a terceira era favorável a PEC e a última era anti-esquerda e favorável a PEC.
2 A página foi retirada do ar, se tornando um grupo para membros privados. Optou-se por manter a fonte no texto por se tratar de um material histórico que cumpriu um papel relevante, mas cujo rastro foi apagado da história. Portanto, este material constitui uma preservação da memória de tal fonte. Esta efemeridade é próprio as dinâmicas das redes sociais, o que cria dificuldade e obstáculos para análise desses materiais
É que ela é uma das páginas mais relevantes na análise, sem essa referência, o texto perde muito. Ademais, é realmente a única forma de preservar essa memória que agora foi ocultada da história. E realmente esta questão da efemeridade dos registros na rede coloca uma dificuldade de análise para estes materiais, levando isso em consideração não seria possível mantê-lo?

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