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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.53 São Paulo Jan./Apr. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Entendendo o Ministério da Cidadania em 2019: O discurso político por trás das práticas institucionais

 

Understanding the Ministry of Citizenship in 2019: The political discourse behind institutional practices

 

Entender el Ministerio de la Ciudadanía en 2019: El discurso político detrás de las prácticas institucionales

 

 

Alyssa Magalhães PradoI; João WachelkeII

IProfessora do curso de Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais, Ituiutaba/MG, Brasil. alymagalhaes@gmail.com
IIProfessor Adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia/MG, Brasil. joao.wachelke@ufu.br

 

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho foi analisar conteúdos relacionados ao novo Ministério da Cidadania, das primeiras expectativas até o fim do seu primeiro ano de existência, em busca do entendimento sobre qual foram as construções discursivas produzidas por esse novo órgão brasileiro. A retomada das discussões teóricas sobre a cidadania, de conceitos mais tradicionais aos mais implicados na realidade brasileira, forneceram discussões essenciais. A Análise de Discurso Crítica e mais especificamente os estudos de Teun Van Dijk auxiliaram metodologicamente com os instrumentos para o tratamento dos materiais de análise: quatro notícias que trataram sobre práticas e falas do Ministério e seu ministro durante o seu primeiro ano de existência. Foi possível perceber o esvaziamento do termo, tão importante na nossa história, em prol de um uso historicamente dissociado das temáticas que envolveram as práticas institucionais.

Palavras chave: Discurso; Política; Cidadania; Psicologia; Direitos.


ABSTRACT

The aim of this work was to analyze contents related to the new Ministry of Citizenship, from the first expectations until the end of its first year of existence, in search of an understanding of what were the discursive constructions produced by this new Brazilian administrative body. The resumption of theoretical discussions on citizenship, from more traditional concepts to those more involved in the Brazilian reality, provided essential discussions. Critical Discourse Analysis and, more specifically, Teun Van Dijk's studies helped methodologically with the instruments for the treatment of analysis materials: four news that dealt with practices and speeches of the Ministry and its minister during its first year of existence. It was possible to perceive the emptying of the term, so important in our history, in favor of a historically dissociated use of the themes that involved institutional practices.

Keywords: Discourse; Politics; Citizenship; Psychology; Rights.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo fue analizar contenidos relacionados con el nuevo Ministerio de la Ciudadanía, desde las primeras expectativas hasta el final de su primer año de existencia, en busca de una comprensión de cuáles fueron las construcciones discursivas producidas por este nuevo organismo brasileño. La reanudación de las discusiones teóricas sobre ciudadanía, desde conceptos más tradicionales hasta los más involucrados en la realidad brasileña, proporcionó discusiones esenciales. El Análisis Crítico del Discurso y, más específicamente, los estudios de Teun Van Dijk, ayudaron metodológicamente con los instrumentos para el tratamiento de los materiales de análisis: cuatro noticias que trataron sobre prácticas y discursos del Ministerio y su ministro durante su primer año de existencia. Fue posible percibir el vaciamiento del término, tan importante en nuestra historia, a favor de un uso históricamente disociado de los temas que involucraban prácticas institucionales.

Palabras clave: Discurso; Política; Ciudadanía; Psicologia; Derechos.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar conteúdos relacionados ao novo Ministério da Cidadania, das primeiras expectativas até o fim do seu primeiro ano de existência, em busca do entendimento sobre qual foram as construções discursivas produzidas por esse novo órgão brasileiro. Aspira-se uma compreensão de como o chamado Ministério da Cidadania vem trabalhando e exercendo poder, de qual ideia de cidadão e cidadania ele assimila, e quais grupos sociais pode representar.

Montero e Dorna (1993) explicam que a psicologia política, em sua construção como campo do saber, possui como aspecto sua heterogeneidade, de onde se sustentam quatro preocupações: pesquisas que estejam envolvidas com problemáticas sociais, interesse na relação entre processos psicológicos e políticos, investigações que retomem o lugar histórico dos acontecimentos sociopolíticos, e estudos que tenham como objeto a produção dos discursos e das instituições políticas. A psicologia política se direciona para uma disciplina que se interessa por construir formas de governo que atendam às reais necessidades dos sujeitos (Montero & Dorna, 1993).

Investigando então os problemas sociais locais, o Brasil, em 1988, a partir da promulgação da nova Constituição da República Federativa, instituiu seu estado democrático, construído por representantes eleitos do povo brasileiro. O processo intentou fortalecer diversas questões da experiência brasileira, sendo um fundamento "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Deste modo, compreende-se que a estrutura política brasileira está submetida a sua população, sendo os componentes do Estado brasileiro funcionários públicos que visam o bem-estar coletivo.

No ano de 2019, com a posse do presidente Jair Bolsonaro, o novo governo eliminou e fundiu ministérios. Entre esses, estão o Ministério da Cultura, o Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério do Esporte, que se tornaram conjuntamente o Ministério da Cidadania. A opção pelo uso do termo cidadania chama a atenção, pensando nos processos recentes em que o Brasil vivenciou processos politicamente instáveis envolvendo presidente, ex-presidente e candidatos à presidência, tais como impeachment, prisão e até mesmo tentativa de homicídio. Ainda assim, cidadania foi o nome destinado ao ministério que tem a responsabilidade de administrar programas institucionais de assistência social importantes como o Bolsa Família, políticas ligadas à questão das drogas, políticas culturais1 e políticas de estímulo aos esportes (Lei n. 9.674/2019).

Ainda que o Brasil tenha um novo ministério que carrega a cidadania em seu título, isso ocorre em momento distinto. Se antes a "Constituição Cidadã" representava um momento de abertura e liberdade, o atual presidente se elege devido ao fortalecimento de seu posicionamento conservador e regulador. O que significa então o novo Ministério da Cidadania? É uma das questões que este trabalho intenta discutir, a fim de compreender por que ainda se busca tanto relacionar o termo cidadania com o funcionamento público de nosso país.

Cidadania, classe social e status, do autor inglês T.H. Marshall, é uma referência clássica sobre o assunto. No seu texto, desenvolve três possíveis pilares para a construção cidadã na Inglaterra: direitos civis, direitos políticos e sociais. (Marshall, 1967). A ideia de cidadania só foi possível devido a uma separação das instituições e da distinção criada à medida que se desenvolvem os contrastes da igualdade e desigualdade. A organização da justiça foi necessária como garantia dos direitos civis dos sujeitos, compostos pelas liberdades individuais, relacionadas ao ir e vir, ao pensamento, à religião e fé, à comunicação. Esse primeiro momento que envolve a liberdade civil vai se fortalecendo até o século XIX, quando os direitos são considerados alicerçados. Surge então a necessidade de não simplesmente criar novos direitos, mas garantir que os já antigos estejam assegurados para os diversos setores da população. Com isso, há o processo político, com os chamados direitos políticos, em que é construído o direito de participar das operativas do poder. Mais adiante, passam a ser demandados os direitos sociais, envolvendo o direito a um mínimo de bem-estar econômico, garantia da civilidade em referência ao que se entende como um padrão de vida na sociedade, com instituições como serviços sociais e as instituições educacionais. Englobando esses fundamentos, a "cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade." (Marshall, 1967, p. 76); esse status seria uma garantia da igualdade, contrapondo-se, por exemplo, às classes sociais, imbricadas pelo sistema desigual. O desenvolvimento, entre as leituras realizadas, suscitou críticas devido ao seu embasamento na sociedade inglesa, ainda que se entenda que esse era o contexto de Marshall (1967); as análises subsequentes se viram instigadas a pensar suas particularidades in loco, além dos novos desdobramentos que envolvem o campo dos direitos.

A vivência brasileira e seus tensionamentos e repercussões relacionadas à cidadania merecem seção especial, pois acreditamos na importância de se desenvolver um trabalho de resgate histórico de processos e problemáticas que envolvem um país atravessado pela colonização, pela escravidão, pela violência contra seus povos originários e também na forma do racismo, que perdurou e ainda perdura na sociedade brasileira.

 

A HISTÓRIA DA CIDADANIA E SEU LUGAR NA HISTÓRIA BRASILEIRA

Análises como a de José de Carvalho (2008) possuem forte influência dos trabalhos de Marshall (1967); entretanto, buscam localizar os chamados momentos da cidadania de modo diferente. Para ilustrar, o autor analisa como as tais liberdades civis, em solo brasileiro, não puderam existir antes das demais, já que falamos de um país que por bastante tempo negava conferir o status de liberdade para os negros e indígenas. Dessa maneira, a trajetória dos direitos no Brasil localizaria o exercer da cidadania inicialmente nos direitos políticos, com o processo de Independência. As constituições (foram duas durante o século XIX) possuem importante papel na instrumentalização desses direitos, ainda que se tenha clareza da existência de processos legislativos corrompidos e desorganizados.

Esse processo implica fortemente a vida social, visto que representa uma discrepância clara entre a premissa das liberdades, tão estrutural para a vida moderna da Europa colonizadora da América, e a real vivência dos indivíduos no Brasil. Um exemplo histórico ilustrativo é o fato de a Inglaterra, referência de Marshall (1967), ter pressionado o Brasil para o fim do tráfico de escravos, ainda que seus motivos passassem por seus interesses na ampliação de mercados consumidores, essencial para a consolidação do capitalismo inglês. Carvalho (2008) justamente entende que o ponto de se produzir uma história e interpretação brasileira da cidadania não desqualifica a inglesa, ou de qualquer outra sociedade, mas abrange refletir que cidadania é essa. Nesse sentido, o autor demarca a existência de uma sociedade enredada, diversa entre os iluministas mais esclarecidos, admirados pelo modo de vida europeu, e a vida concreta do cotidiano, muito distante desse modelo. Por isso, o autor chega a usar a expressão cidadãos em negativo, pois potenciais existiam, como, por exemplo, a legislação referente às eleições no início do século XIX, considerada liberal, contrastada com a europeia, ou ainda, as próprias insurgências mineiras, pernambucanas, baianas, entre outras. Enfim, apesar desse potencial, a entrada por vias institucionais era difícil, expondo o longo caminho para uma cidadania ativa, como a propagada pelos europeus.

Botelho e Schwarcz (2012) se aprofundam no tema ao desenvolver que os rumos da cidadania no país vão acontecer juntamente com o processo histórico. Nesse caso, trata-se de m contexto que se torna independente com considerável parte da população excluída de direitos e sem um sentimento nacional. Ser cidadão seria compreendido de forma consensual, como o destinatário de amparos que somente o aparato estatal pode suprir. Ainda assim, cidadania é um processo, algo a ser pensado somente em relação, e de forma alguma estático. As concepções vão se tensionar, conviver, significar e dar sentido não somente de modo prático, mas também no campo simbólico, em domínios valorativos e concretos de reconhecimentos e direitos. Desse modo, é possível visualizar que realmente existe uma dinâmica, caracterizada por Marshall (1967) como o contraste entre igualdade e desigualdade, mas chamada por Botelho e Schwarcz de inclusão/exclusão. Principalmente no início do século XX, há uma profusão local, com imigração, ideias liberais e ideias eugenistas, urbanização e ruralidade, cidadania e violência, passado e futuro, segmentos que rumam para uma análise da cidadania sempre via relação.

Se direitos civis e políticos estiveram emaranhados no século XIX e XX, os direitos sociais eram quase inexistentes. Concentraram-se fortemente nas mãos de grupos particulares. No entanto, iniciativas como uma ideia internacional de direitos, com tratados e organizações, a criação da Comissão de Legislação Social na Câmara dos Deputados, em 1917, o debate em torno de legislações do trabalho, a questão sobre o trabalho dos menores, e a chegada de imigrantes envolvidos nas lutas proletárias (Saes, 2006), todas se interpelam e aumentam a necessidade de um real envolvimento estatal com o provimento e assistência social. Contraditoriamente, um dos momentos-auge desses direitos acontecerá na ditadura varguista, antagonizando, por exemplo, com a regulação e controle de liberdades civis, além de um processo político instável, com golpes e legislações por decreto. Isso se repete, alguns anos à frente, durante a ditadura militar. Nesse entremeio, os governos de Eurico Gaspar Dutra a João Goulart marcam a rápida industrialização brasileira e um próspero momento dos direitos políticos, considerado por Carvalho (2008) como a primeira experiência democrática do Brasil. Os governos entraram no jogo político, com líderes e opositores, com dinamismo e participação popular.

No entanto, o momento positivo recuou com o golpe militar em 1964. Uma nova ditadura, controle, relatos de tortura e silenciamento, exílios forçados, tudo sob o discurso de uma ameaça comunista. O momento mais tenso foi o Ato Institucional n° 5, interferindo diretamente nos direitos políticos e civis. A partir de um processo de redemocratização que se inicia vagarosamente em 1974, abertura, clareza quanto o autoritarismo presente no Estado, o novo sindicalismo e surgimento do Partido dos Trabalhadores, as eleições para governadores em 1982, todos esses acontecimentos contribuem para o momento considerado mais simbólico do retorno da democracia brasileira: a Constituição Brasileira de 1988 (Carvalho, 2008).

No dia 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães, como presidente da Câmara dos Deputados, fez um discurso marcante sobre a nova constituição e seus valores2. Passaram-se mais de 30 anos desde essa data e da promulgação do documento considerado marco da transição democrática. Se cidadania e democracia já aparecem consideravelmente relacionadas nos estudos e textos lidos, para nossa história, o documento simboliza enormemente essa ideia. Mas o que realmente significa uma constituição? Segundo Arantes e Couto (2019)

Constituições são um conjunto de dispositivos que visam estruturar e regular aspectos fundamentais da organização de determinadas comunidades políticas. ... No médio e longo prazo, Constituições podem ser bem ou mal sucedidas no intuito de criar regimes políticos e estabilizá-los, de funcionar como estímulo para o desenvolvimento da cidadania e como limite ao exercício do poder político, podem durar décadas e às vezes séculos, como podem sucumbir à primeira mudança brusca do ambiente externo. (Arantes & Couto, 2019, ebook)

Entretanto, apesar de histórica e importante, atualmente, como investigam Arantes e Couto (2019), ao longo desses 30 anos, a quantidade de modificações por meio de emendas constitucionais3 sobressai. No levantamento realizado, os autores (2019) analisaram que já foi produzido quase o mesmo número de dispositivos do original legislado em 1988, estando a nossa carta magna 44% maior do que quando foi criada. Apesar do crescimento no texto envolver uma alta na criação de políticas públicas, o que analistas da área assinalam como o indício para uma existência da circulação no poder de diferentes grupos e seus respectivos interesses e posições ao estimular o desenvolvimento do setor, o crescimento dos direitos civis e políticos e materiais, pilares historicamente da constituição da cidadania, obtiveram um crescimento de 1,1 e 4,1%, respectivamente, porcentagens baixas ao pensarmos a quantidade de mudanças no texto constituição (Arantes & Couto, 2019). As consequências dessa alta na criação das emendas são debatidas, sendo complexo apontar um diagnóstico concreto, com linhas teóricas que entendem que constituições mais amplas e que se atualizam podem significar uma vida prolongada, apesar de haver limites razoáveis que podem apontar o inverso. Contudo, a disputa política e as negociações estão acontecendo e resultam no documento, com as modificações podendo ser compreendidas como marcas linguísticas significativas da presença do multipartidarismo e das posições distintas que vão se articulando no poder.

Os anos democráticos, até o momento, contaram com oito presidentes, que vamos considerar como representantes das posições e linhas governamentais. No entanto, apenas cinco deles foram eleitos. Após a morte de Tancredo Neves, eleito por colégio eleitoral, José Sarney assumiu por ser vice-presidente, em meio à mobilização popular por eleições diretas; Itamar Franco tornou-se presidente por ser vice de Fernando Collor de Mello, que sofreu processo de impedimento; e Michel Temer tomou o poder após impeachment de Dilma Rousseff em seu segundo mandato. Em 2018, chegamos à complicada e enigmática eleição de Jair Bolsonaro, com suas posições conservadoras, discurso antissistema e simpatia para com os militares e até mesmo, com o regime militar, o mesmo de que Ulysses Guimarães, no dia 5 de outubro de 1988, promulgação da Constituição Federal, disse ter ódio e nojo (Vizeu, 2018).

É nesse emaranhado que se constrói política, poder, representações, cidadania. Sendo assim, como afirma Carvalho (2008), não cabe entender apenas um caminho para compreender cidadania. Valem as teorizações de Marshall (1967); porém, precisamos de muito mais. Aqui, já demarcamos a importância da história e ciências sociais para uma versão. Como nos interessamos por visualizar e captar os fragmentos e narrativas que vão produzir as práticas institucionais do novo aparato administrativo que leva o nome da cidadania, escolhemos os discursos e uma abordagem específica para fornecer auxílio, com reflexão e crítica social.

 

A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: OS TRABALHOS DE TEUN VAN DIJK

Montero e Dorna (1993), quando abordam a psicologia política, conferem destaque para as análises discursivas. A organização política, e consequentemente o poder presente nas práticas, possui como objeto a estrutura administrativa, mas simultaneamente, tem também como objeto a produção dos discursos. A dinâmica da política envolve a persuasão a partir de símbolos e sinais transmitidos, configurando-se ali os discursos políticos, em suas formas escritas, em cerimônias, manifestos, declarações, programas, planos, desfiles, entre outros. Ainda que a tradição francesa, especialmente com Foucault e Pêcheux, possua debates importantes e necessários, como o foco das análises do discurso na "investigação de como os sistemas linguísticos funcionam na representação da realidade, na construção de relações e identidades e na estruturação, reafirmação e contestação de hegemonias" (Melo, 2012, p. 58), um grupo de autores da chamada tradição anglo-americana sentiu a necessidade de inaugurar a Análise de discurso crítica (ADC), uma perspectiva teórico-metodológica heterogênea, mas que mantém três pilares: interdisciplinaridade, o posicionamento e o uso de categorias analíticas como instrumentos da crítica social (Resende, 2012).

Portanto, no começo da década de 1990, tendo como marco simbólico um simpósio realizado em Amsterdã em janeiro de 1991, os estudos dessa disciplina passam a se desenvolver. Os estudiosos objetivam pesquisas sobre os modos como as formas linguísticas atuam na reprodução, manutenção e transformação social. Possuem como projeto a averiguação de como as estruturas sociais se imbricam na linguagem/discurso, a partir de uma concepção dialética, ou seja, compreendendo linguagem e sociedade como campos que existem em relação. Como profissionais do campo da psicologia, é interessante ressaltar o lugar conferido à subjetividade, entendida sempre como decorrente e atuante das práticas sociais de produção da história dos sujeitos na linguagem (Melo, 2012).

No campo da ADC, como afirmamos anteriormente, existem possibilidades diversas de linhas teóricas. O presente tema se aproxima fortemente da linha de estudo de Teun Van Dijk, autor que se interessa mais pelas questões da sociocognição e dos discursos e ideologias políticas. A ADC é uma área que trabalha entendendo que não se determinam a priori categorias, dessa maneira, também procuramos não determinar a priori o método a ser utilizado, empreendendo então que Van Dijk pode contribuir enormemente para a investigação desse tema e também no campo da psicologia social e política (Melo, 2012).

Traçando um paralelo com a psicologia social, em especial com a história da disciplina, em que há linhas de trabalho mais relacionadas com a cognição criticadas por construírem uma ideia de mundo um tanto quanto submetida aos aspectos intrapsíquicos, o trabalho de Van Dijk intenta outro rumo para a chamada cognição, trabalhando-a juntamente de temas como ideologia e contexto (Van Dijk, 2012). Primeiramente, o enfoque analítico de Van Dijk (2012a) concentra-se justamente na política, no discurso e na ideologia, um dos motivos que suscitaram a perspectiva do autor, visto que neste estudo nos interessamos pela construção do discurso político do Ministério da Cidadania. A política é um âmbito em que os processos sociais são quase somente discursivos. No caso da cognição política, esta é ideologicamente referenciada e as ideologias políticas seriam amplamente reproduzidas pelas práticas discursivas. Adicionamos e complementamos a conceituação da política com a de poder, que Van Dijk (2008) reflete a partir do controle. Para o autor (2008), os grupos vão deter poder, em maior ou menor grau, a partir do exercício do poder sobre ações e pensamento dos indivíduos. Assim, interessa aos grupos construir uma base de poder, apoiados em estratégias simbólicas como uso da mídia, influência na construção da informação e discurso público, produção de conhecimentos, cargos de autoridade, entre outros.

A ideologia é definida por ele como "sistemas de crenças compartilhadas por grupos com a finalidade de promover seus interesses e orientar suas práticas sociais e políticas" (Van Dijk, 2015, p. 54). É importante ressaltar que o autor não exclui, nem minimiza, a longa história que o conceito da ideologia carrega, desde De Tracy, passando por Napoleão, Marx, Lênin, Althusser, Thompson, entre outros (Thompson, 2011), mas visa uma concepção que a compreenda como uma cognição social a ser analisada nos textos em articulação com os interesses do grupo social. Nas palavras do autor

as ideologias tipicamente representam quem somos, o que fazemos, por que o fazemos, como (deveríamos ou não deveríamos) fazê-lo, e para que o fazemos, ou seja, nossa identidade, ações, objetivos, normas e valores, recursos e interesses sociais. Nesse sentido, as ideologias são o autoesquema de um grupo coletivo, basicamente mental, que consiste de informação organizada por essas categorias esquemáticas. (Van Dijk, 2015, p. 54)

Um dos pontos mais interessantes dessa visão da ideologia mais esquemática do autor é quando ele estabelece que as ideologias tendem a se polarizar entre Nós e Eles, exogrupos e endogrupos (Van Dijk, 2012a). Sendo assim, intentamos no material selecionado justamente investigar processos como essa dita polarização, além da utilização das categorias de análise que Van Dijk (2012a) define como instrumentos da análise ideológica do discurso político, como comparação, autoridade, carga, classificação, entre outras.

Porém, além da ideologia, o autor trabalha com a noção de contexto, como "estrutura mentalmente representada" (Van Dijk, 2008, p. 119), mais especificamente contexto político. Existiria no discurso político um grande papel da situação; já que a gramática entre ideologias políticas muitas vezes pode não se diferenciar tanto, é nas nuances implícitas que as posições se fazem. Nesse sentido, a análise deve estar relacionada com quem fala, de onde, quando, com e para quem. Os contextos assumem então o lugar de dimensões subjetivas dos indivíduos nas situações comunicativas, influenciando tópicos da produção e entendimento discursivo.

Para Van Dijk:

Os discursos políticos e suas estruturas serão apenas capazes de ter as funções políticas que elas possuem quando estiverem aprovando os atos políticos ou processos, governando, legislando ou fazendo oposição, e com os objetivos políticos específicos em mente, como, por exemplo, ao defender e derrotar um projeto de lei ou ser eleito. (Van Dijk, 2012a, p. 28)

O autor tem grande interesse nos estudos do discurso de notícia, propiciando alguns fundamentos interessantes, como a estrutura temática do discurso, isto é, como acontece a organização de tópicos gerais sobre um assunto tratado pela notícia. Outro conceito aborda os esquemas da notícia, utilizados na descrição das formas globais de um discurso, como se inserem e esquematizam os conteúdos trabalhados. Todo esse arcabouço propicia ferramentas para se analisar e interpretar as relevâncias, ou como nomeia o autor, a estrutura de relevância, a maneira como o texto constrói uma informação como mais relevante que a outra. Nesse processo de análise, poderemos perceber dimensões cognitivas que envolvem o texto, entendendo essas como atreladas à compreensão do lugar do contexto e sua relação com a produção noticiosa (Van Dijk, 2012b).

O escopo teórico, tanto da ADC quanto de Van Dijk, é amplo e complexo, porém buscamos aqui explicitar um pouco da formação de suas ideias, a fim de centralizar principalmente a contribuição do autor sobre as ideologias políticas e o contexto político, tanto teoricamente quanto metodologicamente situando possíveis categorias para se analisar os textos selecionados. Em ADC, buscamos a partir da prática de análise construir o conhecimento de forma dialética; sendo assim, passaremos para fragmentos selecionados de populares veículos de notícias brasileiras, que debatem o Ministério da Cidadania de suas primeiras confabulações ao fim de seu primeiro ano de existência.

A seleção e inclusão para análise desses fragmentos, ou seja, o corpus da pesquisa que serão objeto de análise, são orientados a partir de um recorte e algumas conceituações que Van Dijk (2012b) e sua linha teórica estimulam como noções intuitivas de episódios. Ainda que operada desse modo, o autor (2012b) sugere ao analista uma abordagem estratégica que privilegie noções intuitivas do analista ao se embasar conceitualmente voltados para uma coerência local e consequentemente, leitura crítica do conteúdo, relacionando-o sempre com o contexto. No âmbito deste trabalho, a Tabela 1 apresenta os níveis de segmentação adotados:

A partir da Tabela 1, é possível compreender uma predileção por quatro registros escritos em veículos diferentes. Em análise do discurso, como já dito anteriormente, a seleção do material ocorreu dialeticamente, assumindo que a análise será organizada a partir também do escopo cognitivo e contextual dos autores. Isto posto, o tema poderia ser analisado por outras lógicas e óticas, seguindo escolhas teórico-metodológicas e conceituais distintas mediante os scripts. Neste caso, a coerência local organizadora dos blocos discursivos selecionados possui pontos como: o mapeamento do contexto político, explicação sobre atores sociais e eventos importantes, tensões e polarizações em curso, estratégias operadas ao se referir ao foco do estudo. Sendo assim, a abstração realizada mapeia o campo de certo modo, encaminhando a análise e questionamentos que serão expostos a seguir.

 

UM MINISTÉRIO PARA OS CIDADÃOS?

O novo Ministério foi promulgado pelo presidente no dia dois de janeiro de dois mil e dezenove, a partir do decreto nº 9.674. Neste documento, está aprovada a estrutura do Ministério, sendo parte dela a extinção do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, agora como uma Secretária, assim como o Ministério do Esporte e Cultura. Como áreas de competência, são mencionadas política nacional de desenvolvimento social, segurança alimentar e nutricional, assistência social, renda de cidadania, políticas sobre drogas, proteção de patrimônio histórico e cultural, regulação de direitos autorais, políticas relacionadas a cultura e práticas de esporte, democratização de acesso, cooperativismo e associativismo urbano (Lei n° 9.674, 2019). Apesar dessa data marcar oficialmente o nascimento do Ministério, desde antes da posse do novo presidente, seu papel social e político já estava nos portais de notícia.

Todas as notícias selecionadas possuem como estrutura temática práticas e discursos sobre o Ministério da Cidadania. Pensando a leitura de modo geral, em forma de uma análise primária, trabalhamos com o que Van Dijk (2012b) chama de macroestrutura, buscando assimilar a partir de uma sumarização do conteúdo as propriedades importantes e apagamentos, generalizações, construções que envolveram a estruturação das notícias. Esse processo irá influir em como os leitores, nesse caso nós pesquisadores, mas também o grande público que acessa essas notícias, vão construir representações, segregar aquilo que entendem como mais importante e como isso vai se armazenar na memória.

Consideramos notícias que detêm manchetes adequadas, ou seja, tratam do assunto que colocaram em destaque, reforçando a noção já explicada da coerência local. Mais especificamente, iremos tratar as estruturas de relevância dos textos. Por fim, de forma geral, o ordenamento das notícias engloba uma estratégia de produção do discurso noticioso com alguns passos, a partir de um desenvolvimento aproximado por parte de Van Dijk (2012b). As notícias vão ativar o chamado modelo de situação atual, resgatando os processos que envolvem as formações noticiosas do tema, acontecimentos e conhecimentos relacionados; estruturam uma estrutura temática global, isto é, planejam e objetivam a produção dos temas por meio da notícia; estudam os pontos principais a serem tratados, utilizando-se de sistemas valorativos, normas, ideologias; concretizam a elaboração do texto, partindo do mais relevante como manchete e na organização do lead da notícia.

Em seguida, observa-se que os parágrafos vão se formando, por meio de tópicos de assunto que vão apresentando, a cada um, algo inferior, seguindo estratégias de escrita como: consequências primeiro, particularidades do acontecimento ou algum ator relevante vem após a citação do tema, causas e condições são abordadas depois do evento e consequências, e finalizando, há a informação de contexto, ou o chamado background.

Partimos assim de um conhecimento mais específico da produção textual nas notícias, para pensar de forma multidisciplinar e articuladora o material a seguir. A notícia do dia 28 de novembro de 2018, do Nexo Jornal, com o nome de "O que é o Ministério da Cidadania. E quem vai ocupá-lo" (Chapola, 2018, online), intenta claramente promover explicações ao leitor do que será o novo Ministério4, e consequentemente, entendemos aqui, explicitar que discurso político o envolve. Isso é perceptível pensando a estrutura e esquema da notícia, que coloca como tópico "o que é", explicitando a intenção de responder para o leitor. Na data da reportagem, o presidente eleito Jair Bolsonaro havia anunciado que Osmar Terra, deputado federal pelo Rio Grande do Sul, seria o ministro da Cidadania. Terra é um político pelo partido MDB, que faz parte juntamente com o PP e PTB da maior bancada da Câmara atualmente. Na notícia, explica-se que ele foi o primeiro a integrar o "primeiro escalão" do governo do presidente, além de também ter sido ministro no governo do presidente anterior, Michel Temer. Um trecho em especial chama bastante atenção

O Ministério da Cidadania, que ainda não existe, era cobiçado pela bancada evangélica do Congresso Nacional. O grupo de parlamentares tinha interesse no cargo por alegar ser a estrutura governamental com a qual tinha maior afinidade temática. ... Apesar de não ter emplacado o ministro, a bancada evangélica dispõe de prestígio no futuro governo. Conseguiu, por exemplo, vetar o nome de um educador moderado para o Ministério da Educação. (Chapola, 2018, on line).

Vemos pela notícia a insurgência de um grupo social que disputa o poder político, isto é, que intenta assumir posição dentro do novo Ministério. Oro e Tadvald (2019) explicam sobre como, diferentemente da religião católica que como um todo apesar de influente, não atua diretamente na política, o evangelismo, após um primeiro momento de recusa, inaugurou a partir da redemocratização brasileira a ideia de autorrepresentação de seus valores e princípios. Com isso, foi se fortalecendo a chamada bancada evangélica. No texto, destacamos "dispõe de prestígio", relacionada à categoria de autoridade, parte de uma estratégia argumentativa comum no discurso político (Van Dijk, 2012a). A vinculação do atual governo com esse grupo demonstra a articulação a esse grupo, em expansão, a fim de dar suporte para a discussão política. Entretanto, ainda que com influência, o atual governo opta por outro nome, grupo que faz parte da maior bancada da Câmara, o que pode sinalizar como estratégia para um consenso, ou seja, articulou-se com uma certa maioria ao recorrer ao grupo que emplacou mais eleitos, ao invés de seguir um outro grupo que se organiza de modo mais valorativo, no caso a afeição a uma religião.

No entanto, no discurso há uma negação dessa interpretação, tanto da parte de Osmar Terra, quanto da de Jair Bolsonaro. Ambos negam parceria e aliança, afirmam que a opção aconteceu a partir de acordos com bancadas temáticas. Esse interesse em negar aproximação ocorre devido ao discurso antissistema de Bolsonaro, inclusive popularizado nas mídias e conversas cotidianas na forma do meme "tem que mudar isso aí". Contudo, ainda que Terra e Bolsonaro tenham se apressado em negar possíveis alianças, o campo político, como coloca Bourdieu (2011), envolve a legitimação de princípios de visão e divisão do mundo social, aproximando, inevitavelmente, Terra e Bolsonaro.

A seguir, trabalharemos duas notícias que abordam mais diretamente falas e posições do novo Ministério e seu ministro durante o ano de 2019, já que anteriormente analisamos mais as questões estruturais, as especulações, e descrições das mídias sobre o órgão institucional. As notícias são "Não é porque é artista que não tem de prestar conta', diz ministro da Cidadania" do jornal Estadão (Trindade, 2019) e "Osmar Terra diz que regulação da maconha medicinal 'abre a porta para liberar drogas'" do Portal de Notícias G1 (Alfano, 2019). É possível verificar que as notícias são de diferentes fontes e de datas distintas. Enquanto a notícia de Trindade (2019), se estrutura a partir de uma entrevista, ou seja, primeiro a pergunta do entrevistador e depois a resposta do entrevistado, no caso, Osmar Terra, a notícia de Alfano (2019), se aproxima mais da primeira notícia trabalhada, com a organização mais "clássica" explicada por Van Dijk (2012b), com consequências, particularidades dos acontecimentos, causas e condições e por fim, background.

Do dia 05 de maio de 2019, a notícia de Trindade (2019) publica entrevista realizada com o ministro. As perguntas envolveram temáticas como a Lei Rouanet5, o Bolsa Atleta6, o Bolsa Família7, posições defendidas pelo ministro e ainda, a citação de algumas figuras conhecidas do campo político. O início da entrevista aborda o tema da cultura. Na notícia de Chapola (2018), quando Terra ainda não havia assumido seu cargo, a cultura foi destaque, pois o seu Ministério estava nos planos de extinção, algo que aconteceu no governo de Michel Temer. Contudo, devido a reações, foi recriado. Osmar Terra teria declarado em outra entrevista, segundo Chapola (2018), que não entendia nada de cultura, e fez chacota que somente tocava berimbau. Mais adiante, a agregação de cultura e esporte e divergências quanto a necessidade de serem Ministérios separados são respondidas por Terra da seguinte maneira "Os ministérios (Cultura, Esporte e Desenvolvimento Social) foram unificados, mas o operacional continua o mesmo. Não reduzimos orçamento". Abaixo, destacamos algumas respostas e falas de Terra sobre os rumos que vão tomar o Ministério da Cidadania

[Sobre a falta de controle dos gastos públicos na área da cultura] tem um musical que arrecadou R$ 13 milhões, cobriu toda a despesa e faturou R$ 15 milhões livres. Qual foi o benefício para a população? Eles pagaram caro para assistir. Ah, mas vão dizer que tem 10% de gratuidade. Isso não funciona. Esses ingressos grátis estavam nas mãos de ONGs que nem sei quais são. Tinha uma que trocava o ingresso por lata de leite condensado. ... Não estou dizendo que os ministros anteriores tiveram culpa, mas estava mal amparado. Estamos tentando dar uma modernizada, democratizá-la. ... [Sobre as críticas de Alexandre Frota] ... Ele nunca foi político. Respeito o trabalho dele e acho que ele é importante na cultura, mas o ministério é responsabilidade minha. ... [Sobre o chamado pente-fino que afirmou estar realizando] ... Mas todos os programas que têm incentivos tem rolos. Não quer dizer que todo mundo faça. [Resposta a pergunta sobre o décimo terceiro no Programa Bolsa Família ser uma compensação da falta do reajuste no programa] para que precisa de reajuste? O 13° já é um up. A partir do ano que vem sim, vai ter 13° e o reajuste. ... (Chapola, 2018, online)

No trecho, é possível ver a utilização dos jogos de números, a fim de aumentar a credibilidade da fala. Durante a entrevista, o ministro rebateu algumas posições contrárias como o já referenciado na citação anterior, Alexandre Frota, além da substituição do general Marco Aurélio Vieira, que havia sido uma indicação do vice Hamilton Mourão para a secretaria de Esportes. Por outro lado, o ministro sinalizou relação positiva e conformidade com duas autoridades "Eu confio muito no Paulo (Guedes) e é muito importante essa liberdade que Bolsonaro nos deu de montar as equipes. ..." (Chapola, 2018, online).

No dia 26 de novembro de 2019, Alfano (2019) registrou a resposta do ministro Osmar Terra ao presidente da Anvisa, William Dib, relacionada ao uso medicinal da maconha. Para Terra, o presidente "não sabe de nada". O debate faz parte das questões relacionadas às políticas de drogas, mais especificamente o uso regulamentado de medicamentos à base de cannabis, onde Terra afirmou que Dib "... ou ele está ouvindo alguns interessados economicamente nisso ou está realmente querendo liberar a droga no Brasil" (Alfano, 2019). Na notícia, Terra acusa o presidente da Anvisa conferindo a ele uma classificação, a de que ele não sabe nada. Curiosamente, é a mesma que ele mesmo se conferiu anteriormente, quando afirmou não saber sobre a cultura. Essa pode ser interpretada como uma estratégia de representação negativa dos outros, que o ministro acabou usando também para si mesmo. No trecho citado, verifica-se também uma estratégia de generalização na construção "está realmente querendo liberar a droga no Brasil".

Por fim, a última notícia, foi veiculada pelo próprio site do Ministério da Cidadania, com o título "Retrospectiva 2019 - Ministério da Cidadania recupera quase R$ 1 milhão do Bolsa Família em junho" (Gomes, 2019). Essa notícia assume fortemente um discurso político-institucional, visto que faz parte da assessoria de comunicação do órgão governamental. Dessa maneira, apresenta perfil distinto do material anteriormente selecionado. Por isso, provavelmente podemos entendê-la mais como um panfleto, um modo do grupo explicitar suas qualidades e avanços e, consequentemente, busca maior convencimento do leitor. Sua estrutura se dá a partir de tópicos, pode-se visualizar separações por seis temáticas: Drogas, Cultura, Estação Cidadania, Competições, Copa América, Assistência Social. Introduz as temáticas com uma pequena introdução em que está descrito que a "operação pente-fino" [o termo já apareceu nas análises de notícias anteriores] obteve sucesso ao retornar R$ 927,3 mil aos cofres públicos ao retirarem o benefício de pessoas que o recebiam de forma indevida, ressaltando ainda que esta ... foi a primeira vez que o governo federal conseguiu reaver recursos numa situação como essa." (Gomes, 2019). Essa primeira construção é interessantemente implícita, pois não acusa diretamente algum governo, ou seja, não nomeia ou ataca nenhum outro grupo político ou ator, no entanto, é conhecido que o Programa Bolsa Família foi desenvolvido por um grupo atualmente bastante polarizado com o do atual governante; trechos como "Foi a primeira vez que o governo federal conseguiu reaver recursos numa situação como essa" são marcas implícitas que sinalizam para uma estratégia ilustrativa, de demonstração de uma inovação governamental.

Sobre o tema das drogas, a comunicação registra a promulgação de uma nova Lei sobre Drogas, com destaque para a assinatura de Bolsonaro, no meio do ano. Essa seria uma das atuações mais relevantes do período. A nova Lei possuiria medidas mais repressivas contra o tráfico e prevenção da saúde de usuários, além de outras medidas como internação involuntária e apoio às comunidades terapêuticas. O tópico ainda relata parceria com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a fim da construção de campanhas sobre a relação entre álcool e drogas e o suicídio. Uma campanha citada na matéria, voltada especialmente para os adolescentes foi lançada durante a Semana Nacional de Políticas sobre Drogas, dizia "Você nunca será livre se escolher usar drogas". Essa construção apresenta a busca por evidencialidade, utilização de categoria analítica visando apontar uma evidência na estratégia argumentativa, geralmente articulada com a autoridade, para embasar as decisões administrativas (Van Dijk, 2012b)

Sobre a cultura, o Ministério destaca a liderança brasileira nas ações culturais do Mercosul, além de eventos que promovem diversidade e expressões culturais diversas. O Estação Cidadania foi inaugurado em Porto Alegre e Brumadinho, para atender a práticas de esportes olímpicos como ginásticas artística e rítmica, atletismo e judô. A citação sobre Brumadinho desponta como interesse aqui, a partir da referência a uma tragédia que aconteceu logo no início de 2019, que envolve a assistência social. Percebemos que em nenhum momento foram citadas medidas relacionadas ao acontecimento, somente um benefício destinado à população atingida, quase como para relembrar que algo foi feito, mas sem chamar tanta atenção.

Sobre competições, o texto convoca a primeira-dama Michelle Bolsonaro para comentar as Surdolimpíadas Brasil 2019, além da presença de Osmar Terra em evento esportivo militar. A seguir, há destaque para o torneio de futebol Copa América, que ocorreu no Brasil. Por último, com três linhas, há o tópico Assistência Social. Registra-se o recebimento de 17 micro-ônibus para beneficiar usuários do Sistema Único de Assistência Social (Suas) no Rio Grande do Sul e quatro municípios de Roraima. Se o Programa Bolsa Família foi o início do texto, a assistência social é quase como uma nota de rodapé. O governo explicitou a sua "operação", mas quando abordou realmente suas ações para o ganho social, o destaque foi mínimo. Fica uma sensação que os usuários de serviços sociais, em 2019, mereceram mais serem penalizados que agraciados.

Podemos perceber, agora refletindo para todo o escopo do material, que mesmo nas notícias que possuem finalidade de maior isenção é possível analisar discursos políticos. Isso acontece pois as ideologias políticas e o contexto político estão imbricados no campo da política, inevitavelmente. Os profissionais que se dispõem a relatar e descrever os processos políticos acabam por participar dele, envolvendo-se com o fazer político. Para ilustrar, podemos citar a Folha de S. Paulo, veículo de comunicação tradicional, que atualmente mantém relação tensa com o presidente da República8. Sobre os aspectos estruturais e esquemáticos, as notícias produzidas pelos veículos brasileiros estão de certa forma em consonância com a teorização de Van Dijk (2012b); no entanto, assim como também coloca o autor, é um procedimento complexo e não determinado. Sendo assim, há diferenciações e estilos próprios dentro das organizações noticiosas, ainda que como um todo, os esquemas de se mantenham, com as explicações de consequências, relatos de acontecimentos, causas e recapitulações.

Cada analista do discurso poderá produzir diferentes análises dos materiais lidos. Para nós, a partir do escopo teórico sobre cidadania lido, as discussões envolvendo o Ministério pouco se interessam realmente para uma construção cidadã. Uma visão engajada para o desenvolvimento das liberdades, construção política e assistência social, ou algum tipo de recapitulação e reflexão sobre a história da cidadania não foi efetuada. É quase como se direitos civis, políticos e sociais fossem substituídos aqui por drogas, cultura, esporte e Bolsa Família. Não pretendemos de forma alguma desmerecer a importância de políticas de drogas, da formação cultural, do desenvolvimento do esporte e dos programas de desenvolvimento social; pelo contrário, entendemos a relevância delas para uma vida potente para os indivíduos. Entretanto, nos preocupamos com certo uso da cidadania como fachada, com um uso artificial e superficial, para um agrupamento distinto de interesses diversos. Uma questão tão séria e tão relevante, como foi percebido nos estudos de Carvalho (2008) e Botelho e Schwarcz (2012), que implicou tantos processos, deve ter uma utilização responsável.

No seu estudo sobre o autoritarismo no Brasil, Schwarcz (2019) trabalha em um capítulo sobre o patrimonialismo, definido como a utilização viciada do bem público para interesses privados. Desse modo, construímos a tese, após a reflexão articulada entre estruturas e esquemas textuais e o contexto sócio histórico brasileiro e político, de que há indícios de uma apropriação patrimonial por parte do Ministério da Cidadania, que se apropria de uma nomenclatura, para atribuir as ações desse órgão como representativas do todo, já que constitucionalmente todo brasileiro é cidadão e a luta pela constituição cidadã ainda se faz. Na realidade atual, o que o aparato administrativo promove é uma adequação sintomática da forma simbólica da cidadania para interesses, valores, representações de mundo particulares e do grupo a que correspondem com opiniões conservadoras, visões sobre cultura específicas, ampla divulgação de investigação sobre beneficiários de um Programa cunhado por grupo distinto, presença e aproximação com militares, entre outros. O próprio interesse demonstrado pelo grupo evangélico, por exemplo, é um sinal para tal reflexão. Estudos como o de Oro e Tadvald (2019) promovem a divulgação do crescimento da influência das religiões neopentecostais, assim como, o manifesto interesse para assumir o cargo no Ministério também nos aproxima dessa informação. Essa reflexão não acusa somente o atual governo de utilizar desse modo o aparato governamental. A intenção não é personalista, ainda que seja extremamente preocupante que um Ministro que assume a pasta da cultura se vanglorie de não entender sobre o assunto. A questão se localiza em plano maior, a partir de uma prática política historicamente submetida aos usos indevidos no campo público.

A apropriação governamental de temáticas dentro da cidadania não vai ao encontro do significado, do conceito de cidadania estudado e motivo de lutas por tanto tempo. Assim, o que o governo faz ao colocar essa série de temas dentro do aparato que carrega o nome cidadania é descaracterizá-la, como uma tentativa de forçar outro sentido. Essa mescla de áreas funciona mais pensada como um Ministério de "Outros", temáticas que podemos até pensar se são consideradas menos importantes, agrupadas de modo secundário sob um nome que intenta uma função generalista. O papel da cidadania, consequentemente, acaba também aparecendo de modo secundário, sem grande valor social ou prioridade política. Ocorre um esvaziamento, a simplificação de uma noção complexa e construída historicamente para lidar com relações e direitos, por meio de retalhos temáticos mal integrados.

Seguimos com o desafio de um maior respeito e seriedade na adoção de termos e conceitos que representam tanto para a construção do ser humano, que implicam lutas, conquistas, conflitos sociais definidores da vida coletiva. Ou, ainda, para práticas institucionais que possuam um real interesse na construção cidadã dos brasileiros e brasileiras.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Van Dijk (2008), uma quantidade baixa de estudos está se interessando pela produção textual das notícias, diminuindo ainda mais quando o olhar se direciona para a construção relacional entre o texto e contexto. Foi precisamente esse um dos nossos nortes de reflexão. Refletir e discutir um aparato institucional, envolvido com os trâmites da política, por meio de veículos comunicacionais, as notícias. Acreditamos que tal esforço valeu a pena, pois permitiu um olhar sobre os eventos discursivos de um momento histórico.

O olhar sobre o texto não seria o mesmo caso não houvesse a priori um estudo sobre a história da cidadania e a sua complexa relação com a vivência brasileira. Esse aprofundamento permitiu visualizar a forte presença da polarização e necessidade de demarcar os lugares distintos do atual grupo social com o que esteve antes, ainda que de modos implícitos ou explícitos. A articulação entre psicologia política e o arcabouço teórico de Teun Van Dijk se mostrou produtivo, no encontro do interesse pelas práticas institucionais, os discursos políticos e os nossos problemas sociais alarmantes.

Esperamos que tal análise provoque novos olhares para as práticas administrativas e as responsabilidades sociais que possuem, a importância de se atentar para como significam questões delicadas e mais complexas do que aparentam.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 19/3/2020
Revisão: 22/4/2021
Aprovado: 01/5/2021
Financiamento CAPES - Bolsista do PGPSI/2018 (UFU)

 

 

1 Em nota publicada no dia 07 de novembro de 2019, a Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Cidadania (2019) comunicou a transferência da Secretaria Especial da Cultura para o Ministério do Turismo. Como levamos em consideração a atuação durante o ano de 2019, as políticas culturais ainda foram consideradas.
2 https://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25anosdaconstituicaode1988/constituinte19871988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20%D ISCURSO%20%20REVISADO.pdf
3 Os emendamentos permitem a atualização das Constituições a partir de um quórum político e procedimentos legais para tais mudanças (Arantes & Couto, 2019).
4 Para ilustrar, a notícia da Folha de S. Paulo "Onyx diz que governo criará Ministério da Cidadania" (Fernandes & Uribes, 2018) do dia 14 de novembro de 2019 se estrutura de forma bem mais descritiva e centrada nas expectativas.
5 Popularmente chamada de Lei Rouanet, a Lei de Incentivo à cultura é a principal legislação para fomento da cultura brasileira. http://leideincentivoacultura.cultura.gov.br/como-funciona/
6 O programa é definido como o maior do mundo de patrocínio direto ao atleta, tendo sido criado em 2005. No momento, existem seis categorias de bolsa via Ministério da Cidadania para o suporte dos atletas com bom desemprenho. http://www.esporte.gov.br/servicos/programas/bolsa-atleta/bolsa-atleta
7 O programa foi criado em 2003 e regulamentado em lei no ano de 2004 visando o combate à pobreza e desigualdade no Brasil, com princípios que intentam acesso a direitos e complemento da renda. http://www.desenvolvimentosocial.gov.br/Portal/servicos/bolsa-familia/o-que-e
8 A notícia veiculada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 31 de outubro de 2019 "Bolsonaro diz que vai cancelar assinaturas da 'Folha' no governo" simboliza a tensão que envolve o relacionamento entre presidente e jornal.

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