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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.53 São Paulo jan./abr. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A Psicologia como práxis política? Limites e possibilidades para o compromisso social de nossa profissão

 

Psychology as a political praxis? Limits and possibilities for the social commitment of our profession

 

¿La Psicología como praxis política? Límites y posibilidades del compromiso social de nuestra profesión

 

 

Matheus Henrique VosgerauI; João Henrique RosslerII

IMestrando no Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba/PR, Brasil. matheus.vosgerau@gmail.com
IIProfessor Associado do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba/PR, Brasil. joheross@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A Psicologia brasileira possui sua história profundamente relacionada com o desenvolvimento do Estado brasileiro e compreender os momentos de ambos participantes dessa relação fornece bases para interpretação de como a Psicologia tem se portado politicamente como ciência e profissão. Repassando momento centrais da formação e manutenção do Estado moderno brasileiro, a partir das bases de sua formação socioeconômica dependente, propomos, com o artigo, revisar momentos históricos importantes da relação entre a Psicologia e o Estado. O intuito é propor a categoria de práxis política como instrumento conceitual de interpretação e superação do conceito de compromisso social, fortemente presente no discurso da Psicologia, seja a partir das práticas ou de suas teorias.

Palavras-chave: Psicologia Social; Política; História da Psicologia; Estado Brasileiro; Marxismo.


ABSTRACT

Brazilian Psychology has its history deeply related to the development of the Brazilian State and understanding the moments of both participants in this relationship provides bases for the interpretation of how Psychology has behaved politically as science and profession. Reviewing central moments in the formation and maintenance of the modern Brazilian State, from the bases of its dependent socioeconomic formation, we propose, with this article, to review key historical moments in the relationship between Psychology and the State. The aim is to propose the category of political praxis as a conceptual instrument for interpreting and overcoming the concept of social commitment, which is strongly present in Psychology's discourse, whether based on practices or theories.

Keywords: Social Psychology; Politics; History of Psychology; Brazilian State; Marxism.


RESUMEN

La Psicología brasileña tiene su historia profundamente relacionada con el desarrollo del Estado brasileño y la comprensión de los momentos de ambos participantes en esta relación proporciona bases para la interpretación de cómo la psicología se ha comportado políticamente como ciencia y profesión. Revisando momentos centrales en la formación y mantenimiento del Estado brasileño moderno, a partir de las bases de su formación socioeconómica dependiente, nos proponemos, con el artículo, revisar importantes momentos históricos en la relación entre Psicología y Estado. El objetivo es proponer la categoría de praxis política como instrumento conceptual para interpretar y superar el concepto de compromiso social fuertemente presente en el discurso de la Psicología, ya sea a partir de prácticas o desde teorías.

Palabras clave: Psicología social; Política; Historia de la psicología; Estado brasileño; Marxismo.


 

 

INTRODUÇÃO

Desde suas primeiras expressões como campo do saber e da prática científica, a Psicologia brasileira esteve determinada pela divisão social do trabalho presente na sociedade de classes capitalista, seja acatando e desenvolvendo sua função social dentro dessa divisão, sendo questionando-a e procurando alternativas ao seu papel determinado. Nesse movimento, observaram-se tendências e posicionamentos diversos em relação a qual deveria ser o compromisso político-social da psicologia e sua práxis.

Para esse percurso histórico e filosófico será considerada, principalmente, a história da Psicologia dentro dos marcos de seu desenvolvimento no Brasil. Com breves considerações sobre seu papel, anteriormente à sua regulamentação em 1962, como apontam Boechat (2017) e Lacerda (2013a, 2013b). E, com maior profundidade, o período posterior à sua regulamentação e contraposição ao ideário propagado pelo regime autocrático-burguês, com ênfase no exemplo da Psicologia Social da Escola de São Paulo na construção de uma Psicologia crítica, voltada aos interesses da classe trabalhadora, como apontam Amorim (2010), Bock (1999), Carvalho (2014), Furtado (2000), Lane (1989), Yamamoto (2007), Yamamoto e Oliveira (2010), entre outros autores que se dedicaram ao tema.

No período analisado, verificou-se um movimento de avanços e retrocessos em relação ao papel da profissão ao lado do Estado brasileiro atuando, respectivamente: como linha auxiliar de sua formação e consolidação anteriormente à regulamentação da profissão (Boechat, 2017; Lacerda, 2013a, 2013b); como crítica do regime autocrático-burguês estabelecido a partir do golpe de 1964 (Carvalho, 2014; Yamamoto, 2007); e como linha auxiliar do Estado burguês principalmente nos anos recentes, a partir do desenvolvimento das políticas neoliberais iniciadas na década de 1990 (Boechat, 2017; Yamamoto, 2007; Yamamoto & Oliveira, 2010).

Desse modo, analisar-se-á aqui a categoria de práxis política, como síntese possível dentro do arcabouço teórico do marxismo, demonstrando sua relevância como ferramenta para mediar o debate sobre a inserção da Psicologia no Estado, sobre seu compromisso social com a classe trabalhadora e seu papel na reprodução da força de trabalho na contemporaneidade. Como denota Yamamoto (2007, p. 30), o tema do compromisso social - com diferentes nuances - esteve presente desde os primeiros estudos sobre a profissão no Brasil. Cabe, portanto, ao presente artigo contribuir teoricamente para o debate acerca da possibilidade real desse compromisso se realizar como uma verdadeira práxis política na psicologia. O intuito é propor a categoria de práxis política para superação do conceito de compromisso social, conceito esse tão arraigado no discurso corrente da Psicologia como ciência e profissão.

 

O COMPROMISSO SOCIAL COM A CLASSE TRABALHADORA

Analisar a relação da Psicologia com o Estado brasileiro deve ter como pressuposto a análise do próprio desenvolvimento de nosso Estado, em conformidade com o capitalismo dependente que aqui se desenvolveu. Desse modo, desvelar a que compromisso social a Psicologia submetia-se nesse processo, remete ao papel que essa ciência e profissão ocupou no interior da divisão social do trabalho e às suas tentativas de ruptura ou reiteração dessa divisão específica. Ao falar em compromisso social tem-se como base Bock (2003), para quem o conceito remete ao projeto político ao qual a profissão vincula-se e se utiliza para fornecer respostas às demandas sociais que lhe são atribuídas.

Como explicita Amorim (2010), "o psicólogo é produto direto da divisão social do trabalho, reproduzindo e impulsionando essa divisão" (p. 33). De modo que, ainda segundo a autora, investigar a ocupação de psicólogas e psicólogos implica considerar necessariamente as contradições determinantes dentro da relação entre capital e trabalho. Não se trata, pois, de questionar se estes profissionais, bem como a Psicologia como área científica, estão contra ou a favor do capital, mas como este determina o primeiro.

A história da Psicologia de modo geral, e no Brasil especificamente, tem seu início no fim do século XIX e começo do século XX, tendo como marco o ano de 18751 (Bock, 2007). Segundo Mavezzi (2010), o campo de desenvolvimento inicial da Psicologia no Brasil fora construído a partir da medicina, e as atividades de diversos profissionais no início do século XX revelavam um alinhamento com a Psicologia desenvolvida nos Estados Unidos e Europa. Não obstante o alinhamento com a ciência desenvolvida em países centrais do capitalismo, como destaca Amorim (2010), é possível reconhecer, desde o início, a preocupação com seu compromisso social, ou seja, determinado questionamento sobre seu papel social dentro da organização socioeconômica brasileira, ainda que com suas limitações à época. Lacerda (2013a, 2013b) alerta que, principalmente em seus primeiros momentos de autonomização e desenvolvimento, a Psicologia brasileira determinada histórica e socialmente aliou-se aos interesses das classes dominantes para mostrar sua função dentro da ordem capitalista estabelecida.

No período de autonomização da psicologia brasileira, o que predominou foi um conjunto de estudos que, no início do século XX, buscavam contribuir com a modernização e a manutenção da ordem social brasileira. A psicologia abordava temas como o tratamento das doenças mentais, a formação "moral" do ser humano e a manutenção da "higiene mental". Por isto, entre os precursores da psicologia, estavam médicos, educadores e outros profissionais que faziam parte do movimento higienista e/ou importavam teorias marcadas pelo racismo científico e buscavam uma saída "moderna" para o país. (Lacerda, 2013a, p. 220)

Esse período predominantemente voltado ao higienismo, apoiado em teorias positivistas importadas de realidades diversas como Estados Unidos e Europa, serviu de solo fértil para a construção de uma ciência psicológica alinhada ao projeto de desenvolvimento nacional. Projeto esse baseado em uma concepção política democrático-nacional desenvolvimentista, que defendia a ascensão da nação brasileira a partir da e uma conformação e modernização da força de trabalho às novas condições de técnica exigida pelo capital. Bock (2003) destaca que a história da Psicologia no Brasil foi marcada pelo seu compromisso com as elites; suas ideias e teorias assumiram, predominantemente, o papel de controlar, higienizar, diferenciar e categorizar os indivíduos, visando manter ou incrementar o lucro do capital. Especialmente no período do ciclo democrático-nacional, ao longo do processo de industrialização do país, a Psicologia esteve em sintonia com o modelo de gestão do trabalho de cunho taylorista-fordista, selecionando e procurando formar grupos homogêneos, que estivessem em melhores condições de atuar como mão-de-obra técnica, sem perder seu caráter geral de trabalho não especializado.

O ciclo democrático-nacional refere-se ao período da história de nosso país que se situa entre dois golpes de Estado: o golpe de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder, e o golpe empresarial-militar de 1964 (Boechat, 2017). Esse período consiste em um ciclo de intenso desenvolvimento da indústria e urbanização da sociedade brasileira, com a consequente organização e ascensão de uma classe trabalhadora em resposta a esse processo. Uma das marcas do período foi a ideia do desenvolvimentismo; ou seja, a noção de que, para poder "alcançar" os países desenvolvidos nos marcos da produção capitalista, ao Brasil cabia a tarefa de se desenvolver, superando o entrave advindo do poder oligárquico latifundiário do país e a concorrência externa com as nações desenvolvidas (Boechat, 2017). Desse modo, a Psicologia que desponta nesse período encontra nesse ideário desenvolvimentista seu norte para atuação e pesquisa. Seu conhecimento já estabelecido fora utilizado para colaborar com o projeto de desenvolvimento nacional vigente.

Cabe destacar, todavia, que a formação do Brasil moderno foi determinada por múltiplos fatores geopolíticos. Majoritariamente, seu processo de industrialização e modernização foi dependente, do ponto de vista econômico e cultural, do capitalismo monopolista da época. O que, por sua vez, marcou o processo de formação e estabelecimento da Psicologia como ciência e profissão no país, bem como sua relação com o Estado brasileiro moderno.

De acordo com José Paulo Netto (1991), há uma confluência de forças específicas na formação da sociedade brasileira como nação capitalista moderna que, com sua interação recíproca, determinarão a particularidade histórica brasileira no processo de modernização. Nessa particularidade histórica há três ordens de fenômenos que, embora distintos, se conectam visceralmente. A saber: desenvolvimento capitalista sem se desvencilhar de formações socioeconômicas anteriores; socialização política inconclusa; Estado capitalista como instrumento desestruturador dos interesses das classes subalternas.

No que se refere ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, ao contrário da experiência histórica verificada em países centrais do capitalismo moderno, não se liquidou aqui as formações socioeconômicas anteriores a seu desenvolvimento. Como a escravização, por exemplo, essas foram apenas redimensionadas para atender a seu novo propósito, determinando a formação capitalista e mesmo competindo com essa em tempos de intensificação da concorrência burguesa-latifundiária. Como diz Netto, "no Brasil, o desenvolvimento capitalista não se operou contra o 'atraso', mas mediante a sua contínua reposição em patamares mais complexos, funcionais e integrados" (Netto, 1991, p. 18 - grifos do autor).

Atrelado a esse fenômeno, as forças populares foram excluídas dos processos de decisão política e, consequentemente, a socialização política deu-se de modo inconcluso no país. Os segmentos mais lúcidos das classes dominantes lograram, por meios mais ou menos diretos, impedir que o poder decisório central ao desenvolvimento brasileiro alcançasse minimamente a massa do povo para o direcionamento da vida social.

No que diz respeito ao caráter desestruturador do Estado - talvez o fenômeno de maior importância para discussão acerca da relação da Psicologia com o Estado moderno -, Netto (1991) demarca que o Estado brasileiro, como síntese ou condensação da sociedade civil, atua não apenas como seu regulador ou gestor, mas, verdadeiramente, como organização desestruturadora dos interesses da classe trabalhadora. Ou seja, atua em acordo direto com as necessidades da produção capitalista e com os interesses dos setores dominantes da economia. Especificamente, sua determinação não é apenas a de uma substância amorfa, opressora e descolada da sociedade civil; mas sim é, historicamente, um Estado que serviu de eficiente instrumento de interdição de agências portadoras de vontades coletivas, agindo de modo a impedir que projetos societários alternativos emergissem da sociedade civil (Netto, 1991)

O entendimento do processo de formação do Brasil moderno é essencial para a Psicologia. Segundo Martín-Baró (2006), uma Psicologia realmente comprometida com o povo latino-americano deve compreender as raízes de sua dependência para, então, poder agir sobre as determinações que constantemente repõem a América Latina sob o esquema da dependência econômica e cultural.

Ao longo do ciclo democrático-nacional, ainda sem estar devidamente regulamentada e operando como saber subordinado à Medicina e à Educação, a Psicologia inicia sua institucionalização sob o marco do desenvolvimento industrial inicial do país, engajando-se, desse modo, na produção de "um novo homem" para os novos tempos que o momento histórico requeria. Adotando uma postura de compromisso com o projeto político do país, em busca do desenvolvimento para a nação, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político, a Psicologia brasileira também se subordinava e contribuía para a ideologia do nacional desenvolvimentismo (Boechat, 2017).

A superação desse pensamento conformador por parte da Psicologia só foi possível quando o próprio projeto desenvolvimentista nacional cedeu frente às limitações que o processo de industrialização inevitavelmente delineara. A industrialização restrita que incialmente fora possível exigia um novo modelo de acumulação e este novo modelo só poderia ser alcançado, mormente a partir de 1956, com um processo de industrialização pesada (Netto, 1991). Desta contradição entre padrão de acumulação e arranjo socioeconômico brasileiro, encontra-se a base para a crise política e econômica que o país vivencia a partir do final da década de 1950 e início da década de 1960. Entretanto, do bojo da crise que culminou no golpe empresarial-militar de 1964 e fundou um período de autocracia burguesa, também germinou sua antítese na Psicologia sob a forma de uma ciência compromissada com a classe trabalhadora.

 

COMPROMISSO SOCIAL COMO REPOSTA POLÍTICA

A Psicologia é regulamentada e reconhecida no Brasil, em 1962 - Lei Federal nº 4.119/62. Em 1964, ocorre o golpe empresarial-militar que irá readequar o modo de reprodução capitalista brasileiro às novas exigências da conjuntura econômica mundial. Como consequência, é possível notar na Psicologia duas tendências opostas entre si, mas com um mesmo objetivo: responder ao novo momento da estrutura socioeconômica brasileira. A primeira tendência poderá ser considerada a própria continuação da linha histórica da Psicologia como auxiliar do projeto de desenvolvimento capitalista. A segunda aparecerá, em sequência, como sua antítese.

O golpe de abril de 1964 inaugurou o período que denominamos de ditadura civil-militar e, também, de autocracia burguesa, que durará, formalmente, até 1985, mas cuja influência revelar-se-á presente até os dias de hoje. A importância de compreender esse fenômeno para a discussão do compromisso social da Psicologia é notório, pois revela como uma determinada ciência e profissão situa-se na divisão social do trabalho e qual papel assume durante momentos de forte tensão política e social. De acordo com Netto (1991), o desfecho de abril de 1964 foi a solução política imposta para enfrentar o desgaste do padrão de acumulação da burguesia nacional e as crescentes demandas de setores populares pela socialização do poder político e econômico. Como cita o autor (p. 25), "o que o golpe derrotou foi uma alternativa de desenvolvimento econômico-social e político que era virtualmente a reversão do já mencionado fio condutor da formação social brasileira".

Em síntese, o período no qual a Psicologia se institucionaliza e se orienta legalmente coincide com a crise da forma específica da dominação burguesa vigente no país.

De maneira a acompanhar o desenvolvimento histórico da nação, a Psicologia dominante manteve-se como uma ciência voltada a adequação e conformação do trabalhador às exigências do capital. Não apenas em busca de legitimidade social, mas, também, para comprovar que não consistia em uma ameaça à ordem social (Lacerda, 2013a).

Para além do campo político e teórico, a Psicologia revela sua conformação aos modelos exigidos pelo capital posicionando-se, nesse período, como um serviço "elitizado", isto é, restrito a uma minoria econômica e socialmente dominante, não se inserindo junto a grande massa da população. Em 1977-1978, apenas uma parcela de 5 a 15% das famílias brasileiras teria condições de arcar com os custos - e com provável dificuldade - de um serviço de Psicologia (Botomé, 1979/2010).

Também é necessário considerar, segundo Yamamoto (2007), que a ausência de debates intensos sobre os rumos da profissão e seu papel na sociedade estava muito mais relacionada à incipiência de sua regulamentação e, consequentemente, de sua existência como ciência independente na academia, do que à própria imposição do regime ditatorial.

De toda maneira, seja pela ausência de crítica ou pela presença de uma posição conformadora, a primeira tendência da Psicologia em relação a seu tempo histórico pode ser enquadrada, de modo sintético, como uma posição elitizada e subordinada aos interesses e necessidades do modo de produção capitalista.

Todavia, nesse mesmo período, desenvolve-se uma segunda tendência em oposição à primeira. Uma Psicologia que buscava criticar seu próprio papel, sua vinculação às classes dominantes e à reprodução do capital, e que elencava seu "compromisso social" como o principal mote de sua pesquisa e prática. É no campo da Psicologia Social que essa tendência se fará especialmente presente.

O golpe empresarial-militar foi elemento determinante para a constituição de uma psicologia social que, além de crítica, orientava-se por certa concepção de transformação da realidade. Tal postura crítica e transformadora exigia mais que uma disposição para a transformação, exigia a reformulação dos referenciais epistemológicos, éticos e teórico práticos da psicologia social. Seria na pós-graduação que a massa crítica dos fundamentos teórico-filosóficos que embasariam uma concepção de ser humano, de ciência e sociedade para uma psicologia social seria desenvolvida de modo mais profundo e sistemático. (Carvalho, 2014, p. 81)

De acordo com Yamamoto e Oliveira (2010), é no processo de resistência contra o regime autocrático-burguês que o campo profissional se politiza. Essa politização terá forte expressão no desenvolvimento de uma Psicologia Social que revisa seus próprios fundamentos para, com a renovação de sua base epistemológica, sua metodologia de pesquisa e sua prática, almejar-se como uma categoria profissional preocupada com as classes exploradas e oprimidas pelo capitalismo desenvolvido no Brasil. É importante destacar que a gênese - e posterior popularização - dessa Psicologia compromissada com a realidade social sobre a qual intervém não resultou no enfraquecimento das vertentes psicológicas que, prioritariamente, destinavam-se a atender as elites. Seu desenvolvimento carrega a possibilidade de crítica e contraposição, as quais estarão presentes a partir de então nos debates sobres os rumos da profissão.

De acordo com Lacerda (2013a), é principalmente a partir dos anos 1970 que novas perspectivas críticas se desenvolvem no campo da Psicologia, contestando suas ideias e práticas engendradas pelo modelo político-econômico dependente que vigorava - e vigora - em nosso país. Em outras palavras, contestando a Psicologia como uma ciência imediatamente determinada pelo capitalismo dependente, a qual, segundo o autor, "mais reproduziu ideias conservadoras do que buscou compreender a realidade brasileira; mais justificou uma ordem social injusta do que explicou suas raízes e suas consequências perversas sobre a subjetividade humana" (Lacerda, 2013a, p. 225).

Como reitera Boechat (2017), o desenvolvimento dessa Psicologia crítica correspondeu a um movimento contestador mais amplo, gestado no seio da sociedade brasileira, o qual expressava um ciclo histórico que ainda estava por vir. Nesse processo situa-se a Psicologia Social da Escola de São Paulo que, entre as várias vertentes que originou e as várias temáticas sobre as quais versou, legou, principalmente à Psicologia, a necessidade de que assumisse, como ciência, seu compromisso social. Nesse caso, compromisso com a transformação da realidade humana.

Para Bock (1999), a assunção de um compromisso social corresponde a buscar uma intervenção crítica e transformadora das condições de vida que permeiam a realidade. Compreendendo que são essas condições que determinam os seres humanos sob os quais a Psicologia intervém. Compromisso social para a autora é, dessa maneira, estranhar a realidade e buscar novas respostas para os problemas existentes.

O tema do compromisso social torna-se referência na distinção das novas vertentes da Psicologia, em comparação com as teorias dominantes que vigoravam na ciência brasileira. Nesse contexto, observa-se o compromisso social ser tomado como uma atitude política que, por sua vez, exige uma práxis política correspondente.

Essa vertente da Psicologia Social demonstrava que o compromisso social era exigência não apenas de um posicionamento político de nossa profissão, mas, necessariamente, consequência da concepção mais adequada da própria apreensão e formação do fenômeno psicológico. Como destaca Bock (2007, p. 22) à época, falar em qualquer fenômeno psicológico consiste em "obrigatoriamente falar da sociedade. Falar da subjetividade humana é falar da objetividade em que vivem os homens. A compreensão do 'mundo interno' exige a compreensão do 'mundo externo', pois são dois aspectos de um mesmo movimento".

Martín-Baró (2006), na mesma direção, objetivou readequar as próprias bases epistemológicas da Psicologia que era então reproduzida na América Latina. Destacou que não se tratava somente de uma práxis diversa, mas sim de entender que os fundamentos sociais que eram basilares às nossas teorias não correspondiam à formação dos sujeitos concretos existentes nos países coloniais. Para ele, era necessário, além do posicionamento político compromissado com a emancipação do povo, uma teoria também capaz de entender as especificidades da superação das epistemologias tradicionais.

Não apenas no campo teórico, mas também no campo profissional de modo geral, o ciclo histórico que contempla o fim do regime ditatorial burguês-militar e a retomada da democracia como molde político para a manutenção do capitalismo no país, fez com que a Psicologia se inserisse de maneira mais contundente no aparelho estatal e na sociedade como um todo. O serviço da Psicologia, determinado pelo novo ciclo de desenvolvimento que se observa a partir da década de 1980 e 1990, estabelece-se como necessário à sociedade. Porém, qual o compromisso que terá de assumir para manter-se nessa posição?

Nesse novo momento, posterior à crítica a concepções teóricas socialmente descompromissadas e à própria assunção do compromisso social como norte de diversas tendências da profissão, é necessário observar se a função atribuída ao compromisso social da Psicologia continuou operante como crítica radical. Ou se o compromisso social tem sido apenas reeditado sob o papel de um discurso político sem bases concretas na prática compromissadas das psicólogas e psicólogos e em sua crítica (Amorim, 2010).

Ainda segundo Amorim (2010), o processo de avaliação da profissão culminou em um movimento de promoção de uma postura política em favor de um discurso social. Assumindo o compromisso social como mote, a Psicologia inseriu-se - e fora inserida - em locais e atividades que exigiam que o tema permanecesse central na discussão. Não obstante a escassez de estudos que fossem, de fato, comprometidos socialmente, como forma de transformação verdadeira da realidade da classe trabalhadora e não somente de sua adequação à realidade brasileira.

Como o novo ciclo que se inicia, denominado ciclo democrático-popular (final da década de 1970 e início da década de 1980), especialmente após o chamado período de redemocratização, quando se produz e é aprovada a Constituição de 1988 e se fortalecem as garantias estatais, a Psicologia passa a ter seu compromisso social subsumido à necessidade de garantir os direitos conquistados. De modo sintético, teve na inserção e defesa do Estado sua tarefa, de modo a assegurar seu acesso por populações que, anteriormente, seriam impossibilitadas de tal contato. Analisando a evolução do sistema de saúde brasileiro, no qual se insere a Psicologia, Yamamoto e Oliveira (2010) descrevem como é notável, em meio a avanços e retrocessos, a hegemonia do modelo liberal de prestação de serviços no país, embora tendo o Estado como mediador das relações de mercado e financiador de boa parte dos serviços de saúde.

Como se observa na análise das particularidades históricas do desenvolvimento brasileiro realizada por Netto (1991), mesmo quando se constata a intervenção do Estado brasileiro como mediador ou mesmo assegurador de direitos e do acesso aos serviços essenciais, é importante manter o foco na totalidade da relação entre o Estado e a economia capitalista dependente. O Estado brasileiro possui, em sentido mais amplo, o papel de desestruturação das expressões organizadas da classe trabalhadora. Especialmente, quando é necessário manter o funcionamento da posição colonial secundária do brasil em relação a países centrais no capitalismo moderno.

Desse modo, a Psicologia - como outras profissões que, progressivamente, inseriram-se no Estado - entrou em novos espaços, principalmente, para dar conta das sequelas da questão social (Lacerda, 2013a). Yamamoto (2007) sintetiza a questão social como sendo a expressão, no cotidiano, da contradição entre capital e trabalho. De acordo com Netto (2001), trata-se de uma nova nomenclatura dada ao pauperismo necessariamente correlato ao modo de produção capitalista, e que se tornará uma das principais frentes de atuação da Psicologia. Para o autor, o pauperismo, como sinônimo da miséria advinda da desigualdade capitalista, tornou-se "questão social" quando a eversão da ordem burguesa como uma revolta contra a miséria disseminada tornou-se uma perspectiva efetiva. Isto é, passou-se a nominar de "questão social" as consequências inevitáveis do capitalismo quando essas tornaram-se possíveis causas de uma efetiva revolta contra o próprio sistema capitalista.

No período de redemocratização que se segue ao regime autocrático empresarial-militar - período esse caracterizado como um ciclo neoliberal em seu ordenamento econômico e político - a Psicologia pôde, portanto, utilizar a crítica desenvolvida anteriormente como síntese para seu novo papel na sociedade brasileira, tornando-se cada vez mais institucionalizada e requerida para manutenção da ordem social. O compromisso social que, outrora, representava um marco de crítica a concepções hegemônicas e individualizantes em nossa profissão passar a ser pressuposto de sua ação nas novas áreas associadas ao Estado nas quais passa atuar. Como analisa Yamamoto (2007), a atuação da Psicologia como prática institucionalizada e legalmente sancionada no terreno do bem-estar social requererá ação para o tratamento de questões sociais, transformadas em questões de políticas propriamente estatais a serem tratadas de maneira parcializada e fragmentada, de acordo com a conjuntura histórica particular em vigência.

Trata-se de um momento histórico em que, a despeito do ascenso das lutas operárias e sindicais, o arrocho salarial, o aumento do custo de vida e o rebaixamento do salário real acometem a população brasileira (Boechat, 2017). Nesse ciclo, é notável o novo desafio político que se coloca frente ao compromisso social da Psicologia, pois o Estado capitalista brasileiro se situará entre a manutenção do funcionamento da ordem capitalista, com a oferta mínima de serviços para a reprodução da força de trabalho, e seu subsequente desmonte pela crise de acumulação que se faz presente, em maior ou menor nível já desde a própria década de 1970. Em linhas gerais, no período que compreende o ciclo democrático-popular, observam-se as conquistas sociais que se subscreveram à gestão e ação do Estado serem desmanteladas, a fim de garantir a efetiva mercantilização dos serviços dispostos à sociedade. Como demonstra Boechat (2017), nesse ciclo, as organizações políticas de esquerda, tanto como a própria Psicologia, arrefecem a crítica e a radicalidade na superação da ordem capitalista. É um período de "compromissos", em que há a conquista do básico e, subsequentemente, a luta pela sua manutenção.

A luta que será central para a sociedade civil e para a Psicologia socialmente compromissada, nesse período, será, portanto, contra o "ajuste neoliberal" em curso - ajuste esse bem descrito em Yamamoto (2007); Yamamoto e Oliveira (2010). Condensado na década de 1990 - mas não subscrito somente a esse período - o ajuste neoliberal será marcado por um processo dual e concomitante de precarização dos serviços ofertados pelo Estado e privatização (total ou parcial) daqueles serviços que antes eram ofertados em caráter público (Yamamoto, 2007).

A problemática que se levanta nesse momento refere-se à localização específica da práxis política da Psicologia. Em especial, quanto a seu compromisso social dentro do ciclo democrático-popular até a contemporaneidade. Se, ainda que com diversas limitações superiores à ação singular de cada indivíduo, observamos um movimento geral de adesão da Psicologia a atuações e referenciais teóricos mais compromissados com as classes subalternas, também observamos que a ação da Psicologia no campo do bem-estar social ou nas políticas públicas voltadas à classe trabalhadora, embora legítima e necessária, não corresponde automaticamente a um compromisso social como forma de projeto político transformador.

Ademais, nesse imbróglio entre a defesa dos direitos conquistados e assegurados pela legalidade estatal e as diversas tentativas de seu desmonte, a Psicologia acabou perdendo a radicalidade da crítica que alcançara nas décadas de 1970 e 1980 e assumindo a defesa de uma perspectiva, novamente, compromissada em mostrar sua utilidade à reprodução da ordem capitalista dominante. Segundo Boechat,

Ao que nos parece, a ideologia do compromisso social acaba reencontrando-se com a ideologia do desenvolvimento nacional, sugerindo a necessidade de uma aliança nacional ou de toda a população para a conquista progressiva dos direitos que caracterizam a sociabilidade burguesa. (Boechat, 2017, p. 67)

Carvalho (2014) também explicita como o próprio desenvolvimento da Escola de São Paulo de Psicologia Social cede o lugar de categorias mais críticas a partir da teoria marxista de interpretação e atuação sobre a realidade, em favor de construções teóricas mais brandas. Teorizações essas que, de maneira geral, não questionam o funcionamento capitalista de maneira essencial, mas, sim, buscam maior inserção dos indivíduos em suas possibilidades políticas. Qual alternativa que resta à Psicologia para se fazer socialmente compromissada sem ceder sua crítica à ordem social estabelecida no capitalismo dependente brasileiro?

Embora os autores aqui citados tragam respostas diversas ao problema, propõem-se, a seguir, a partir do marxismo e para contribuir com o debate, a categoria de práxis política. Em especial, a partir das contribuições de Kosik (2002), Vázquez (2011) e Netto e Braz (2012).

 

PRÁXIS POLÍTICA PARA A PSICOLOGIA

A análise do desenvolvimento histórico da Psicologia como ciência e profissão na conjuntura brasileira demonstra que a contradição entre sua atuação dentro dos princípios e legalidades próprias do Estado e a luta por sua manutenção (ou mesmo expansão) não reflete, necessariamente, o compromisso social com a classe trabalhadora. A Psicologia aparenta professar uma práxis política que não corresponde necessariamente a uma ação. Antes, como supracitado em Amorim (2010), institucionaliza-se como um discurso político que não se opera e não se transforma em uma práxis.

O conceito filosófico de práxis no campo do marxismo remete, em sentido mais geral, a uma prática mediada e planejada idealmente a partir de uma dada teoria. Ou seja, em síntese, atividade teoricamente mediada. A tradição marxista recorre a essa categoria como forma de assegurar que as teorias que visam a transformação da realidade social não se engessem e se hipostasiem em ideias que não retornam à realidade. Não obstante sua utilização por Marx e Engels tenha o significado de "prática", em tradução literal (Duarte, 2012), o conceito ocupa lugar privilegiado no interior do pensamento marxista. Basicamente, por sintetizar importantes aspectos do método materialista histórico e dialético e também apontar uma direção concreta às reflexões e ações que, ainda hoje, pretendam a transformação social.

Kosik (2002) explicita de maneira acurada que:

A praxis na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade). A praxis do homem não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade. (p. 222 - grifos do autor)

A práxis é substância inerente ao ser humano, podendo ocorrer com qualidades diversas, mas não podendo ser excluída de um modo de atuar propriamente humano em sua teleologia e objetivação no real. Apesar de nem toda atividade ser uma práxis, toda práxis é necessariamente uma atividade. Para Vázquez (2011), a práxis é compreendida como a grande categoria do marxismo. Inclusive, denomina essa vertente de pensamento como "filosofia da práxis". Práxis, para o autor, consiste em uma prática ativa, que atua sobre o mundo, sobre uma matéria-prima objetiva (mas não exclusivamente natural), cujo produto existe objetivamente e independentemente de seu produtor após o processo. A esfera sobre a qual incidirá a práxis determina suas variadas formas. Todavia, sua determinação essencial encontra-se em sua ação objetiva e teoricamente mediada sobre a realidade, ou seja, orientada por um objeto idealizado previamente que se realiza como produto da ação.

Netto e Braz (2012) descreveram a categoria como aquela que permite compreender a riqueza do agir humano como ser que é social. Para além da simples produção da vida, a práxis permite a mediação do ser humano com o mundo que o circunda, produzindo propriamente a si mesmo, a política, a ciência, a arte e demais objetivações que convertem seus objetos em produtos sociais. "Na sua amplitude, a categoria de práxis revela o homem como ser criativo e autoprodutivo: ser da práxis, o homem é produto e a criação da sua autoatividade ele é o que (se) fez e (se) faz" (Netto & Braz, 2012, p. 56 - grifos dos autores).

Na criação objetiva e intencional do mundo social que o circunda, o ser humano intenciona e direciona suas ações com a consciência que possui acerca de si e do mundo. A práxis de diversos seres sociais - recordara (Martínez, 2011) - resulta na práxis social geral que encaminhará o destino da produção de um determinado coletivo, não sendo possível reduzir esse encaminhamento coletivo à práxis de um único sujeito ou a uma única conjuntura.

A práxis política, de acordo com Vázquez (2011), é definida como práxis social que se identifica com "a atividade de grupos ou classes sociais que leva a transformar a organização e direção da sociedade, ou a realizar certas mudanças mediante a atividade do Estado. Essa forma de práxis é justamente a atividade política." (Vázquez, 2011, pp. 233-234). A práxis política, portanto, não está subsumida ao Estado; ao contrário, realiza-se também visando a sua transformação.

Engels (2012, 2015), Marx (2010, 2012, 2013, 2015) e Marx e Engels (2009, 2017) abordam o tema da política em suas obras de maneiras diversas, porém seguindo uma linha condutora que se mantém pressente essencialmente: a política - assim como o Estado - deve ser compreendida a partir das determinações materiais das relações sociais vigentes na sociedade. Principalmente ao desvelar as leis gerais do momento inicial do capitalismo na sociedade moderna, os autores possibilitaram compreender como a influência da própria produção mercantil terá peso sobre as determinações políticas na sociedade moderna.

A figura do Estado moderno, sobretudo a partir da fase imperialista/monopolista de acumulação capitalista, torna-se um dos principais determinantes para a manutenção da reprodução do capitalismo, atuando objetivamente na economia de modo a assegurar a manutenção das taxas de lucros necessárias (Lenin, 2012; Poulantzas, 1977). Para Poulantzas (1977), no capitalismo monopolista a relação entre economia e Estado altera-se, tornando-se muito mais orgânica. O Estado lega à acumulação capitalista uma série de domínios anteriormente de sua exclusividade, integrando setores econômicos de inferior valorização do capital. É nessa relação que se encontra a Psicologia no Brasil, entre o compromisso social e as demandas e interesses do Estado. No caso, de um Estado capitalista.

A mercantilização de setores anteriormente vedados à atuação do Estado, mesmo aquele voltados à questão social e à reprodução da vida da classe trabalhadora, característica do neoliberalismo permeiam a atuação da Psicologia mesmo quando atua em políticas públicas. De maneira que somente a ação junto às camadas populares dentro do Estado não se justifica enquanto uma prática socialmente compromissada, dadas as condições que caracterizam a organicidade entre o Estado brasileiro e a reprodução ampliada capitalista.

Netto (1991) explicitara que as particularidades da formação social brasileira moderna atribuíam características específicas que não poderiam ser descartadas sob o rigor de uma análise de conjuntura, teórica e política. Ao cabo das transformações experienciadas na história brasileira no ciclo democrático-popular, entre a estruturação de um Estado de compromissos entre as classes e a luta contra o "reajuste neoliberal", observa-se que a práxis política da Psicologia por sua manutenção - ou mesmo, expansão - no âmbito estatal, não pode subsumir a totalidade do compromisso social que outrora fora exigido de nossa profissão.

Em acordo com Boechat (2017), a compreensão da realidade desigual brasileira como um pressuposto para a atuação da Psicologia, como produto e produtora de uma consciência crítica acerca da política e da sociedade em que está inserida, é um ponto fundamental. E fora conquistada com o esforço de diversas correntes teóricas e práxis singulares capazes de questionar a que compromisso social a Psicologia, de fato, atendia. Todavia, ainda de forma insuficiente, se à consciência crítica engendrada nesse processo não se somava a uma opção política pela defesa explícita dos interesses materiais das classes subalternizadas (Boechat, 2017).

Por isso, considera-se aqui a práxis política, entendida como categoria de análise e ação, uma alternativa ao propalado compromisso social da Psicologia. Especificamente, por, em maior ou menor grau, seja em direção à transformação ou manutenção social, exigir um direcionamento e uma ação das pessoas envolvidas com o encaminhamento da Psicologia como campo da ciência. Mesmo situando-se dentro da estrutura estatal, a práxis política opera com a materialidade das condições objetivas do funcionamento social. E, seja para transformação dessas condições ou não, requer que os profissionais e teóricos deparem-se com os limites atuais existentes.

Yamamoto (2007) propõe como solução (ou desafio, ao se considerar a Psicologia como um todo) que se amplie os limites da própria dimensão política de ação, isto é, da práxis política de psicólogos e psicólogas. Tanto pelo alinhamento com setores progressistas da sociedade civil, quanto pelo desenvolvimento de outras possibilidades teóricas e técnicas para a Psicologia, que a permitam romper - novamente - com o posicionamento hegemônico de linha auxiliar do Estado moderno.

Lacerda (2013a, p. 249), por sua vez, sintetiza:

o engajamento em ações que buscam criar novas concepções e ameaçar a ordem social imperante é um dos meios fundamentais para se evitar que a psicologia crítica se torne apenas uma mercadoria que alimenta o mercado acadêmico ou uma viga de sustentação de práticas conservadoras. Sem esta implicação com os anseios da classe trabalhadora e de diversos movimentos sociais contestatórios do presente, a transformação da psicologia crítica em apenas um parente requintado da psicologia dominante é algo que pode facilmente ocorrer.

Como se verifica, a Psicologia sempre esteve, historicamente, alindada a um determinado compromisso social. Ora radicalmente atrelado às necessidades e interesses da classe trabalhadora, ora da classe dominante, no ensejo do seu desenvolvimento como ciência e do desenvolvimento da sociedade.

Apesar de ter obtido o reconhecimento e conquistado a inserção no Estado que por tanto tempo pleiteou, cabe, atualmente, à Psicologia refletir sobre o compromisso que está cumprindo. E se utilizar de uma verdadeira práxis política para verificar os limites de suas ações e seu potencial na construção de uma sociedade mais justa.

Operar com o conceito de práxis política como substituto ao compromisso social permite, conforme desenvolvido no presente texto, que as ações das psicólogas e psicólogos sejam verificáveis em acordo com seus produtos e suas intencionalidades. E, desta maneira, atuem nas condições de vida tão essenciais à formação e conformação dos sujeitos sobre os quais a Psicologia dispõe seu conhecimento e prática.

A determinação de como o desenvolvimento de um país ocorre e quais as formas de sua contestação ocorrem de maneira dialética, seja pelas condições objetivas que situam seu desenvolvimento de acordo com uma estrutura mais ampla, seja pelas condições subjetivas dos indivíduos que se empenham em sua transformação ou manutenção. A Psicologia está determinada, como observado, pelas condições socioeconômicas específicas do momento histórico em que se situa e, ao mesmo tempo, é somente compreendendo essa especificidade que pode atuar e teorizar sobre sua superação. A práxis política retoma, teórica e praticamente, a exigência da atuação na realidade e seu vínculo com um projeto político específico no direcionamento da ação que se deseja executar. Permitindo, desse modo, a contestação ou transformação desse projeto de modo mais explícito, apreendendo suas consequências para a sociedade como um todo, considerando a necessidade da construção de uma Psicologia Política.

A práxis política revela, sob suas determinações teóricas, se o compromisso social que se opera está em acordo com um projeto político de acordo com os anseios e necessidades da classe trabalhadora e seus movimentos sociais ou se, sob o auspício de uma crítica hipostasiada no discurso, esconde-se, na verdade, a reiteração da divisão mercantil do trabalho e a manutenção do capitalismo dependente brasileiro.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 05/02/2020
Aprovado em: 10/11/2020
Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 - Bolsa de Mestrado CNPq/CAPES

 

 

1 Embora estejamos utilizando um ano específico para o marco de um campo de práticas e pesquisas tão vastas como foi o surgimento da psicologia enquanto área em si do saber, vale destacar que esse processo de seu estabelecimento e fortalecimento como área própria ocorreu num período de, aproximadamente, 50 anos. Aproveitando também para destacar que seu desenvolvimento no Brasil e nos países desenvolvidos ao final do século XIX deu-se de maneira muito próxima cronologicamente (Malvezzi, 2010, p. 18), tanto por sua juventude enquanto ciência quanto pelo próprio processo de dependência sob qual o Brasil, como país latino-americano, também se encontrava determinado.

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