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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

EDITORIAL

 

Hamsters na tecnociência

 

Hamsters in the technoscience

 

Hamsters en la tecnociencia

 

 

João Manuel de Oliveira

Editor/a associado/a. Investigador/a no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, PT

 

 

As agências de financiamento de ciência em vários pontos do globo, apresentam uma visão sobre a importância da internacionalização recorrendo a um imaginário tributário do período colonial. A colônia, desprovida de conhecimento reconhecido pela academia e até de universidades, olha para a metrópole em busca das 'Luzes' em Londres, Paris, Berlim, dentre outras capitais. Esse processo não ocorria apenas no mundo colonial, mas também no mundo de semi periferia, a Europa do Sul. Portugal é nesse exemplo um ponto interessante para olhar, país colonizador, mas simultaneamente colonizado e em situação de colonialidade de saber, e é desse ponto e localização que parto. Basta ver os estrangeirados, isto é, pensadoras/es que foram buscar as suas Luzes, os seus conhecimentos, ao estrangeiro, tradição que remonta ao século XVII. Mas, não era qualquer estrangeiro que rendia, tinha que ser um estrangeiro com pedigree, França, Reino Unido, Alemanha e, mais tarde, os Estados Unidos da América. A partir daí, e com a profissionalização das atividades científicas, já não um assunto para curiosos - e o recurso ao masculino é proposital, um eurocentrismo, filho do Iluminismo, vai-se especializar em anglocentrismo, muito evidente no uso e abuso do inglês como língua franca. A situação presente de uma atração muito grande das universidades do mundo anglo e em que até universidades da semi periferia tentam emular, oferecendo cursos e intercâmbios, falados em inglês. O grau de sucesso na atração de estudantes - grande critério na universidade neoliberal é limitado e parcial: a maioria dos estudantes desta semi periferia falam português e espanhol sobretudo. A América Latina é um grande pólo de exportação de estudantes para graduações, mas sobretudo pós-graduações sul europeias. Até pelos valores extorsionários das fees (mensalidades e/ou taxas) praticadas no mundo anglo e os mais modestos praticados nos países da Europa do Sul, ainda que elevados, se somarmos viagem, alojamento e subsistência.

O Brasil, a partir dos investimentos de governos anteriores, com o seu sistema de universidades públicas financiadas e de oferta de bolsas apostadas na diversificação das populações estudantis, na tentativa de garantia do acesso universal à educação, promotor da mobilidade e da mudança social, apresenta, e muito bem, a universidade como tentativa de eliminar as desigualdades, não tendo fees mensais ou anuais que oneram em muito as vidas estudantis. Tratam-se de concessões radicalmente diferentes do que se espera de universidades.

Temos a universidade que aposta em produzir uma ciência em inglês, internacionalizada para os países que interessam nos mercados científicos e essa commodification é cada vez mais óbvia com os modelos de falsa open science, em que cabe a autoria pagar para publicar, ameaçando os mecanismos de jogo justo, pois, qual é a revista com condições de rejeitar elevados valores de taxa de publicação na recessão editorial que vivemos? Essa falsa open science - e o inglês é mesmo proposital - promove uma manutenção do status quo. O sistema protege quem está dentro dele, valendo-se da proximidade e os restantes sofrem os "tratos de polé" de quem está fora: dificuldade em obter financiamento, dificuldade em ganhar posições na universidade, impossibilidade de publicação nas revistas mais cotadas. Obviamente que a este movimento não são alheios também as áreas científicas que disputam diferentes fatores de impacto: se os estudos de gênero, nas suas revistas mais cotadas na Web of Knowledge como é o caso da Gender and Society que atinge os 4,62 de fator de impacto, a revista mais cotada de neurociências, Nature Neuroscience atinge os 28. Ou seja, serão precisos 7 artigos dos estudos de gênero na sua revista mais cotada para chegar perto do fator de impacto de um único artigo nesta revista de neurociências.

Estas discussões implicam um modo de olhar para a prática no modelo da tecnociência, como parte integrante dos movimentos de neoliberalização e financeirização das vidas, a que a universidade está neste momento totalmente sujeita. Disciplinas com mais valor de mercado que outras e por isso acumulando maiores fatias do investimento público, outras, as humanidades, em risco até de desaparecerem ou de verem o seu financiamento drasticamente reduzido. Ciências que tem bolsa de valores indexada ao número de citações, as bolsas de estudantes indexadas ao número de publicações tidas como relevantes de acordo com critérios bibliométricos, países que são potências científicas, outros que, mesmo cumprindo esses critérios, a sua posição na hierarquia da colonialidade do saber não lhes permite assumir esse papel.

A posição de pesquisadoras/es sem tenure (vagas efetivas) é cada vez mais precarizada e não apenas pela dificuldade em obter uma posição de destaque num concurso: os pontos de entrada na carreira são cada vez mais desvalorizados e sujeitos à vulnerabilidade no sistema, cada vez mais marcado pela pressão para produzir, pela necessidade de agradar a um/a patrono/a e pela quantificação inexorável da produção. Esta situação repercute-se depois na capacidade de atração de estudantes de pós-graduação e sobretudo daquelas/es que publicam e que são compensatórios para o currículo do/a orientador/a. Inclusivamente, circula a ideia que doutorandas/os são recursos vitais e por isso disputados. Contudo, esta ideia de uma meritocracia é falsa: os critérios são revistos periodicamente e a cada revisão mais exigências são criadas, afetando profundamente quem está em posições fora da estabilidade das carreiras de magistério com tenure. Ou seja, com esta revisão constante, por exemplo, se antes determinada publicação era importante pela revista ser indexada no Web of Knowledge, agora essa revista só é considerada relevante se estiver no primeiro quartil do mesmo Web of Knowledge.

Este modelo de produção do saber na tecnociência é um modelo de desperdício da experiência, para usar a expressão de Boaventura de Sousa Santos (2002). Pautando-se pelo exercício acrítico de importação de modelos tecnocientíficos que muitas vezes deterioram as culturas cientificas de cada país, através por exemplo da destruição paulatina dos periódicos científicos nacionais, que não estejam nestes píncaros de índices de citação da Web of Knowledge, se tornam incapazes de atrair investigação de excelência. Este modelo de falsa meritocracia, até porque os pontos de partidas são diferentes em termos de áreas e subáreas científicas, tem produzido o que de pior existe na academia, investigação medíocre e que apenas repete a "casa do amo" à exaustão, os riscos para a saúde mental e uma vida em geral infeliz para pesquisadoras/es e professoras/es. Na busca pela meritocracia, a roda girou tanto que o hamster morreu na gaiola, tentando acompanhá-la.

 

REFERÊNCIAS

Sousa Santos, Boaventura (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63,237-280. doi: 10.4000/rccs.1285        [ Links ]

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