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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Mídias sociais e relações de apoio: redes da imigração haitiana

 

Social media and supportive relationships: Haitian immigration networks

 

Redes sociales y relaciones de apoyo: redes de inmigración haitianas

 

 

Adolfo PizzinatoI; Thomas SilveiraII; Brayan Pereira HugoIII; João Luis WeberIV

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS, Brasil. adolfopizzinato@hotmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS, Brasil. thomasssilveira@gmail.com
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. brayan.hugo@hotmail.com
IVCentro Universitário da Serra Gaúcha, Caxias do Sul/RS. jlweber27@gmail.com

 

 


RESUMO

No contexto da migração haitiana ao Brasil, este estudo procurou compreender manifestações de apoio social no uso de mídias sociais por pessoas haitianas no Rio Grande do Sul. Por meio de entrevistas realizadas em três cidades gaúchas, do acompanhamento em grupos em uma instituição de acolhimento e do mapeamento de grupos, páginas e perfis no facebook, identificaram-se componentes de apoio social e sua articulação com o uso de diferentes formas de tecnologias de comunicação. Foram identificadas as dimensões da Rede relativas à Estrutura, ou seja, formas de acesso, aproximações territoriais e grupos de ajuda, e Funcionalidade, como mapeamento territorial, contato com familiares e amigos, traduções e formas de proteção contra possíveis abusos no Brasil. Com o uso das redes sociais os imigrantes se aproximam tanto da comunidade imigrante oriunda do mesmo país quanto da população local, facilitando a inserção social e o diálogo com o novo território.

Palavras-chave: Migração; Haiti; Apoio social; Mídias sociais; Tecnologias da informação.


ABSTRACT

In the context of Haitian migration to Brazil, this study aimed to understand manifestations of social support in the use of social media by Haitian people in Rio Grande do Sul. Through interviews carried out in three cities of this state, group monitoring in a host institution and mapping of groups, pages and profiles on facebook, components of social support and their articulation with the use of different forms of communication technologies were identified. The dimensions of the Network related to Structure, that is, forms of access, territorial approximations and help groups, and Functionality, such as territorial mapping, contact with family and friends, translations and forms of protection against possible abuses in Brazil, were identified. With the use of social networks, immigrants approach both the immigrant community from the same country and the local population, facilitating social insertion and dialogue with the new territory.

Keywords: Migration; Haiti; Social support; Social media; Information technologies.


RESUMEN

En el contexto de la migración haitiana a Brasil, este estudio buscó comprender las expresiones de apoyo social en el uso de las redes sociales por parte de los haitianos en Rio Grande do Sul. A través de entrevistas realizadas en tres ciudades, la participación en un grupo en una institución anfitriona y del mapeo de grupos, páginas y perfiles en Facebook, se identificaron componentes de apoyo social y su articulación con el uso de diferentes tecnologías de comunicación. Se identificaron las dimensiones de la Red relacionadas con la Estructura, es decir, formas de acceso, enfoques territoriales y grupos de ayuda, y la Funcionalidad, como mapeo territorial, contacto con familiares/amigos, traducciones y formas de protección contra posibles abusos. Con las redes sociales, los inmigrantes se acercan de la comunidad inmigrante del mismo país y de la población local, facilitando la inserción social y diálogo con el nuevo territorio.

Palabras clave: Migración; Haití; Apoyo social, Redes sociales; Tecnologías de la información.


 

 

INTRODUÇÃO

A partir da segunda década do século XXI, o Brasil passou a viver novos fluxos migratórios, que distam radicalmente daqueles que ocorreram nos séculos XIX e XX. Nessa última década, impacta socialmente a chegada de imigrantes haitianos, venezuelanos, bolivianos, sírios e senegaleses. Ainda que o número total de imigrantes atualmente represente apenas cerca de 0,5% da população total do Brasil, essas pessoas são ativas sócio, política e economicamente, e possuem demandas que requerem ações institucionais para sua acolhida, estabelecimento e integração (Instituto Migrações e Direitos Humanos, MigraMundo, Ficas, Fundación Avina, & Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 2019), principalmente no caso das migrações forçadas. Pelo número de imigrantes e pelo contexto que envolve ambas as mobilidades, os fluxos migratórios haitiano e venezuelano são considerados os principais fluxos em direção ao país dessa última década (IMDH et al., 2019). O novo panorama incitado pela pandemia mundial de covid-19, no entanto, possui repercussões ainda incertas no campo das migrações.

Especificamente quanto a migração haitiana ao Brasil, ainda que esse fluxo já ocorresse em menor escala nos anos anteriores, ele se intensificou a partir de 2010, após o terremoto que ocorreu no Haiti. Dados do Observatório das Migrações Internacionais (Oliveira, 2019) mostram que, em 2011, 2.652 imigrantes haitianos de longo termo entraram no país, número que aumentou constantemente nos anos subsequentes até atingir um pico em 2016, quando foram registradas 20.985 entradas, considerando somente aquele ano. Já em 2017 e em 2018 passou a haver uma queda desse fluxo, possivelmente decorrente do cenário econômico desfavorável vivido pelo país, e 12.931 e 9.359, respectivamente, haitianos vieram ao Brasil, totalizando 106.475 imigrantes de longo termo dessa nacionalidade. Os dados até 2017 (Oliveira, 2018), apontam que haviam 64.628 homens e 30.869 mulheres, e a faixa etária predominante era a de 25 a 40 anos (57.385 pessoas) entre os imigrantes haitianos.

 

Tabela 1

 

Desastres naturais não estão citados dentre as condições para o reconhecimento do status de refugiado, determinado pelos incisos I e II do art. 1º da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, conforme promulgado no Brasil pelo Decreto nº 50.125 de 28 de janeiro de 1961. Ainda assim, os imigrantes haitianos receberam visto de residência permanente no Brasil por questões humanitárias. Legalmente, portanto, não são considerados como refugiados, que por definição são caracterizados como pessoas forçadas a saírem de seus países de origem, sem possibilidade de regresso, por conta de ameaças a sua vida, mas sim como imigrantes: uma categoria mais ampla que compreende razões diversas para a mobilidade, entre elas dificuldades econômicas, políticas e sociais (Prado & Araújo, 2019). Os imigrantes haitianos, porém, não se dispersaram por todo território nacional e se concentraram principalmente em Estados do sul e sudeste, como São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (Tonhati, Cavalcanti, & Oliveira, 2016).

As motivações para a imigração haitiana para o Brasil parecem não justificadas simplesmente por situações de pobreza, assim como acontece com outros grupos em outras partes do mundo. As relações pré-migratórias existentes entre Brasil e Haiti, por conta da liderança brasileira da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, ainda que controversa, e de ações de organizações não governamentais, estão estritamente ligadas aos fluxos migratórios atuais (Cogo, 2014). Vínculos afetivos e simbólicos, que foram estabelecidos diante da presença das ações brasileiras no Haiti podem ter fortalecido a escolha pelo Brasil enquanto destino de desejo de pessoas haitianas, além da própria condição de crescimento econômico e de protagonismo na geopolítica internacional que o país vivia no início desta década.

Neste contexto, o Estado do Rio Grande do Sul foi um dos destinos mais visados e concentra boa parte da população que realizou o processo migratório recentemente. Dados de 2017 do Sistema de Cadastro de Registros de Estrangeiros (SINCRE) indicam que, nesse ano, 4.021 imigrantes haitianos estavam com registro ativo no Rio Grande do Sul (Baeninger & Peres, 2017). No entanto, em reportagem publicada em 13 de novembro de 2017 pela imprensa local, a partir de dados do Fórum Permanente de Mobilidade Humana, estimava-se que residiam no Estado 11.473 haitianos, além de 3,9 mil senegaleses (Isaías, 2017). Estes dados mostram uma grande disparidade entre os dados oficialmente divulgados e aqueles que vêm sendo noticiados pelos meios de comunicação.

 

Figura 1

 

De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU, 2019), o Haiti possui cerca de 11 milhões, 580 mil habitantes, com um Produto Interno Bruto per capita de $1.814,7 - mil oitocentos e catorze dólares, de acordo com o Banco Mundial, segundo o FMI - o índice mais baixo dentre os países americanos. Embora as motivações para a imigração sejam financeiras e por busca de melhor qualidade de vida, o salário é utilizado principalmente para a subsistência e grande parte dele é enviado ao país de origem. Tais remessas financeiras, que já haviam sido mencionadas em estudos como o de Joseph Handerson (2015), são uma forma de manter as relações dos imigrantes com os familiares que permaneceram no local de origem (Tedesco & Grzybovski, 2013). Praticamente todos os imigrantes possuem vínculos familiares no país de origem, por tal motivo compreende-se que a imigração é um processo que interfere tanto nos que saem como nos que ficam, havendo dessa forma, projetos e sonhos de ambas as partes - o que torna essa ação familiar, afetiva e econômica.

A literatura internacional indica que situações de migração impactam especialmente no estabelecimento e manutenção de redes de apoio social, de modo a lidar com aspectos como os ambientes não familiares, o estresse causado pelo processo migratório, distância e separação de sua família e comunidade (Chib, Wilkin, & Hua, 2013). O apoio social, também definido como suporte social, emerge como tema de pesquisa e intervenção em diferentes áreas do conhecimento, tais como: psicologia, medicina, sociologia, serviço social, entre outras. Em um de seus conceitos mais clássicos (Cobb, 1976), o apoio social é um construto que supõe que o sujeito em seu contexto usa informações que o levam a sentir-se cuidado, amado, estimado, valorizado e integrante de uma rede de comunicação e ajuda com obrigações mútuas.

O apoio social é caracterizado na literatura através de duas dimensões diferentes: a estrutura e a funcionalidade. O conceito de estrutura busca uma maior compreensão de pontos objetivos e quantitativos como o tamanho da rede social em que o sujeito está inserido, frequência do contato entre os membros, acessibilidade e outros componentes que dimensionem o grau de integração ou isolamento em que o indivíduo está com a rede que detém (Cobb, 1976). O aspecto funcional do suporte social tende a detalhar aspectos subjetivos, como a percepção do sujeito quanto à disponibilidade e a forma de apoio social que lhe é oferecido. Ainda dentro da perspectiva funcional se encontram outras duas divisões, entre a categoria instrumental e a informacional. A primeira diz respeito ao auxílio em questões de apoio prático, como colaboração financeira ou material. A categoria informacional refere-se mais aos comportamentos de escutar, fornecer feedback, conversar sobre determinado tema, lhe fazer companhia e prestar suporte emocional. Frente a um evento estressante, as pessoas podem utilizar diferentes recursos, que podem ser físicos, psicológicos e sociais. A utilização dos recursos visa evitar, ou reduzir, que o evento cause dano ou prejuízo ao sujeito, proporcionando um bem estar biopsicossocial. Segundo alguns autores, o apoio social tem o potencial de minimizar (amortecer) os efeitos dos estressores (Buffering Hypothesis), por sua vez, alguns autores concebem que o apoio social, independente de uma situação estressante ou momento de crise, proporciona benefícios para a pessoa (Main Effects) (Cohen & Wills, 1985).

As novas formas de relações estabelecidas com a participação das pessoas em redes de convivência que independem da presença física, propiciadas com a assunção das tecnologias da informação e comunicação (TICs), apresentam uma perspectiva de apoio social com características distintas à concebida no mundo offline. É a partir da década de 1960, com base em um paradigma tecnológico fomentado pelas TICs, que se iniciaram profundas mudanças estruturais na sociedade (Castells, 2005). Coexistem diferentes abordagens para a compreensão de redes de comunicação e relação, especialmente as virtuais. De acordo com Debora Bobsin e Norberto Hoppen (2014), estas análises costumam ser mais estruturais do que relacionais e, ainda influenciadas pela tradição estruturalista e baseada em sociometria, muitas vezes não fazem jus a suas dinâmicas de mutação e transformação, atributos essenciais que são consequência das interações sociais que nelas ocorrem. Já para a Teoria de Estruturação de Anthony Giddens (Giddens, 2009), entende-se a organização das redes como o conjunto de condições que direciona a continuidade ou a transformação de estruturas, e como a reprodução de sistemas sociais que compreendem "as relações produzidas entre atores ou coletividades, organizadas como práticas sociais regulares" (Giddens, 2009, p. 29). De acordo com Bobsin e Hoppen (2014), a proposta de Giddens abarca o modo e as condições sob as quais as estruturas existem e se transformam através do sistema social, compreendendo o conjunto de atividades e relações dos atores reproduzidas no tempo e no espaço, constituindo estruturas que pertencem às coletividades, como relacionamento recursivo e interativo de influência mútua entre ação e estrutura (Giddens, 2009).

Embora o paradigma tecnológico emergente tenha desempenhado transformações distintas em cada local, devido à disparidade de sua expansão entre os países, se verifica os seus resultados em toda a sociedade contemporânea e nas suas diferentes camadas. Este novo modelo de sociedade apresenta como características principais: a globalização das atividades econômicas decisivas, a sua forma de organização em rede, a flexibilidade e instabilidade do emprego, assim como a individualização da mão de obra.

A imigração haitiana no Brasil faz parte de um fenômeno global da pós-modernidade: a globalização. Esse fenômeno tem existido por muitos séculos, sendo um processo pelo qual culturas influenciam-se e tornam-se mais próximas através do comércio, da imigração e do intercâmbio de informação e ideias. Contudo, em décadas mais recentes, há um processo de intensificação e aceleração dessas conexões globais, graças a avanços globais nas telecomunicações e no incremento de interdependências financeiras e econômicas através do mundo. A implementação das TICs no cotidiano das pessoas teve como consequência o enfraquecimento de fronteiras que anteriormente detinham linhas bem definidas, caso esse da noção entre o público e o privado, o individual e o coletivo, o trabalho e o ócio, entre outras esferas da vida que serviam de guias para as ações tomadas por cada indivíduo (Domenèch, López, & Tirado, 2004).

As migrações contemporâneas estão profundamente relacionadas com o acesso às TICs, sendo observado um intenso uso da internet e das redes sociais também pelas comunidades migrantes (Brignol & Costa, 2016). A apropriação das TICs por essa população constitui-se como um recurso não só para o acesso à informação como também para o estabelecimento de laços solidários e de coesão interna, e de espaços para a conformação identitária (Melella, 2016). Considerando o uso estratégico de mídias sociais em processos migratórios descritos na literatura e as modificações relativas à acessibilidade no panorama global, objetiva-se compreender manifestações de 'Apoio Social' no uso de mídias sociais por pessoas haitianas que migraram recentemente para o Rio Grande do Sul, Brasil.

 

MÉTODO

A presente pesquisa é um dos resultados do projeto de pesquisa "Imigração haitiana no Rio Grande do Sul: processos de aculturação e saúde mental". Este projeto tem permitido ampliar o conhecimento sobre a imigração haitiana no Brasil, mais especificamente no estado do Rio Grande do Sul (RS), acerca dos aspectos aculturativos e da saúde mental dos imigrantes. Trata-se de uma pesquisa de delineamento misto, por meio do qual se procura mapear aspectos sociodemográficos da migração haitiana no estado do Rio Grande do Sul, assim como compreender aspectos psicossociais vinculados ao fenômeno social migratório. A coleta de dados para o presente estudo compreendeu três etapas: (a) o contato com imigrantes por meio de grupos de ajuda vinculados a uma instituição de acolhimento em Porto Alegre/RS; (b) entrevistas e (c) coleta de dados no Facebook.

(a) Grupos de ajuda: Parte dos dados foi coletada em encontros grupais que ocorreram quinzenalmente, durante o segundo semestre de 2015, em uma instituição religiosa católica que acolhe imigrantes em Porto Alegre. Estes grupos tinham objetivo de discutir temáticas pertinentes à imigração e eram frequentados principalmente por imigrantes haitianos, porém aberto a todos imigrantes interessados em participar. Os grupos tinham duração de 50 minutos e os participantes não eram fixos, sendo que a cada encontro havia uma rotatividade dos membros, que variaram em quantidade de 10 a 15 participantes. Os dados obtidos nos grupos foram coletados através de diários de campo que eram realizados ao término de cada encontro. Os encontros foram propostos pela equipe de pesquisa e se mantiverem por um período quinzenal por um semestre, após o horário das atividades do grupo de apoio à inserção laboral (orientação legal, confecção de currículos, orientações às entrevistas...) que a equipe de pesquisa mantinha no local, aos sábados.

b) Entrevistas: Além dos dados obtidos nos grupos, foram entrevistados individualmente (além de preencherem uma ficha de dados sociodemográficos) 50 imigrantes haitianos de três cidades do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, Canoas e Encantado. Os participantes responderam também a instrumentos quantitativos (já apresentados no estudo de (Weber, Brunnet, Lobo, Cargnelutti, & Pizzinato, 2019).

Os dados foram coletados em quatro locais de três cidades diferentes no Rio Grande do Sul: na Pastoral do Imigrante, em um albergue de uma organização não governamental que apoia imigrantes na cidade de Porto Alegre, em uma escola pública que fornece aula gratuita de português aos imigrantes na cidade de Canoas e no Sindicato da Indústria Alimentícia da cidade de Encantado. As três cidades, que estão entre as que mais recebem imigrantes haitianos no Rio Grande do Sul, foram escolhidas por conveniência e receptividade dos locais. As entrevistas exploraram o processo de inserção nas comunidades locais e quais eram as formas de estabelecimento e manutenção de comunicação com pessoas em seus países de origem e no Brasil. As respostas foram compiladas em um arquivo único e categorizados por temáticas, (1. Ferramentas utilizadas; 2. Frequência; 3. Pessoas contatadas; 4. Temas prioritários e 5. Estratégias de cuidado) como apresentado por Thiago Silva e colegas (2012).

c) Coleta de dados em redes virtuais de relacionamento: Foi realizado um mapeamento a partir do mecanismo de busca do Facebook, com 17 termos-chave, divididos em três idiomas: português, francês e creole haitiano. Os termos-chave utilizados foram os seguintes, em português: Imigrantes haitianos Brasil; Haitianos Brasil; Haiti Brasil; Imigrantes haitianos; Imigração haitiana; Haitianos; Haiti. (Brésil immigrants haïtiens; Haïtiens Brésil; Haïti Brésil; immigrants haïtiens; ayisyen imigrasyon; Brezil imigran ayisyen; Ayisyen Brezil; Ayiti Brezil; imigran ayisyen e immigration haïtienne). Serão apresentados e discutidos os dados das páginas e grupos que apresentam conteúdo em português (mesmo que com característica trilíngue nas comunicações).

A preocupação com a construção dessa perspectiva metodológica se deve ao entendimento de que um mapeamento dessa natureza requer o desenvolvimento e uma estratégia de coleta de dados que contemple sua diversidade e complexidade. Portanto, buscou-se compreender manifestações de Apoio Social entre imigrantes haitianos e/ou com a comunidade de acolhida e o papel das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) e redes sociais nesta procura. Os dados obtidos através das entrevistas, relatos grupais e através das análises de dados obtidos pelas páginas do Facebook serão apresentados e discutidos de maneira integrada, pois não se concebem como dados isolados. Pelo contrário, são entendidos como dados complementares de um mesmo fenômeno que, como muitos outros fenômenos relacionais de mobilidade humana, é diretamente afetado pelos impactos tecnológicos da globalização capitalística.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As informações coletadas por meio das discussões grupais e nas entrevistas individuais indicaram que o apoio social era fortemente vinculado à utilização de mídias sociais, o que indicou a necessidade de uma coleta de dados em plataformas virtuais. Por meio desta conjugação de métodos (entrevistas individuais e em grupo, questionários sociodemográficos e mapeamento no Facebook) procuramos compreender quais os usos destinados especificamente às mídias sociais, sua relação com o processo migratório e as dimensões de apoio social associadas a aspectos estruturais e funcionais. Neste panorama, os conceitos Estrutura da Rede e Funcionalidade da Rede foram os eixos analíticos escolhidos, dando subsídio para esferas interconectadas.

No que concerne a Estrutura da Rede, podemos elencar o território (moradia), uso de smartphones, presença em grupos de apoio e uso de Facebook como principais aspectos referidos pelos participantes. De outra forma, no que diz respeito à esfera de Funcionalidade da Rede a análise é centrada nos usos de mídias sociais. Podemos observar as funções de mapear territórios, traduzir, contatar pessoas da sua rede e proteger-se de possíveis prejuízos no contexto migratório.

 

Figura 2

 

No que se refere especificamente à Estrutura da Rede, cabe atentar que os dados sociodemográficos referentes ao processo de coleta de dados no interior do Rio Grande do Sul possibilitaram o mapeamento de características gerais dos participantes. Entre os imigrantes entrevistados, a maioria são homens 37 (77,1%), solteiros (54,4%), que possuem média de idade de 32,5 anos (DP=5,76) e estão parcialmente empregados (55,3%). Em relação ao tempo da imigração, os mesmos chegaram no Brasil em média há 17 meses (DP=12,44). Nas entrevistas narrativas, as formas de moradia foram indicadas como aspecto protetivo e contemplavam não só o custeio dos locais, mas uma proximidade estratégica com outros imigrantes. Em sua maioria, os entrevistados dividem moradia com outros imigrantes sendo que todas são indicadas como alugadas e habitadas por uma média de 7 pessoas (DP=9). Este aspecto territorial, elencado pelos participantes como uma forma de proteção, que é indicado nesta pesquisa como parte da Estrutura da Rede, mostra um exercício de constituição estratégica de vínculos, em especial se pensarmos que, segundo os dados coletados, apenas 25% dos imigrantes vivem com suas famílias, enquanto 56,3% dizem morar com outros imigrantes com os quais não possuem vínculos familiares.

Ainda no que se refere à constituição de Estrutura de Rede, podemos perceber que a ocupação de locais nas cidades de acolhida é indicada como fonte de troca e apoio e está intrinsecamente vinculada ao uso de plataformas de comunicação. Um dos participantes da pesquisa indica: "Aqui em Encantado a gente usa uma lan-house pro computador, tá sempre cheio de imigrante lá, no final de semana. É, a gente vai lá usar pra falar melhor com a família, pra ver no vídeo"(Paul1, homem haitiano, 26 anos, solteiro). O mesmo imigrante que fala sobre a ocupação coletiva destes ambientes de uso de ferramentas informáticas ainda relata que o Facebook é a plataforma de pesquisa mais utilizada, tanto para contato com a família quanto para com seus amigos haitianos ou novos amigos brasileiros, assim como um meio de acesso a informações sobre os países de origem e de acolhida. Quando questionados sobre o uso de meios de comunicação, os imigrantes entrevistados individualmente relataram utilizar predominantemente a internet (37,5%) e telefone (39,6%), em especial do aplicativo WhatsApp. Grande parte destes imigrantes (43,1%) declara fazer uso diário destes meios de comunicação.

Segundo Ana Becker e Lucienne Borges (2015), o processo migratório produz diversas transformações, que compreendem perdas, desafios e aprendizagens, que são vivenciadas de diferentes modos por diferentes sujeitos, sendo esse um fenômeno de extrema importância social, para que sejam fomentados os direitos de cidadania e bem-estar, assim como uma troca entre culturas. Sendo assim, o acesso à comunicação e a fontes de apoio social mostram-se fundamentais para que esses direitos sejam garantidos.

Ao longo do processo de acompanhamento dos imigrantes haitianos recém-chegados ao país, perguntas sobre como e em que lugar comprar chips de celular eram recorrentes. Instrumentalizar-se sobre que tipo de operadora de redes de celular e quais formas de pagamento vinculadas foi um dos aspectos muito citados como primeiras providências no Brasil. Estas questões de 'estrutura' da rede, que se compõem muito vinculadas ao acesso à tecnologia, se interseccionam com outras questões estratégicas, como a possibilidade de redes de informação em busca de inserção no mercado de trabalho e aprendizado da língua portuguesa. Esses eram alguns dos principais aspectos indicados nos Grupos de Ajuda ao longo da pesquisa realizada. Os imigrantes que compunham esse grupo se reuniam posteriormente aos encontros para ter aula de português e indicavam o interesse na língua principalmente como forma de acesso a formas de trabalho.

Poucos relatam ter acesso a computadores próprios, porém falam da vontade e necessidade de acesso ao aparelho. Jean, haitiano que atualmente faz um curso técnico em informática, diz: "Eu queria ter um computador, onde eu posso comprar um computador usado que funcione bem? Eu faço meu curso, mas não posso praticar sem computador" (Jean, homem haitiano, 24 anos, solteiro). Ele é um dos membros de um grupo composto por 12 imigrantes haitianos, senegaleses e marroquinos, que se encontram quinzenalmente para debater questões relacionadas ao processo migratório e oferecer ajuda mútua. Especificamente em relação aos imigrantes que participaram dos grupos de encontro quinzenais vemos que, além da participação de haitianos, havia presença de senegaleses, marroquinos, filipinos e colombianos. Esta diversidade de nacionalidades como parte constituinte dessas comunidades de prática reitera a ideia de que os vínculos e formas de apoio social por meio dos grupos de ajuda possuem o acesso a tecnologias e formas de comunicação como uma temática transversal e importante.

Os resultados do mapeamento de redes de comunicação e apoio na internet valeram-se da plataforma de comunicação unanimemente apontada pelos participantes: o Facebook. Os resultados foram divididos em três categorias, de acordo com o tipo de rede.

 

Quadro 1

 

Com relação aos grupos no Facebook, observaram-se os dados de nacionalidade (haitiano ou brasileiro), sexo e número de administradores. O total de administradores de página foi de 72, sendo 33 haitianos, 37 brasileiros e 2 "outros": 1 francês e 1 não identificado. Em 4 grupos não havia administradores explícitos ou definidos.

Ainda que haja um equilíbrio entre administradores brasileiros (52,9%) e haitianos (47,1%), em relação ao sexo, os homens haitianos são administradores em bem maior proporção do que as mulheres (30 ou 90,9%). Já quando são analisados os brasileiros, as mulheres são mais numerosas (23 ou 62,2%), embora a diferença entre homem e mulher seja menor do que nos haitianos. A maior proporção de homens entre os imigrantes haitianos administradores das páginas pode ser tanto reflexo do próprio fluxo migratório estabelecido, caracterizado pela vinda predominantemente de homens haitianos para o Brasil em seu início, quanto dos papéis de gênero estabelecidos na cultura haitiana, em que a mulher possui uma menor inserção nos espaços sociais (Mejía & Cazzaroto, 2017). A feminização dos processos migratórios é associada a algumas peculiaridades nas condições de possibilidade existencial enfrentadas por boa parte das mulheres em seus territórios de origem e, em relação às haitianas não é diferente. Dentre elas, destacam-se a falta ou a diminuição de oportunidades de trabalho, os processos de divórcio ou separação, o desejo por mais autonomia e a diminuição das restrições sociais de mobilidade das mulheres (Telmo-Romano & Pizzinato, 2019).

A Ambassade d'Haiti au Brésil é a página oficial da Embaixada do Haiti no Brasil. As publicações da página são sobre as atividades realizadas pelo embaixador, como reuniões com políticos e representantes de instituições do ensino e do comércio, e a presença em eventos com a temática do Haiti. Além disso, compartilha notícias relacionadas à política nacional, imigração haitiana e direitos humanos. Os visitantes haitianos utilizam o espaço de avaliação da página e de comentários das publicações para solicitar informações sobre assuntos burocráticos relacionados à sua permanência no Brasil, como, por exemplo, procedimentos para renovação de passaporte. Alguns haitianos também utilizam esse espaço para fornecer informações e valorizar seu país natal.

Ayisyen nan lemond antye ap prepare yo Pou yo fete fet drapo yo a,ki se fyète yo,ayisyen ki nan pi gran vil peyi Brasil (São Paulo) Ap oganize yon pwogram esepsyonel dimanch kap 17 me 2015,anpil bel jazz ayisyen a lafich, spesyalman le nouvo jazz ayisyen.

(Haitianos em todo o mundo se preparam para festejar sua bandeira, que é seu orgulho. Em São Paulo, haitianos estão organizando um evento dia 17 de maio de 2015, com o novo jazz haitiano.)

O Grupo Haitianos no Brasil tem por objetivo promover a acolhida no Brasil, por meio da facilitação no acesso a documentação para estadia em território brasileiro, integração e comunicação. O grupo possui atualizações frequentes, sendo mais constante publicações de brasileiros. Uma das temáticas mais comuns refere-se a prestar informações, através de notícias, principalmente sobre direitos trabalhistas, benefícios assistências e cursos de português. Há também temáticas relacionadas a racismo, preconceito e exploração, além de políticas no Haiti. Embora tenha uma ligação direta com o racismo perpetrado contra a população negra brasileira, a prática do racismo contra imigrantes negros, principalmente haitianos e africanos, é descrita como menos velada no Brasil (Martinez & Dutra, 2018). O racismo contra imigrantes foi observado por Antônio Oliveira (2019) ao identificar que, em uma escola de ensino fundamental da cidade de São Paulo, as crianças e adolescentes imigrantes com fenótipo branco "ocidental" eram integradas mais rapidamente ao aprenderem o português do que as com fenótipo negro africano. Isso era visto inclusive quando a comparação era feita com crianças negras africanas que já tinham o português como língua materna (como as crianças angolanas, por exemplo) (Oliveira, 2019).

Publicações informativas e de caráter político são compartilhadas por brasileiros(as), como o texto "Quais são os direitos do trabalhador nos contratos de experiência?". Já os haitianos publicam, mais comumente, temáticas relacionadas à valorização do Haiti, através de notícias, fotos e vídeos de paisagens, música, dança e cultura locais. Compartilhamentos como: "Carnaval do meu país... saudades" são seguidos de álbuns de fotos do país natal e informações do cotidiano no Brasil.

Associação dos imigrantes haitianos de Brasilia Aihb é o perfil de uma associação em Brasília, que se ocupa de publicar fotos e vídeos de atividades realizadas por ela, principalmente. Além disso, compartilha notícias sobre assuntos relacionados ao Haiti: política local (especialmente), paisagens e elementos culturais. Possui poucas atualizações, havendo um espaço de meses entre uma publicação e outra, entretanto, representa uma fonte de mediação para eventos comunitários, como o 'Almoço' da Associação dos Imigrantes Haitianos de Brasilia Aihb, entre outros.

Ainda que tais páginas, grupos ou perfis nem sempre ofereçam elementos instrumentais objetivos de apoio ou informação, são elementos que parecem jogar um papel importante em outra dimensão, classicamente associada ao bem-estar psicológico: a manutenção de vínculos culturais e elementos identitários da cultura de origem. Figuram nessas páginas muitas postagens de exaltação de elementos culturais haitianos e de conteúdos que indicam movimentos de integração com a comunidade de acolhida (como eventos culturais e esportivos e trocas de contatos afetivos entre imigrantes e com brasileiros). Fenômeno similar foi observado em páginas de imigrantes senegaleses vivendo no Rio Grande do Sul, que também publicam conteúdos predominantemente relacionados à valorização da cultura de seu país e a divulgação de trocas realizadas com a população local (Brignol & Costa, 2016).

Ainda quanto à 'Estrutura da Rede', um dos aspectos também observados nessa direção, a constituição de vínculos no novo país, mostra que, no que se refere à rede de relações destes imigrantes, a maioria dos 50 participantes das entrevistas relatam ter amigos imigrantes de seu país (95,8%), enquanto 64,6% também declaram ter amigos brasileiros e 25% dizem ter amigos imigrantes de outras nacionalidades. Estes dados fazem atentar para os aspectos funcionais de apoio social, ligados ao acesso concreto a tecnologias como smartphones e computadores. Nos grupos de ajuda a forma recorrente de estabelecer contato era mostrar fotos e vídeos aos outros participantes. Este aspecto mediador da utilização de tecnologias de comunicação também se mostrava presente por meio do uso do aplicativo de mensagens WhatsApp, meio pelo qual se organizavam encontros e se marcavam as reuniões dos grupos.

Já no que concerne a 'Funcionalidade da Rede', foram elencados como principais aspectos: formas de mapeamento de novos territórios, traduções de textos e falas em português, manter e constituir contatos e articular formas de proteção (principalmente vinculadas à possibilidade de registro de alguma situação ilegal ou abusiva). Estes aspectos funcionais não são compreendidos como dissociados, mas falam sobre um contexto no qual as formas de constituição de estratégia e apoio social indicam algumas das dificuldades encontradas por essa população no Brasil. Como indica um dos participantes:

Eu uso o celular para tudo, se eu quero chegar a algum lugar tem os mapas, se eu preciso achar algum número eu posso pesquisar, se eu preciso traduzir uma palavra tem o tradutor. E pra falar com a família também, tem vídeo, tem foto, fica mais fácil ficar longe se a gente pode conversar a qualquer hora. (Bertrand, homem senegalês, 28 anos, solteiro)

O uso das mídias sociais permite um contato restrito, mas constante, com outras pessoas, através da circulação de mensagens de voz, imagem, vídeo e texto. O uso de tais mídias facilita formas de interação, criadas particularmente dentro deste contexto, as quais, no caso dos imigrantes, se mostra como uma fonte importante de apoio social. Essa relação com a tecnologia pode ao mesmo tempo facilitar a vida dos mesmos no novo país, como diminuir o estresse relacionado ao processo de integração no novo país, visto que a necessidade de novos relacionamentos interpessoais diminui (Komito, 2011).

Autores como Megan Knowles, Nataniel Haycock e Iqra Shaikh (2015) relatam que o uso das mídias sociais é uma forma quase que instantânea de reafirmar e sanar a necessidade de aceitação social. As redes sociais hoje ocupam um espaço de repositório da vida social, que pode ser acessado em qualquer lugar e a qualquer momento, sendo que as experiências vividas podem ser ali compartilhadas e partilhadas. Ao longo que essas informações recebem a interação de outras pessoas, há um sentimento de pertencimento social. Além disso, as conjunções entre os ambientes online e os grupos de ajuda se apresentam como um modo alternativo de organização híbrida de rede de suporte social que, no caso dos imigrantes, torna-se ainda mais relevante devido à dificuldade de acesso a outras fontes de apoio - falta que pode resultar em situações de vulnerabilidade. No ambiente online, os imigrantes podem estabelecer relações de suporte que cruzam nacionalidades, incluindo familiares, amigos e estrangeiros. Ademais, devido a grande concentração de pessoas utilizando a internet, a possibilidade de que algum pedido de apoio social seja atendido aumenta consideravelmente. Sendo assim, por meio das interações online, há uma diminuição no senso de isolamento, oferecendo assim um suporte psicológico que auxilia no processo migratório (Chen & Choi, 2011).

Essas questões de acessibilidade a tecnologias sociais mostram-se particularmente vinculadas à temática da inserção no mercado de trabalho brasileiro, não sendo exclusividade dos imigrantes recentes ou especificamente haitianos. Maria, por exemplo, que é filipina e está há seis anos no Brasil, indica: "Eu preciso comprar um telefone que tenha internet, porque quando eu deixo meu currículo para alguma vaga de emprego, pode ser que eles entrem em contato pelo meu e-mail e eu quase nunca olho o meu e-mail" (Maria, mulher, filipina, 34 anos, casada). Se olharmos, portanto, para a estratégia de acesso a formas de trabalho no contexto migratório podemos considerar que a tecnologia faz a mediação entre o aprendizado da língua, o acesso a propostas de emprego e envio de currículos, que são indicados como fatores essenciais pelos participantes. Entretanto, uma outra questão também é indicada como desse âmbito da experiência migratória e está, também, vinculada a situações de entrada no mercado de trabalho. Trata-se da dimensão de proteção a possíveis formas de abuso:

O meu chefe não me paga, ele não queria me pagar. Então eu filmei no meu celular ele dizendo que não ia me pagar. Se ele não me pagar tá filmado, e eu posso mostrar para um advogado ou alguém, ou colocar no Facebook pra todo mundo ver o que estava acontecendo comigo.

Apesar de os dados coletados nas entrevistas indicarem que, quanto à escolaridade, os imigrantes possuem em média 10,83 anos de estudo (DP=4,36) e relatam, em sua maioria, falar ao menos 3 idiomas, o acesso ao mercado de trabalho é indicado como muito difícil. Além disso, a situação recente de migração e a dificuldade de acesso a formas de trabalho pode suscitar abusos de poder particularmente relacionados à situação de migração. Neste sentido, a condição em que se encontram os imigrantes haitianos reforça a necessidade de atenção às situações de vulnerabilidade desencadeadas. Não por acaso esse fluxo migratório pode ser caracterizado como uma migração por sobrevivência, que diz respeito a migrações forçadas que estão excluídas do instituto do refúgio (Correa, Nepomuceno, Mattos, & Miranda, 2015). Nesse sentido, vale destacar que ao contrário do estatuto de refugiado, o visto humanitário fornecido aos imigrantes haitianos não garante proteção internacional, somente uma facilitação de entrada e permanência no Brasil. Imigrantes que estão em situação de vulnerabilidade possuem uma necessidade ainda maior de buscar fontes de apoio social eficazes.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste panorama complexo, mas que permite entendimentos acerca do uso estratégico de mídias sociais em processos migratórios, é possível compreender articulações de 'Apoio Social' mútuo por imigrantes haitianos no Brasil e, com grande participação de membros da comunidade de acolhida - com relação presencial direta, associada ou não. No presente estudo foi possível analisar essa dimensão tendo como ponto de partida dois eixos de Apoio Social: Estrutura da Rede e Funcionalidade da Rede. Esses eixos, estrutura e funcionalidade, foram elencados neste estudo como forma de analisar no presente contexto de pesquisa aspectos teóricos indicados previamente em literatura internacional. Assim como acontece em outros contextos, imigrantes internacionais precisam do apoio social para lidar com um ambiente o qual não lhes é familiar, para a redução do estresse causado pelo processo migratório, dificuldades encontradas no novo país, assim como a distância e separação de sua família e comunidade que tradicionalmente assumiam parte chave das funções dessas redes.

A partir dos resultados apresentados neste estudo, podemos concluir que o apoio social intermediado pelas tecnologias de informação e comunicação não só se estabelece como uma fonte alternativa de suporte, mas também surge enquanto um espaço de amplas possibilidades de superar barreiras de distância física, que é um importante estressor da imigração. O caso dos imigrantes haitianos no Rio Grande do Sul serve como ilustração de uma discussão que pode ser ampliada para outros contextos migratórios, sobretudo de imigrantes econômicos e refugiados, os quais se encontram, especialmente, em situação de vulnerabilidade e muitas vezes não conseguem acessar, de forma tão satisfatória, pontos de apoio comuns à população local. Como foi demonstrado, o acesso à internet se estende por quase que a totalidade dos imigrantes, inclusive sendo demarcada como uma prioridade ao se estabelecer em um novo local. Fazendo o uso de redes sociais online e também de aplicativos contidos em sua principal fonte de acesso à internet, os smartphones, os imigrantes exercem uma autonomia que os aproxima tanto da comunidade imigrante oriunda do mesmo país, quanto da população local, facilitando a inserção social e o diálogo com o novo território em que habitam.

A psicologia pode contribuir com o contexto das migrações a partir do "entendimento do sofrimento como uma experiência social, psicológica e política" (Prado & Araújo, 2019, p. 579) e atuar para mobilizar e fortalecer as redes de apoio e seus recursos simbólicos e materiais, principalmente no caso das migrações forçadas como é a haitiana (Prado & Araújo, 2019). Novas pesquisas nesta área são necessárias para que seja realizado um mapeamento mais amplo, dando abrangência a outras populações e aprofundando os significados que estas novas fontes de apoio possuem para os imigrantes, possibilitando, desta forma, pensar em modos para facilitar o acesso à internet, a criação de espaços virtuais especializados e ferramentas que possibilitem reduzir e evitar os estressores atrelados ao processo migratório.

Entender o papel positivo dessas redes tecnológicas e, especialmente, de estratégias comunitárias de mediação de relações de apoio não pode servir para imiscuir a responsabilidade do Estado na garantia de direitos dessas comunidades. Se considerarmos o processo como um todo, o visto humanitário é apenas uma primeira medida formal para possibilitar uma integração digna da comunidade imigrante. Aspectos legais devem abranger as peculiaridades desses processos atualmente, especialmente no campo da assistência social, da saúde e dos direitos trabalhistas e previdenciários, focos importantes de vulnerabilidade para a comunidade imigrante atual.

 

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Recebido em: 10/04/2020
Aprovado em: 02/09/2020
Financiamento: CNPq através do programa de bolsas de mestrado e do programa de bolsas de produtividade em pesquisa (PQ)

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