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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Mulheres lideranças comunitárias e a luta quilombola1

 

Community leadership women and the quilombola struggle

 

Mujeres lideresas comunitarias y la lucha de quilombola

 

 

Candida Maria Bezerra DantasI; Victor Hugo BelarminoII; Magda DimensteinIII; Jáder LeiteIV; Antônio Alves FilhoV; João Paulo MacedoVI

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal/RN, Brasil. candida.dantas@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal/RN, Brasil. victorbelarmino@outlook.com
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal/RN, Brasil. magda.dimenstein@ufrn.br
IVUniversidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal/RN, Brasil. jaderfleite@gmail.com
VUniversidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal/RN, Brasil. antonioalvesfil@gmail.com
VIUniversidade Federal do Delta do Parnaiba. Parnaiba/PI, Brasil. jampamacedo@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo objetiva resgatar e analisar os processos de luta pelo reconhecimento das comunidades quilombolas do RN, com destaque ao processo de constituição das mulheres como lideranças políticas e comunitárias. Para tanto, realizamos observação participante e entrevistas semiestruturadas com 07 mulheres lideranças durante o Encontro das Comunidades Quilombolas do RN, em 2018. As entrevistas foram transcritas na íntegra e procedemos a análise de conteúdo, na modalidade Análise Temática. Os resultados revelam obstáculos institucionais ao processo de reconhecimento, às precárias condições de vida e de acesso às políticas públicas, à fragilidade do apoio comunitário, racismo, sexismo, à sobreposição das funções doméstica, agrícola e comunitária. Assim, para as mulheres encampar a luta quilombola representa uma dupla batalha: de um lado, o reconhecimento da própria comunidade como quilombola; e, de outro, o reconhecimento de seu lugar enquanto mulheres negras, produzindo enfrentamentos às opressões de gênero e ao racismo nas suas diversas expressões.

Palavras-chave: Feminismos negros; Mulheres negras; Política; Quilombola.


ABSTRACT

This study aims to rescue and analyze the processes of struggle for the recognition of quilombola communities in Rio Grande do Norte, with emphasis on the process of constitution of women as political and community leaders. To this end, we carried out participant observation and semi-structured interviews with 07 women leaders during the Meeting of Quilombolas Communities of RN, in 2018. The interviews were transcribed in full and we proceeded to content analysis, using Thematic Analysis modality. The results reveal institutional obstacles to the recognition process, the precarious living conditions and access to public policies, the fragility of community support, racism, sexism, the overlapping of domestic, agricultural and community functions. Thus, for women to take up the quilombola struggle represents a double battle: on the one hand, the recognition of the community itself as quilombola; and, on the other hand, the recognition of their place as black women, producing confrontations with gender oppression and racism in its various manifestations.

Keywords: Black Feminisms; Black Women; Policy; Quilombola.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo rescatar y analizar los procesos de lucha por el reconocimiento de las comunidades quilombolas de RN, con énfasis en el proceso de constituir a las mujeres como líderes políticos y comunitarios. Para esto, llevamos a cabo una observación participante y entrevistas semiestructuradas con 07 mujeres líderes durante la Reunión de Comunidades de Quilombolas de RN, en 2018. Las entrevistas se transcribieron en su totalidad y se procedió al análisis de contenido, en la modalidad de Análisis temático. Los resultados revelan los obstáculos institucionales para el reconocimiento, las precarias condiciones de vida y de acceso a las políticas públicas. La fragilidad del apoyo mutuo, el racismo, el sexismo, y la superposición de las funciones domésticas, agrícolas y comunitarias. Por lo tanto, para las mujeres asumir la lucha quilombola representa una doble batalla: por un lado, el reconocimiento de la comunidad misma como quilombola; y, por otro, el reconocimiento de su lugar como mujeres negras, produciendo confrontaciones con la opresión de género y el racismo en sus expresiones más diversas.

Palabras clave: Feminismos negros; Mujeres negras; Política; Quilombola.


 

 

INTRODUÇÃO

O cenário político atual de conservadorismo e retrocessos tem impactado fortemente no âmbito dos direitos sociais e das políticas públicas construídas no Brasil nas últimas décadas. Neste processo, os avanços no reconhecimento dos direitos das populações negras e a construção de políticas de recorte racial e de gênero têm sido alvo de discursos que as deslegitimam, intensificando um projeto de precariedade da vida da população, por meio do esfacelamento de programas, serviços públicos e redes de apoio e de uma maior exposição à condições de vulnerabilidade e violências das mais diversas ordens (Butler, 2018).

Neste contexto, as lutas da população negra em torno do reconhecimento e garantia de direitos das comunidades remanescentes de quilombos se acirram. Historicamente constituídas como espaços de resistência ao sistema escravocrata colonial, essas comunidades assumem na contemporaneidade o lugar de protagonismo nas lutas por direitos e acesso à terra, ao mesmo tempo em que sofrem com as condições precárias de vida e a desassistência das políticas públicas.

Assim, o estudo das comunidades remanescentes de quilombos nos remete ao legado da escravidão - instituição plurissecular que produziu marcas profundas na sociedade brasileira, orientada, sobremaneira, pela exploração, dominação e subjugação do povo negro. As relações coloniais escravistas materializaram identidades raciais visando legitimar a opressão ao corpo negro, reprimindo e invisibilizando formas próprias de produção de sentidos, universo simbólico, modos de expressão e de subjetivação (Quijano, 2005). Tal violência colonial não visava apenas subtrair qualquer possibilidade de existência dos negros fora desse sistema exploratório, mas tratava também de desumanizar/bestializar/objetificar seus corpos (Fanon, 1965).

Para Maria Lugones (2020), aos colonizados foi imposto um sistema moderno, colonial e de gênero, produzindo uma classificação e hierarquização entre aqueles considerados humanos e os não humanos. A humanidade destinava-se de um lado ao homem burguês, branco, europeu e heterossexual e, de outro, à mulher branca, europeia, responsável pelo trabalho reprodutivo da moderna sociedade, marcada pela pureza sexual, passividade e domesticidade. A colonialidade de gênero, segundo a autora, produziu uma distinção fundamental entre os povos colonizadores e os colonizados. No caso desses últimos, os machos se tornaram não-humanos-como-não-homens e as fêmeas se tornaram não-humanas-como-não-mulheres. Dessa forma, os processos de racialização, colonização, exploração capitalista e o imperativo da heterossexualidade subalternizaram as mulheres, reservando a elas um lugar de inferioridade na hierarquia social estabelecida.

O cenário pós-abolicionista nas colônias não significou para os negros e as negras a emancipação das relações de exploração, pois eram escassas as possibilidades de sua integração ao mercado de trabalho livre, resultando, na maioria dos casos, em uma inclusão perversa já que continuaram a realizar os trabalhos mais precários e com menores rendimentos (Davis, 2016). Ademais, a abolição da escravatura no plano formal/institucional não representou o fim da violência racial, uma vez que se mantiveram as relações de colonialidade que classificam e hierarquizam as populações por meio da categoria de raça (Quijano, 2005).

No caso brasileiro, a colonialidade enquanto sistema operante das assimetrias raciais revela-se, por exemplo, na desobrigação do Estado brasileiro pós-abolição para com a população negra, realidade que se manteve intacta por quase um século (Rodrigues, Nunes, & Rezende, 2019). Além disso, na história do país, o mito da "democracia racial" emerge como um dos discursos que legitimou durante muito tempo a inércia do Estado e funcionou como dispositivo biopolítico eugenista, por meio do uso da miscigenação enquanto ferramenta de branqueamento populacional nas primeiras décadas do século XX (Silva, 2017). Tal ideologia viria a ser radicalmente combatida pelo Movimento Negro no Brasil, emergente em 1930 no estado de São Paulo (Rodrigues, Nunes, & Rezende, 2019). No entanto, apesar de ser possível observar movimentos sociais organizados nas primeiras décadas do século XX, é no período de abertura democrática durante as décadas de 1970 e 1980 que o Movimento Negro ganharia impulso, ainda que sem unicidade e capacidade de articulação em nível nacional (Rodrigues, Nunes, & Rezende, 2019).

É também na década de 1980 que o movimento feminista no Brasil começa a descentrar suas pautas de uma perspectiva liberal, branca e elitizada, visibilizando as especificidades e as reinvindicações de mulheres negras em intersecção com o movimento negro. É o que Sueli Carneiro (2019) denominará de "enegrecendo o feminismo" onde as mulheres negras se tornam novos sujeitos políticos, reivindicando o reconhecimento de que a racialização produz gêneros subalternizados geradores de desigualdades entre as mulheres. Desse modo, na esteira dos feminismos negros, as mulheres pautam questões que envolvem temáticas como sexualidade, violência doméstica, mercado de trabalho, agora com o atravessamento de posições antirracistas, reforçadas pela fundação do Movimento Negro Unificado no Brasil e da sua participação na esfera estatal, com acesso a projetos e financiamentos de organismos internacionais e, em menor escala, pela emergência da produção intelectual no tema (Lima & Rios, 2019).

É neste espírito que em 1986, o Movimento Negro Unificado, orientado pelo paradigma da autoafirmação cultural, organizou a Convenção Nacional do Negro, procurando reunir as reivindicações que seriam levadas à Assembleia Constituinte - destacando o afrocentrismo, o quilombismo e a denúncia do racismo e da suposta democracia racial (Rodrigues, Nunes, & Rezende, 2019). Especificamente com relação às comunidades quilombolas, Petrônio Domingues e Flávio Gomes (2013) referem que é também neste período que as questões de luta pela terra, já debatidas pelos movimentos do campo, aliam-se às discussões em torno da questão racial, promovidas pelo Movimento Negro, associando ao termo quilombo o símbolo do processo de reconstrução e afirmação da identidade negra no Brasil. Segundo esses autores, tais fatores contribuíram para a organização política de comunidades negras rurais, culminando na realização de encontros estaduais no Pará e no Maranhão. Também aconteceram mobilizações em outros lugares do país, como no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Bahia, fortalecendo as questões demandadas pelas comunidades negras rurais.

A mobilização política das comunidades negras rurais assegurou-lhes espaço no texto constitucional, expresso no direito à terra, garantindo no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal Brasileira de 1988 que "aos remanescentes das comunidades quilombolas que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Ademais, os Artigos 215 e 216 prometem proteção às identidades culturais negras, assim como aos seus modos de fazer e viver, tombando o quilombo como patrimônio da sociedade brasileira. Desde então, inúmeras comunidades em diferentes regiões do país, organizadas em associações, começaram a reivindicar os direitos recém-conquistados a partir do processo de reconhecimento étnico. Em 1995, foi realizado o I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais em Brasília, e, em 1996, foi criada a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) (Domingues & Gomes, 2013).

Contudo, é apenas a partir dos anos 2000 que as políticas públicas com recorte racial ganhariam novo dimensionamento, durante os dois governos do então presidente Luís Inácio Lula da Silva. Em 2003, por exemplo, tem-se o Decreto Lei nº 4.887, o qual regulamenta, sob o critério de autoatribuição, os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos, bem como estabelece a necessidade de desapropriação das áreas reivindicadas por particulares, a titulação coletiva das terras dos quilombos e impediu a alienação das propriedades tituladas. Ainda em 2003, temos o Decreto nº 4886, que instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR).

No ano de 2004 é criado o Programa Brasil Quilombola (PBQ), estruturado em 4 eixos temáticos: (a) acesso à terra; (b) infraestrutura e qualidade de vida; (c) desenvolvimento local e inclusão produtiva; e (d) direitos e cidadania. Em 2007 instituiu-se: (a) Agenda Social Quilombola, voltada para ações de melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a serviços públicos; (b) Decretos nº 6.261/2007, o qual instituiu a agenda social no âmbito do PBQ, e nº 6.040/2007, o qual instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; (c) Portaria nº 98/2007, no âmbito da Fundação Cultural Palmares, que regulamentou o procedimento de certificação. Em 2009, evidenciamos a Instrução Normativa nº 57/2009, a qual prevê o procedimento para identificação, delimitação, demarcação, desintrusão e titulação das terras quilombolas por meio do INCRA. E, em 2010, a Lei nº 12.288, referente ao Estatuto da Igualdade Racial - principal referência para enfrentamento ao racismo e à promoção da igualdade racial.

É importante destacar que o avanço no reconhecimento dos direitos das populações negras e quilombolas é acompanhado por movimentos de mulheres com enfoque antiracista que também pautam a luta pela terra. É o caso da 'Marchas das Margaridas' que reúne milhares de trabalhadoras rurais em Brasília e a 'Marcha Nacional das Mulheres Negras' (2015), com mais de 50 mil participantes (Biroli, 2018). As demandas desses movimentos, visibilizadas pela ampliação dos marcos legais, das políticas e criação de equipamentos públicos a partir dos anos 2000, alinham-se com as de outros movimentos que visam a produção de sujeitos políticos, interferindo nas suas formas de atuação nos âmbitos macro e micropolíticos. Isso produziu importantes efeitos no modo de organização política das comunidades, a exemplo da ampliação do protagonismo das mulheres negras na liderança dos processos políticos comunitários. Influenciada por essas políticas, no estado do Rio Grande do Norte, lócus da nossa pesquisa, a participação das mulheres na luta quilombola ganhou destaque, seja no âmbito das associações comunitárias, seja em esferas institucionais mais amplas.

Contudo, todos esses avanços passam a ser fortemente ameaçados com o golpe parlamentar de 2016, representado por alianças entre o capitalismo financeiro, neoliberalismo e neoconservadorismo classista, machista e racista (Dias, 2018; Rolnik, 2018). Como consequência, tem-se uma diminuição do diálogo entre o governo e os movimentos sociais, além da implantação de um projeto, em curso, de austeridade fiscal e de redução orçamentária, aspectos que têm impactado diretamente na efetivação da regularização fundiária das terras quilombolas, por exemplo, e no desmonte de políticas públicas de saúde, educação, transferências de renda, dentre outras, com efeitos deletérios nas condições de vida das comunidades quilombolas.

Esse quadro fica evidente se observarmos os dados da última atualização da Fundação Cultural Palmares1: em agosto de 2019, havia 3.386 comunidades reconhecidas, dentre as quais 2744 certificadas. Em relação à titulação, tem-se que entre 2005 e 2018, apenas 124 comunidades receberam os títulos definitivos de propriedade da terra2 no Brasil. No estado do Rio Grande do Norte, 30 comunidades foram reconhecidas e, destas, 29 certificadas, mas somente uma recebeu a titulação definitiva de suas terras.

Além do não acesso à terra, outros indicadores demonstram os efeitos das desigualdades raciais. Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios3 apontam que, em 2018, a taxa de analfabetismo segundo cor/raça para pessoas de 15 anos ou mais era duas vezes maior em relação ao de pessoas brancas e para pessoas de 60 anos ou mais era três vezes maior. Demonstra ainda uma diferença de 2 anos a menos para pretos ou pardos quanto ao número médio de anos de estudo das pessoas de 25 anos ou mais de idade, bem como menor taxa de frequência escolar e maior percentual de estudantes da educação de jovens e adultos aos negros ou pardos. Nos casos de desistência, os motivos mais alegados para as mulheres eram os afazeres domésticos e cuidados de pessoas e, para os homens, o trabalho ou a procura por trabalho.

Diante deste cenário de acirramento das lutas por reconhecimento e necessidade de reafirmação de direitos, o presente estudo pretende contribuir com esse campo de debates e de disputas políticas, tendo por objetivo resgatar e analisar os processos de luta pelo reconhecimento das comunidades quilombolas do RN, identificando as principais mudanças nas comunidades daí decorrentes, os desafios e dificuldades vivenciados atualmente pelos moradores, dando especial destaque ao processo de constituição das mulheres como lideranças políticas e comunitárias e da importância da sua atuação na organização das comunidades e na luta por direitos.

 

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Realizamos observação participante e entrevistas semiestruturadas com 07 mulheres lideranças de comunidades quilombolas durante o Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do RN, entre os dias 16 e 18 de novembro de 2018, promovido em comemoração ao mês da Consciência Negra, no município de Portalegre/RN. O evento, organizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e da Coordenação Estadual Quilombola (COEQ), em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, contou com a participação de dezenas de lideranças comunitárias oriundas de diferentes regiões do estado, além de atrair pesquisadores e acadêmicos interessados na temática quilombola, representantes do INCRA e da FCP, dentre outras entidades e instituições. Com o tema "O RN por um olhar quilombola", a programação do evento foi composta de atividades de exposição, como a mesa de abertura com o representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras, rurais e quilombolas e uma mesa redonda com representantes da Prefeitura Municipal do município de Portalegre e do INCRA. O encontro também promoveu espaços de discussão e de trocas de ideias (desafios e dificuldades a serem enfrentadas, empoderamento, autoafirmação racial), além do planejamento de ações estratégicas para os anos 2019 e 2020 em relação à titulação das terras, regularização fundiária, projetos comunitários.

No decorrer do evento, participamos de várias atividades, registramos nossas impressões em diário de campo e entrevistamos as mulheres lideranças comunitárias que se disponibilizaram a participar em meio a uma agenda de muitos compromissos. O acesso a elas foi viabilizado por uma das organizadoras do evento, a qual vem colaborando com nosso grupo de pesquisa há anos, confirmando assim uma amostragem por conveniência. Nosso intuito era conversar com o maior número possível de lideranças, buscando cobrir todas as mesorregiões do RN. As 07 mulheres entrevistadas são lideranças nas seguintes comunidades quilombolas, distribuídas por mesorregião: Arrojado; Sobrado e Lagoa do Mato (Oeste Potiguar); Acauã; Gameleiras e Pavilhão (Agreste Potiguar) e Boa Vista dos Negros (Central Potiguar). Apenas a mesorregião Leste Potiguar ficou sem representação.

Todas as entrevistadas foram esclarecidas acerca do objetivo da pesquisa e dos aspectos éticos que envolviam: assinatura do termo de consentimento para participação na pesquisa, autorização para gravação de voz e garantia de sigilo.  As entrevistas foram realizadas em espaço aberto, na parte externa do espaço em que aconteciam as principais atividades do evento, de forma a garantir um mínimo de privacidade. O roteiro de entrevista tinha como eixos principais: os processos de luta e conquista do reconhecimento, o papel das mulheres e das lideranças na luta quilombola e os desafios e dificuldades enfrentados atualmente nas comunidades.

A análise dos dados foi realizada a partir da análise de conteúdo, na modalidade Análise Temática (Minayo, 2010), procedendo os seguintes passos:

1. transcrição integral das entrevistas;

2. categorização dos conteúdos de acordo com os seguintes eixos de análise: (a) os processos de luta e conquista do reconhecimento; (b) os desafios e dificuldades enfrentadas atualmente nas comunidades; e (c) o papel das mulheres e das lideranças na luta quilombola;

3. Revisão coletiva das categorias sínteses de análise;

4. Discussão teórica dos resultados.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

RECONHECIMENTO QUILOMBOLA E A LUTA PELA TERRA

As lideranças afirmam que o processo de reconhecimento quilombola aconteceu "de fora pra dentro" em suas comunidades, ou seja, só foi possível a partir do encontro com atores externos. Anterior à chegada desses atores, evidenciaram o desconhecimento de suas "raízes de africanos", em alusão à constituição dos quilombos enquanto espaço de resistência e insubordinação dos negros à escravidão e, consequentemente, do fio histórico que atravessava a existência de sua comunidade e que se materializa na contemporaneidade através dos marcadores étnico-raciais, de parentesco, práticas culturais e relações socio territoriais específicas.

Pode-se dizer, então, que esses "de fora" funcionaram como importantes catalisadores dos interesses dos quilombolas pela história da sua comunidade e por um passado comum até então desconhecido, desconsiderado ou negado por seus moradores. Essa nova possibilidade discursiva de existência (Valentim & Trindade, 2011) representou a passagem da experiência naturalizada, de serem negros e apenas constituírem uma comunidade de negros, para uma reflexão histórica acerca das determinações sociais que engendraram posições sociais desprivilegiadas com base na raça.

Petrônio Lima, Flávio Silveira e Luis Cardoso (2016) afirmam que a identidade 'remanescentes das comunidades de quilombos' abriu novos caminhos para a conquista dos territórios dos quilombolas, permitindo que "centenas de grupos com ascendência negra passassem a habitar o espaço criado pela nova categoria jurídica" (p. 89). Estes autores confirmam que, apesar das lutas empreendidas há décadas para reconquistar suas terras expropriadas, inicialmente imperava um desconhecimento dos direitos ao reconhecimento e à titulação do território quilombola. O quilombo passou, então, a representar "a expressão ético-estética da diversidade singular dessas comunidades e, ao mesmo tempo, da união por uma unidade política mais ampla" (Lima, Silveira, & Cardoso, 2016, p. 103). Tal união, todavia, já vinha sendo desenvolvida dentro e em conjunto por essas comunidades antes mesmo do processo de autoidentificação quilombola acontecer no plano formal.

Segundo João Rocha e Renan Albuquerque (2018), para muitas comunidades essa contribuição de agentes externos e a indicação de possibilidades de acionamento de dinâmicas de luta foram fundamentais para operar processos de construção de "memórias do cativeiro" (p. 140). Não se trata de um esforço de escavação dos restos de memórias coletivas fossilizadas em um passado distante, mas de construção ativa de memória, costurada a partir de diferentes temporalidades, articulando as lembranças do tempo vivido, reforçando e reinventando tradições. Segundo Rocha e Albuquerque (2018), tal esforço de positivar memórias e revivê-las tem sido um mecanismo potente para acessar os direitos historicamente negados, utilizando a mobilização em torno do reconhecimento étnico-racial como um dispositivo de luta quilombola. Neste sentido, a autodeclaração acionou diversas possibilidades discursivas para que essas comunidades quilombolas pudessem contar suas histórias singulares, unindo-se em laços de reciprocidade, alianças políticas, rituais e de parentesco - laços complexos que denotam sua unicidade (Lima, Silveira, & Cardoso, 2016).

De acordo com Janine Bargas e Danila Cal (2018), as estratégias mais eficazes de reação e resistência quilombolas têm girado em torno de coordenações e associações, de eventos políticos, como encontros e assembleias nacionais, estaduais, municipais e locais, a exemplo do encontro estadual quilombola ocorrido no RN. Os autores apontam que tais organizações foram "responsáveis por articular as demandas dos grupos quilombolas junto a outros movimentos sociais, a órgãos de defesa de direitos e aos órgãos de Estado" (p. 495). Acrescentam que o contato direto com a CONAQ tem produzido ações de base nas comunidades, articulando e fomentando ações em diversos âmbitos. Durante a programação do evento foi ressaltada a importância do CONAQ nos processos de reconhecimento e certificação das comunidades quilombolas no estado, em especial no enfrentamento judicial necessário em algumas comunidades.

Entretanto, as lideranças indicaram que o reconhecimento enquanto quilombolas foi inicialmente um problema, uma vez que temiam o acirramento da discriminação racial e do preconceito por se auto identificarem negros e negras. Porém, apontam que o cenário favorável às políticas de igualdade racial, à criminalização do racismo e às políticas de regularização fundiária não apenas trouxeram melhorias em termos das condições de vida, mas, sobretudo, valorizaram o processo de autoafirmação da população quilombola, deixando de ser motivo de vergonha e humilhação, mas de orgulho:

A gente sempre chegava num canto - a gente acompanha muito jogos fora da comunidade - quando a gente chegava lá que abria a porta do carro: "vige Maria, que é nêgo! Abriram as portas do inferno!". Antes a gente ia discutir: "nêgo é você!", mas aí depois que a gente se "encaixou" de dizer: a gente é negro mesmo, né? "Ah, deixa chamar, a gente vai lá se importar. Nós somos negros e gostamos da nossa cor", a gente fala pra eles que a gente é negro e tem orgulho de ser negro, que gosta muito de ser negro, e que a gente é até de uma comunidade quilombola. Depois eles vêm querer saber: "o que é quilombola, é aquele povo que passa fome?" E eu digo: "não, a gente é negro e tem uma comunidade com associação, que é bem recebido, viaja"; - "ah, tá certo." (Liderança 5)

Outro desafio que se impôs ao auto reconhecimento e à luta pelo direito de uso, permanência e posse da terra consistiu na desintrusão4 de seus territórios, pois apesar de amparadas legalmente, há fortes conflitos e ameaças constantes por parte dos latifundiários do entorno que resistem à "perda" da terra, mesmo sabendo que as mesmas foram confiscadas dos moradores quilombolas há várias gerações passadas:

Uma vez chegou um senhor - esse dia eu tive medo -, chegou um senhor num "jipão", que a terra dele nem valia o valor daquele Jeep, veio com uma pessoa da comunidade: "quem é dona aqui?" Então eu tive ameaças também na minha porta por essa pessoa que me indagou, assim, de uma certa maneira...: "por que vocês estão ali?" Porque a gente fez uns barracos, protestando que aquela terra a gente queria. Não foi totalmente como que nem um sem-terra, mas fizemos umas barraquinhas, porque aquela terra estava na verdade abandonada já. (Liderança 3)

Como afirma Íris Soares (2018), os conflitos agrários são parte constitutiva da formação social brasileira desde a colonização e da estrutura latifundiária de concentração de poder econômico e político em torno dos grandes proprietários de terras. Segundo a autora, esses embates têm se agravado após o golpe parlamentar-judiciário-midiático realizado em 2016, o qual impôs uma agenda política afinada à perspectiva neoliberal e de descompromisso acentuado do Estado em relação à reforma agrária e às garantias de direitos já conquistados pelos quilombolas. Desse modo, é imprescindível ampliar a luta em defesa do valor da terra enquanto espaço coletivo e dos modos de vida dessas populações, confrontando a lógica latifundiária e do agronegócio em franca expansão no país.

Outro entrave para a efetivação dos direitos quilombolas é a gestão pública municipal. Além de não combater a posse e o uso indevido das terras quilombolas, estabelece relações clientelistas que resultam em ações pouco efetivas na concretização dos direitos quilombolas e na melhoria das suas condições de vida. Não existe colaboração entre a gestão municipal e as comunidades, de forma que o planejamento, a execução de ações e uso dos recursos públicos não estão orientados pelas necessidades existentes e demandas levadas pelas lideranças comunitárias. Isso faz parte da histórica aliança do Estado brasileiro aos interesses privados e ao grande capital, bem como da nossa frágil democracia. Para Bruno Rodrigues, Tiago Nunes e Tayra Rezende (2019), as políticas autoritárias e arbitrárias do Estado brasileiro têm afastado determinadas questões da esfera pública, como é o caso das reivindicações quilombolas pela efetivação do direito à terra, pela dignidade e pelos direitos quilombolas. Segundo esses autores, "a luta pela terra causou e causa muita tensão no Brasil, pois a tradição elementar da propriedade privada consolidou-se como 'direito sagrado´" (Rodrigues, Nunes, & Rezende, 2019, p. 212), ou seja, a função social da terra e garantia da reforma agrária ainda são promessas não cumpridas em sua plenitude e os pactos decorrentes das lutas sociais continuam restritas ao campo do simbolismo institucional (Pereira, 2019).

Os conflitos em torno da questão da terra se acirram no momento político atual em que a aliança entre neoconservadores e neoliberais, gestada gradativamente desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, tem um discurso eminentemente classista e racista, que ataca frontalmente, nos planos macro e micropolíticos, direitos já conquistados, e limita, sobremaneira, as possibilidades de avanços no campo jurídico-legal (Dias, 2018; Rolnik, 2018), com a conquista de melhores condições de vida e ampliação do acesso à terra pelas populações negras. Ademais, o crescimento da violência no campo, a extinção ou sucateamento de equipamentos públicos responsáveis pela atenção às populações quilombolas, bem como a aliança dos poderes executivo, legislativo e jurídico5 com os interesses dos setores privados e do agronegócio, indicam que os ataques e desmontes persistem na agenda política brasileira (Mendes & Luiz, 2020; Rolnik, 2018). Assim, é preciso intensificar a cada dia a luta pelo reconhecimento dos direitos quilombolas, especialmente no que se refere à posse da terra.

O reconhecimento e a certificação quilombolas, apesar de não significar a posse definitiva da terra, funcionam como uma garantia institucional, tendo em vista que os documentos emitidos pelo INCRA e pela Fundação Cultural Palmares (FCP) servem como atestado do direito de uso das terras. Muitas mudanças são sentidas pelas lideranças comunitárias após a certificação pela FCP. Primeiro, pelo acesso a projetos produtivos, de habitação e de cisternas, os quais eram praticamente inexistentes no período anterior ao reconhecimento e certificação pela FCP. Em segundo lugar, há maior interesse da comunidade pela escolarização e qualificação profissional, tanto no sentido da valorização pessoal, quanto para facilitar o acesso às políticas e potencializar as já existentes.

Outra mudança diz respeito à ampliação da autonomia das mulheres, as quais passam a ocupar diferentes espaços comunitários: nas organizações produtivas, nas atividades culturais, nas decisões políticas, nas instituições educacionais. Isso vem produzindo deslocamentos nas relações de gênero, uma vez que as mulheres buscam cada vez mais ampliar seu protagonismo e afirmar seu lugar de liderança na comunidade. As lideranças mencionaram também o fortalecimento da identidade étnica e de práticas culturais, que servem como estratégia para serem ouvidas e ter suas experiências valorizadas, por exemplo, nos conselhos municipais de saúde, educação, assistência e nas pastorais:

Mudou muito porque elas, principalmente as mulheres, elas buscam o espaço onde elas querem estar, não o espaço que elas podem estar. Elas buscam os seus direitos, que antes elas não tinham conhecimento de quais direitos elas podiam ter e elas buscam também o trabalho, a autonomia do trabalho delas: tem muitas mulheres que fazem rede, tem outras que fazem o trabalho artesanal do crochê, do bico, do fuxico, elas têm promovido a dança como um bem da saúde da mulher, elas participam de um grupo de dança da comunidade, tem um grupo de mulheres que jogam futebol... Tudo isso foi vindo através e depois do reconhecimento. (Liderança 1)

Apesar desses avanços, segundo André Silva (2018), inúmeros obstáculos se impõem à efetivação dos direitos quilombolas e não é à toa que apenas uma comunidade no RN recebeu a titularidade das terras: a burocracia institucional, a falta de recursos humanos especializados e de acesso à informações pela população quilombola; terras quilombolas em litígio de posse com latifundiários ou até mesmo que são de interesse do governo; nas comunidades observa-se uma frágil infraestrutura, serviços públicos de baixa qualidade, falta de equipamentos agrícolas, a instabilidade climática da região associada à precariedade no acesso à água encanada ou a projetos de captação de água e abastecimento - essas são algumas situações que apontam a dependência das comunidades aos municípios, seja na preparação e manejo da terra para o plantio, seja dos carros-pipa para atender às necessidades básicas das famílias e de suas atividades agropecuárias. Também foram relatadas outras dificuldades como a baixa frequência dos atendimentos em saúde na própria comunidade, as longas distâncias a serem percorridas para chegar aos equipamentos de saúde e de educação, a má qualidade das estradas, dentre outros.

O racismo foi outro aspecto destacado. Segundo as lideranças, está presente nos discursos veiculados nas grandes mídias - repertórios que normalmente associam imagens do corpo negro aos estereótipos de marginalidade, periculosidade e de apelo sexual. Entretanto, sua reprodução se dá efetivamente nas relações cotidianas, demonstrando seu profundo enraizamento na sociedade:

O preconceito, o racismo, não acaba. Ele ameniza um pouco, mas não acaba. Em todos cantos, não somente nas comunidades quilombolas, acontece isso: o racismo. Com pessoas de cor, o negro na verdade. E agora a gente vê bastante! Parece uma coisa que está voltando, o passado... Sobre a comunidade a gente vê o respeito por parte de alguns, agora outros a gente vê que não mudou muito não, e até mesmo dentro da comunidade, é até uma coisa que eu reclamo bastante: que na comunidade todos tem ali o mesmo sangue, e às vezes tem uns que são mais claros da cor um pouco... Assim, eu falo até pelas crianças, que dentro da sala de aula, quando der fé, um tá chamando o outro de nêgo. (Liderança 3)

No âmbito dos equipamentos públicos, as lideranças confirmam a existência de racismo institucional. Na saúde, destacam a rapidez da consulta médica, a falta de interação com o paciente, a longa espera pelo atendimento em comparação às pessoas brancas e os maus tratos por parte das recepcionistas e enfermeiras. Na educação, ao entrar nas escolas do município, crianças e jovens são alvo de "brincadeiras" com forte teor racista. A omissão dos professores e gestores das escolas no enfrentamento dessas questões, assim como a falta de abordagem crítica do problema indicam a presença do racismo no âmbito escolar e educacional. O Racismo Institucional

se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações. (Programa de Combate ao Racismo Institucional [PCRI], 2006, p. 22)

Sobre esse aspecto, Maria Helena Zamora (2012) alerta que o racismo não afeta homogeneamente as pessoas negras, mas atravessa diferencialmente suas experiências em razão do gênero, sexualidade e das condições socioeconômicas. Reforça que o racismo não é redutível à pobreza e que a superação das desigualdades sociais não leva necessariamente ao fim do racismo. Contudo, destaca que o racismo gera e aprofunda as iniquidades sociais, facilitando processos como a desistência escolar e diversos agravos à saúde:

O povo discriminava muito, até na escola mesmo, os brancos eram mais bem tratados, pelos professores e pelos amigos deles, mesmo. Chamavam de "negro", a merenda botava primeiro pros brancos, pra depois botar pros negros. Agora está melhorando mais, depois que chegou esse negócio: porque dizem que é crime, né? Foi quando melhorou mais. (Liderança 6)

No trabalho, o racismo é sentido pelas mulheres quando realizam funções que extrapolam o que foi contratualizado, quando a elas são destinadas tarefas pesadas, desvalorizadas ou que poderiam ser feitas por qualquer pessoa. Para Beatriz Nascimento (2019), trata-se dos efeitos de uma herança escravocrata que incide sobre a definição dos lugares e papéis sociais assumidos pelas mulheres negras, bem como formas de controle que atuam no sentido de manter as hierarquias estruturantes da sociedade brasileira:

Um dia eu tava contando lá, que eu trabalho na secretaria de assistência do meu município, eu sou coordenadora de igualdade racial do município, o prefeito criou, ainda tá novo, tá se arrumando, e eu trabalhando lá percebo que as pessoas cometem atos de racismo institucional. Por exemplo, está eu e minha equipe num determinado canto, por exemplo na cozinha, lanche e tal. Aí chegou a primeira dama do município e falou: "Gameleiras, mulher, lave por favor essa louça porque o prefeito vai vir fazer uma reunião aqui e vai ver essa pia cheia de louça?". Aí eu fiquei pensando assim: "o que tem a ver? Prefeito com pia de louça? E por que só eu tenho de lavar a louça se tem outras pessoas aqui?", quer dizer, isso é um racismo institucional: "ah, porque ela é a pretinha daqui", não que ela tenha dito assim, mas foi o que eu entendi. E tudo que tem de mais difícil pra se fazer, de aguar uma planta, de plantar uma muda: "chama Gameleiras". Só tem eu? Então eu penso que eles não percebem que isso é um racismo. (Liderança 1)

Entre avanços e retrocessos no enfrentamento do racismo e do machismo, as mulheres emergem como importantes protagonistas na luta antirracista e como as principais articuladoras entre comunidade, instituições e organizações, articulação que é fundamental para dar visibilidade aos seus modos de vida e ao reconhecimento quilombola. É sobre esse aspecto que discutiremos a seguir.

O PROTAGONISMO DAS MULHERES NEGRAS RURAIS NA LUTA QUILOMBOLA

As mulheres quilombolas cumpriram e ainda cumprem um papel fundamental na luta pelo reconhecimento, nas decisões coletivas e na organização política e comunitária. Segundo uma das entrevistadas, desde a formação da associação de moradores de sua comunidade, a função de liderança comunitária foi quase que exclusivamente exercida por mulheres.

assim, a gente sempre agiu em conjunto, né? Se bem que a maioria dos presidentes da associação foram mulheres. A começar pela primeira. Se não estou enganada, nesses 24 anos de associação, só um homem foi presidente, mas sempre foram mulheres, as cabeças de chapa sempre estávamos nós. (Liderança 7)

Alguns dos motivos apontados para essa significativa presença feminina nos espaços de decisão refere-se ao maior interesse, disponibilidade e disposição das mulheres em participar das atividades que envolvem o exercício da liderança comunitária, bem como de estar presente em eventos, encontros, reuniões, dentre outros.

Diversos autores têm evidenciado o protagonismo das mulheres na luta quilombola, seja nas organizações comunitárias, seja nas mobilizações políticas. Patrícia Pinheiro, Maysa Silva e Marcela Rodríguez (2019) referem que as mulheres representam um "pilar fundamental, tanto em espaços públicos quanto privados, em negociações, eventos, formulações e reformulações de saberes, o que vai em direta proporção a colaborar com a biodiversidade e a autonomia" (p. 309). Entretanto, encampar a luta quilombola representa uma dupla batalha por reconhecimento: de um lado, o reconhecimento da própria comunidade como quilombola; e, de outro lado, o reconhecimento de seu lugar enquanto mulheres negras, produzindo enfrentamentos às opressões de gênero e à noção masculinizada de política.

Alguns elementos são fundamentais na constituição desse lugar de liderança como a valorização da mulher como guardiã de conhecimentos tradicionais (Bargas & Cal, 2018). Autores como Pinheiro, Silva e Rodríguez (2019) destacam que os saberes produzidos e repassados intergeracionalmente entre as mulheres do campo, não somente denotam a biodiversidade e sua capacidade de inovação, mas também que a valorização destes saberes tem aberto possibilidades a espaços de saber-poder anteriormente restritos aos homens, a exemplo dos cargos de liderança política. Isto é, as mulheres assumiram lugar central nas comunidades quilombolas a partir da valorização étnico-racial pelo processo de reconhecimento, uma vez que aspectos como "expressões culturais, como a dança, a culinária, as músicas, as formas de cura e de religiosidade, passaram a ter local privilegiado, fazendo com que os debates sobre os quilombos passassem a tocar mais de perto as questões femininas" (Bargas & Cal, 2018, p. 483). Ademais, seu lugar no protagonismo da soberania alimentar tem sido um aspecto central para articular a implementação de programas sociais, como o Bolsa Família, alterando relações exploratórias de trabalho e modificando relações de poder locais (Pinheiro, Silva, & Rodríguez, 2019). Nesse sentido, a dimensão cultural tem sido ativada como importante "instrumento destinado a apoiar demandas específicas, assegurar a legitimidade das reivindicações coletivas e das conquistas, requerer um lugar de fala, ter um protagonismo num espaço social marcado pela exclusão, o racismo e a desigualdade" (Cavignac, 2019, p. 317).

Entretanto, a ideia de que as mulheres teriam mais disponibilidade e que os homens não poderiam deixar seus postos de trabalho em prol da comunidade é equivocada, tendo em vista que as mulheres não abandonam os seus afazeres cotidianos, acumulando outras funções além das referentes ao cuidado da casa, dos filhos e do trabalho na agricultura. Trata-se, portanto, da histórica dicotomia entre as esferas públicas e privadas que impele as mulheres ao confinamento nos espaços privados, onde assumem a responsabilidade pelos afazeres domésticos e o cuidado dos familiares, retirando desses espaços o caráter político que produz a domesticidade das mulheres e a manutenção da dominação masculina (Miguel & Biroli, 2014). Além disso, as atividades agrícolas desempenhadas por essas mulheres são invisibilizadas ou consideradas como ajuda por serem classificadas como atividades domésticas (Abramovay & Silva, 2000; Silva & Schneider, 2010; Torres & Rodrigues, 2010).

Entretanto, ainda que para muitas mulheres essa sobreposição de funções acarrete uma sobrecarga de trabalho, elas são ativas em termos de participação política, produzindo enfrentamentos às concepções naturalizadas de que são menos capazes que os homens na gestão comunitária. Portanto, é necessário entender o público e o privado como esferas profundamente imbricadas, de forma que a análise crítica das relações tidas como "não públicas" ou "não políticas" compreenda as consequências políticas dos arranjos privados, bem como produza uma politização de aspectos relevantes nesse âmbito (Miguel & Biroli, 2014, p. 33).

Assim, fica evidente que a saída das mulheres da esfera doméstica é um caminho árduo, atualizado cotidianamente, frente aos discursos dos maridos e até mesmo das próprias mulheres que as mantém na lida doméstica e no cuidado dos filhos. Sabemos que a entrada das mulheres negras rurais aos espaços de decisão e mobilização política não representou a total desvinculação das responsabilidades domésticas ou comunitárias, mas sua realização de forma simultânea (Bargas & Cal, 2018). Segundo as entrevistadas, colocar 'a casa' em segundo plano para exercer as funções de liderança comunitária, ainda que em prol de um bem comum, é compreendido pela comunidade como uma perda de tempo ou pior, que tais mulheres estariam ociosas, seriam irresponsáveis ou, quando não, incapazes.

assim, eu cuido mais da minha casa - porque meu marido que trabalha - e das coisas da comunidade, eu vivo mais pra minha comunidade que pra minha vida pessoal. Às vezes as pessoas pensam que eu não o que fazer em casa, mas não. Porque na comunidade é pra todo mundo, e lá em casa é só pra mim, pra meu marido, pra minha filha e minha neta... A comunidade exige mais porque é pra um todo. (Liderança 2)

Uma liderança afirma não contar com o apoio das pessoas para frequentar as reuniões, ir aos encontros de interesse da comunidade, e que ainda recebe críticas por não saber ler.

Às vezes dá até encrenca comigo por causa disso, e às vezes eles não entendem, vou tentar explicar e eles: "não, que você não sabe". Eu falo: gente, eu vou pras reuniões, eu não sei ler não, mas do que eles falam lá eu boto um bocado na cabeça pra quando eu chegar aqui eu falar pra vocês da comunidade que não vão: "ah, tá certo, não sei o quê", e ficam naquilo. Eu fico conversando com eles e tentando botar: "vamos pro projeto, vamos pras reuniões, vamos se encaixar, a gente tudo da comunidade, porque aí, olhe, da associação vocês vão ver que daqui a uns dias só vão ser as coisas pedidas pelas associações", que nem já tá acontecendo, né? (Liderança 5)

Nessas situações apela para que outras pessoas a acompanhe nas diversas ocasiões em que é necessário ter o domínio da leitura, por exemplo, em relação à documentação quilombola. Apesar de demonstrar ter sido uma figura importante no reconhecimento da comunidade e encabeçar a luta pelos direitos quilombolas em vários momentos, afirma fazer essa luta sozinha em muitas situações. Observa-se então que o não letramento é usado como instrumento para desvalorizar a atuação feminina e a escolarização emerge como um desafio a ser enfrentado e uma condição a ser perseguida por essas mulheres.

Algumas lideranças ressalvam que apesar da maior participação das mulheres em comparação aos homens, essa mobilização política ainda recai sobre um grupo específico e reduzido de mulheres, inexistindo uma articulação mais ampla da maioria das mulheres. Diferentes lideranças usam o termo 'acomodação' para definir essa permanência feminina ao que socialmente seria esperado, sobretudo naquelas atividades restritas ao âmbito privado/doméstico. Esse termo também foi utilizado para referir-se à não presença e desinteresse das pessoas da comunidade, de modo geral, em relação aos espaços de decisão comunitária, o que denota certa lógica individualista instituída nas relações comunitárias.

eu sou mulher. Agora eu sempre busco, agora as outras é que não dão valor, acham que isso aí é besteira... Acham que é besteira a reunião: "vou lá pra reunião", ficam em casa, se acomodam. É por isso que as coisas não acontecem do jeito que é pra acontecer. (Liderança 6)

Entretanto, referem enxergar gradativamente o escape das mulheres dessa lógica privatista cristalizada, bem como a busca por autonomia, investindo na retomada dos estudos, mesmo com família, filhos e todas as responsabilidades daí decorrentes:

Eu percebi que as mulheres, mesmo depois, já na fase adulta, depois de ter filhos e de toda uma vida, elas buscam a escolaridade. Então eu acho que essa participação das mulheres, elas buscam uma autonomia própria, que elas já têm, mas elas ainda tentam sair dessa coisa de estar em casa. Elas não querem mais ser aquelas mulheres donas de casa, que só trabalham em casa: elas querem buscar novos horizontes pra elas. (Liderança 1)

Algumas lideranças quilombolas apontam que sua inserção na luta quilombola e na liderança comunitária deriva de seu trabalho junto às pastorais, situação que conferia visibilidade e facilitava o apoio e adesão das pessoas à sua candidatura. Atualmente, assumem que a ampliação das formas de sustentação e da geração de renda das famílias de sua comunidade são suas principais missões. Todavia, o sentido atribuído à função de liderança é mais complexo que a simples representação comunitária e a mediação dos interesses e necessidades dos moradores com os governantes e instituições públicas, uma vez que para essas mulheres, a relação entre o "eu" e o "nós" opera em mesmo plano:

Às vezes as pessoas dizem assim: "por que você não se candidata a vereadora?", porque eu tenho certeza que eu consigo mais coisas sendo liderança do que sendo política, porque a gente se preocupa de tudo: vai da educação, da saúde, do esporte e lazer, de você reunir a comunidade e dizer a ela que ela tem direito aquilo e de como ela pode ir atrás, você dorme e acorda pensando no que você tem de fazer por ela. Porque você fazendo pra comunidade, você está fazendo pra você. O papel da liderança é trazer pra comunidade dela o que ela quer que a comunidade seja pra ela. É trazer pra minha comunidade o que eu quero trazer pra minha casa: o desenvolvimento, o bem-estar, o trabalho, a renda, é tudo isso (Liderança 1)

A relação de pertencimento comunitário denota, segundo Pinheiro, Silva e Rodríguez (2019) a potência da partilha de memórias, lugares, grupos e indivíduos, que tem no parentesco "não somente como um modo de organização das relações pessoais, mas também como parte do sistema de relações políticas" (p. 317). A construção de um sentido coletivizado de política estimulado por relações de solidariedade, segundo Bargas e Cal (2018) sedimenta um terreno compartilhado de ação, no qual a formação de solidariedade emerge como passo básico para o fortalecimento de capacidades políticas e de luta por direitos. Nesse movimento, a busca por justiça social passa de valor abstrato em torno de um sujeito genérico nomeado quilombola, para uma solidariedade política concreta calcada nos modos de vida cotidianos.

Nesse sentido, é fundamental reconhecer e problematizar o descompasso entre o que é vivido concretamente pelas mulheres negras quilombolas e os conhecimentos produzidos nos circuitos acadêmicos. As lideranças afirmam que, apesar de ser crescente o interesse pela história da comunidade e por suas experiências singulares por parte de outros sujeitos e da academia, os conhecimentos produzidos pelas pesquisas que as tomam por "objeto" não retornam para suas comunidades. Ressaltam o cuidado necessário quanto à entrada de pesquisadores em suas comunidades, os quais poderiam assumir interesses contrários à causa quilombola, bem como podem explorar seus saberes, produzir riquezas e receber méritos que não serão usufruídos pelas comunidades ou compatíveis com suas necessidades e demandas.

eu acho que embora ela seja bem divulgada, o retorno dessa divulgação não tá ainda no "auge", sabe? As pessoas vêm, colhem o que temos, e não tem retorno. Um outro dia eu dei uma palestra pro IFRN e eu comentei justamente isso: "vocês vêm, conhecem nossa história, levam o conhecimento e lá fazem não sei o quê, apresentações, seja lá o que for, e às vezes a gente não têm nem conhecimento do que foi feito com aquelas entrevistas, que a gente falou", mas assim, eu acredito que ela é bem divulgada. Lá fora as pessoas conhecem a comunidade. (Liderança 7)

Os feminismos, não somente enquanto espaços de militância, mas enquanto campos teóricos, epistemológicos e de investigação, enfrentam o mesmo desafio ético-político exposto anteriormente pelas lideranças. É razoável supor que os conceitos, discussões e principais embates realizados pelas diferentes epistemologias feministas permanecem restritos a circuitos muito limitados. Um forte indicador desse descompasso é sugerido por Angela Figueiredo e Patrícia Gomes (2016), segundo as quais "muitas mulheres ativistas rejeitam o rótulo de feministas, preferindo identificar-se como ativistas ou simplesmente se declaram integrantes dos movimentos de mulheres, visto que ainda associam tal movimento ao feminismo de mulheres brancas de classe média" (p. 913). Essas autoras indicam que permanece forte a imagem do feminismo perpassado pela ideia universal de mulheres, desconsiderando elementos fundamentais como raça, classe, sexualidade e cultura. Desse modo, na agenda do movimento de mulheres as desigualdades de gênero não emergem como discursos prioritários, mas o enfrentamento ao racismo, pois entendem que é o "principal fator de produção de desigualdades seja entre mulheres e homens, seja entre mulheres" (Figueiredo & Gomes, 2016, p. 914). No evento das comunidades quilombolas no RN isso ficou evidente, uma vez que o foco das pautas se detinha majoritariamente na melhoria das condições de vida, nas políticas públicas, no desenvolvimento de projetos e na regularização fundiária.

Apesar do acúmulo teórico existente sobre feminismo e gênero em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil, compondo um mosaico complexo que tem articulado diferentes realidades empíricas, ativistas e militantes ao mundo abstrato dos conceitos e das ideias (Ballestrin, 2017), esse debate ainda necessita ser amplificado nos diversos espaços de organização política das mulheres negras quilombolas rurais.

A ideia de feminismos subalternos sugerida por Luciana Ballestrin (2017), agregando diferentes movimentos de mulheres feministas, acadêmicas ou não, como espelho de um amplo espectro de caracterizações relacionado com marcações geopolíticas, étnico-raciais e culturais, é um importante operador. Nesse sentido, necessitamos investir na descolonização do feminismo e de sua narrativa hegemônica, de forma a incluir a diversidade de experiências das mulheres e superar o binarismo entre teoria e prática (Figueiredo & Gomes, 2016). O feminismo negro, de acordo com Mercedes Velasco (2019), tem sido uma dessas vertentes que tem colocado em xeque as identidades essencializadoras, as quais não problematizavam a experiência da dupla opressão - de gênero e étnico-racial - vivenciada pelas mulheres negras. Angela Davis (2016) analisa que o movimento feminista negro surgiu da difícil intersecção entre dois movimentos: o abolicionismo e o sufragismo. Apesar de reconhecermos que o feminismo negro norte americano influenciou diversos autores pelo mundo, inclusive no Brasil, abrindo portas para outros feminismos e colocando o racismo no epicentro da desigualdade das mulheres negras (Velasco, 2019), concordamos com Luciana Ballestrin (2017), que as marcas deixadas pelo colonialismo e pela escravidão não foram homogêneas, produzindo consequências diversas numa escala geopolítica norte-sul global, inclusive de imperialismo norte-americano, desde meados do século XX. Portanto, necessitamos problematizar melhor de que feminismo negro estamos falando.

Apesar dessa diversidade de posturas, Maria Paulilo (2010) compreende que o termo feminismo, por si só, abrange um denominador comum, que é crença na capacidade das mulheres pela transformação social e pelo fim das assimetrias de gênero. Figueiredo e Gomes (2016) defendem também que a ideia de raça - e seus subconjuntos, o racismo e a desigualdade racial - continua a ser um fator importante para interpretar as desigualdades de gênero. A proposta de 'enegrecimento do feminismo' é, pois, uma proposta potente para pensar o protagonismo das mulheres quilombolas rurais. Segundo Sueli Carneiro (2011),

Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/ raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a "boa aparência", que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras. (p. 3)

É mais que oportuno, nesse momento que proliferam discursos sobre a não legitimidade das pautas feministas e antirracistas em nossa sociedade, intensificar os debates e as lutas em defesa da justiça social e da democracia, reivindicando novas identidades para as mulheres negras que se contraponham ao discurso hegemônico colonial, racista e sexista de mulheres (Velasco, 2019).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo vem reafirmar que a luta quilombola foi e continua a ser uma importante expressão da luta das populações negras. Seja durante o período escravista, no pós-abolicionismo, ou mesmo atualmente, a existência dos quilombos tem simbolizado a resistência negra à dissolução dos seus particulares modos de vida e de existência. Neste sentido, o reconhecimento é apenas um passo a ser dado na garantia de direitos. Nossas observações empíricas e entrevistas confirmam a centralidade do protagonismo das mulheres negras na luta quilombola, as quais têm produzido enfrentamentos em múltiplas situações e contextos. A liderança comunitária é uma dessas situações, senão a principal, a qual produz rebatimentos nas histórias de vida das mulheres, bem como deslocamentos nas relações sociais e de gênero.

Ao assumir espaços de lideranças, as mulheres passam por um intenso processo de transformação social e coletiva. Não resta dúvida que estabelecer esse espaço de luta, por meio de um conjunto de ações e táticas, implica operar no cotidiano um trabalho subjetivo que é ético e político. Ao serem chamadas a ocupar um lugar de luta como mulheres negras se deparam com o desafio de desmontar a naturalização de suas experiências singulares, de preservar sua cultura e de lutar por direitos negados historicamente. Nesse percurso, evidenciam-se preconceitos e inumeráveis formas de racismo, muitos dos quais estão profundamente arraigados nos modos como tornaram-se mulheres negras. Construir, micropoliticamente, novas discursividades ancoradas num posicionamento de luta e defesa não só de si mesma, mas de todas as mulheres negras, abre passagem para a ação política de forma mais ampla. Nos espaços coletivos, como o encontro de comunidades quilombolas que participamos, as mulheres têm oportunidade de conhecer a realidade de outras comunidades, seus direitos, confrontar discursos e compartilhar projetos visando à melhoria das condições de vida de suas comunidades, projetos que estão aliados às lutas antirracista, antissexista e pelos direitos da população negra.

Consideramos que o artigo atendeu ao objetivo proposto de resgatar e analisar os processos de luta pelo reconhecimento das comunidades quilombolas do RN, destacando o lugar das mulheres como lideranças políticas e comunitárias e da importância da sua atuação na organização das comunidades e na luta por direitos, além dos rebatimentos produzidos em suas próprias vidas. Entretanto, entendemos que há lacunas importantes nesse estudo, especialmente no que se refere à trajetória de vida dessas mulheres e as singularidades que atravessam as diferentes dinâmicas comunitárias nas quais estão inseridas. Há em seus relatos indícios importantes de que tais singularidades, aliadas as suas diferentes histórias de vida, impõem a necessidade de estudos que visibilizem as diversidades que povoam as diferentes comunidades quilombolas, contribuindo para aprofundar os estudos sobre o campo de estudos dos feminismos negros e a luta política das populações quilombolas.

 

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Recebido em: 22/04/2020
Aprovado em: 12/06/2020
Financiamento: Projeto de pesquisa financiado pela Chamada Pública Universal 01/2016 do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq.

 

 

1 http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551
2 http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra-andamentoprocessos-quilombolas_quadrogeral.pdf
3 https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101657
4 A desintrusão visa regular áreas quilombolas por meio da desapropriação de ocupantes não quilombolas no perímetro das terras ocupadas por quilombolas, tendo em vista a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural dessa população. http://portal.incra.gov.br/?q=/tree/info/file/2674
5 No campo jurídico, um importante exemplo é citado por Fernanda Vieira, Mariana Trota e Flávia Carlet (2017) em que proprietários e grupos empresariais sob a alegação de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos, valendo-se do argumento que tais comunidades não são remanescentes, desvelando um campo jurídico muitas vezes alheio às demandas por justiça social.

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