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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Raça e racismo: histórias ficcionais de corpos negros na universidade

 

Race and racism: fictional stories of black bodies at university

 

Raza y racismo: historias ficticias de cuerpos negros en la universidad

 

 

Leonardo Régis de PaulaI; Luciana RodriguesII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. leonardoreggis@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. lurodrigues.psico@gmail.com

 

 


RESUMO

A imagem do corpo negro, como protagonista no espaço universitário, tem se tornado mais frequente no decorrer dos últimos anos. Conquista que ocorreu a partir das lutas marcadas pela coletividade e ancestralidade que atravessam o Movimento Negro Brasileiro. Contudo, a trajetória da corporalidade negra na universidade, também, tem sido marcada por experiências cotidianas de racismo. Nesse sentido, com o objetivo de discutir a interface raça e racismo no universo acadêmico, deslocamos a experiência do racismo para o terreno das narrativas ficcionais situando-as no campo das problematizações - campo que assumimos como método para desnaturalizar campos do saber hegemônicos ligados a colonialidade e aos sistemas de dominação, como a supremacia branca, que operam sobre nossos corpos negros. Assim, narrar, como ferramenta analítica, assume o lugar da produção de resistência em nossa escrita. É a através delas que buscamos afirmar a importância das práticas antirracistas, também, no âmbito da universidade.

Palavras-chave: Raça; Racismo; Ficção; Psicologia Social; Universidade.


ABSTRACT

The image of the black body, as a protagonist at the university, has become more frequent in recent years. This achievement took place from the struggles marked by collectivity and ancestry that cross the Brazilian Black Movement. However, the trajectory of black corporeality at the university has also been marked by everyday experiences of racism. In this sense, with the aim of discussing the interface between race and racism in the academic universe, we shift the experience of racism to the terrain of fictional narratives, placing them in the field of problematizations - a field that we assume as a method to denaturalize hegemonic fields of knowledge linked to coloniality and the systems of domination, such as white supremacy, that operate over our black bodies. Thus, narrating, as an analytical tool, takes the place of the production of resistance in our writing. This way, we seek to affirm the importance of anti-racist practices, also within the university.

Keywords: Race; Racism; Fiction; Social Psychology; University.


RESUMEN

La imagen del cuerpo negro, como protagonista en el espacio universitario, es más frecuente en los últimos años. Logro alcanzado a partir de las luchas marcadas por la colectividad y la ascendencia que cruzan el Movimiento Brasileño Negro. Sin embargo, la trayectoria de la corporalidad negra en la universidad ha estado marcada por el racismo cotidiano. Con el objetivo de discutir la interfaz de la raza y el racismo en la universidad, cambiamos la experiencia del racismo al terreno de las narrativas ficticias, colocándolas en el campo de las problematizaciones que asumimos como un método para desnaturalizar los campos de conocimiento hegemónicos vinculados a la colonialidad y los sistemas de dominación, como la supremacía blanca. Aquí, la narración, como herramienta analítica, toma el lugar de la producción de resistencia en nuestra escritura. Así buscamos afirmar la importancia de las prácticas antirracistas, también, dentro de la universidad.

Palabras clave: Raza; Racismo; Ficción; Psicología Social; Universidad.


 

 

Corporalidades negras

Quando nos deparamos com narrativas de vidas experienciadas pela pele negra, seja ela de uma condição econômica social privilegiada ou não, de identidades de gênero subalternizadas, de diversidades na tonalidade de pele ou, até mesmo, nas territorialidades periféricas ou centralizadas, encontramos biografias atravessadas por marcas históricas do colonialismo no contexto latinoamericano. Assim, como aponta Jaqueline da Silva (2020), "o racismo não blinda, nem poupa seus alvos, não importa a ascensão social, reconhecimento intelectual ou qualquer outro elemento de status convencionalmente aceito" que, dependendo das intersecções como gênero e classe que possam constituir o corpo negro, irão produzir efeitos diferentes. Grada Kilomba (2019) em Memórias da Plantação, discute a impudência que a branquitude tem ao criar características fantasmagóricas de como a negritude deve ser representada. Esta representação relaciona, no imaginário social, a figura da pessoa negra marcada por estereótipos que minimizam a sua condição de humanização.

No Brasil, o impacto da discriminação por cor/raça tem suas raízes na escravização. Foram mais de 300 anos de escravatura, sendo o último país do mundo a aboli-la. Dados do Projeto Slave Voyage1 apontam o Brasil como o país que teve o maior número de africanos escravizados desembarcados de navios negreiros. Como discute Carlos Moore (2012), o racismo surge a partir da experiência da xenofobia, onde um povo se sente hierarquicamente superior ao outro, através de uma ordem racializada. Nesse sentido, a construção da ideia de raça foi fundamental não apenas ao processo de colonização europeia sobre os povos do sul, mas à globalização da colonialidade que sustenta nosso sistema-mundo (Grosfoguel, 2012). O racismo é, portanto, estrutural e está conosco desde a chegada dos portugueses por nossas terras. E em nossa constituição como país, o Brasil extrapola o que chamamos de preconceito, uma pré opinião formada, sem base, sem ponderação e sem conhecimento dos fatos, o que é diferente da discriminação racial que é "um produto de uma dinâmica em si: dinâmica geradora de 'espaços vazios' e que é necessariamente etnocida e genocida" (Moore, 2012, p. 226).

Desde o sequestro de africanos, o genocídio da população negra sempre esteve em voga como política de ataque ao corpo indesejado. Abdias do Nascimento (2016), em seu livro O Genocídio do Negro Brasileiro, discute as estratégias de branqueamento da população brasileira através do processo de miscigenação fundamentado na exploração sexual da mulher negra. O objetivo era criar uma população "mulata", pois dessa forma a raça negra iria desaparecendo progressivamente, a partir do embranquecimento da nação. No pós-abolição, o abandono das populações egressas da escravidão, bem como de seus descendentes, também foi ferramenta do projeto de branqueamento do Brasil, pois através desse abandono, estimava-se que o país iria se livrar de seu "sangue negro". Teorias eugenistas acabavam se tornando convenientes para as elites brasileiras, pois, assim, seria possível legitimar e naturalizar as hierarquias sociais existentes no Brasil, mesmo após o fim da escravização (Santos, 2019).

As barreiras para a população negra acessar direitos sociais básicos a qualquer cidadão/ã brasileiro/a remontam, assim, as desigualdades raciais estabelecidas pelos efeitos da escravização e práticas de uma política genocida. As dificuldades de acesso de negros/negras as oportunidades de destaque na nossa contemporaneidade vão além do que pode ser materializado em palavras. Milton Santos  (1997) denuncia essa ausência da população negra ser tida como cidadã no Brasil. O autor indaga que cidadãos são aqueles que podem gozar de direitos reconhecidos e respeitados universalmente, na qual o Estado deveria ser o provedor. No entanto, num país onde a maioria da população é descendente de africanos, as dinâmicas racistas da nossa sociedade empurram o corpo negro para o lugar de desemprego, subemprego, analfabetismo, encarceramento em massa, subnutrição, fome e doenças que assolam sobremaneira os negros, que são reflexos de uma ideologia excludente (Kalckmann, Santos, Batista, & Cruz, 2007). Este movimento que é imposto ao corpo e carne negra, falam de experiências doloridas daqueles/las que chegam aos espaços tidos como pertencentes aos brancos (Souza, 1983). O espaço universitário tem se tornado um exemplo de território reivindicado pela negritude, mesmo sendo cotidianamente negado por uma supremacia branca e elitista.

A imagem do corpo negro como protagonista no espaço universitário tem sido mais frequente no decorrer dos últimos anos, nos quais o ingresso de pessoas negras foi possível através da reserva de vagas determinada pela Lei Federal nº 12.711/2012. A conquista da implementação das ações afirmativas se deu a partir das lutas e intervenções marcadas na coletividade e ancestralidade da raça pelo Movimento Negro Brasileiro, denunciando a ausência de negros e negras nos cursos superiores brasileiros. A pressão realizada pelos movimentos negros resultou em um comprometimento do Estado brasileiro em criar estratégias concretas através de políticas de reparação a desigualdade racial no Brasil. Foi em Durban, na África do Sul, durante a Conferência Mundial de número três contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas correlatas de Intolerância organizada pela Organização das Nações Unidas, em 2001, que as ações afirmativas começaram a ser pensadas e tomar corpo no Brasil (Carneiro, 2011). Desta forma, a concretização de haver mais negros e negras entrando em universidades públicas em nossa conteporaineidade, marcando a busca da popularização do lugar do negro como produtor de saber e intelectualidade, se dá através de um processo de luta. A possibilidade de escrever nossa história é o resultado da potência da raça frente ao racismo.

O negro foi o responsável por tornar tema aquilo que não era considerado uma questão acadêmica, um problema científico. O pesquisador negro, ele que sempre foi nomeado negro, por isso, problematizado por "não ser branco". O negro passou a nomear o branco, como branco. O negro sempre coisificado. O negro catalogado como o objeto tradicional científico se deslocou para o lugar de cientista e posicionou o branco no lugar de "objeto"/tema de pesquisa. (Cardoso, 2018, p. 2)

Como diz o autor, a produção científica negra, assim como, a sua prática pedagógica que permitem o acesso a uma literatura antirracista, gera desconforto negando uma intelectualidade negra. A hegemonia da produção de conhecimento no Brasil e América Latina tem sua história cravada na cultura colonizadora, sustentada por uma epistemologia eurocentrada (Grosfoguel, 2012) que representa a constituição performática dos processos formativos, de produção e controle das subjetividades. A herança "eurocentralizada" coloca em prática a hierarquização dos corpos, sobretudo uma inferioridade do corpo racializado (Santos, 2018). A universidade, neste jogo, se solidifica como um pilar fundamental a colonialidade através do seu racismo/sexismo epistemológico e do fundamentalismo eurocêntrico que produz esta hierarquia epistêmica global que, por sua vez, se reproduz pelo sistema-mundo por meio da globalização da universidade ocidentalizada (Grosfoguel, 2012). Neste contexto, dialogar sobre a colonialidade, enquanto campo problemático, é questionar a tendência de desvalorização de saberes e conhecimentos das chamadas sociedades periféricas, evidenciando narrativas e concepções originadas no passado e que se mantém no presente de forma imutável (Meneses, 2010; Omidire, 2018).

As vivências negras no cenário acadêmico surgem na memória. Assim, Kilomba (2019) relata experiências decorrentes do processo de escravização de pessoas negras não como algo do passado, mas como memórias vivas enterradas na nossa psique, prontas para serem contadas. Desta forma, o objetivo deste texto é trazer a tona através de narrativas ficcionais a interface raça e racismo no corpo negro no âmbito universitário. Se, por um lado, temos a experiência difícil e dolorosa da permanência no âmbito acadêmico decorrente do racismo, por outro, temos a potência de encontrar a resistência que nos une pela cor e carne em um aquilombamento da raça. No campo de onde partimos para essa escrita, o campo da Psicologia Social, a escrita ficcional tem gradativamente conquistado o seu espaço na produção de conhecimento. Este movimento tem permitido ao/à pesquisador/a criar novas técnicas de articulação com seu campo que dão passagem a problematizações antes impossibilitadas pelas normatizações e durezas do saber formalizado da ciência estrita (Costa, 2014). Neste sentido, a ficção possibilita o/a pesquisador/a assumir uma desobediência epistêmica (Kilomba, 2019) que o permite, mesmo não sendo historiador/a, mergulhar com seus personagens em trajetórias que tocam à escrita da história de muitos corpos. "Ele/a próprio/a tornar-se-á testemunha de testemunhas, sendo sua própria pesquisa um dispositivo para fazer falar e dar a ver aquilo que ficou entalado em muitas gargantas" (Fonseca, Costa, Cardoso, & Garavelo, 2015, p. 228). Ressaltamos que, neste trabalho, o campo da Psicologia Social e das Relações étnico-raciais aparece com destaque nas histórias ficcionais, por ser tratar de um campo muito próximo da experiência dos autores - um psicólogo, mestrando negro e uma psicóloga, professora universitária negra de pele clara.

 

Raça e racismo: Corporalidades negras na universidade

Quando nos deparamos com a leitura do texto de Grada Kilomba (2019), 'Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano', chegamos em uma das partes onde a autora traz um relato pessoal de um dos seus primeiros dias na universidade durante seu doutorado em Berlin. Foi na biblioteca de psicologia que ela ouviu "Você não é daqui, é? A biblioteca é apenas para estudantes universitárias/os!" (p. 62). Bom, pessoas brancas podem dizer que isso pode ter sido uma causalidade, pois a mesma nunca tinha ido na biblioteca, que seria normal uma cena dessa acontecer. Pessoas negras sabem o que isso quer dizer. É pelo efeito do racismo que elas aprendem, desde pequenas, a saírem do mercado com a nota fiscal, mesmo que já tenham sido perseguidas e vigiadas durante as compras dos seus pais, por seguranças. Esta experiência é marcada na psique do sujeito negro no Brasil. Ir ao mercado e não ser perseguidos e vigiados por seguranças é um privilégio da branquitude.

Experienciar a universidade com o corpo negro perpassa muitos episódios de "Você não é daqui". A trajetória de uma pessoa negra no ambiente acadêmico, assim como em muitos outros, ainda que não seja somente isto, passa por experiências cotidianas de racismos. Neste caso, é preciso salientar que racismo não é apenas chamar alguém de macaca/o ou outras situações explícitas de discriminação racial. A branquitude usa do seu lugar de privilégio para se isentar da discussão acerca do racismo colocando este como problema do negro. Este é um assunto evitado pelos brancos, pois os mesmos saíram da escravização com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho da população negra (Bento, 2002). Em contrapartida, para as pessoas negras, esta experiência é sentida no corpo, tornando-as impotentes diante destas situações não explícitas e veladas de discriminação. Neste contexto, a sensação de impotência da pessoa negra é igual ou maior do que a vivida diante da agressão física, pois as vítimas não encontram acesso a recursos e a apoios adequados para se protegerem das violências vividas (Kalckmann et al., 2007). Lázaro Ramos (2017) em seu livro Na Minha Pele, levanta essa questão a respeito de que todo mundo conhece alguém que foi discriminado, mas que ninguém assume a posição de se dizer racista2. O autor ainda discute que no contexto brasileiro não se tem vergonha de ser racista, e sim se identificar como racista.

Kabengele Munanga (2017), discutindo as especificidades do racismo no Brasil, nos fala sobre as dificuldade dos/as brasileiro/as entenderem e decodificarem as peculiaridades do racismo à brasileira. O autor defende que o racismo em nosso país tem características diferentes dos demais modelos de organização social que se constituíram explicitamente racistas ao longo da história da humanidade. Nestes contextos, o racismo foi explícito, institucionalizado e oficializado pelas leis de seus respectivos países. Já no Brasil, o racismo é implícito, nunca institucionalizado ou oficializado. Desta forma, os/as brasileiros/as não se consideram racistas quando comparados com Estados Unidos, Alemanha e África do Sul. Nesse caso, o racista acaba sendo o outro, não o eu. Essa voz surge da crença de uma democracia racial, um mito, uma verdadeira realidade, uma ordem. Desta forma, o autor aponta o racismo implícito e velado como sendo um dos problemas cristalizados na população brasileira que dificulta o reconhecimento e uma confissão sobre ser racista, assim como, sobre se perceber cometendo atos racistas.

Grada Kilomba (2019) discute a recusa que, no racismo, é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão racial, caminho pelo qual o sujeito branco se valida da sua figura universal para apontar o sujeito negro como o que está ali para roubar o que é seu. Na academia, este outro (pessoas negras e indígenas) é boicotado por aqueles que são tidos como os donos da estrutura institucional (sujeitos brancos). Estes processos são externalizados da psique branca e projetados em situações concretas do âmbito acadêmico.

Nesses processos, a ausência de escritoras negras e escritores negros nos currículos brasileiros dizem de mais uma negação, ou melhor, mais do que uma negação do sujeito negro no espaço acadêmico. Podemos perceber, a partir da nossa experiência no campo da formação em psicologia, alunas e alunos de graduação inseridos em um processo de ensino e aprendizagem que não se reconhecem dentro das teorias que são abordadas ao longo de sua formação. Esta prática das instituições de educação do país engloba uma seletividade localizada de saberes. Jéssyca Barcellos (2016), ao realizar análises de currículos das graduações de psicologia situadas na cidade de Porto Alegre e região metropolitana, acerca de disciplinas que abordam a temática racial, constatou uma negligência sobre este tema. Na sua pesquisa, dos dezoito currículos analisados, seis apresentaram a temática racial em alguma de suas disciplinas, sendo que em cinco currículos a temática aparece de forma optativa/eletiva. Neste sentido, Sueli Carneiro (2005) afirma a seletividade desses processos como estratégias de um epistemicídio. Para além de uma desqualificação, estes movimentos expõem uma desvalorização dos/as negros/as como seres humanos pensantes/racionais e uma invisibilização como produtor cultural. Ou seja, como aponta a autora, não são apenas distinções do conhecimento, mas um aniquilamento do próprio sujeito do conhecimento.

No imaginário branco hegemônico, pessoas negras ainda são tidas como incapazes de disputar espaços na universidade por ainda serem vistas como mão-de-obra barata. Este pensamento faz parte da herança que é carregada e atualizada desde a escravização (e mantida até nossos dias hoje pela lógica da colonialidade) que engrossa as fileiras do mundo do trabalho informal e do subemprego. No entanto, como mencionamos acima, no combate a essas lógicas coloniais e racistas, se encontra a implementação das ações afirmativas. E é a partir da política de cotas, que a graduação universitária em poucos anos tem sentido o impacto do que é ter um aluno negro e uma aluna negra em sala de aula. Questões raciais antes invisibilizadas passaram a ser apontadas, tirando brancos e brancas da sua zona de conforto e problematizaram o local de privilégio destes sujeitos. Neste sentido, podemos reconhecer o empoderamento da negritude, também, através do lugar de fala, conceito que nos é apresentado pela filósofa Djamilla Ribeiro (2017) como "o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social" (p. 64).

Neste caminho, os programas de pós-graduação também começaram a investir em políticas de ações afirmativas para pessoas negras. Reconhecendo a conquista que tais ações de reparação possibilitam as populações negras de nosso país precisamos, também, nos interrogar sobre o que se coloca em jogo e quais os efeitos decorrentes desses processos de inclusão/exclusão. Nesses espaços, frequentemente, a presença de discentes negras e negros tem sido cooptada pelo que Joice Berth (2020)3 denomina como tokenização, ou seja, o uso de pessoas negras como escudos para escamotear a evidência de comportamentos racistas. Este comportamento está inserido na mesma lógica pela qual a branquitude procura justificar o seu não racismo utilizando-se de discursos pelos quais alega ter amigos/as negros/as ou, até mesmo, ter um relacionamento amoroso com uma pessoa negra. Como já mencionamos, o racismo é estrutural no nosso país e, portanto, ele se expressa tanto em práticas institucionais, como individuais. A autora aponta, também, a tokenização como um mecanismo de negação psíquica e rejeição da realidade utilizado por pessoas brancas para não lidarem com um problema político que afeta a formação de subjetividade.

Outra justificativa para não se dizer racista é considerar o ato discriminatório como uma brincadeira. Adilson Moreira (2018) pontua o racismo recreativo como uma política cultural que permite a pessoas brancas acionarem o discurso humorístico para expressar a sua hostilidade em relação a questões raciais, afirmando, entretanto, que não são racistas. Achille Mbembe (2017), por sua vez, chama de nanorracismo essa

forma narcótica do preconceito em relação à cor expressa nos gestos anódinos do dia-a-dia, por isto ou por aquilo, aparentemente inconscientes, numa brincadeira, numa alusão ou numa insinuação, num lapso, numa anedota, num subentendido e, é preciso dizê-lo, numa maldade voluntária, numa intenção maldosa, num atropelo ou numa provocação deliberada, num desejo obscuro de estigmatizar e, sobretudo, de violentar, ferir e humilhar, contaminar o que não é considerado como sendo dos nossos. (Mbembe, 2017, p. 95)

Ancoradas nas relações coloniais e no patriarcado, as universidades ainda sustentam um referencial branco, masculino, capitalista, hetero(cis)normativo como válido para a produção de conhecimento, funcionando a partir de rotas masculinizadas às quais as mulheres precisam adequar-se frequentemente. As experiências da maternidade são um dos exemplos nos quais vemos mulheres serem afetadas diretamente pela lógica produtivista acadêmica, tendo que, muitas vezes, adiarem seu percurso, são julgadas/menosprezadas pelo meio e suas regulamentações excludentes, seja por decisão mais ou menos calculada ou pelas barreiras e dificuldades que forçam a isto. Contudo, as experiências de ser mulher na universidade não são homogêneas para brancas e negras.

As opressões de gênero aliam-se às de raça, que reservam à mulher negra um lugar social oriundo da escravização e, portanto, do olhar de brancas sobre negras como suas serviçais, uma mucama (Gonzales, 1984). Dessa maneira, ainda que as mulheres precisem lidar com a masculinização dos espaços acadêmicos, as desigualdades referentes à raça conformam que as mulheres negras sejam mais atingidas por processos de violência sustentados, inclusive, por mulheres brancas - principalmente quando estas ocupam um lugar privilegiado na hierarquia acadêmica. Estarmos assim, atentos/as às relações estabelecidas no jogo acadêmico é não ignorar os modos pelos quais a colonização foi tão bem sucedida que incidiu, não apenas sobre territórios geográficos, mas também territórios existenciais (Veiga, 2019).

Articulando reflexões de sua vivência como mulher negra com a experiência coletiva vivenciada pela população negra em sua sociedade, bell hooks (2019a) nos fala sobre sua escolha em deixar de utilizar o termo racismo em suas análises sobre a dor e exploração de pessoas negras e não brancas pelos sistemas de dominação. Em sua experiência, a autora nos conta como começou a compreender que o termo mais útil para dar conta dessa discussão seria o de supremacia branca. Utilizando como exemplo a relação que seus colegas, professores acadêmicos brancos, estabeleciam com ela, bell hooks (2019a) nos mostra como eles queriam muito ter "uma" pessoa negra no departamento "deles", mas desde que essa pessoa seguisse as condições estabelecidas por eles, como ter o mesmo modo de pensar e o compartilhamento de seus valores e crenças.

Foi a partir de situações como essa, junto às vivências de sua participação no movimento feminista, que a fez pensar na necessidade de compreendermos tais processos a partir da lógica da supremacia branca: termo difundido na sociedade como ideologia e comportamento que nos permite entender, inclusive, como pessoas negras não só possam ser socializadas para incorporar estes valores, como exercer o "controle supremacista branco" sobre outras pessoas negras. Como possibilidade de caminharmos em direção a superação desse sistema de dominação, bell hooks (2019a) aponta a importância da educação para compreendermos a supremacia branca a partir de uma consciência crítica, pois pessoas negras não nascem com a compreensão inata do racismo, e suas estratégias de opressão - lembrando que a luta para superar a supremacia branca é também uma luta que envolve o enfrentamento ao sistema de dominação capitalista e patriarcal.

Embora a universidade se concretize como um ambiente opressor para a corporalidade negra tanto para homens e mulheres, mesmo que tenham especificidades que diferem, existem potências étnicas e raciais coletivas que ressignificam a academia. Quando vemos o nosso nome no listão como resultado/conquista de um concurso de vestibular (muitas vezes, sendo o primeiro ou a primeira pessoa negra da família a entrar na universidade), não imaginamos e idealizamos o contexto de desprezo e ódio que a branquitude introjeta nas subjetividades negras, resultando num doloroso processo de auto-ódio (Veiga, 2019). Aos poucos essa espécie de seleção natural universitária vai unindo, através da exclusão que produz, pessoas negras que se juntam como uma forma de permanência e resistência neste espaço. A busca por sobrevivência é coletiva: "a negritude foi tudo isso: busca de nossa identidade, afirmação do nosso direito a diferença, aviso dado a todos do reconhecimento desse direito e do respeito à nossa personalidade coletiva" (Césaire, 2010, p. 113).

Neste sentido, tomar o lugar da escrita é tomar também o lugar da vida, conforme nos diz Conceição Evaristo (2005): vidas que importam. Neste seguimento, narrar é nossa ferramenta de análise, narrar é o nosso dispositivo de luta e sobrevivência, nela reinventamos nossa realidade tornando-as ainda mais real, complexa, densa e intensa. "A ficção fia mundos onde a confiança ultrapassa a fidedignidade sem perder realidade" (Costa, 2014, p. 553). Assim, as narrativas ficcionais tomam, aqui, o lugar da produção de resistência no campo das problematizações. Ressaltamos que entendemos a problematização como método de desnaturalizar os campos do saber hegemônicos, ligados a colonialidade e aos sistemas de dominação que operam em nossa sociedade, para que, a partir dessa operação, possamos produzir rachaduras em verdades que, com o tempo, se tornam cristalizadas.

Quando deixamos de considerá-lo como uma evidência e passamos a constituí-lo como um campo problemático, vemos que o social é essencialmente um objeto construído e produzido a partir de diferentes práticas humanas e que não cessa de se transformar ao longo do tempo. (Silva, 2004, p. 13)

Esta discussão dialoga com as crenças que a branquitude empregou na imagem das pessoas negras. Muitas pessoas brancas, ainda hoje, acreditam que são superiores comparadas a pessoas negras. Estas narrativas são corroboradas pelos resquícios da produção de racismo científico que, por exemplo, encontramos nas práticas eugênicas e higienistas que se utilizaram de recursos validados pela ciência para classificar os humanos em raças superiores e raças inferiores, raças puras e as outras, sendo a supremacia racial branca a referência do belo ou puro. Desta forma, invocamos uma outra ciência composta de narrativas e ficções para dar conta de problematizações referente às relações étnico-raciais no campo acadêmico, a partir de nossa experiência no campo da Psicologia Social. Narrativas que partem do encontro com o 'pretuguês' de Lélia Gonzalez (1984). Ou seja, neste trabalho assumimos a nossa própria fala, fala que está impregnada na lata de lixo da sociedade brasileira. Narrar tem sido, pra nós, o encontro de experiências que só a pele negra pode unir, pois "o encontro entre negros e negras é cura" (Veiga, 2019, p. 248). E é por essa busca de cura, que agora "o lixo vai falar, e numa boa" (Gonzales, 1984, p. 225).

A construção das narrativas surge de fragmentos de vidas (que passam pelas nossas próprias vidas). Vidas que diversas vezes são silenciadas e naturalizadas como consequência da supremacia branca, que se conectam com outras intersecções do corpo negro na academia. Assim, esses relatos não são somente ficção, eles falam de anos e anos de muitos de nós neste ambiente. O processo criativo parte de uma coletividade compartilhada, é a partir desses relatos ficcionais que partem de uma não-ficção (como todas as ficções) que se materializaram as narrativas que seguem abaixo: gritos de resistência de nós na universidade. Entretanto, não faremos aqui uma análise detalhada das narrativas, elas, por si só, já colocam questões que precisam ser discutidas de uma forma ampla e abrangente com as comunidades acadêmicas a respeito das violências que são acometidas a população negra neste espaço. Desta forma, convidamos todos/as para lerem e refletirem a partir de tais experiências e criarem suas próprias análises a partir da sua experiência, seja ela a partir da branquitude ou negritude.

 

Histórias Ficcionais de Corpos Negros

As migalhas do mundo

- Você não consegue nem ficar vermelho ignorando a desigualdade desse Brasil, branco safado.

Eu cresci numa das vilas de Porto Alegre, minha mãe era diarista, meu pai trabalhava com reciclagem, tinha um ferro velho. Desde criança, meu sonho era ser médica. Eu não lembro como isso começou, mas lembro o quão ele foi presente na minha infância. Minha mãe dizia que ser médica não era coisa para preta, nunca havia visto uma da minha cor na vida. A patroa da minha mãe achava bonitinho ver uma negra com sonho tão lindo de ser doutora, me passava também a impressão de que isso ficaria em desejo, me passava isso nas sutilezas. Lembro de um dia em que fui ajudar a minha mãe a limpar a casa dela depois de uma festa que teve por lá, ela disse que eu tinha um talento enorme pra seguir na carreira da minha mãe: de limpar o chão onde branco pisa e faz bagunça.

A patroa tinha um filho que era um ano mais velho que eu, ele também tinha o sonho de ser médico, na verdade eu não sei se o sonho era realmente dele, minha mãe dizia que quem queria isso era a patroa. Minha mãe se rasgava de elogios para ele, dizendo que era um menino muito inteligente, vivia estudando. Logo no primeiro ano do ensino médio ele já começou a estudar pro vestibular. Tinha uma vida regrada de academia, estudos, terapia e meditação. Um legítimo playboy da zona sul. Ele passou de primeira no vestibular pra medicina. E eu? Eu ajudei a minha mãe a limpar a festa dele de comemoração. Eu estava indo pro terceiro ano, último ano na escola e o que me colocaria no mercado de trabalho, especificamente, como caixa de supermercado. Minha mãe era uma pessoa bem relacionada no morro e minha vaga já estava praticamente certa.

A patroa da minha mãe ia jogar fora todas aquelas apostilas de cursinho pré-vestibular, o playboy queria fazer uma fogueira. Foi neste momento, minutos antes do fogo começar, que eu pedi pra ficar com algumas. A patroa, com ar de deboche, lembrou que eu também queria ser médica, me deu as apostilas carregadas de piedade. Eu não me importava com isso, no fundo também aceitava que não poderia ser médica. Foi neste sentido que comecei a ler os livros das leituras obrigatórias do vestibular daquele ano, cada vez mais me apaixonando pela literatura. Os livros me levaram pra outro lugar, para o mundo da psicologia. Eu não sei dizer bem como isso começou, só sei que uma leitura levava a outra. Pensei, vou ser psicóloga. Estudei muito a partir dos materiais do playboy. No outro ano, eu calei e evoquei o grito da favela: virei uma bixo psicologia da universidade federal do meu estado. Minha mãe não acreditava. A patroa da minha mãe dizia que era sorte. A favela vibrava comigo.

Foi um longo caminho, fui crescendo e me tornando uma referência dentro do complexo aqui da minha comunidade. Construímos um cursinho popular para o ingresso de pessoas como eu na faculdade. Esse percurso não foi fácil, vivi muitas experiências na faculdade que faziam eu lembrar a patroa da minha mãe. Professoras e professores universitários de anos de carreira com mestrado, doutorado, pós-doutorado e especializações pelo mundo me olhavam com o mesmo olhar dos patrões. Passei por violências que realmente eu não precisava ter vivido. Ser negro no país não é fácil, mas ser negra é muito pior. Me tornar uma psicóloga com a minha pele, minha carne, fez eu pensar que é possível mudar o mundo. Eu acredito nisso, mas é impossível pensar essa mudança sem sofrimento. Eu sofri, ainda sofro, minha cor impossibilita muitas vezes das pessoas acreditarem que eu sou psicóloga. Hoje trabalho no centro da juventude da minha comunidade como psicóloga, trouxe o conhecimento pra cá, o conhecimento que faz sentido para os meus. Eu não consegui me tornar a médica que eu sempre sonhei, mas me sinto realizada na minha escolha e na possibilidade de ver os 'pretinhos e pretinhas' aqui do morro se tornando o que eles querem ser, inclusive médicos e médicas. Foi com essas palavras que encerrei o discurso no dia em que me formei no Salão de Atos, da minha universidade, lotado. Eu nunca esquecerei desse dia, eu nunca esquecerei da força negra que me colocou onde eu estou hoje.

Mestrando Infeliz

- Não vai, precisamos de você aqui. Esta universidade é tua!

- Se eu não for agora, eu não vou mais em lugar nenhum na vida.

Onde estão os dias de glória dessa luta? Passei em último lugar no vestibular pra psicologia na minha universidade. Eram quarenta vagas, nove para ações afirmativas. Eu fui o quadragésimo. Pra minha família isso pouco importava, o que valia mesmo era ter passado. O ano foi 2014, na real, nem me lembro o que aconteceu de fato naquele ano. Entretanto, 2013 foi um ano tenso pro Brasil e pra mim. Foi um ano que eu pensei em entregar os pontos do que chamamos de vida. Bah, não gosto nem de lembrar. Podia tá em uma ruim agora. E não estou? Não sei.

Passei no vestibular. Não entrei na universidade com o pé direito, porque quando entrei nem sabia que já tava dentro. Nem sabia que aquele pátio grande onde eu usava para cortar caminho era uma universidade. Eu sabia o que era uma universidade, sabia que ali era uma universidade, mas não sabia. Entende? Cursei durante seis anos um curso que na maneira que eu me identificava com ele, ele tentava de todas as formas possíveis me tirar dali. Esses seis anos foram de porrada. Ser negro em uma universidade é botar a cara pra apanhar. E a gente apanha, como apanha. Eu queria muito chegar no topo. O topo que eu digo é sair dali com o diploma. Eu consegui! Iludido... eu não quis parar por aí...

Tu sai da graduação e cai no mundo do trabalho que não tem trabalho pra preto que ousou se formar. A universidade te impulsiona em continuar nela, fazer um mestrado, residência, ir ficando... Com sorte, talvez ter uma bolsa de pós graduação, mas tem que ter sorte mesmo, tão cortando tudo! Mas, mesmo assim, tá valendo pelo restaurante universitário, o famoso RU, e pela meia passagem no busão. Sabe aquelas piadinhas que as crianças vão pra escola só por causa da merenda? No ensino superior tem gente que vive isso também, sabia? A gente se sujeita por muitas coisas pra ter um prato de comida por menos de dois reais e pagar meio vale transporte. Pra quem não tem nada, ter RU e pagar meia passagem já é alguma coisa. Nossas prioridades, às vezes, não é de ser o pica das galáxias, ter mestrado e doutorado, até porque sabemos que esse rolê é de privilégios, quem chega e continua é os playba e patricinha desconstruides. Acho massa os manos que querem isso, que lutam e conseguem, mas tem que ter estômago pra aguentar.

Eu comecei esse role de mestrado. Cara, que inferno. Eu comecei. Fui na boa pra fazer o meu. Cara, eu só queria fazer o meu e sair com esse título pra ter mais oportunidades aí fora. O meu orientador começou a pegar no meu pé, o cara não me largava de mão. Olha, que nesse mestrado eu tirei em primeiro lugar, não sei nem como, mas consegui. Na real eu sei, estudei pra caramba! Estudei porque era a minha única alternativa naquele momento. Aquele preto fudido que entrou no vestibular em último lugar, agora, é o primeiro.

Sabe que, por tu ser preto, as coisas contigo não são explícitas. Eu sofria pelas sutilezas de um racismo à brasileira. Cara, as coisas são pesadas, só quem passa por isso sabe. Não gosto nem de lembrar daquelas brincadeirinhas dele. Cara, sem noção aquelas piadas. Nossa, como doía essas paradas. O pior de tudo é que a gente sempre se questiona se isso é coisa da nossa cabeça ou racismo. O negócio era tenso, fui ganhando demandas de trabalhos maiores que meus colegas brancos. Eu era o único negro do grupo de pesquisa. Eu sofria boicotes, ganhava a maior parte dos trabalhos, mas sempre ficava fora dos trabalhos de maior prestígio. Eu ficava com os trabalhos mesmo que ninguém queria, não porque eu escolhia, porque me era designado. Eu era o exótico. Visualiza só, o exótico, cara! Põe na mesa de abertura dos eventos pra fazer figuração, mas não fala. O professor adorava falar que agora o programa de pós-graduação estava abrindo as portas pra pessoas que nem eu, que era muito bom ter um cotista negro no grupo. Eu entrei em primeiro lugar, não sou cotista. Um preto modelo, um escudo pra ninguém acusar aquele programa de pós-graduação de racista.

Eu pulei fora. Nem com bolsa dava pra aguentar. Parece que subir de nível é deixar mais explícito esse bagulho de racismo. Nossa, mano. Não consegui. Eu comecei a sofrer mano, aquele escroto do meu orientador nunca entendeu as merdas que ele fazia pra mim. Nunca entendeu mano. Eu tentei ser didático. Ele chorava e dizia que aquilo não era racismo. Era racismo sim!!! Eu me questionava se era racismo, mas mano, o racismo é tão foda que até nisso ele me pegou. Era racismo sim! Eu comecei a tomar umas medicações, antidepressivos, ansiolítico e uns rolê pesado. Tava morrendo de medo de recair na cocaína. Antes de entrar na universidade eu tive um passado tenso. Cara, esse professor não aceitava as minhas propostas de projeto. Ele dizia que pegaria mal ficar vendo racismo em tudo. Que eu deveria largar de mão pesquisas com o rolê de negritude, que eu tinha que fazer um trabalho sério. Mano, ele queria que eu pesquisasse uns role nada vê comigo. Larguei fora.

Meu orientador me adoeceu. O programa de pós-graduação me adoeceu. Eu explanava esse rolê, ninguém dava bola. A instituição sempre tem um lado, esse lado não é o nosso. Nunca é nosso. São tudo cobra criada, uns protegem os outros. Que doença. Isso é racismo institucional. Mano, tenho título de psicólogo, mas nem dinheiro pra pagar a anuidade pra carteirinha pra eu conseguir trabalho eu tenho. Ainda tô na asa da minha mãe, mas prefiro estar lá do que esses trouxas me enlouquecerem e fazer eu perder a vida. Eu vou voltar pro meu slam, pra minha comunidade. Eu preciso das minhas raízes pra me fortalecer.

 

Aborto legalizado

- Uma mulher branca não consegue imaginar uma mulher negra não trabalhando.

Uma psicóloga feminista e antirracista. Essa era a forma que eu me apresentava nos locais por onde eu passava. Às vezes eu nem precisava me apresentar, meu corpo dizia tudo. Meu sangue é de preta batuqueira. Mulher negra que vai com a cara erguida para o topo. Nunca fui de levar desaforo para casa. Nos corredores do prédio acadêmico, me chamam de nega barraqueira, isso só porque não deixo ninguém pisar em uma mulher negra e sair ileso. Me colocam como a vilã da história, quem vê até pensa...

Foi em agosto que eu descobri que estava grávida. Foi uma surpresa, eu não esperava, mas eu gostei da ideia de ter uma criança. Meu companheiro estava gostando da ideia também. Eu estava indo para o terceiro mês. Segundo ano do doutorado. Minha vida estava uma loucura, estava pensando em fazer doutorado sanduíche, comecei a recalcular a minha vida. Eu tinha que, ao menos, nesses próximos seis meses, fazer o meu projeto de pesquisa para, no retorno, me dedicar ao campo. Minha pesquisa é sobre mulheres negras perigosas, um campo que tem interface com os presídios femininos e manicômios pelo Brasil.

Minha gravidez foi tomando corpo, meus pés foram inchando, minhas pernas carregando o peso do mundo. Eu tinha feito mestrado e duas especializações. Quando entrei no doutorado, estava no auge. Eu estava sendo chamada para eventos nacionais e internacionais, publicando muito e naquele momento tudo que eu precisava era descansar. Minha orientadora branca, com seus lindos cabelos loiros e olhos azuis, começou a agir diferente comigo quando eu engravidei, ainda mais quando comecei a me ausentar da minha produtividade.

Eu não tinha problema nenhum em parar, tudo que eu queria era cuidar da minha saúde e ter essa criança que já fazia parte dos meus planos. Comecei a dar um "chega para lá" naquela mulher, ela não me deixava em paz. Até na minha casa ela foi capaz de vir para me cobrar trabalho, dizia que estava indo me visitar para ver como eu estava, mas só falava de trabalho. Eu comecei a dizer para o porteiro não deixar ela entrar, dizer que eu não estava, mas, na verdade, ela sabia que eu já estava em um nível que não conseguia mais sair de casa. Mesmo assim, seguia me perseguindo...

Essa professora sempre me assediou, eu que não tinha tempo para pensar. Na minha caixa de e-mail só tinha mensagem dela, no meu celular só tinha mensagem daquela mulher, até mandar recado por amigos ela me mandava. Só me dei conta quando ela driblou o porteiro para me levar uns papéis para assinar para uma publicação de uma revista. Foi o dia que eu joguei os cachorros nessa mulher, mandei ela sair da minha casa. Eu estava de repouso por indicação médica, estava nem aí para o meu projeto de pesquisa, não estava nem aí para publicação. Eu só queria terminar a minha gravidez em paz. Não deu outra, o sangue escorreu no meio das minhas pernas. Foi estresse demais, foi tensão demais, foi assédio demais, foi racismo demais. Por ora, eu perdi.

 

A carne mais barata do mercado não tá mais de graça

Não Tá Mais de Graça é umas das narrativas contemporâneas mais sensacionais que nós negros e negras ganhamos no ano de 2019, sendo ela escrita por Rafael Mike e interpretada na voz de Elza Soares. A faixa do seu álbum Planeta Fome (2019) é uma releitura atual da canção A Carne, gravada pela cantora nos anos 2000. Elza Soares empresta sua voz para o processo criativo-artístico-político onde as canções retratam críticas de um mundo em que, como ela diz em uma das letras de seu novo álbum, "lutar por seu direito é um defeito que mata". Não Tá Mais de Graça tece o sentimento do corpo negro sobre a negritude, é a mais sincera inspiração, inclusive, para materializar esse texto.

O processo criativo da trilogia de narrativas, aqui apresentadas, é inspirado em vidas e mortes do mundo real acadêmico que extrapolam uma trama complexa da realidade e se transformam em fantasia. São histórias de sofrimentos cotidianos que carecem de algumas doses de invenção para serem suportadas. É o medo de não poder mais gritar essas mentiras verdadeiras. É uma junção de uma busca incessante pela imaginação e fuga da realidade das barreiras de tornar-se negro (Souza, 1983), sobretudo, uma pessoa negra intelectual em um país antinegro. É o delírio criativo de dizer que o branco é o causador do sofrimento negro. É a lembrança da máscara eterna e invisível do colonialismo em nossas bocas. O escape psíquico do lugar de carne mais barata do mercado.

Mas, como canta Elza Soares, representamos aqui o recado dado em melodia: "o que não valia nada agora vale uma tonelada". Sabemos quem somos, nos apropriamos da nossa história e dos nossos direitos. As instituições de ensino superior precisam garantir espaços qualificados de educação das relações étnico-raciais para o enfrentamento do racismo e a valorização de conhecimentos negros através de uma práticas antirracistas. As universidades, assim como toda a nossa sociedade, precisam adotar uma política antirracista que contraponha a ordem racial estabelecida pelo mundo. Precisamos acolher e enfrentar a interrogação que nos coloca Sueli Carneiro (2011):

Em termos de saúde mental, o que significam um ego e uma subjetividade inflados pelo sentimento de superioridade racial?... Nesse sentido, a desconstrução da brancura como ideal de ego da sociedade é imperativo para a libertação e cura de todos: negros, brancos, indígenas, orientais. E talvez nisso resida o papel mais estratégico que os psicólogos têm a cumprir. (Carneiro, 2011, p. 81)

Precisamos compreender que as questões e efeitos gerados pelo racismo e pelo mito de uma democracia racial brasileira não podem ser apenas discutidos e enfrentados como luta da população negra. O racismo, ao contrário do que muito já se foi falado, não é um problema do negro, não foi inventado por nós. Neste sentido, a Psicologia Social, ancorada em uma ética e política antirracista, tem um papel importante na desconstrução e problematização das hierarquias de poder construídas em nossa sociedade, assim como sobre seus efeitos nas práticas e relações que se configuram a partir dessas mesmas hierarquias que, no Projeto Moderno e Colonial, foram estabelecidas em uma ordem racializada que tem como referencia a supremacia branca. Esse movimento de problematização é de grande relevância tanto para campo da Psicologia Política, como para todos aqueles que se propõe ao exercício crítico e o enfrentamento ao racismo que assola as relações brasileiras, pois uma política e uma educação, efetivamente, antirracistas dependem, como nos falam Sueli Carneiro (2011) e bell hooks (2019a), da desconstrução e superação da supremacia branca por todos e todas nós - o que significa que pessoas brancas necessitam pensar os privilégios de sua branquitude. Mas não a partir da construção de uma solidariedade política que sustente aos/as brancos/as a manutenção de uma narrativa de vitimização compartilhada que, como nos alerta bell hooks (2019b), continua a posicionar pessoas brancas no centro da discussão, além de obscurecer o modo como a dominação racista afeta grupos marginalizados.

Portanto, o trabalho antirracista, a solidariedade a ser construída nesse processo, não precisa estar embasada em uma experiência de vitimização compartilhada, em que pessoas brancas se voltariam para o quanto são, também, feridas pelo racismo. Como aposta a autora, uma educação antirracista pode (e deve) estar enraizada no entendimento ético e político do racismo e da rejeição à dominação de alguém - postura pela qual seja possível às pessoas brancas abrirem mão de privilégios sem precisar se verem como vítimas (bell hooks, 2019b).

Desse modo, lançamos aqui nossa provocação: convidamos as pessoas brancas a saírem desse lugar de onde se sentiriam vítimas do racismo (lembrando, não há racismo reverso!) para que, assim, seja possível um deslocamento na estrutura de dominação. Deslocamento que implica uma mudança da questão de "Eu sou racista?" para "Como eu posso desmantelar o meu próprio racismo?". Esta pergunta que, por si só, já dá lugar a um processo de consciencialização e desconstrução do racismo não como uma etapa moral, mas psicológica (Kilomba, 2019). Despertar a branquitude desse feitiço tem se revelado uma tarefa desafiadora de pessoas conscientes dos processos de dominação da supremacia branca - pessoas negras, sobretudo, e também brancas (Ribeiro, 2019). Como pontua Milton Santos (conforme citado por Mello, 2016, online) "A luta dos negros só pode ter eficácia se envolver todos os brasileiros, inclusive os negros, mas não só os negros. Não cabe aos negros, aliás, fazer essa luta".

 

Referências

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Submissão: 05/06/2020
Aceite: 22/11/2021

 

 

1 Projeto que disponibiliza um banco de dados sobre o Tráfico de Escravos no Transatlântico: https://www.slavevoyages.org/
2 Kabenguele Munanga (2017) nos chama a atenção sobre o racismo cordial brasileiro ao se referir ao resultado de uma pesquisa científico-jornalística realizada em 1995, em parceria estabelecida entre o jornal Folha de São Paulo e o Instituto Data Folha, na qual 89% dos entrevistados aceitaram a existência do racismo, mas apenas 10% afirmaram conhecer pessoas que discriminam ou terem se reconhecido como tendo discriminado.
3 Texto publicado por Joice Berth na sua página do Instagram chamado: Tokenização. https://www.instagram.com/p/B8WXtWpHO_Z/?igshid=13hzbuo33wrdb

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