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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dez. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Movimentos migratórios no Brasil: desafios para as políticas públicas de saúde e assistência social

 

Migratory movements in Brazil: challenges for public healthand social assistance

 

Movimientos migratorios en Brasil: desafíos para las políticas de salud pública y asistencia social

 

 

Betina HillesheimI; Camilo DarsieII; Gisele DheinIII; Douglas Luís WeberIV; Caroline da Rosa CoutoV; Letícia Aline BackVI; Guilherme Vendruscollo WerlangVII; Giulia Netto LöblerVIII

IDoutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS. Email: betinahillesheim@gmail.com
IIDoutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS. Email: camilodarsie@unisc.br
IIIDoutorado em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS. Email: gidhein@gmail.com
IVDoutorado em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS. Email: douglasluis94@hotmail.com
VMestrado em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS. Email: caroline.r.couto@outlook.com
VIMestrado em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS. E-mail: leticiaaback@gmail.com
VIIMestrado em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS. Email: guilhermevwerlang@hotmail.com
VIIIGraduanda em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul/RS. Email: g_nettolobler@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo aborda as relações entre migração, saúde e assistência social no Brasil. A problematização dessas questões salienta a forma como o Brasil coloca-se diante das novas ondas migratórias, bem como evidencia os desafios das políticas públicas brasileiras em relação ao acolhimento e ao acompanhamento dos(as) imigrantes no país. Através da revisão bibliográfica e documental, considerando as legislações que normatizam as migrações e o acesso às políticas públicas, busca-se tensionar as ações previstas nas leis e o panorama no qual se encontram os(as) imigrantes. O crescente fluxo de migrações, globalmente, destaca a necessidade de promoção do acesso às políticas públicas que contemplam os(as) migrantes, conforme ressaltam as discussões internacionais. Assim, no limite, a migração vem se constituindo como um determinante às políticas e às estratégias de saúde e de assistência social, especialmente nos países de acolhimento, consequentemente, no Brasil.

Palavras-chave: Migrações; Políticas Públicas; Saúde; Assistência Social; Brasil.


ABSTRACT

This article addresses the hip between migration and health and social assistance in Brazil. The problematization of these issues highlights the way in which Brazil faces new migratory waves, as well as the challenges of Brazilian public policies regarding the reception and monitoring of immigrants in country. Through a bibliographical and documentary review, considering the laws that regulate migration and access to public policies, we seek to stress the actions provided for in the laws and the panorama in which immigrants find mselves. The growing flow of migrations, on a global scale, highlights the need to promote access to public policies that contemplate migrants, as highlighted by international discussions. Thus, migration has become a determinant of health and social assistance policies and strategies, specially in host countries like Brazil.

Keywords: Migrations; Public policy; Healthcare; Social Assistance; Brazil.


RESUMEN

Este artículo hace un abordaje a la relación entre migración, salud y asistencia social en Brasil. La problematización de estás cuestiones hacen enfoque en la forma como Brasil encara las nuevas olas migratorias, también nos muestra los desafíos de las políticas públicas brasileras en lo que se refiere al acogimiento y acompañamiento de los inmigrantes en el país. Por medio de la revisión bibliográfica y documental, se busca tensionar las acciones previstas en las leyes y el estado en el que se encuentran los inmigrantes. El creciente flujo de migraciones, apunta para la necesidad y promoción del acceso a políticas públicas que contemplan a los migrantes, conforme destacan las discusiones internacionales. Así, al límite, la migración viene siendo un determinante para las políticas, estrategias de salud y de asistencia social, especialmente en los países que acogen, consecuentemente, en Brasil.

Palabras claves: Migraciones; Políticas Públicas; Salud; Asistencia Social; Brasil.


 

 

INTRODUÇÃO

As migrações contemporâneas têm ganhado importância cada vez maior no contexto das discussões internacionais, cujas pautas articulam, entre outras questões, os desafios econômicos e humanitários que envolvem o tema. Um dos principais disparadores para tais discussões é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e, contemporaneamente, o Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular (Intergovernmental Conference to Adopt the Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration, 2018), estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e assinado por mais de 160 países1. De acordo com o Pacto, torna-se necessária uma abordagem cooperativa entre os países, de modo a potencializar os benefícios oriundos dos movimentos migratórios, diminuir os riscos enfrentados pelos migrantes e, ainda, ajudá-los a vencer os desafios enfrentados nos países de origem, de trânsito e de destino.

É interessante destacar que o aumento relativo às migrações internacionais se origina a partir daquilo que autores como David Harvey (2001) apontam como a tendência ao encurtamento das distâncias absolutas entre as nações, tendo em vista os avanços tecnológicos relacionados à comunicação e aos transportes, especialmente após o advento da globalização. Isso oportunizou um aumento gradativo no que se refere ao número de pessoas que se deslocam internacionalmente.

Neste sentido, a ideia de que o fluxo de pessoas (e de produtos) estaria associado ao desejo de ascensão econômica, de oportunidades ligadas ao mercado de trabalho e, ainda, pautado pelas condições financeiras que garantiriam aos indivíduos o deslocamento internacional e a permanência em outros países de modo digno, articulou-se a diversos outros interesses, entre eles, a garantia de sobrevivência. Entre as causas dessa transformação, encontram-se os conflitos nacionais internos, bem como desastres e adversidades naturais.

Alexandro Portes (2004), ao discutir os estudos sobre o denominado transnacionalismo, sublinha que se trata de uma nova perspectiva, mas não um novo fenômeno; entretanto, o surgimento de novas tecnologias de informação e transporte possibilitaram que os migrantes contemporâneos tenham um incremento de práticas transnacionais, mediante diferentes relações de trocas econômicas, culturais ou políticas entre países de origem e destino. Entretanto, o autor afirma que nem todos os migrantes são transnacionais, sendo que vários estudos têm mostrado que apenas uma minoria envolve-se regularmente em atividades transnacionais. Nessa perspectiva, o envio de remessas em dinheiro para familiares nos países de origem ou visitas ocasionais não podem ser categorizadas como práticas transnacionais. Por outro lado, o autor aponta que, mesmo que em proporção reduzida, as diferentes atividades transnacionais - por exemplo, compra de imóveis, envio de remessas, viagens entre países etc. - podem ter um impacto econômico ou cultural significativo, visto que países de emigração têm estimulado tais práticas como estratégia de aquecimento econômico. Além disso, é importante marcar que não há uma oposição entre práticas transnacionais e assimilação no país de destino, pois, muitas vezes, são os migrantes mais bem estabelecidos (que, em geral, já possuem condições econômicas e educacionais melhores em seus países de origem) que conseguem realizar tais atividades, tendo, inclusive, uma melhor integração no país de acolhida.

Nesse sentido, estudos do campo migratório (Braga, 2021; Portes, Haller, & Fernandez-Kelly, 2008) realizados nos Estados Unidos, direcionam as análises para os processos de assimilação cultural, ancorando-se em estudos longitudinais, os quais comparam diferentes gerações de migrantes. Esses estudos apontam que, embora tenham processos de assimilação distintos entre as gerações, a marcação identitária "ser filho de imigrante" e/ou "ser imigrante" acompanha mesmo os nascidos em território estadunidense, fato agravado se comparados os países de origem. Imigrantes latinos apresentam, historicamente, maiores dificuldades de assimilação (cultural, econômica e educacional) (Portes et al., 2008).

Desse modo, as rotas migratórias passaram a sofrer alterações de acordo com as transformações ocorridas nos status econômicos e políticos de diversos países e, principalmente, pela necessidade dos(as) migrantes em relação às condições de sobrevivência em novos lugares. Pode-se pensar, nesta perspectiva, que, na contemporaneidade, grande parte dos(as) migrantes se deslocam em função de condições não satisfatórias de vida e segurança e, portanto, contam com o apoio público oferecido pelos países de destino, fato que direciona a escolha em relação aos percursos a serem seguidos.

Nesse contexto, o Brasil, que no período colonial e imediatamente pós-colonial, recebeu grandes contingentes de imigrantes do eixo norte, dadas as possibilidades de trabalho e oportunidades de ascensão econômica, especialmente de países como Portugal, Itália, Japão e China, voltou a ganhar notoriedade no cenário internacional voltado às migrações a partir de 2011, no que tange à entrada de migrantes em seu território. Isso aconteceu após um período fortemente marcado por emigrações, que chegam a somar 3 milhões de brasileiros(as) vivendo em outros países2. A partir disso, o Brasil deixou de ser reconhecido majoritariamente no cenário internacional como país de emigração, passando a figurar também como destino da imigração, fazendo-se presente nas principais discussões que ocuparam as agendas políticas internacionais sobre migrações ao longo dos últimos anos.

As condições específicas que levaram a essa mudança estão relacionadas aos movimentos brasileiros no que se refere a questões econômicas e à legislação em vigência no país. O Brasil foi considerado um território profícuo para imigrantes durante um determinado período, que coincide com o aquecimento econômico pelo qual o país passou até o ano de 2015 e com a dificuldade de acesso que outros países da América Latina impuseram aos migrantes. Assim, nos últimos anos, além de migrantes oriundos de países como Portugal, China, Japão e Itália - historicamente estabelecidos -, aumentaram os registros da entrada de imigrantes de outros países, o que pode ser identificado, por exemplo, nos números de pedidos de refúgio disponibilizado (Silva, Cavalcanti, Oliveira, Costa, & Macedo, 2021), os quais mostram que, em 2020, a entrada de migrantes solicitantes de refúgios3 da Venezuela, Haiti, Cuba, China, Angola, Bangladesh, Nigéria, Senegal, Colômbia, Síria, entre outros. Cabe destacar ainda que, segundo os autores supracitados, o ano de 2019 foi um ano recorde em termos de registros de solicitações de refúgio no país (82.552), tendo em vista a série histórica iniciada a partir da regulamentação do estatuto do refúgio no Brasil. Patrícia Villen (2020), ao analisar as questões migratórios no contexto da crise política e econômica brasileira, alerta que os estudos ainda são iniciais e não permitem entender claramente os impactos sobre os fluxos migratórios e a inserção dos migrantes no país, apontando que, no contexto atual, é difícil sustentar que a crise interromperia os fluxos de entrada e saída de migrantes. Assim, apresenta dados que evidenciam que os fluxos que mais sofreram redução na entrada no Brasil foram de pessoas com um perfil mais qualificado, sendo que os fluxos "emergenciais" (pedidos de vistos humanitários, solicitações de refúgios, migrantes indocumentados) mostram uma continuidade e, até mesmo, um aumento.

Neste contexto, é importante destacar que o direcionamento dos movimentos migratórios para o país foi impulsionado, para além dos motivos destacados, pela necessidade e por meio de acordos de ajuda humanitária. O Brasil se tornou, em um dado momento, um país que oferecia aos(às) migrantes a possibilidade de acolhimento por meio de políticas públicas capazes de oferecer o suporte necessário para aqueles que chegavam sem recursos.

Considerando tais questões, embora o percentual de estrangeiros(as) em território brasileiro gire em torno de 0,4%, um índice bastante baixo se comparado a outros países, o Brasil iniciou uma discussão importante no que tange às regulamentações de entrada de estrangeiros(as) em seu território, que culminou com a Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017, nomeada como Lei de Migração. Destaca-se que esta lei revogou o até então vigente Estatuto do Estrangeiro (1980) cunhado sobre as diretrizes da segurança nacional da ditadura militar, ocorrida entre 1964 e 1985. Enquanto o antigo Estatuto, aprovado pelos militares, tratava o(a) imigrante como uma suposta ameaça à segurança nacional, a nova Lei, por sua vez, propõe regular ações para que os(as) imigrantes não sejam vitimados pela xenofobia.

Estima-se que o número de imigrantes no Brasil, em 2017, atingiu 707.438 registros, dos quais cerca de 449.174 são considerados imigrantes de longo termo e 245.110 constituem a estimativa de imigrantes temporários. Essas nomenclaturas se referem às documentações solicitadas pelos(as) imigrantes no país: imigrantes de longo termo são aqueles com previsão de estada de longa duração, abarcando as classificações de vistos permanentes, residentes e outros; já os(as) imigrantes temporários têm registros de entradas de curta duração (Cavalcanti, Oliveira, & Macedo, 2018).

Partindo disto, o controle dos(as) imigrantes no Brasil, atualmente, é realizado de duas formas: diretamente, pela Polícia Federal, que está presente nas fronteiras, nos portos e nos aeroportos, com o objetivo de assegurar que a entrada de pessoas em território nacional se dê dentro das condições estabelecidas em lei; e, indiretamente, por um conjunto de mecanismos de controle internos, que envolvem as relações de trabalho, possibilidades de residência e estudo, bem como o acesso às políticas públicas - que permitem o acompanhamento e a consequente regulação dos(as) imigrantes em território brasileiro.

Tendo em vista tais considerações, este artigo objetiva problematizar, a partir das legislações em vigência que dizem respeito aos(às) migrantes e ao acesso destes às políticas públicas de Saúde e de Assistência Social, os desafios que a presença de imigrantes coloca para as políticas públicas do Brasil, especialmente no sentido de garantia de acesso e qualidade de assistência.

 

PERCURSO METODOLÓGICO

O percurso metodológico realizado para a produção do presente texto remete à análise documental das legislações brasileiras relacionadas aos processos migratórios, a partir de três eixos:

1. Migrações: Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017, chamada a Lei de Migrações do Brasil.

2. Saúde: Constituição Federal de 1988, principalmente nos artigos que vão de 196 a 200 e que se referem à saúde como um direito de todos; Lei nº 8080 de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências; Lei nº 8142 de 1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.

3. Assistência Social: Resolução 33 de 12 de dezembro de 2012, que aprova a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS.

A partir destes documentos, foi realizada uma problematização acerca do tema, como nos propõe Michel Foucault (2012), o qual compreende que "trabalho de reflexão filosófica e histórica é retomado no campo de trabalho do pensamento com a condição de que se compreenda a problematização não como um ajustamento de representações, mas como um trabalho do pensamento" (p. 227). Ou seja, busca-se tensionar as ações previstas nas leis e os cenários encontrados acerca dos(as) migrantes no Brasil, problematizando-se as formas pelas quais ocorre o seu processo de inclusão no país. Ressalta-se que tais discussões são resultados parciais de um projeto de investigação intitulado Migração e processos de in/exclusão4, o qual se volta para a análise das discussões legislativas em nível municipal referentes aos processos migratórios contemporâneos, sendo que, no recorte aqui apresentado, é realizada uma análise dos documentos federais que dão suporte para as decisões e ações que são implementadas nos municípios.

 

DESAFIOS DOS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS NO BRASIL PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Os fluxos migratórios têm produzido as mais diversas posturas dos governos envolvidos com a acolhida das pessoas que migram. Como já afirmado, a migração não é um fenômeno recente; no entanto, as catástrofes "naturais"5 que têm ocorrido nos últimos anos, as guerras civis em curso e as questões político-econômicas e religiosas de determinados países têm intensificado os processos migratórios, que também passaram a ser mais comuns devido à porosidade das fronteiras políticas que, até então, eram mais rígidas. Associada a isso, a escala global se tornou a dimensão das possibilidades de deslocamento, visto que as distâncias entre as nações, conforme apontado anteriormente, podem ser relativizadas pelas oportunidades de acesso aos mais diferentes meios de transporte e, principalmente, pelo estabelecimento da noção de possibilidade de trânsito em percursos de longa distância. Assim, Zygmunt Bauman (2017) aponta que a mídia tem veiculado com insistência a ideia de uma 'crise migratória', a qual é colocada como passível de destruir os modos de vida atuais nos países receptores, ou de reorganizar questões culturais e identitárias em especial na Europa, gerando um sentimento de medo geral, que o autor nomeia como pânico moral.

O efeito disso, muitas vezes, é um posicionamento - tanto de governantes como da população - de afastamento e/ou enfrentamento, especialmente, por meio do fechamento de fronteiras ou o impedimento de acesso aos direitos mínimos para quem migra. No Brasil, até 2017, as migrações internacionais eram regulamentadas por normativas com enfoque na segurança nacional, posto que o(a) migrante era visto como uma ameaça à ordem.

Com isso, houve dois redirecionamentos quanto à atenção ao(à) migrante, antes da lei sancionada em 2017: (a) em um primeiro momento, seguiu-se o modelo americano e da União Europeia, no sentido de regularização dos(as) estrangeiros(as) residentes no país. Entretanto, tal conduta não propunha uma "política migratória clara, que abarcasse, ao menos, os eixos da regulação, integração e cooperação internacional, seja qual fosse o viés ideológico que orientasse tais políticas" (Oliveira, 2017, p. 172); (b) o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) passou a emitir normativas e resoluções isoladas, conforme as questões que emergiam, não abordando a questão com a profundidade requerida, embora o país tenha aderido a medidas internacionais que tinham por objetivo proteger e garantir os direitos dos(as) imigrantes, como, por exemplo, a Convenção Contra o Crime Organizado e o Tráfico de Pessoas.

Deisy Ventura (2014) aponta que a política migratória brasileira foi se constituindo pela garantia da discricionariedade do Estado, que estabelece quem são os(as) bem-vindos(as) e aqueles(as) não bem-vindos(as) no território. Com a Lei nº 13.445 (2017), o Brasil, ao romper com o Estatuto dos Estrangeiros, anunciou uma nova legislação com ênfase nos direitos da população imigrante. Nesse sentido, a nova lei dispõe sobre a garantia, por exemplo, da "inclusão social, laboral e produtiva do migrante, por meio de políticas públicas" e sobre a "promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil", vetando o ingresso de quem já tenha em algum momento "praticado ato contrário aos princípios e objetivos da Constituição Federal", além de prever a expulsão de indivíduos migrantes por determinados crimes.

Antonio Tadeu Oliveira (2017) aponta que essa lei representa um significativo avanço, tanto para os(as) migrantes que já estão no país quanto para aqueles(as) que chegarão, e, até mesmo, para os(as) brasileiros(as) que forem ao exterior.

O maior avanço de todos, sem dúvida, foi acabar com o anacronismo do Estatuto dos Estrangeiros, aparato jurídico inspirado num regime de exceção, cuja base se assentava na doutrina da segurança nacional e que vigorava mesmo depois da aprovação da Constituição Democrática de 1988, que, entre outros objetivos, se colocava como missão sepultar os resquícios jurídicos da ditadura militar. O avanço mais geral reside na mudança de enfoque desse novo marco legal das migrações, agora com ênfase na garantia dos direitos das pessoas migrantes [grifo nosso], tanto dos estrangeiros que por aqui aportam quanto para os brasileiros que vivem no exterior. (Oliveira, 2017, p. 174)

Entretanto, necessário destacar que, apesar dos ditos avanços da Lei da Migração, José Alves Pereira (2020) frisa que houve mais de vinte vetos que prejudicaram o seu caráter humanitário, tendo partes importantes - relativas à reunião familiar, deportação, migrações fronteiriças, entre outras - classificadas como casos omissos, o que ocasiona a falta de critérios definidos para a tomada de decisões. Dessa maneira, tais questões acabam por ficarem à mercê de decisões do ministro da justiça e segurança pública ou de seus assessores imediatos.

Por sua vez, Sidney Guerra (2017) enfatiza que os direitos sociais, com a nova legislação, passam a ser garantidos. Deste modo, o acesso a serviços, programas e benefícios sociais e, também, à saúde - focos da discussão deste artigo - agora estão pautados e legislados aos sujeitos que migram. Ou seja, o avanço da lei reside, segundo autor, na consagração dos

princípios da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; não criminalização da imigração; não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional. Avançou também nos aspectos relativos à promoção de entrada regular e de regularização documental; acolhida humanitária; igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares etc. (Guerra, 2017, p. 1727)

Nessa perspectiva, o quarto artigo da Lei das Migrações (2017) é um ponto de partida importante para iniciarmos a problematização do acesso às políticas públicas de saúde e assistência social no Brasil:

Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:

I - direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos;

II - direito à liberdade de circulação em território nacional;

III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes;

IV - medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos;

V - direito de transferir recursos decorrentes de sua renda e economias pessoais a outro país, observada a legislação aplicável;

VI - direito de reunião para fins pacíficos;

VII - direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos;

VIII - acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória [grifo nosso];

IX - amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

X - direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória [grifo nosso];

XI - garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;

XII - isenção das taxas de que trata esta Lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica, na forma de regulamento;

XIII - direito de acesso à informação e garantia de confidencialidade quanto aos dados pessoais do migrante, nos termos da Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011;

XIV - direito a abertura de conta bancária;

XV - direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto pendente pedido de autorização de residência, de prorrogação de estada ou de transformação de visto em autorização de residência; e

XVI - direito do imigrante de ser informado sobre as garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização migratória6. (Lei n. 13.445, 2017).

Pode-se perceber, portanto, que a nova lei prevê ao(à) migrante o que a Constituição Federal (1988) e as Leis de número 8080 (1990) e 8142 (1990) já garantem para o(a) cidadão(ã) brasileiro(a). Enquanto o artigo 196 da Constituição Federal (1988) prevê a saúde como "direito de todos e dever do Estado [grifo nosso], garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação", a Lei complementar nº 8080 (1990), em seu artigo segundo, reforça a saúde como "um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício" e em seu primeiro parágrafo, assegura o "acesso universal e igualitário". E a Lei nº 8142 (1990), no artigo sexto, reitera o "direito de acesso da população aos serviços de saúde, a integralidade da assistência e à igualdade do atendimento".

Nesta direção, conforme argumentado por Denise Martin, Alejandro Goldberg e Cássio Silveira (2018), os cuidados em saúde constituem, muitas vezes, no Brasil, a inserção dos(as) imigrantes no que se refere aos serviços públicos e, consequentemente, a aproximação de tais pessoas às políticas públicas nacionais. Entretanto, apesar de ser um direito garantido pela legislação brasileira ao(à) imigrante, os autores apontam que as especificidades das culturas migrantes ainda são, em muitos casos, desconhecidas pelos(as) profissionais que os(as) atendem, ao mesmo tempo em que muitos(as) imigrantes desconhecem a forma como o cuidado em saúde é realizado no Brasil.

Tal situação segue na mesma direção do que foi apontado por Cristianne Maria Famer Rocha, Camilo Darsie, Ana Gama e Sónia Dias (2012) ao pesquisarem tópicos relativos aos acessos e tratamentos no sistema de saúde português, vivenciados por mulheres imigrantes. Destaca-se, portanto, que, mesmo que a legislação busque dar conta das possíveis demandas, há obstáculos que restringem a boa utilização do sistema de saúde pelos(as) imigrantes, e, muitas vezes associados às especificidades culturais, que não são consideradas na lei.

Entretanto, a questão do atendimento em saúde e a habilidade de considerar as especificidades dos(as) usuários do sistema de saúde são temas que vêm sendo debatidos. Partindo da Constituição Federal (1988) e da Lei nº 8080 (1990), o sistema de saúde deveria ser capaz de descentralizar suas ações de gestão e atendimento, de modo a garantir acessibilidade dos(as) usuários(as), levando em conta os mais distintos atravessamentos culturais. Apesar de exemplos relacionados a boas práticas em saúde, tal estratégia ainda se configura como um desafio, fato que, de certo modo, agrava as dificuldades de entendimento e contemplação de questões específicas que se associam à promoção da saúde, entre eles, questões linguísticas e culturais.

De acordo com um estudo realizado por Jenniffer Alves, Maria Angela Martins, Fabiano Borges, Cássio Silveira e Ana Paula Muraro (2019) com imigrantes haitianos(as) que residem na cidade de Cuiabá, foi possível compreender que a maioria dos sujeitos envolvidos no estudo relatou buscar serviços públicos de saúde quando necessário, e que o principal serviço utilizado foi a Unidade Básica de Saúde (UBS). Entretanto, as pesquisadoras destacam que tais imigrantes, em sua maioria, possuíam condições financeiras estáveis e maior tempo de residência no país quando comparados aos(às) que não acessam o sistema.

Mesmo considerando que o estudo foi realizado com um grupo específico de imigrantes que vivem no Brasil, ele sinaliza algumas pistas acerca de outras situações. Dessa maneira, ressalta-se que, em muitas circunstâncias, os(as) imigrantes, por desconhecerem as políticas públicas brasileiras ou por medo de serem denunciados(as) - especialmente nos casos de permanência irregular - aproximam-se das políticas públicas de saúde ou de assistência social apenas em situações extremas, como de doenças graves, por exemplo.

No que diz respeito às políticas públicas de assistência social no Brasil, é preciso apontar que, como assinalam Lilian Cruz e Neuza Guareschi (2009), comparativamente a experiência internacional, o país não se configurou como um Estado de Bem Estar, sendo que, até os anos 1930, as práticas assistenciais eram ações pontuais, reguladas pela noção de caridade, seja através da Igreja (especialmente a Igreja Católica) ou pelo próprio Estado. As autoras pontuam que, na trajetória brasileira no campo da assistência social, pode-se visualizar fases e alianças: "da filantropia caritativa à higiênica, disciplinadora, pedagógica profissionalizante, vigiada e de clientela" (Cruz & Guareschi, 2009, p. 17). Somente a partir dos anos 1930, com a tardia industrialização do Brasil, é que o Estado passa a assumir não somente funções coercitivas em relação à gestão da pobreza, mas também passa a regulamentar, organizar, educar e coordenar uma série de intervenções voltadas à denominada questão social.

Entretanto, foi a partir da Constituição Federal (1988) que houve um aumento da importância do papel do Estado e das instituições sociais para o fortalecimento democrático, sendo que houve, por parte dos movimentos sociais, um direcionamento para a institucionalização da ação política, mediante a criação de variados canais de participação, tais como conselhos, fóruns, redes etc. Nessa direção, houve uma modificação na concepção de assistência social, a qual passou a constituir, em conjunto com a saúde e a previdência social, a base da seguridade social, inspirando-se na noção de Estado de Bem Estar Social. Portanto, a Constituição Federal brasileira é considerada o marco histórico para a transformação da ideia da assistência social como caridade para uma noção vinculada ao direito e à cidadania, mediante seu caráter de política pública que se articula a outras políticas de proteção social e garantia de direitos (Cruz & Guareschi, 2009).

A partir disso, em 1993 foi aprovada, no Brasil, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), de número 8.742, na qual "a proteção social se coloca como um mecanismo contra as formas de exclusão social que decorrem de certas vicissitudes de vida" (Cruz & Guareschi, 2009, p. 28), sendo que uma das suas marcas é a proteção à família. Além disso, cabe ressaltar que, em 2005, houve a aprovação da regulação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o qual ratificou a ruptura com a noção de assistencialismo e estabeleceu, a exemplo do Sistema Único de Saúde, a descentralização político-administrativa como diretriz e níveis diferenciados de complexidade no que se refere à organização dos equipamentos públicos, instituindo três níveis: Proteção Social Básica (voltado à prevenção de situações de risco e ao fortalecimento de vínculos familiares e comunitários) e Proteção Social Especial (destinado àqueles que já estão em situação de risco e de violação de direitos, tais como maus-tratos, abuso sexual, trabalho infantil etc.). Para fazer frente a essas questões, foram organizados Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS).

Enquanto princípios organizativos, o SUAS prevê a universalidade, a gratuidade, a intersetorialidade e a equidade. Como afirmado anteriormente, estes princípios corroboram com os princípios que o sistema de saúde prevê, demonstrando a importância da intersetorialidade quando falamos em prevenção e cuidado - seja de saúde ou de garantia de direitos. Dessa forma, muitas ações de cuidado são articuladas entre os dois sistemas. Visto o propósito da universalidade em ambos, não há, dessa forma, restrições aos(às) imigrantes:

I. universalidade: todos têm direito à proteção socioassistencial, prestada a quem dela necessitar, com respeito à dignidade e à autonomia do cidadão, sem discriminação de qualquer espécie ou comprovação vexatória da sua condição;

II. gratuidade: a assistência social deve ser prestada sem exigência de contribuição ou contrapartida, observado o que dispõe o art. 35, da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 - Estatuto do Idoso;

III. integralidade da proteção social: oferta das provisões em sua completude, por meio de conjunto articulado de serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais;

IV. intersetorialidade: integração e articulação da rede socioassistencial com as demais políticas e órgãos setoriais;

V. equidade: respeito às diversidades regionais, culturais, socioeconômicas, políticas e territoriais, priorizando aqueles que estiverem em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social. (Norma Operacional Básica do SUAS, 2012).

Ainda, para sistematizar a proteção socioassistencial no âmbito da Assistência Social, em 9 de janeiro de 2004 foi sancionada a Lei nº 10.836, criando o Programa Bolsa Família (PBF). Este programa propõe-se à transferência de renda condicionada à população pobre, com a finalidade de erradicar a fome e a pobreza extrema. Para que as famílias sejam contempladas pelo programa, é necessário que obedeçam a uma série de condicionalidades que articulam as áreas da saúde e da educação. Por exemplo, as condicionalidades que se articulam à saúde exigem que nutrizes e crianças entre 0 e 7 anos incompletos sejam nutricionalmente acompanhadas e mantenham a agenda de vacinação em dia, e que as gestantes realizem consultas de pré-natal e de puerpério. No que concerne à educação, exige-se, de crianças e adolescentes entre 6 a 15 anos, a frequência mínima escolar de 85% da carga horária mensal. O não cumprimento de tais condicionalidades implica em efeitos gradativos, que podem levar ao desligamento da família do programa de transferência de renda.

Considerando a estrutura disponibilizada pelo SUAS e as ressalvas quanto ao acesso ao público migrante, é importante destacar o documento disponibilizado, em maio de 2016 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, intitulado: O papel da assistência social no atendimento a migrantes7. O referido documento se destina a sistematizar informações no que concerne aos direitos de acesso da população migrante à política de assistência social brasileira.

A partir do aumento da demanda de imigrantes, observou-se como necessidade reforçar a garantia de acesso a todos os níveis de atenção, incluindo aos programas de transferência de renda, como no caso do Bolsa Família. Nesse sentido, disponibilizou-se um ofício circular conjunto da Secretaria Nacional de Assistência Social e da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (2014) para o esclarecimento do cadastramento de estrangeiros no Cadastro Único.

No ofício mencionado, destaca-se o acesso às políticas públicas como direito de todos os(as) brasileiros(as) e estrangeiros(as) residentes legalmente no país. Ainda, esclarece uma série de fatores que precisam ser considerados no caso de imigrantes, tendo em vista a situação de maior vulnerabilidade em que os(as) mesmos(as) se encontram. Nesse sentido, o documento destaca que a constante mudança de endereço, recorrente no processo de estabilização dos(as) mesmos no país, não pode ser impeditivo de acesso, desde que os requerentes do benefício atualizem os dados, bem como reforça que a apresentação de um documento (certidão de nascimento ou casamento, RG, CPF ou carteira de trabalho) é suficiente para o preenchimento do cadastro (Ofício Curricular Conjunto, nº 2, 2014).

Considerando o último aspecto, de acordo com a pesquisa em andamento, realizada junto a um município do interior do estado do Rio Grande do Sul, observou-se, mediante acompanhamento do acolhimento a imigrantes em um CRAS, que o acesso aos documentos de legalização da situação no país se constituem como os primeiros desafios, tendo o idioma como fator associado. A busca por orientações e a necessidade de percorrer pelo menos dois serviços (CRAS e Polícia Federal) para o acesso aos documentos, acarreta certa morosidade ao processo e, consequentemente, uma demora maior na entrada ao mercado de trabalho e aos diferentes dispositivos das políticas públicas.

Além desse aspecto, o que é possível inferir é que os Centros de referência em Assistência Social, têm se apresentado como um dos principais serviços e estratégias de acolhimento a imigrantes, considerando, especialmente seu caráter intersetorial, tendo em vista a articulação com diferentes serviços da rede de atenção de acordo com a necessidade apresentada (educação, saúde e justiça).

 

CONSIDERAÇÕES

Entende-se que uma das principais conquistas, em termos globais, pós Segunda Guerra Mundial, tenha sido a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que traz, em seus trinta artigos, garantias de direitos mínimos, como livre-circulação, saúde, educação, dentre outros. Pautando-se nela, muitos países, inclusive o Brasil, têm construído legislações próprias para, efetivamente, receber em seu território pessoas e famílias que se sentem inseguras ou em condições precárias em seus países de origem.

É possível perceber que a previsão de um acesso universal, igualitário e equânime, tanto das políticas públicas de saúde quanto da assistência social garantem aos imigrantes a possibilidade de uma melhor qualidade de vida, embora tais aspectos não garantam a efetividade destes acessos, na medida em que é preciso uma série de garantias estruturais no processo de acolhida. Ainda, cabe ressaltar que a população migrante, em geral, é mais vulnerável social e economicamente, ficando mais exposta aos trabalhos precários e insalubres, bem como a condições de moradia inadequadas (Granada, Carreno, Ramos, & Ramos, 2017; Santos, 2016).

Beatriz Padilla (2017) reforça que as preocupações iniciais dos estudos dos campos migratórios nasceram da ótica "da saúde pública e da medicina tropical" (p. 274) na Europa. No entanto, este campo requer um olhar interdisciplinar, mesmo que, em um primeiro momento, os(as) imigrantes sejam recebidos como "o 'outro' portador de doenças raras, perigosas e contagiosas" (p. 274), há muitos outros elementos que precisam ser olhados e acolhidos, para além dos riscos associados.

Dessa forma, embora o Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social brasileiros já garantam a atenção integral aos(às) migrantes, a Lei de Migração veio para reforçar as ações de prevenção, promoção e reabilitação em saúde. Nas pesquisas realizadas por Douglas Weber (2017), Caroline da Rosa Couto e Betina Hillesheim (2018), Letícia Back (2019) e Fabiane Santos (2016), percebe-se que no Brasil o acesso às políticas públicas está previsto pelas legislações, mas que uma série de barreiras existem na efetiva implementação das mesmas. As dificuldades e barreiras que se encontram vão para além dos riscos associados às doenças que podem transmitir ou trazer de seus países de origem - embora recentemente o Brasil tenha perdido o status de país livre do sarampo, por exemplo. As dificuldades residem na comunicação (língua), nas questões religiosas e de gênero e, ainda, em fatores estruturais (Santos, 2016).

Como afirma Bauman (2017), "estranhos tendem a causar ansiedade por serem 'diferentes' - e, assim, assustadoramente imprevisíveis, ao contrário das pessoas com as quais interagimos todos os dias e das quais acreditamos saber o que esperar" (pp. 13-14). Ou seja, estes 'estranhos' que passam a coabitar e coexistir "transportam as más notícias de um canto distante do mundo para as portas de nossas casas" (pp. 20-21), nos relembrando da "vulnerabilidade de nossa própria posição e a endêmica fragilidade de nosso bem-estar arduamente conquistado" (p. 21).

Considerando tais aspectos, ainda cabe destacar que o fenômeno da crise migratória contemporânea impacta numa série de desafios para o país quanto à articulação efetiva das políticas públicas a esta população. Sendo assim, os estudos nesse campo também necessitam maiores investimentos, no intuito de instrumentalizar as estratégias de inclusão da população migrante, de modo que as equipes dos diferentes serviços de saúde e assistência social atuem no sentido de garantir o acesso igualitário junto às políticas públicas.

 

REFERÊNCIAS

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Submissão: 07/07/2020
Revisão: 18/03/2020
Aceite: 11/04/2020
Financiamento Financiamento: Edital Pesquisador Gaúcho/2019 (FAPERGS - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RS)

 

 

Contribuição dos Autores:
Concepção: BH, CD
Coleta de dados: GNL, DLW, LAB
Análise de dados: CRC, GD, BH, CD
Elaboração do manuscrito: BH, GD, GVW, CD, CRC
Revisões críticas de conteúdo intelectual importante: BH, GD, GVW, CD, CRC
Aprovação final do manuscrito: BH, CD
Consentimento de uso de imagem: Não se Aplica
Aprovação, ética e consentimento: Não se Aplica
1 Inicialmente, o Brasil comprometeu-se com o Pacto ao assiná-lo, em 19 de dezembro de 2018. Porém, o atual governo (2019-2022), de Jair Bolsonaro, anunciou, no dia 8 de janeiro de 2019, a saída brasileira do acordo.
2 https://migrationdataportal.org/data?i=stock_abs_&t=2017&cm49=76
3 Importante destacar que há diferentes nomenclaturas para se referir a indivíduos em deslocamento, tendo em vista os motivos que os levaram a migrar. Assim, o documento "Migrantes, apátridas e refugiados: subsídios para o aperfeiçoamento de acesso a serviços, direitos e políticas públicas no Brasil" (Ministério da Justiça, 2015) classifica os migrantes em 8 diferentes categorias: refugiados, solicitantes de refúgio, deslocados ambientais, imigrantes econômicos, imigrantes humanitários, apátridas, imigrantes em fluxos mistos e imigrantes indocumentados. Portanto, os pedidos de refúgio sinalizam somente uma parte dos fluxos migratórios.
4 O projeto foi contemplado pelo edital Pesquisador Gaúcho/2019 (FAPERGS) e é coordenado por uma das autoras deste texto, com a participação de outros professores de pós-graduação, mestrandos, doutorandos e bolsistas de iniciação científica. A pesquisa analisa os documentos das sessões das Câmaras de Vereadores de três municípios do interior do Rio Grande do Sul, buscando compreender como se dão os processos de inclusão e exclusão dos migrantes nas cidades.
5 O uso de aspas se dá porque há uma série de discussões que propõem a desnaturalização dos desastres, entendendo que aquilo que comumente denominamos de "naturais" são de ordem histórica e política. Nesta perspectiva, um seminário promovido na Fiocruz, denominado 'Desnaturalização dos desastres e mobilização comunitária: novo regime de produção do saber', problematizou, entre outras questões, o quanto os desastres são socialmente construídos e sua naturalização acaba por negar a participação humana tanto na sua ocorrência quanto nos seus efeitos (Chevrand, Moehlecke, & David, 2015).
6 Por tratar-se de uma legislação nacional, o Art. 4º da Lei das Migrações é apresentado integralmente, de modo a apresentá-lo aos(às) leitores(as).
7 https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Guia/guia_migrantes.pdf

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