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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dic. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Povos indígenas e luta por garantia de direitos no Piauí, Brasil

 

Indigenous peoples and the struggle for guaranteed rights in Piauí, Brazil

 

Los pueblos indígenas y la lucha por los derechos garantizados en Piauí, Brasil

 

 

Brisana Índio do Brasil de Macêdo SilvaI; João Paulo MacedoII

IDoutoranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre (2020) e graduada (2018) em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: brisanaindio@gmail.com
IIProfessor Associado 2 da Universidade Federal do Delta do Parnaíba - UFDPar. Doutor (2011) em Psicologia pela UFRN. Está vinculado aos Programas de Pós graduação em Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar) e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista PQ 2 do CNPq. E-mail: jampamacedo@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente estudo buscou refletir acerca do processo de mobilização étnica e política dos povos indígenas no Piauí, no intuito de conhecer as políticas públicas destinadas aos grupos indígenas no Estado; discutir o acesso de tais grupos aos serviços voltados à promoção dos direitos indígenas; e apresentar os avanços e impasses na operacionalização das políticas públicas propostas à população indígena piauiense. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, apoiada na produção de sentido no cotidiano, uma forma de fazer pesquisa em Psicologia Social. Participaram 20 lideranças, mediante os seguintes recursos metodológicos: observação no cotidiano; conversa no cotidiano; entrevista semiestruturada. Em suma, observa-se que por não corresponderem aos marcadores identitários reconhecidos pelos grupos dominantes da sociedade, os grupos indígenas do Piauí têm sido discriminados, oprimidos e marginalizados, sendo constantemente recolocados e vistos sob uma imagem colonial e estereotipada do que é ser indígena, que (re)produzem relações de colonialidade no âmbito das relações institucionais e sociais.

Palavras-chave: Povos indígenas; Indianidade; Ação política; Políticas públicas; Colonialidade.


ABSTRACT

This study sought to reflect on the process of ethnic and political mobilization of indigenous peoples in Piauí, in order to know the public policies aimed at indigenous groups in the State; discuss the access of such groups to services aimed at promoting indigenous rights; and present the advances and impasses in the implementation of public policies proposed to the indigenous population of Piauí. This is a qualitative research, supported by the production of meaning in daily life, a way of doing research in Social Psychology. Twenty leaders participated, through the following methodological re sources: daily observation; conversation in daily life; semistructured interview. In short, it is observed that because they do not correspond to the identity markers recognized by the dominant groups of society, the indigenous groups of Piauí have been discriminated, oppressed, and marginalized, being constantly replaced and seen under a colonial and stereotyped image of what it is to be indigenous, that (re)produces relationships of coloniality within the institutional and social relations.

Keywords: Indigenous peoples; Indianness; Political action; Public policy; Coloniality.


RESUMEN

Este estudio buscó reflexionar sobre el proceso de movilización étnica y política de los pueblos indígenas en Piauí, con el fin de conocer las políticas públicas dirigidas a los grupos indígenas en el Estado; discutir el acceso de dichos grupos a los servicios destinados a promover los derechos indígenas; y presentar los avances y estanciamentos en la implementación de las políticas públicas propuestas a la población indígena de Piauí. Se trata de una investigación cualitativa, basada en la producción de sentido en la vida cotidiana, una forma de hacer investigación en Psicología Social. Participaron 20 líderes, a través de los siguientes recursos metodológicos: observación diaria; conversación en la vida cotidiana; entrevista semiestructurada. En suma, se observa que no corresponder a las marcas identitarias reconocidas por los grupos dominantes de la sociedad, los grupos indígenas de Piauí han sido discriminados, oprimidos y marginados, siendo constantemente reemplazados y vistos bajo una imagen colonial y estereotipada de lo que es ser indígena, que (re)produce relaciones de colonialidad en el ámbito de las relaciones institucionales y sociales.

Palabras clave: Pueblos indígenas; Indianidad; Acción política; Políticas públicas; Colonialidad.


 

 

Direito é aquilo que nos arranca quando não se tem escolha!
(Sônia Guajajara)1

INTRODUÇÃO

O Piauí está entre as unidades da federação em que para o Estado Brasileiro não se conta com indígenas em suas terras, devido ao histórico de extermínio e dizimação ocorridos no período colonial. Porém, mais recentemente, houve a intensificação de movimentos e luta por reconhecimento dos grupos indígenas locais, de modo a romper com o silenciamento que se impôs sob esses povos ao longo da história. Este trabalho busca, portanto, refletir acerca do processo de mobilização étnica e política dos povos indígenas no Piauí, suas lutas por reconhecimento e por direitos.

Para apresentar o tema proposto faz-se necessário compreender que o processo e luta por reconhecimento trata de um movimento mais amplo, observado nas últimas décadas no país, com uma maior mobilização étnica e política dos povos indígenas em resposta a dura conjuntura, que os acompanha há mais de 500 anos. Nesse bojo, ganha destaque os grupos indígenas que, até então ditos como "desaparecidos" ou "extintos", passaram a se autodeclarar e a reivindicar o reconhecimento de sua condição étnica e de seus direitos constitucionais, "emergindo" como "novos" sujeitos coletivos e políticos. Tal fenômeno denominado pela antropologia como "etnogênese", "(re)emergência étnica", "reetinização", "etnicização", "ressurgimento" ou "viagem de volta", denota para esses especialistas a constituição de novos grupos étnicos (Arruti, 2006; Bartolomé, 2006; Bengoa, 2016; Oliveira, 1998).

Todavia, o uso de tais nomeações têm sido alvo de críticas por parte dos movimentos sociais e acadêmicos, pois sugerem uma certa inventividade ao processo de afirmação étnica de tais grupos. Assim, os grupos indígenas indicam uma recusa ao uso dos termos supracitados, pois querem ser reconhecidos por suas histórias de luta e de resistência, e não por uma "suposta" ressurgência ou emergência. Nesse aspecto, compreendendo o processo de afirmação étnica enquanto uma prática de re-existência cultural e política, a população indígena tem optado por nomeá-lo enquanto um processo de "fortalecimento da indianidade" dos povos indígenas no cenário nacional (Santos & Santos, 2019, p. 236). Ademais, preferem ser chamados de "grupos resistentes" ao invés de "grupos emergentes", "ressurgentes" e "remanescentes" (Arruti, 2006).

Adolfo Achinte (2012), ao estudar os processos de emancipação e de luta dos povos afro na América, defende que estes resistiram à escravidão tanto enfrentando o sistema escravista e colonial em sua forma de exploração, quanto conformando formas singulares de existência, de estar no mundo e de se constituir sujeitos, a partir de projetos de vida e de sociedade que contrapõem os colonialismos e a dominação dos povos. Tal manifestação, nomeado pelo autor de re-existência, ajuda a olhar sob outra ótica os processos de luta e de resistência dos povos indígenas, para além de leituras e referenciais construídos à luz do mundo ocidental moderno eurocentrado, capitalista e colonizador, que hierarquiza, inferioriza e desumaniza povos e grupos subalternizados.

Os negros lutaram pela liberdade, e nessa luta desenvolveram formas de existir - de estar no mundo como súditos, e não apenas de resistir como escravos ou libertos. Neste sentido, há uma diferença substancial na perspectiva de dar um valor diferente as lutas e revoltas do povo negro, como também a seus processos de formação de sociedades. A re-existência implica então viver em "outras" condições, ou seja, em processos de adaptação a um ambiente hostil de várias maneiras e a uma potência colonial que tentou a todo custo reduzi-los e mantê-los em sua condição de "coisas" e/ou mercadorias. É na construção das subjetividades negras que construo a categoria de re-existência, ou seja, a reelaboração da vida em condições adversas, tentando superar essas condições para ocupar um lugar de dignidade na sociedade, o que também coloca a re-existência no presente de nossas sociedades racializadas e discriminatórias. (Achinte, 2012, p. 30, tradução nossa)

Partindo disso, no intuito de construir novos mundos possíveis e de contrapor os processos coloniais vigentes na sociedade atual, os povos indígenas têm lutado em defesa dos seus territórios e da vida no e do planeta, reivindicando a valorização de seus saberes tradicionais, cosmovisões e organizações sociais e culturais. Mesmo entendendo os limites dos direitos constitucionais em meio ao modelo econômico vigente, ainda assim os povos indígenas têm lutado incansavelmente por eles, sobretudo, diante do mandato do Presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), de evidente tendência autoritária, fascista e genocida, que tem empreendido inúmeros ataques à população indígena brasileira. O exemplo mais recente foi o veto presidencial ao Projeto de Lei nº1142/2020, aprovado no Congresso Nacional, que dispõe sobre medidas emergenciais de apoio aos povos indígenas durante a pandemia pelo novo coronavírus, SARS-CoV2.

Por serem medidas que ferem os direitos dos povos indígenas assegurados na Constituição Federal de 1988 e que reafirmam o ódio, a violência, o preconceito, o etnocídio e o genocídio dos indígenas e demais povos tradicionais no Brasil, muitas têm sido as lutas e os enfrentamentos no cenário brasileiro. Como exemplo, trazemos a ação dos grupos indígenas das etnias Tabajara e Cariri, localizadas no Piauí, que, depois de séculos de apagamento, extermínio e silenciamento em torno da questão indígena no Estado, têm empreendido lutas históricas de re-existência diante do difícil processo de reconhecimento e de identificação de suas raízes e tronco linguístico junto ao Estado brasileiro. A seguir trataremos de forma mais específica como os grupos indígenas no Piauí têm reescrito sua história na luta por reconhecimento.

 

DOS ESCOMBROS DO PASSADO À HISTÓRIA DO PRESENTE: POVOS INDÍGENAS NO ESTADO DO PIAUÍ

Os indígenas do Piauí encontram-se organizados politicamente por meio das seguintes associações: Associação Itacoatiara de Remanescentes Indígenas (Piripiri, região norte do Estado); Associação Organizada dos Indígenas do Canto da Várzea (Piripiri); Associação dos Povos Indígenas Tabajara-Tapuio-Itamaraty (Lagoa de São Francisco, região norte do Estado); e Associação Indígena Cariri de Serra Grande (Queimada Nova, região sul do Estado). Tais formas de organização e mobilização inauguraram um novo capítulo na história indígena piauiense, visto que, por muito tempo, a presença indígena no Estado foi invisibilizada, silenciada e negada pelas produções historiográficas e pelos registros oficiais, dada a condição de dizimação dos povos que aqui habitaram (Dias & Santos, 2016). Ainda hoje, tanto no site da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) quanto no site do Povos Indígenas no Brasil (PIB), as informações referentes a presença de povos indígenas no Piauí são inexistentes.

Os movimentos de re-existência cultural e política, distribuídos de norte ao sul do país, são resultado dos históricos movimentos de resistência diante da condição de "desaparecidos" ou de "extintos", como assim se propagou (e ainda se propaga) em muitas localidades, especialmente no Nordeste brasileiro, a exemplo do que vem acontecendo no Piauí. Logo, é contra o processo de colonização instaurado no Brasil e seus colonialismos, que resultou no extermínio, domínio e controle social dos povos indígenas, associado ainda à ideologia da democracia racial, que tais grupos têm se organizado para lutar e afirmar seus modos de vida, cultura, identidades coletivas e formas de organização social e política.

Para Nelson Maldonado-Torres (2018), a desconstrução das práticas discursivas advindas da matriz colonial e moderna do poder, do saber e do ser é fundamental para romper com a lógica global que desumaniza e universaliza a dominação; que silencia e invisibiliza outras culturas e saberes; e até mesmo impõe às subjetividades, aos imaginários e aos corpos que sejam cúmplices de sua própria dominação. Deste modo, recuperando as indicações de Anibal Quijano (2005), a colonialidade do poder expressa a dominação da natureza, dos territórios e dos povos, imposta pela ordem capitalista, que explora, espolia e naturaliza a dicotomia entre colonizadores/colonizados e dá sustentação ao quadro de desigualdade, sofrimento, violência e invisibilidade dos povos indígenas e a população negra no país, através de uma hierarquização étnico-racial posta nas esferas econômicas e políticas. Na mesma linha, tais relações de poder refletem na dimensão epistêmica da produção de conhecimento, universalizando a especificidade histórico-cultural da Europa e os seus modos de conhecimento aos demais povos e culturas, constituindo uma colonialidade de saber (Lander, 2005). Além disso, incidem no existir humano, nas vidas dos povos colonizados, naturalizando a negação do direito à vida e à liberdade, reproduzindo uma colonialidade do ser que tem como característica a negação do outro não eurocêntrico, considerado não-humano, portanto, coisa, ou mero corpo para extração de mais-valor (Maldonado-Torres, 2007).

Deste modo, enquanto forma de empreender resistência a tais colonialismos, invisibilizações e silenciamentos, os grupos indígenas no Piauí, articulados com o movimento e organizações indígenas no Brasil, vêm evidenciando, de forma organizada, as situações de abandono, discriminação e preconceito que lhes atingem historicamente, além de reivindicarem dos governantes locais e nacionais a garantia e o reconhecimento de seus direitos constitucionais, por meio: (a) da qualificação das demandas territoriais dos povos indígenas no Piauí; (b) do fortalecimento da Coordenação Técnica Local da Fundação Nacional do Índio (FUNAI); (c) da criação do Distrito Especial de Saúde Indígena (DSEI); (d) da implantação das escolas indígenas no Estado, incluindo a estruturação da Escola Indígena do Canto da Várzea, em Piripiri; (e) e da criação de políticas e ações afirmativas específicas para garantir o acesso e a permanência dos indígenas nas universidades públicas federais e estaduais (Carta Aberta dos Povos Indígenas Cariri e Tabajara do Piauí, 2016).

Tais reivindicações sinalizam para a necessidade urgente de operacionalização e aprofundamento da cobertura de políticas públicas no âmbito da saúde, da educação e do reconhecimento territorial dos povos indígenas do Piauí. Desta forma, partimos dos seguintes norteadores enquanto perguntas de pesquisa para o presente estudo: Qual o cenário da luta por direitos e por políticas públicas reivindicados pelos grupos indígenas no Estado do Piauí? Quais os avanços e impasses diante da luta por reconhecimento dos grupos indígenas do Piauí?

A realidade em que vivem os indígenas no Piauí, nomeados como grupos indígenas não-aldeados ou desaldeados, têm restringido o acesso às políticas públicas, visto terem sido constituídas, a priori, para os chamados grupos aldeados e reconhecidos pelo Estado brasileiro. Sabemos o quanto a busca por reconhecimento dos grupos indígenas no território piauiense constitui em uma importante ferramenta de luta política e protagonismo diante da falta de comprometimento e de operacionalização de políticas públicas pelos órgãos estatais, tornando-se um lugar de ser, de pertença e de existência (Ferreira, 2017).

Pelo exposto, elencamos como objetivo geral para o presente estudo refletir acerca do processo de mobilização étnica e política dos povos indígenas no Piauí. Quanto aos objetivos específicos: a) conhecer as políticas públicas destinadas aos grupos indígenas no Estado do Piauí; b) discutir o acesso de tais grupos aos serviços voltadas à promoção dos direitos indígenas no Estado do Piauí e c) apresentar os avanços e impasses na operacionalização das políticas públicas destinadas à população indígena piauiense.

 

METODOLOGIA

Dada a natureza do objeto da investigação pretendida, optamos pela realização de uma pesquisa qualitativa (Minayo, 2008), orientada pela proposta teórico-metodológica da produção de sentido no cotidiano, ancorada no construcionismo social. Tal perspectiva se detém sob as relações cotidianas e sociais dos sujeitos e/ou de coletivos com foco na produção de sentidos e no modo como se posicionam nas relações sociais (Spink, Brigagão, Nascimento, & Cordeiro, 2014).

De acordo com Kenneth Gergen (2009), "A pesquisa construcionista social ocupa-se principalmente de explicar os processos pelos quais as pessoas descrevem, explicam, ou, de alguma forma, dão conta do mundo em que vivem (incluindo-se a si mesmas)" (p. 301). Logo, trata-se de uma prática social, dialógica e reflexiva, que não há como separar pesquisador e participante. De modo que, a observação e a participação fazem parte de um mesmo processo de produção de conhecimento advindo dos espaços de convivência, dos encontros, do falado e do ouvido que compõem assim os microlugares da pesquisa (Spink et al., 2014).

Partindo disso, o estudo ocorreu no município de Piripiri e de Lagoa de São Francisco, na região norte do Estado do Piauí, onde residem as famílias pertencentes à etnia Tabajara. Em Piripiri, essas famílias residem em alguns bairros periféricos da cidade (Matadouro, Flor dos Campos, Itacoatiara, Floresta) e na Comunidade Canto da Várzea (zona rural). Já em Lagoa de São Francisco residem na Comunidade Nazaré (zona rural). Participaram do estudo 20 pessoas pertencentes aos grupos indígenas Tabajara, sendo 10 do sexo masculino e 10 do sexo feminino, 7 da zona urbana de Piripiri, 4 da zona rural de Piripiri e 9 da zona rural de Lagoa de São Francisco, com idade entre 18 a 88 anos.

Para operacionalização da pesquisa, a fim de possibilitar espaços de socialização e de interação entre o(a) pesquisador(a) e o(a) participante, fizemos uso da observação e das conversas no cotidiano, onde participamos de alguns encontros e eventos, a exemplo: (a) da XVII Semana dos Povos Indígenas do Piauí, que ocorreu nos dias 15 a 17 de abril de 2019, em Teresina/PI, no Museu do Piauí "Casa de Odilon Nunes"; (b) da 3ª Tarde Alegre "Integração e alegria em comunidade, Unidos e alegres seremos mais fortes", realizada no dia 21 de abril de 2019, na Comunidade Nazaré, em Lagoa de São Francisco; e (c) do Seminário "Povos indígenas no Piauí e o desmonte da política indigenista no Brasil", realizado no dia 29 de abril de 2019, pelo Laboratório do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, na Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Além disso, realizamos entrevistas com os(as) participantes com o propósito de discutirmos questões relacionadas à estruturação das políticas públicas destinadas aos grupos indígenas no Estado do Piauí; ao acesso de tais grupos aos serviços voltados para a promoção de seus direitos constitucionais; e, por fim, aos avanços e impasses que perpassam as principais questões e campos de luta dos grupos indígenas no cenário piauiense. O roteiro de entrevista, do tipo semiestruturado, foi elaborado no intuito de nortear os diálogos estabelecidos. Embora tenhamos partido de um roteiro com preocupações/perguntas prévias, por diversas vezes, durante as entrevistas, percorremos outros campos discursivos que não estavam postos a priori.

Todo o percurso metodológico foi registrado em diários de campo, onde narramos os acontecimentos ocorridos, as impressões suscitadas por esses, bem como informações pertinentes ao campo-tema. Ressalta-se que este não se trata de mero registro de informações, pois coloca em análise as forças e os dispositivos que agenciam e criam os acontecimentos pesquisados, levando em consideração as falas, o contexto e as dinâmicas do campo-tema (Spink et al., 2014).

Quanto a análise das entrevistas utilizamos da elaboração do Mapa de Associação de Ideias (Mapa Dialógico) (Spink et al., 2014). Trata-se de um instrumento de análise que busca aproximar o(a) pesquisador(a) dos materiais registrados, a fim de auxiliar na organização das práticas discursivas e nortear as categorias de análise. A análise contou com o diálogo com os estudos decoloniais, que surgem na década de 1990, com a criação do Grupo Modernidade/Colonialidade, a fim de oferecer (re)leituras sócio-históricas sobre as diferentes formas de opressão e dominação dos povos colonizados latino-americanos, tendo como principais autores: Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Nelson Maldonado-Torres, Arthuro Escobar e dentre outros (Ballestrin, 2013). Partindo disso, as práticas discursivas das lideranças indígenas, encontram-se divididas nas seguintes categorias analíticas a serem discutidas a seguir: início das mobilizações dos grupos indígenas no Piauí; articulação em nível local e nacional; reivindicações (FUNAI, educação, saúde, reconhecimento territorial); conquistas; impasses; preconceitos e desconfiança.

Ademais, levamos em consideração todos os aspectos éticos que envolvem pesquisa com seres humanos dispostos na Resolução n. 466/2012 e as normas estabelecidas para pesquisas em Ciências Humanas e Sociais dispostas na Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. Entretanto, alertamos que os participantes indicaram que fosse divulgado seus nomes nos registros/citações das falas utilizadas no decorrer deste trabalho, por se tratar de relatos que versam sobre suas histórias, memórias, experiências, vida comunitária e acontecimentos. O atendimento a este pedido é uma forma de deixar registrado suas histórias de luta, de resistência e de re-existência, enquanto um capítulo importante da presença indígena no Piauí. Por fim, a pesquisa contou com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) através do Parecer Consubstanciado nº 3.131.050.

 

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Precisamos dizer que somos indígenas!
Que a gente é gente!
E que temos que viver com dignidade!
(Pajé Francisco Gomes)

Mediante o diálogo com as comunidades indígenas pesquisadas, e demais atores da academia e movimentos sociais, os grupos indígenas do Piauí, marcados por seus percursos similares, mas também particulares, começaram, a partir de 2016, a fortalecer e a intensificar suas mobilizações étnicas e políticas no Estado, no intuito de obter o reconhecimento de sua condição étnica e de seus direitos previstos na Constituição Federativa de 1988. Embora algumas ações já viessem sendo empreendidas, sobretudo, pelo grupo indígena Tabajara da zona urbana do município de Piripiri, desde a criação da Associação Indígena Itacoatiara de Piripiri, em 2005, poucas tinham sido as iniciativas do Governo Federal e do Estado em operacionalizar e executar políticas direcionadas à população indígena piauiense.

A vista disso, no intuito de fortalecer a luta indígena no Piauí, assim como de possibilitar uma maior participação da sociedade em suas lutas e causas, os grupos indígenas presentes no Estado, a exemplo dos Tabajara, têm apostado no desenvolvimento de ações coletivas e comunitárias e na participação e realização de reuniões, assembleias, fóruns e eventos (nacionais ou locais) a favor da causa indígena. Tais ações e mobilizações têm produzido novos campos de sentidos à luta política e às suas histórias e vida comunitária, como também têm fortalecido a participação de mais agentes sociais, resultando na adesão de mais núcleos familiares ao movimento indígena no Estado do Piauí.

Nesse âmbito, as lideranças indígenas sinalizam alguns momentos tidos como cruciais para o fortalecimento do movimento indígena piauiense, a saber: (a) XIV Semana dos Povos Indígenas - A construção da Política Indigenista no Piauí, realizada em abril de 2016, em Teresina; (b) I Assembleia Estadual dos Povos Indígenas do Piauí, realizada em Piripiri, em dezembro 2016; (c) III Fórum Nacional de Museus Indígenas do Brasil, realizado em Lagoa de São Francisco, em outubro de 2017; (d) II Assembleia Estadual dos Povos Indígenas do Piauí, realizada em Queimada Nova, em maio 2018.

Reportaram que um outro fator de suma importância para o fortalecimento do movimento indígena no Piauí diz do envolvimento e da participação no movimento indígena nacional, pois, à medida que começaram a participar desses espaços de luta e, acima de tudo, formativos, passaram a ter uma maior visibilidade nas esferas local e nacional e a contar com o apoio de demais povos e organizações, a exemplo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, de Minas Gerais e do Espírito Santo, que são atualmente umas das maiores organizações do movimento indígena brasileiro.

Dessa forma, a partir de tais articulações sociais e políticas, as instâncias federal e estadual comprometeram-se em viabilizar a integração de diversas políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos dos grupos indígenas do Piauí, inclusive com a avaliação das políticas e dos serviços implementados. Assim, especialmente os órgãos estaduais passaram a empreender, juntamente com os representantes indígenas locais, ações e projetos que têm resultado em avanços, mas também têm suscitados novos impasses, para a operacionalização das políticas públicas destinadas à população indígena piauiense.

Nesse tocante, discorreremos a seguir sobre os avanços e os impasses que perpassam as principais questões e campos de luta dos grupos indígenas do Piauí na atualidade, no âmbito da Coordenação Territorial Local da FUNAI, da Educação, da Saúde e da Luta pela terra.

 

COORDENAÇÃO TERRITORIAL LOCAL DA FUNAI

A Coordenação Territorial Local (CTL) foi instalada no mês de janeiro de 2011, no município de Piripiri/PI, depois que a Coordenação Regional da FUNAI em Fortaleza/CE determinou, por meio da Portaria nº 344, a devida prestação assistencial às comunidades indígenas do Piauí. A CTL foi desativada em 2017, devido os cortes orçamentários, empreendidos pelo Decreto nº 9.010/2017, emitido pelo Governo Federal, em que 51 CTLs da FUNAI pararam de funcionar em todo o país e a unidade piauiense foi afetada por tal decisão.

Tal medida fora interpretada pelas lideranças indígenas como um retrocesso na garantia de direitos dos povos indígenas no Piauí, visto que a CTL era o órgão responsável por acompanhar os grupos indígenas nas instâncias de monitoramento, de participação e de controle social das políticas indigenistas em território piauiense. No entanto, no intuito de suprir tal desassistência, diante das necessidades mais imediatas, passaram a recorrer à unidade-sede em Fortaleza/CE, deparando-se com dificuldades relacionadas à distância, assim como a falta de transporte e de recurso financeiro.

Ninguém sabe como é que vai ser a situação da FUNAI. Aqui tinha, mas fecharam! Fomos para Brasília, mas não foi reaberto! A única sede próxima fica em Fortaleza, mas tem a questão da distância. Sem ter um transporte, sem ter nada prá gente ir até lá e sem nenhum recurso, fica difícil pra quem já vive de coisa pouca aqui! Pois é quase um salário prá ir e voltar. Se formos tirar do próprio bolso não vai sobrar nada! Ainda tem a alimentação, o lugar para ficar, tudo é caro! (Cícero Rodrigues)

Criada em 1967, pela Lei nº 5.371, em substituição ao extinto Serviço de Proteção ao Índio, a FUNAI tem a função, nos dias atuais, de identificar, delimitar, demarcar, regular e registrar terras ocupadas pelos povos indígenas; de monitorar e fiscalizar as terras indígenas; de promover ações que assegurem a diversidade sociocultural dos diferentes grupos; de coordenar e implementar políticas de proteção aos povos isolados e recém contatados; de promover políticas direcionadas ao desenvolvimento sustentável; de estabelecer a articulação interinstitucional voltada para o acesso diferenciado aos direitos sociais e de cidadania, a exemplo do direito à seguridade social e à educação escolar indígena, além de outras atribuições.

Contudo, embora a criação da FUNAI tenha representado um significativo avanço na proteção aos direitos indígenas no cenário nacional, autores como Ana Valéria Araújo e Sergio Leitão (2002) e Giovana Campos (2011) sinalizam ambiguidades na atuação do órgão indigenista. Alertam que, ao passo que a órgão reconhece as especificidades étnicas e culturais dos povos indígenas, ainda executa ações tutelares que reforçam a histórica relação paternalista e intervencionista do Estado para com os povos indígenas, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988. É importante ressaltar que, apesar da chamada "Constituição Cidadã" ter instituído um novo paradigma conceitual e jurídico à política destinada aos povos indígena, pautado no reconhecimento da autonomia, da participação e da pluralidade étnica dos povos indígenas, o Estado brasileiro, independente dos governos, não tem respondido à altura deste desafio.

Apesar dos avanços legislativos, pós Constituição de 1988, em relação à questão indígena, Marina Bozzetto (2017) aponta que o pensamento colonial se faz presente até hoje por meio do assistencialismo paternalista do Estado brasileiro. Conforme Quijano (2005), o pensamento colonial reforça uma lógica de dominação e uma racionalidade eurocêntrica, baseada na acumulação de riquezas a partir da exploração da natureza, espécie de sociometabolismo da barbárie (Alves, 2007), e que ignora os elementos simbólicos dos grupos colonizados, colocando-os como sujeitos inferiores, subalternizados, não racionalizados. Logo, foi a partir dessa racionalidade que os Estados nacionais se constituíram e, secularmente, colocam os povos indígenas sob o julgo de políticas genocidas e de gestão da pobreza, por meio de ações paliativas para poucos e tidos como merecedores da ajuda estatal (Foucault, 2008).

No caso da realidade piauiense tal quadro se coloca nas ações de distribuição de cestas básicas, o que reforça o viés paternalista e assistencialista do Estado para os povos indígenas, como podemos observar no relato a seguir:

Quando tinha a CTL aqui no Estado, a gente sempre recebia umas cestas básicas em datas especiais! Até queremos ver com a FUNAI de Fortaleza se ela pode liberar essas cestas mês a mês, pois lá tem um galpão que libera as cestas para as aldeias! Todo mês vinha, mas agora parou! Temos que resolver isso, urgente! (Pajé Francisco Gomes)

Além do mais, tais práticas reverberam na própria representação que os grupos têm do órgão, pois engendrados por relações tutelares e intervencionistas, atribuem à FUNAI um status de representatividade na luta indígena, como se ela fosse a única forma de representação dos grupos no Piauí. Por isso, relatam que se sentem desassistidos e sem representatividade após o fechamento da CTL no Estado.

A FUNAI é a única forma de representação da comunidade indígena no Piauí.

Sem a FUNAI é como se a gente não existisse. Ela que acompanha e orienta os povos indígenas na luta pelo direito à saúde, à educação e ao acesso à terra. (Cacique Henrique Manoel)

O fechamento da unidade da FUNAI deixou a população indígena desassistida. (Joselane Dias)

Tal situação explícita uma expressão da colonialidade que já não opera somente em um campo econômico e político, mas na esfera subjetiva, conforme referimos anteriormente. Certamente, reforça uma racionalidade eurocêntrica expressa nas práticas coloniais, tutelares e intervencionistas do Estado, contribuindo para que os povos indígenas dependam de órgãos estatais como a FUNAI para ter acesso aos direitos sociais e de cidadania, ou para ter reconhecimento de sua condição de indígena.

Nesse sentido, muitos são os desafios que estão postos atualmente para a consolidação de uma política pautada em uma atenção efetiva e integral aos povos indígenas. Sem dúvida, tivemos avanços a partir da Constituição de 1988 em relação a questão indígena no Brasil. No entanto, conforme aponta Campos (2011), o órgão tem se pautado em um modelo integracionista, instituído pelo Estatuto do Índio, que desde 1973 não foi revogado ou reformulado, orientando assim a execução de práticas tutelares e intervencionistas do órgão.

Ao ressaltar tais impasses e contradições, não queremos diminuir as atribuições do órgão na garantia dos direitos dos povos indígenas no cenário brasileiro. Todavia, faz-se necessário o desenvolvimento de práticas e ações que resistam a lógica colonial, tutelar e intervencionista do Estado, e que incentivem a participação autônoma e ativa dos povos indígenas na luta em defesa de seus direitos e de suas necessidades étnicas e sociais.

 

EDUCAÇÃO

No âmbito educacional, após a entrega da Carta dos Povos Indígenas do Piauí à Secretaria de Educação do Estado do Piauí, esta implantou, em junho de 2016, a primeira escola indígena piauiense na Comunidade Canto da Várzea, conhecida como Escola Indígena Tabajara-Ypy Chica Cearense, localizada na zona rural de Piripiri/PI. Desde então, a referida escola tem funcionado com turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), por ser uma modalidade de voltada para todos os níveis da Educação Básica, destinada aos jovens, adultos e idosos, que não tiveram acesso à educação na idade apropriada.

Compreendendo que a Educação Escolar Indígena dispõe diretrizes e orientações próprias para os dois níveis de ensino, o básico e o superior, os grupos indígenas do Piauí têm reivindicado às autoridades nacionais e locais a criação de um Projeto Político Pedagógico (PPP) de Educação Escolar Indígena, a fim de viabilizar o funcionamento de escolas e garantir ensino de qualidade. Tais diretrizes estão ancoradas ainda na própria Constituição Federal 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), pelo Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172, 2001), e pela Lei 11.645/2008 que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todas as escolas brasileiras etc. Logo, o direito à educação escolar indígena é de responsabilidade do Ministério da Educação, cabendo aos estados e municípios a sua execução para garantia deste direito aos povos indígenas. Nesse sentido, o Ministério da Educação deve investir primordialmente na formação inicial e continuada dos profissionais de Educação Indígena, estimular a produção e a publicação de material didático específico e fortalecer a articulação entre o Ministério da Educação, Universidades, Secretarias de Educação, organizações não-governamentais, associação de professores indígenas e as próprias comunidades indígenas (Lei n. 10.172, 2001).

Ademais, a criação do Decreto n. 6.861/2009, que dispõe sobre a Educação Escolar Indígena e define sua forma de organização, e da Resolução n. 05/2012, que regulamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena, trouxeram uma inovação substancial para a educação escolar indígena diferenciada, pois criaram os chamados "territórios etnoeducacionais", que têm como base as terras indígenas e/ou relações comuns entre etnias no que tange à questão sócio-histórica, linguística, política, econômica, cultural (Abreu, 2012). De acordo com o Decreto n. 6.864/2009, cada território etnoeducacional compreende, independentemente da divisão político-administrativa do País, as terras indígenas, mesmo que descontínuas, ocupadas por povos indígenas que mantêm relações intersocietárias caracterizadas por raízes sociais e históricas, relações políticas e econômicas, filiações linguísticas, valores e práticas culturais compartilhados.

A vista disso, a educação escolar indígena deve levar em consideração a territorialidade e as necessidades e especificidades de cada povo indígena, tendo como objetivo prezar pela(o):

I - valorização das culturas dos povos indígenas e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica;

II - fortalecimento das práticas socioculturais e da língua materna de cada comunidade indígena;

III - formulação e manutenção de programas de formação de pessoal especializado, destinados à educação escolar nas comunidades indígenas;

IV - desenvolvimento de currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;

V - elaboração e publicação sistemática de material didático específico e diferenciado; e

VI - afirmação das identidades étnicas e consideração dos projetos societários definidos de forma autônoma por cada povo indígena.

Caso a operacionalização de tais políticas públicas educacionais no Estado do Piauí siga o parâmetro da realidade etnoeducacional de cada território, certamente isto contribuiria para a valorização dos saberes étnicos e culturais dos grupos indígenas piauienses. Ademais, seria importante que tais políticas estejam compromissadas com o fortalecimento de práticas socioculturais da cultura indígena; com o desenvolvimento de projetos de vida e comunitários; e, sobretudo, com a desconstrução da imagem estereotipada do indígena que ainda reverbera na sociedade e nas salas de aula, pautada sob uma visão romantizada, eurocêntrica e colonial. Assim afirmam as lideranças pesquisadas acerca do tema:

Estamos vendo como fazer com essa questão dentro da escola. Muita gente concorda, os alunos querem, porque vai entrar a questão da história de nossos antepassados, a questão do Toré, os remédios, a língua e dentre outros aspectos da cultura indígena! Tem muita coisa a ser trabalhada, principalmente com criançada da Comunidade Nazaré! (Cacique Henrique Manoel)

A gente acha muito engraçado quando as crianças vêm pra cá. Recebemos recentemente quatro turmas aqui na Comunidade Nazaré. Eles chegaram tudo assombrado! Aí logo perguntaram "- Vocês não vão atirar flecha na gente não, né?", "- Cadê a roupa de vocês?". Aí procuramos explicar tudo pra eles, a fim de desconstruir essa imagem, que infelizmente é a que tem nos livros! (Elayne da Silva)

Uma vez eu fui convidado pra ir em uma escola infantil e a gente percebia aquela curiosidade deles para entender, saber o que era o indígena! Porque na cabeça deles foi Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil e na verdade sabemos que Cabral não descobriu o Brasil, ele invadiu o Brasil! Só que eles aprendem isso! E pra eles foi uma novidade saber que em Piripiri tinha índio! Surgiu várias perguntas como: "- Não tinham matado todos os índios do Brasil e do Piauí?", "- Como é que você existe?", "- Onde é que você mora?", "- Você mora no mato?". (Cícero Dias)

Nesse sentido, diante a tradicionalidade do discurso ocidental e colonial, que desconsidera outras racionalidades epistêmicas, cada vez mais se faz necessário a construção de um Projeto Político Pedagógico que leve em consideração os saberes tradicionais e a diversidade cultural e linguística dos povos indígenas; que possibilite uma formação de qualidade dos professores indígenas e não-indígenas acerca da temática indígena; que favoreça o desenvolvimento de novas metodologias e epistemologias capazes de proporcionar diálogos interculturais e a superação no processo de colonização técnico-científica; e que problematize o eurocentrismo na visão de mundo, na história e na concepção de ser humano, tendo em vista os inúmeros desafios que estão postos no processo de operacionalização de uma política de educação escolar indígena.

Logo, a ampliação do debate em torno da implementação de uma educação escolar indígena no Estado do Piauí e da aplicabilidade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas piauienses, exige uma (re)leitura da História do Brasil e do Piauí, que possibilite a desconstrução de visões generalistas, simplistas e colonizadoras sobre o passado e o presente; a produção de novas narrativas que afirmem o lugar de luta e de resistência dos povos indígenas; e que coloquem em análise as ideias estereotipadas e racistas vigentes na sociedade contemporânea. Tal debate sobre a educação indígena, como reforça Maria Almeida (2017, p. 34), indica que "o conhecimento do passado e de suas próprias trajetórias é um relevante instrumento de luta para os povos indígenas que, desde o período colonial, têm lançado mão desse recurso para (re)afirmarem seus direitos".

 

SAÚDE

Em relação à saúde, a prestação de serviços de assistência à saúde indígena é realizada por meio do Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS), componente do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), órgão do Ministério da Saúde, a responsável para coordenar e executar o processo de gestão desse subsistema em todo o território nacional. A SESAI, então, possui como missão gerenciar diretamente assistência à saúde dos indígenas, levando em conta aspectos culturais, étnicos e epidemiológicos e as condições sanitárias de cada Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) - unidade gestora do SasiSUS.

Nesse sentido, desde 2016, os grupos indígenas têm reivindicado a implantação de um DSEI no Piauí, no intuito de assegurar e proporcionar um melhor atendimento à saúde da população indígena no Estado, que contemple a diversidade social, cultural, histórica, política e geográfica dos grupos indígenas, conforme preconiza a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Fundação Nacional de Saúde [FUNASA], 2002). Criado pela Lei nº 9.836/1999, também conhecida como Lei Arouca, o DSEI trata-se um modelo de organização dos serviços, de responsabilidade sanitária federativa, que visa assegurar a integralidade na atenção à saúde da população indígena, mediante um "espaço etnocultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo bem delimitado" (FUNASA, 2002, p. 13). Atualmente, no Brasil, existem 34 DSEIs, distribuídos praticamente por todo o território brasileiro, exceto Piauí e Rio Grande do Norte. As DSEIs atendem mais 350 mil indígenas, pertencentes a mais de 210 povos (FUNASA, 2002).

No intuito de realizar os primeiros debates em torno da implantação de um DSEI no Piauí, os grupos indígenas, ainda em 2016, alcançaram com a Secretária de Saúde do Estado do Piauí a criação de uma Comissão Técnica do Distrito Sanitário Especial Indígena, composta por representantes estatais e pelas lideranças indígenas. Como o Estado do Piauí não contava com dados relacionados à população, área geográfica, perfil epidemiológico, rede regional do SUS, acesso e infraestrutura dos serviços, recursos humanos e distribuição demográfica dos povos indígenas, dentre outros, a Comissão técnica lançou o Projeto de Pesquisa intitulado "O Piauí tem índio sim", com o objetivo de levantar tais indicadores, haja vista serem critérios primordiais para a definição territorial de um DSEI (FUNASA, 2002).

Todavia, ao repassar tais informações ao Ministério da Saúde, mais especificamente a SESAI, obtiveram a informação que a criação de um DSEI no Estado encontra-se a priori inexecutável, pelo fato de tais grupos não residirem em terras indígenas homologadas. Por serem considerados grupos indígenas não-aldeados, ou seja, por residirem na cidade ou em áreas rurais, para o Ministério da Saúde, deverão ser atendidos pela rede de serviços do SUS (Ministério Público Federal, 2019). Porém, é preciso que este debate retorne com urgência para avaliar como tal questão se apresenta a partir do reconhecimento oficial por parte do Estado do Piauí de um dos territórios indígenas situados em Queimada Nova, pertencente ao grupo da etnia Cariri2.

Com base no art. 2ª, parágrafo único, do Decreto n. 3.156/1999, "A organização das atividades de atenção à saúde das populações indígenas dar-se-á no âmbito do SUS e efetivar-se-á, progressivamente, por intermédio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ficando assegurados os serviços de atendimento básico no âmbito das terras indígenas" (p. 1). Contudo, embora o órgão evidencie tal restrição, em nenhum momento a Lei n. 9.836/1999, que institui o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, faz distinção de acesso as ações e serviços de saúde entre população indígena aldeada e não-aldeada. A legislação preconiza que:

Art. 19-A. As ações e serviços de saúde voltados para o atendimento das populações indígenas, em todo o território nacional, coletiva ou individualmente, obedecerão ao disposto nesta Lei. (...)

Art. 19-F. Dever-se-á obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional. (...)

Art.19-G. § 2º O SUS servirá de retaguarda e referência ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, devendo, para isso, ocorrer adaptações na estrutura e organização do SUS nas regiões onde residem as populações indígenas, para propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminações.

Portanto, o que se observa é que, apesar de garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, o subsistema foi estruturado praticamente para a oferta de atendimento preventivo e de atenção básica à população que reside em terras indígenas reconhecidas pelo Estado. De modo que, devem ser atendidos, preferencialmente, nas Unidades Básicas de Saúde Indígena e nos Pólos-Bases localizados nas aldeais, e somente em casos em que as demandas não corresponderem ao grau de resolutividade dos serviços de saúde, tais usuários devem ser encaminhados aos demais serviços de referência do SUS, em articulação com as Casas de Saúde Indígenas (CASAI).

A vista disso, a SESAI acaba restringindo suas atribuições aos indígenas que residem em terras indígenas, ao passo que desassiste àqueles que estão na condição de não aldeados. No caso do Piauí, tal situação se agrava, pois somente um grupo conta com o registro de terras indígenas no Estado, conquistado muito recentemente. E o problema se arrasta com o fato de os grupos piauienses não contarem com uma unidade gestora do SasiSUS, ou seja, com um DSEI e, consequentemente, não contarem com uma rede de serviços de atenção à saúde indígena e nem com as adequações na estrutura e organização da rede SUS. Nesse sentido, os grupos indígenas têm enfrentado uma série de dificuldades ao buscarem acesso aos serviços de saúde, que perpassam questões relacionadas à falta de profissionais nos serviços, ao tempo de espera por um atendimento, à centralidade das ações e das práticas de saúde voltados para um modelo biomédico excludente, além de barreiras culturais relacionadas ao racismo institucional, conforme relatado a seguir.

Você acredita que a gente não tem direito a saúde aqui em Piripiri e em lugar nenhum! Nem no posto e nem no hospital! (Pajé Francisco Gomes)

Queremos ter acesso a uma saúde voltada para à população indígena! Que seja composta por médico, enfermeiro, com agente de saúde indígena e de endemias! Que também oferte acesso a uma medicina tradicional e caseira! Que tenha um hospital de referência quando necessitarmos de alguma emergência! Em um trabalho conjunto entre os profissionais de saúde! Uma coisa bem organizada! Pois aqui na Comunidade Nazaré só contamos com um médico que atende mal uma vez na semana. Vem de manhã, atende 10 pessoas e pronto! (Cacique Henrique Manoel)

Tais relatos evidenciam um conjunto de discursos e práticas coloniais que (re)produz no cotidiano das instituições violentas formas de exclusão, de sofrimento, de desigualdade racial e social ao operarem o racismo institucional. Por racismo institucional entende-se aquele padrão de tratamento e de atendimento desigual, por parte de serviços e equipamentos públicos e privados, em que coloca em vantagem grupos e/ou sujeitos em relação a outros que fogem aos padrões hegemônicos e eurocêntricos instituídos (população indígena, população negra, da população LGBT, dentre outros) (Kilomba, 2019). No geral tais práticas são legitimadas, historicamente, pelo próprio Estado, encontrando nas políticas públicas uma forma de operar controle, domínio e assujeitamento de grupos minoritários, ao reproduzir desigualdades, iniquidades, discriminações e invisibilizações, agravando e produzindo quadros de adoecimento e sofrimento psíquico (López, 2012).

O racismo institucional sustenta-se enquanto prática rotineira nos equipamentos das políticas públicas, sob a justificativa de oferecerem tratamento igual para todos, não observando as iniquidades e diferenças de marcadores sociais e culturais que compõem as condições de vida da população brasileira. No caso indígena, tal quadro reflete na fragilização da qualidade da assistência prestada, considerando a diversidade étnica, cultural, linguística, dentre outros, redundando na reprodução de práticas excludentes e desrespeitosas.

Na hora da ficha, eu me autodeclaro, mas aí logo dizem que "- Aqui não existe esse negócio não, todo mundo é igual!" (Maria do Socorro da Silva)

Aqui era um preconceito monstro! Uma vez eu fui no hospital me identificar e tudo! Aí a mulher falou: "- Índio devia estar era no mato!" "- Índio com celular?". Falando lá essas coisas! (Pajé Francisco Gomes)

Logo, tais práticas de racismo institucional no âmbito da saúde inviabilizam até mesmo articulações na oferta de ações e práticas em atenção primária em saúde a serem ofertadas pelas próprias Equipes de Saúde da Família à população indígena, que residem em sua a área de abrangência. Isto evidencia a necessidade de se reformular a própria Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas quanto a oferta de seus serviços e os critérios de instalação de um DSEI, que têm se pautado em critérios de grupos aldeados e reconhecidos pelo Estado brasileiro, ao passo que têm desconsiderado à realidade local de outros diversos grupos que ainda não atendem plenamente tais critérios.

 

LUTA PELA TERRA

Por muito tempo os grupos indígenas piauienses foram invisibilizados e silenciados. Seus antepassados tiveram que escamotear suas identidades para continuarem existindo, assim como tiveram que fugir de suas terras devido as perseguições, usurpação de suas terras, extermínio, dificuldades e exposição a situações de vulnerabilização social. Retomar as memórias e a história de suas famílias, fez com que os indígenas piauienses também reivindicassem o direito de demarcação ou aquisição de terras, no intuito de cultivar e transmitir suas memórias, suas ancestralidades, seus saberes, modos de vida e expressões culturais. Até porque, para os povos indígenas, a terra é tomada enquanto um território ancestral e de conexão com a vida, que suscita lembranças, tradições, vivências e experiências, constituindo-se em um elemento fundamental para a manutenção de seus vínculos ancestrais, sua existência e (re)afirmação de suas indianidades (Santos, 2019).

No início do seu processo de organização, os indígenas Tabajara do Piauí localizados em Piripiri, estavam dispersos nos bairros periféricos da cidade e na Comunidade Canto da Várzea. Passaram, portanto, a reivindicar a aquisição de uma área nas proximidades do município para que pudessem cultivar seu processo de indianidade. Já as famílias Tabajara da Comunidade Nazaré, em Lagoa de São Francisco, localizada na zona rural, reivindicam o direito à terra que se encontra sob posse de proprietários rurais da região, a fim de salvaguardar seus marcadores memoriais, a exemplo dos olhos d'águas (nascentes), do cemitério indígena e das bananeiras. Como são terras de propriedade privada, estas encontram-se em negociação pelo Governo do Estado, que assegurou aos grupos de Piripiri e Lagoa de São Francisco que adquirirá e doará uma área territorial para as famílias indígenas nos seus respectivos municípios3.

Assim sendo, as lideranças indígenas Tabajara tanto da zona rural quanto da zona urbana relatam que a demarcação e a aquisição das terras resultariam em melhorias nas suas condições de vida e asseguraria meios de subsistência econômica, visto que muitos não detêm renda familiar fixa e vivem de ganhos diários advindos da venda de artesanato, roçado, da prestação de serviço e de programas sociais como Bolsa Família. Além disso, possibilitaria o acesso às políticas públicas destinada aos povos indígenas:

Lutamos pela demarcação, porque o índio sem-terra, como já foi citado, não é índio! Tudo é terra porque se o índio não tiver terra, ele não tem a saúde diferenciada, a educação diferenciada e outras coisas a mais! (Joselane Dias)

O fato de não contarem com uma área demarcada ou em processo de demarcação na instância federativa faz com que os grupos indígenas Tabajara vivenciem uma série de dificuldades quanto ao acesso às políticas públicas, que resultam em inúmeras situações de privação de direitos, de racismo, de preconceito e de exclusão, por não residirem em terras indígenas oficialmente reconhecidas pelos governos federal e estadual; e, por muitas vezes, não apresentarem fenótipos (marcantes) atribuídos historicamente ao ser indígena, conforme os relatos a seguir.

Ser indígena no Piauí é muito difícil! Hoje está até um pouco melhor! Mas ainda temos muita dificuldade! Quando vamos em algum lugar e/ou evento e nos apresentamos como indígena todo mundo fica olhando e ainda nos questiona se somos indígenas mesmo! Olha, se a pessoa não estiver preparada, ela sofre! (Cacique Henrique Manoel)

Muita gente me pergunta: "- Porque que tú diz que é índio?". Eu respondo: "- Porque eu conheço a minha história e eu sei de onde eu vim!". Eu tinha uma professora de história e uma vez em sala de aula eu disse que eu era índio. Aí ela: "- Ah, mas por que tú diz que é índio?" E logo respondi: "- Professora, é pelo simples fato de que eu conheço a minha história, eu sei das minhas origens, eu sei de onde eu vim". Aí ela logo se calou! Não questionou mais! (Cícero Dias)

Você chega em uma repartição, eles já te olham com aquele olhar de preconceito, seja no hospital, no posto ou na escola. Qualquer lugar que você for, o preconceito é grande! Eu digo isso porque eu ando muito, sabe?! E eu ando prestando atenção em tudo! Se eles já percebem que você é indígena! Eles já começam a mudar o olhar diferente, o preconceito já começa aí! Então, muitos têm medo de se autodeclarar indígena por causa do preconceito e da violência! (Cícero Rodrigues)

Logo, tais relatos evidenciam o que José Gonçalves (2007) define como humilhação social. Que consiste em um fenômeno intersubjetivo, histórico e político, em que determinados grupos ficam subjugados a outros mediante os padrões de dominação e de opressão vigentes na sociedade, que só reforçam os colonialismos do poder, do saber e do ser, ao passo que desconsideram seus marcadores sociais e identitários (de gênero, raça, etnia, classe e dentre outros). Tal fato resulta em diversas situações de desigualdade, de desrespeito e preconceito que ocasionam sofrimento psicossocial. Trata-se de um tipo de sofrimento que não é apenas individual, mas coletivo, advindo das práticas de inferiorização, desumanização e de invisibilização social e política, de ordem racista, que atingem tais grupos minoritários.

Tais experiências de discriminação, de violação e privação de direitos, têm impulsionado tais grupos minoritários (a exemplo dos indígenas, dos quilombolas, dentre outros) a lutarem por seu reconhecimento jurídico e pelo acesso aos seus direitos básicos, historicamente negados, no intuito de reparar as desigualdades e as injustiças sociais que violam a dignidade humana e o direito à vida (Honneth, 2009). No caso dos grupos indígenas do Piauí tais lutas perpassam questões mais imediatas sobre a abertura da Coordenação Territorial Local da FUNAI; a implantação de fato de uma educação escolar indígena e não somente uma escola indígena; a implantação e efetivação da atenção à saúde indígena; e a demarcação ou aquisição de terras indígenas, conforme exposto anteriormente.

Trata-se, portanto, de uma luta pela presença e efetivação de políticas públicas, mas também por reconhecimento intersubjetivo e social, que de acordo com Axel Honneth (2009), se dá em três dimensões: nas relações com o próximo, na prática institucional e na convivência em comunidade. A ausência de reconhecimento em algumas dessas dimensões resulta em diversas situações de desrespeito; e mais especificamente, no âmbito jurídico, resulta em situações de privação de direitos, de marginalização, de humilhação social, dentre outras.

Como resposta, ressaltamos a organização e luta por reconhecimento por parte dos grupos indígenas piauienses, no intuito de viabilizar suas pautas de luta, a exemplo da demarcação territorial em nível estadual das terras do grupo indígena da etnia Cariri, sendo o 1º território indígena reconhecido no Piauí. Todavia, é recorrente o fato de terem que se deparar e enfrentar visões, práticas e ações que buscam a todo momento negar suas indianidades e que evidenciam as relações de colonialidade ainda vigentes na sociedade, mesmo após o fim do período colonial, que reverberam principalmente: (a) nas ações assistencialistas paternalista e tutelares desenvolvidas pela FUNAI; (b) nas representações do ser índio reproduzidas no âmbito educacional; (c) na oferta de serviços de atenção à saúde indígena destinada a priori à população aldeada, ao passo que desassiste à população não-aldeada e, por fim, (d) nos impasses e entraves quanto à regularização de territórios que consideram de ocupação tradicional.

Dessa maneira, nota-se que ao lutarem por reconhecimento de sua condição étnica e de seus direitos, tais grupos colocam em análise tais relações de colonialidade, postas nas ações do órgão indigenista, na operacionalização das políticas públicas, e na sociedade em geral. E, embora tentem a todo momento contrapor tais discursos no cotidiano da vida, são constantemente recolocados e vistos sob representações coloniais do que é ser indígena, que reforçam historicamente as práticas de etnocídio, de opressão, de discriminação e de exclusão empreendidas contra a população indígena de forma geral.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo objetivou refletir acerca do processo de mobilização étnica e política no Estado do Piauí, mediante suas histórias de vida e comunitárias e seu processo de ação política, visto que, por muito tempo, a presença indígena foi invisibilizada e silenciada, devido os discursos proferidos sobre a inexistência de povos indígenas em solo piauiense. Nesse sentido, pudemos observar que muitas têm sido as lutas e as resistências desses povos em defesa de seus direitos sociais e políticos, sobretudo diante a realidade em que vivem, pois por residirem em bairros periféricos e em áreas rurais são nomeados como grupos indígenas desaldeados ou não-aldeados. Situação esta que tem restringido o acesso de tais grupos às políticas públicas e evidenciado inúmeras situações de privação de direitos, de racismo institucional e de humilhação social que os povos indígenas vivenciam no país.

Ao lutarem por reconhecimento de sua condição étnica e pela garantia de seus direitos constitucionais, a exemplo do direito à educação indígena, à saúde indígena e à demarcação de suas terras, denunciam a lógica capitalista e colonial violadora da dignidade humana e do direito à vida dos povos indígenas. Além disso, é possível observar que por não corresponderem aos marcadores identitários reconhecidos pelos grupos dominantes da sociedade, esses têm sido discriminados, oprimidos e marginalizados no âmbito das relações sociais e institucionais. Porém, ainda assim, tais povos têm sido incansáveis em suas lutas por reconhecimento, por direitos e por suas territorialidades, engendrando suas indianidades a partir de suas lutas cotidianas em defesa da vida, de suas existências e de suas memórias ancestrais.

 

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Submissão: 21/07/2020
Revisão: 16/01/2021
Aceite: 22/01/2021
Financiamento Financiada pela agência de fomento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí, sob Edital FAPEPI/CAPES nº 005/2018.

 

 

Contribuição dos Autores:
Concepção: BIBMS; JPM
Coleta de dados: BIBMS
Análise de dados: BIBMS; JPM
Elaboração do manuscrito: BIBMS; JPM
Revisões críticas de conteúdo intelectual importante: BIBMS; JPM
Aprovação final do manuscrito: BIBMS; JPM
Consentimento de uso de imagem: Não se Aplica
Aprovação, ética e consentimento: Universidade Federal do Piauí (UFPI)
1 Frase proferida por Sônia Guajajara na Conferência em Diálogo do 3º Congresso Internacional dos Povos Indígenas da América Latina, realizado em Brasília-DF, entre os dias 03 e 05 de julho de 2019, na Universidade de Brasília (UNB).
2 Para mais informações acesse https://cidadeverde.com/noticias/331881/520-anos-depois-piaui-tem-seu-1-territorio-indigena-reconhecido
3 Para mais informações acesse https://www.viagora.com.br/noticias/governo-do-piaui-doara-terras-para-indigenas-de-piripiri-77157.html

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