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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dez. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Participação de crianças e adolescentes no conselho de direitos: construindo caminhos possíveis

 

Participation of children and adolescents in the council of rights: building possible paths

 

Participación de niños, niñas y adolescentes en el consejo de derechos: construyendo caminos posibles

 

 

Beatriz Corsino PérezI; Juliana Thimóteo Nazareno MendesII; Suzana Santos LibardiIII

IDoutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: beatrizcorsino@id.uff.br
IIDoutora pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: juliana_mendes@id.uff.br
IIIDoutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: suzana.libardi@delmiro.ufal.br

 

 


RESUMO

Neste artigo, buscamos refletir sobre como a participação de crianças e adolescentes vem sendo incorporada por um Conselho Municipal de Direitos, no interior do estado do Rio de Janeiro. Relatamos a nossa experiência como conselheiras de direitos, de 2012 a 2018, e como coordenadoras de um projeto de extensão desenvolvido em 2016 e 2017, que buscou criar um espaço de fala para crianças e adolescentes e sensibilizar profissionais sobre esta temática. Realizamos oficinas com 60 crianças, 25 adolescentes, e 20 profissionais que atuavam na rede socioassistencial. Observamos que os sujeitos das gerações mais novas continuam sendo tratados pelo Conselho, bem como pelos projetos cofinanciados pelo Fundo Municipal, de forma objetificada e pouco participativa. As noções de controle e disciplinamento social são intrínsecas à abordagem assistencialista adotada. Ao final, o artigo apresenta as perspectivas de crianças e adolescentes sobre suas realidades e algumas possibilidades de inserção de sua participação no Conselho.

Palavras-chave: Infância; Adolescência; Participação; Conselhos de Direitos.


ABSTRACT

In this paper, we aim to reflect on how the participation of children and adolescents has been incorporated by a Municipal Council of Rights, in the interior of the state of Rio de Janeiro. We report our experience as counselors, from 2012 until 2018, and as coordinators of an extension project developed in 2016 and 2017, which sought to create a space for children and adolescents to speak and to sensitize professionals on this topic. We held workshops with 60 children, 25 adolescents and 20 professionals who worked in the social assistance network. We observed that the subjects from younger generations continue to be treated by the Council, as well as by projects cofinanced by the Municipal Fund, in an objectified and little participative way. The notions of control and discipline are intrinsic to the welfare approach adopted. At the end, the paper presents perspectives of children and adolescents about their realities and some possibilities for their participation in the Council.

Keywords: Childhood; Adolescence; Participation; Rights Council.


RESUMEN

En este artículo, buscamos reflexionar sobre cómo la participación de niños y adolescentes ha sido incorporada por un Consejo Municipal de Derechos, en el interior del estado de Río de Janeiro. Reportamos nuestra experiencia como consejeras de derechos, de 2012 a 2018, y como coordinadoras de un proyecto de extensión desarrollado, en 2016 y 2017, que buscaba crear un espacio para que los niños y adolescentes hablaran y sensibilizar a los profesionales sobre este tema. Realizamos talleres con 60 niños, 25 adolescentes y 20 profesionales que trabajaban en la red de asistencia social. Observamos que los sujetos de las generaciones más jóvenes siguen siendo tratados por el Consejo, así como por los proyectos cofinanciados por el Fondo Municipal, de forma objetivada y poco participativa. Las nociones de control social y disciplina son intrínsecas al enfoque de bienestar adoptado. Al final, el artículo presenta las perspectivas de los niños y adolescentes sobre sus realidades y algunas posibilidades para su participación en el Consejo.

Palabras claves: Infancia; Adolescencia; Participación; Consejos de Derechos.


 

 

INTRODUÇÃO

No interior do Estado do Rio de Janeiro, o dia 6 de setembro de 2016 foi marcado pelo encontro de crianças e adolescentes com seis candidatos à prefeitura. O encontro tinha como objetivo a apresentação, pelos candidatos, de suas propostas voltadas ao público infanto-juvenil, ouvindo sugestões e críticas de crianças e adolescentes participantes. Na ocasião, um menino de 12 anos apontou a falta de infraestrutura na comunidade onde morava e perguntou a um candidato, que à época era o vice-prefeito do município, o que ele pretendia fazer para mudar essa realidade. O político, então, reagiu de forma dura, afirmando que o menino não deveria morar na referida comunidade, pois senão, saberia das obras que haviam sido realizadas, desautorizando, claramente, a fala da criança. Os outros candidatos aproveitaram o conflito para dizer que ele precisava "ouvir mais o menino"; outro ainda afirmou: "Meninos como o M. estão em todas as partes da nossa cidade e são ignorados por esse desgoverno que torrou bilhões e vendeu o nosso futuro três vezes. Como dizia Gonzaguinha: 'eu fico com a pureza da resposta das crianças'" (Bastos, 2016). Enquanto os outros políticos exploravam a fala do menino para atingir o candidato da situação, M. caía em lágrimas, precisando ser acolhido por pessoas próximas.

Essa cena nos faz refletir sobre como crianças e adolescentes vêm sendo tratados pelo Estado em nosso país. A partir da sua posição geracional, nossa sociedade de modo geral reserva uma posição de subcidadania a crianças e adolescentes, em diferentes níveis. Definidos a partir de sua pouca idade (Oliveira & Abramowicz, 2017), a condição infanto-juvenil é marcada pela menoridade jurídica (Castro, 2007) - que no campo dos direitos lhes promove proteção, simultaneamente lhes constituindo como único grupo social que não pode exercer plenamente sua cidadania (Sarmento, 2007). No âmbito da política representativa, da cena antes descrita, crianças e adolescentes não podem votar e nem serem votados/as. Nesse sentido, em tais espaços, crianças e adolescentes frequentemente não são ouvidos/as nas propostas de governo, nem na formulação de políticas públicas. O direito à participação é negado nas diversas instituições e, principalmente, pela política representativa. Por outro lado, quando buscam se fazer ouvir, há frequentemente uma tentativa, por parte dos adultos, de desautorizar seus saberes e falas. Outra forma de silenciamento, menos explícita, é a apropriação da imagem da criança pobre, por parte de alguns gestores públicos, não com o interesse de levar a cabo aquilo que seria necessário para melhorar suas condições de vida, mas para se autopromover. Assim, colocam-se como benfeitores, recorrendo a imagens das crianças como "puras", "inocentes" e "ingênuas", sem de fato levarem a sério seus questionamentos e opiniões.

Considerando estas questões, temos como objetivo refletir como o Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CMDCA) desempenha sua função de planejar, monitorar e avaliar a política de atendimento a crianças e adolescentes, o modo como vem considerando a participação destes sujeitos nas suas práticas, e alguns caminhos propostos para efetivar a participação infanto-juvenil no Conselho. Relatamos uma experiência desenvolvida junto ao CMDCA de um município de médio porte do interior do estado do Rio de Janeiro, em que desenvolvemos um projeto de extensão e participamos como conselheiras nas plenárias e nas comissões regimentais representando a universidade. Discutimos ao longo do texto as imagens de crianças e adolescentes na história brasileira, e como elas estão presentes nas ações do referido órgão de controle social.

 

DE OBJETOS DE CONTROLE E DISCIPLINAMENTO SOCIAL A SUJEITOS DE DIREITOS: IMAGENS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL

As várias imagens atribuídas socialmente a crianças e adolescentes incidem na forma com que esses grupos geracionais são tratados pelo Estado brasileiro. Adotando uma análise histórica das representações sociais (Pinheiro, 2006), retomamos a imagem da criança e do adolescente como objetos de controle e disciplinamento social até chegarmos à imagem deles/as como sujeitos de direitos. É importante ressaltar que embora haja um percurso histórico de construção dessas representações, entendemos que essas diferentes imagens continuam presentes em nossa sociedade, tensionando concepções, ações e políticas em relação às crianças e aos adolescentes no Brasil.

A partir do século XIX, iniciou-se no país o processo histórico de desenvolvimento urbano e de construção de si como uma nação. Uma peça fundamental para isso, segundo Jurandir Freire Costa (1989), foi o dispositivo médico-higiênico que arrancou mulheres e crianças da alcova, alegando os inúmeros males que as acometiam e possibilitou a integração da família à cidade. A infância passou a ser percebida como fase inicial da vida a qual se deveria cuidar, pois a maneira como um indivíduo era tratado na infância, era determinante de suas qualidades corporais e mentais quando adultos. Dessa forma, as rotinas religiosas e de subsistência, nas famílias burguesas, foram substituídas pela educação das crianças, adequando o tempo e o espaço das casas para atender à higiene, à proteção e ao cuidado. Em direção às famílias pobres, o Estado fazia campanhas de moralização e higiene familiar.

Neste contexto, nas primeiras décadas de 1900, o Estado se juntou aos setores filantrópicos protagonizando o trato público da infância pela via da educação e da profissionalização. Passou a atender à infância pobre, pois no núcleo da representação social da criança estava o pressuposto de que a prevenção da "marginalidade" se daria por meio da formação de mão de obra para o trabalho. "A vida da criança e do adolescente deveria, então, ser preservada para que fossem colocados a serviço do Estado" (Pinheiro, 2006, p. 56). Inseridos no mercado de trabalho estariam colaborando para o desenvolvimento da nação. Tal imagem estava atravessada pelo imaginário social de que "jovem pobre é melhor trabalhando do que ficar ocioso nas ruas" (Pinheiro, 2006, p. 56). Essa dinâmica concretizou-se como forma de controle e disciplinamento social de crianças e adolescentes pobres, para quem o Estado oferecia uma formação precária e limitada.

Outra imagem importante que surgiu neste mesmo contexto histórico foi a da criança e do adolescente como 'objetos de repressão social' (Pinheiro, 2006). Nessa representação, a ideia de proteção estava mais atrelada à sociedade, que buscava proteger-se do "menor", do que realmente garantir a proteção da criança (Rizzini & Rizzini, 2004). Neste sentido, investiu-se no processo de institucionalização dos mais pobres, vistos como "delinquentes" que, supostamente, não encontravam em suas famílias condições para se desenvolverem e se inserirem na sociedade. No entanto, o tratamento dado transformou-se ao longo da história, estando, atualmente, amarrado a outra representação: a de crianças e adolescentes como 'sujeitos de direitos', preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei n° 8.069/1990).

Tal representação emergiu mais fortemente durante a redemocratização do país, marcada por um período expressivo da luta dos movimentos sociais pela defesa dos direitos da criança. No âmbito da garantia formal, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe grandes inovações, ao assegurar o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança e o bem-estar, além de garantir participação civil e controle social sobre as ações do Estado. Os direitos de participação e de exercer o controle social representaram a possibilidade da sociedade civil organizada interferir politicamente nos órgãos e agências do Estado responsáveis pela elaboração e gestão das políticas públicas na área social. Uma das formas de exercer esta participação e controle social é através dos Conselhos. Estes são espaços paritários formados por representantes da sociedade civil organizada e do poder público, onde se discute, elabora e fiscaliza as políticas sociais. Devem ser percebidos como o locus da ação política orientados pela democracia participativa.

O ECA (Lei n° 8.069) encarna a noção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, e tornou obrigatória a criação dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente nos três níveis: Nacional, Estadual e Municipal. Estes são espaços nos quais o governo e a sociedade civil devem discutir, formular e deliberar, de forma compartilhada e responsável, as demandas para as políticas públicas de promoção e defesa dos direitos para essa população. Em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CNUDC), o ECA formaliza os direitos de proteção para todas as crianças, como também, ainda que de forma mais difusa no texto da lei, estabelece direitos de participação para tal população. Os direitos de participação remetem-se à garantia de que o país respeitará e ofertará as condições necessárias para que a criança e o adolescente exerçam a liberdade de pensamento, de opinião, de expressão, de crença/religião, de cultura, e que tenham sua opinião ouvida, valorizada e respeitada, especialmente em assuntos relacionados diretamente à sua vida.

No entanto, no que tange aos direitos de participação, há uma dificuldade recorrente de crianças terem tais direitos garantidos (Freeman, 2011), pois pesam argumentos como: a tomada de decisões frequentemente vistas pelos adultos como equivocadas, e a falta de maturidade que lhes é atribuída, sendo esta um incapacitante para decidir e participar. Argumentos, estes que denotam uma perspectiva desenvolvimentista e a prevalência do critério etário na concepção da infância, ou melhor, expressam uma visão incapacitante sobre as crianças a partir de sua idade. A própria Convenção dos Direitos da Criança (Decreto n° 99710/1990) ao mesmo tempo em que promulga direitos, também coloca no seu Artigo 12 a maturidade e a idade como condições a serem observadas para haver de fato respeito à opinião da criança.

Enquanto instância de controle social, os Conselhos operam com base nas representações dos setores envolvidos, no caso, na política de atenção à infância e à adolescência. Ocupam em geral os cargos de conselheiros/as pessoas adultas engajadas em instituições, grupos e/ou movimentos sociais atuantes no campo da infância e adolescência, das políticas públicas voltadas a essa população, entre outros. No cotidiano destes Conselhos, conselheiros/as são supostos representantes dos interesses de crianças e adolescentes. Ocorre que as crianças e adolescentes não estão lá. Essa representação "nunca reflete totalmente os anseios dos representados, assim como ela nunca organiza tão eficazmente sua voz, ou nunca reivindica de modo adequado sua vontade. Ou seja, ... ela também qualifica indevidamente os representados" (Castro, 2007, p. 5).

Nossa atuação nos CMDCAs, enquanto adultos, está então inexoravelmente marcada por nosso olhar de mais velho sobre a realidade e a política pública, de modo que nossa posição geracional, adicionada de nossa atuação junto à população infanto-juvenil, produz facilmente para nós o lugar-comum de sujeitos esclarecidos quanto ao "melhor interesse da criança" (López-Contreras, 2015). Todavia, como alerta Lucia Rabello de Castro (2007), até nossa forma de fazer política e de conduzir a política pública diz de nós, adultos, e não dos mais jovens. Ao contrário, a hierarquia (geracional) marcante de nossa sociedade, perpassa tais espaços deliberativos de modo que o controle social das políticas é plenamente exercido (e dominado) por adultos, passando ao largo das ações e do olhar dos sujeitos aos quais ela se destina.

Por isso, Michael Freeman (2011) aponta que a dificuldade basal é, principalmente, compreender os direitos das crianças enquanto direitos humanos, que têm de ser respeitados para todos os casos e para todas as pessoas, deixando que a criança aprenda a ser autônoma desde pequena. Nesse sentido, os direitos das crianças, inclusive os direitos de participação, devem ser providos no presente e não serem postergados para usufruírem quando já forem adultas (Freeman, 2011). Os direitos à proteção e à participação estão intrinsecamente ligados e a relevância de associar a discussão de ambos é teórica e conceitual (Qvortrup, 2015), mas também prática, pois se sabe que nos contextos onde crianças têm seus direitos de participação reconhecidos, a proteção também é melhor garantida (Freeman, 2011) e vice-versa. Portanto, combater a invisibilidade da criança, promovendo e garantindo a participação, é uma forma de permitir que exerçam sua cidadania e se alcance maior proteção social.

A tensão entre o exercício dos direitos de participação e o gozo de direitos de proteção deriva do crescimento da retórica dos direitos da criança e do adolescente; estudos nacionais e internacionais (Arantes, 2009; Smith, 2011) no campo da infância têm ressaltado isso. Há o reconhecimento, por um lado, da condição de pessoa em desenvolvimento que evoca proteção; e por outro lado, há afirmação do sujeito de direitos que evoca autonomia. Embora os estudos defendam que essa tensão não é, necessariamente, contraditória, ela frequentemente concretiza-se como tal em nossa sociedade - adultocêntrica e tutelar - que demanda competências para conceder direitos. Essa tensão se expressa também em outros antagonismos envolvendo a infância e a adolescência como, por exemplo, o da menoridade versus capacidade, que ocupou o debate público em 2015 no país, por ocasião da retomada política de uma proposta de redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, pela Câmara dos Deputados. Esses paradoxos (proteção versus participação, e menoridade versus capacidade) estão presentes na forma como a infância e adolescência são socialmente percebidas e refletem alguns dos "nós" que atravessam as relações intergeracionais entre adultos e crianças/adolescentes.

Buscando compreender como desatar esses "nós", refletimos sobre a participação de crianças e adolescentes em um Conselho Municipal de Direitos, do interior do Estado do Rio de Janeiro. A seguir apresentamos a caracterização deste CMDCA e a metodologia utilizada.

 

PERCURSOS JUNTO AO CONSELHO MUNICIPAL DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O CMDCA envolvido na pesquisa foi criado em dezembro de 1990 e caracteriza-se como um órgão municipal paritário de decisão autônoma, deliberativo e controlador das ações e das políticas sociais de defesa e promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Preferimos, neste artigo, não identificar especificamente o CMDCA e nem o município em questão, por nossa escolha ética de não expor conselheiros/as das gestões referidas neste trabalho, sendo o mesmo aplicado a crianças e adolescentes participantes. Além disso, os dados apresentados a seguir, apesar de emergirem de um contexto local específico, ocorrem também, frequentemente, em outros contextos e gestões de Conselhos.

De acordo com Lara Pazini Fonseca e Juliana Mendes (2016), os Conselhos Municipais de Direitos das Crianças e dos Adolescentes devem cumprir o que determina o ECA, participando ativamente da construção de uma política municipal de proteção integral, promoção e defesa de direitos das crianças e adolescentes, com atenção prioritária para a criação e manutenção de um Sistema Municipal de Atendimento que articule e integre todos os recursos municipais. Para alcançar seus objetivos, é necessário que os CMDCAs participem da Lei Orçamentária para zelar e fazer cumprir o percentual de dotação do orçamento municipal, para com ele construir uma Política de Proteção Integral compatível com as necessidades de atendimento apresentadas pela população infanto-juvenil. Como, também, sejam responsáveis pela gestão do Fundo Municipal da Infância e Adolescência (FMIA)1. As fontes de receita desse fundo devem estar especificadas na lei que o cria, podendo ser advindas de multas aplicadas pela justiça, doações de pessoas físicas e jurídicas e do próprio poder público e devem ser destinadas às ações voltadas para crianças e adolescentes.

Além disso, cabe ao CMDCA acompanhar a execução das políticas de proteção às crianças e adolescentes, tomando providências administrativas quando o município ou o estado não oferecerem os programas de atendimento necessários às demandas locais. Atuando por meio de uma gestão participativa, conselheiros/as precisam estar qualificados/as para buscarem a ampliação dos direitos de crianças e adolescentes. Os/as conselheiros/as devem atuar com igualdade de condições, de hierarquia e sem distinção de peso entre seus votos.

Para a realização de suas atribuições, o CMDCA em questão conta com 16 conselheiros/as titulares e seus suplentes, sendo oito representantes governamentais e oito representantes da sociedade civil. Os representantes governamentais são indicados pelo poder executivo e os não governamentais são eleitos no Fórum da Sociedade Civil de Garantia dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. As decisões do Conselho são tomadas em reuniões-plenárias, que ocorrem mensalmente. Conta, ainda, com o apoio das equipes técnica e administrativa para a realização de suas atribuições.

Para auxiliar na tomada de decisões, o CMDCA tem as seguintes comissões regimentais: Finanças, Monitoramento e Avaliação de Projetos e Normas, formadas por conselheiros/as eleitos/as em plenária. Neste artigo, partimos da experiência como conselheiras entre os anos de 2012 e 2018, participando ativamente das plenárias e da comissão de Monitoramento e Avaliação de Projetos e como coordenadora de um projeto de extensão2 junto ao CMDCA. Estas experiências foram devidamente registradas nos nossos cadernos de campo, para que pudessem se tornar objetos de análises, como ocorre neste trabalho.

O projeto de extensão mencionado foi desenvolvido nos anos de 2016 e 2017, com o objetivo de fomentar ações, produzir conhecimento e provocar reflexões com atores/atrizes do poder público e da sociedade civil sobre a importância da escuta e da participação de crianças e adolescentes nas diferentes instituições em que estão inseridos, na formulação e no monitoramento das políticas públicas. Foram realizadas oficinas com grupos de crianças, adolescentes e com cerca de 20 profissionais que atuavam na rede socioassistencial. Participaram 60 crianças, de 5 a 12 anos, e 25 adolescentes, de 12 a 18 anos, de seis diferentes instituições que desenvolviam projetos cofinanciados pelo FMIA. Esses projetos eram voltados para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, e três tinham a especificidade de atenderem pessoas com deficiências, principalmente, auditiva, visual e intelectual.

Em relação aos métodos utilizados nos encontros, podemos citar: rodas de conversas, debates, jogos, dinâmicas, desenhos, brincadeiras e conversas informais que tinham por objetivo conhecer os/as integrantes dos grupos e suas realidades, entender de quais maneiras se davam a participação de crianças e adolescentes nas instituições que faziam parte (na família, na escola e nos projetos), e discutir coletivamente propostas para esses espaços e a comunidade onde vivem.

As crianças foram divididas em cinco grupos, que contaram em média com quatro encontros cada um. Neles, elas demonstraram capacidade de dialogar sobre as instituições que frequentavam, fazendo de suas realidades pautas para as discussões. Podemos destacar duas atividades propostas. Na primeira, foi pedido que desenhassem os trajetos e caminhos que percorriam pela cidade, os lugares que frequentavam, e falassem sobre seu cotidiano. Na segunda, pedimos para que as crianças construíssem a cidade, a escola e o projeto dos sonhos, pensassem em elementos a serem mudados diante do que já existe, de forma a construir lugares que atendessem mais suas demandas e necessidades.

Os encontros com as/os adolescentes foram elaborados a partir de temáticas levantadas por eles/elas como sendo importantes de serem debatidas conjuntamente. Foram realizadas sete oficinas que versaram sobre: o direito à participação de adolescentes; discriminação, preconceito e exclusão, considerando as questões énico-raciais, de pessoas com deficiência e LGBTQI +; Consumo e discriminalização das drogas; sexualidade e gênero, com ênfase na saúde da mulher; as eleições municipais e um encontro avaliativo do projeto de extensão. Simultaneamente as oficinas com adolescentes, os profissionais que atuavam com eles/elas se reuniam para refletir sobre as mesmas temáticas, trocando experiências sobre como as instituições onde trabalhavam lidavam com essas questões e o que poderiam fazer para ampliar a escuta e a participação de adolescentes.

Na próxima seção, apresentamos alguns elementos mais importantes, relativos à participação de crianças e adolescentes, os quais emergiram da nossa experiência como conselheiras e de informações derivadas do projeto de extensão já mencionado. Foram adotados dois eixos analíticos: CMDCA: a problemática da participação de crianças e adolescentes na formulação, monitoramento e avaliação da política; e Possibilidades e desafios da participação de crianças e adolescentes no CMDCA.

 

CMDCA: A PROBLEMÁTICA DA PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA FORMULAÇÃO, MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DA POLÍTICA

As experiências adquiridas no Conselho nos levam a problematizar a ausência da participação de crianças e adolescentes no processo de formulação, monitoramento e avaliação da política de atendimento. As discussões das plenárias pouco abordavam questões mais estruturais da realidade local para se pensar a política de atendimento às crianças e adolescentes no município, pois tendiam a ter centralidade em temáticas que exigiam um posicionamento do órgão colegiado, como os planos municipais, eleições para conselheiros/as tutelares, realização das conferências municipais, editais para cofinanciamento do FMIA e o monitoramento e avaliação dos projetos contemplados nesses editais.

Cabe destacar que boa parte das discussões feitas pelo CMDCA acabava sendo em torno do cofinanciamento de projetos e programas voltados à garantia de direitos das crianças e adolescentes no município. Dessa forma, foram realizadas, no decorrer do ano, atividades como: elaboração do edital de inscrição de projetos/programas para financiamento, análise e votação dos projetos a serem cofinanciados, monitoramento e avaliação dos projetos que recebem os recursos.

Não se pode negar que o FMIA é um campo de disputa, portanto, é na elaboração do edital de Chamamento Público que se percebe o maior envolvimento da sociedade civil. A partir do ano de 2011, os recursos do Fundo passaram a sofrer uma redução em seus valores, impactando no número de projetos cofinanciados e no valor destinado a eles. Neste sentido, os debates para a elaboração do edital, muitas vezes, acabavam se limitando às áreas que tendiam a privilegiar as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que já recebiam cofinanciamento. Além do que, muitas delas, contavam com assento no CMDCA, como representantes da sociedade civil. Assim, os editais tinham pouca possibilidade de ampliação para áreas/temáticas carentes de incentivo e investimento como, por exemplo, ações socioeducativas de fortalecimento de vínculos para crianças e adolescentes residentes nas áreas periféricas, rurais e em comunidades tradicionais e ações para a primeira infância. Neste sentido, o CMDCA acabava priorizando mais a manutenção das atividades já desenvolvidas, do que as novas demandas impostas pela realidade vivida por crianças e adolescentes no município.

Nos projetos contemplados, foi possível perceber, pela sua construção teórico-metodológica, que tendiam a compreender crianças e adolescentes como sujeitos destinatários da ação, sem oportunidade de participação na proposição das atividades desenvolvidas. As ações denotavam uma dimensão socioeducativa que visava ocupar o tempo livre e/ou promover a qualificação para o mercado de trabalho em funções que exigem baixa escolaridade, o que acaba promovendo uma inserção precária no mercado de trabalho. Essas iniciativas muitas vezes reforçam a ideia de "crianças perigosas" (Prout, 2010) a si mesmas e a sociedade, tendo a educação como a origem dos problemas sociais e, por isso, precisam de projetos que seriam capazes de prevenir à violência. A representação social desse grupo geracional, como objeto de controle e disciplinamento social, parece estar presente nas ações desenvolvidas pela maior parte das OSCs.

Também percebemos que nos editais elaborados pelo CMDCA havia uma preocupação em garantir o trabalho com as famílias, mas não havia sinalização para ações que envolviam a participação dos/as próprios/as atendidos/as no processo de implantação e avaliação das ações. "As crianças ocupam a posição de "assistidas" pelos projetos. O próprio termo nos aponta para uma dimensão que engloba certa passividade, a quem algo se dirige, que se deseja atingir" (Pérez, Silva, & Coelho, 2019, p. 90). Portanto, os editais não contribuíam para que a participação de crianças e adolescentes fosse incorporada ao processo metodológico dos projetos.

No que se refere às Comissões Regimentais, a Comissão de Avaliação e Monitoramento de Projetos foi a mais atuante, em função do seu papel de acompanhar as atividades efetivadas pelas entidades contempladas no edital. Esta Comissão realiza visitas de monitoramento e avaliação, em que se conversa com os/as técnicos/as que atuam nos projetos, no entanto, não há uma prática de conversar com os/as atendidos/as. Percebemos uma preocupação da comissão em verificar se crianças e adolescentes estavam frequentando a instituição, se o projeto estava sendo implementado seguindo o cronograma proposto, as dificuldades enfrentadas, mas não em ouvi-los/as sobre as atividades realizadas. Assim, a comissão conhece apenas a perspectiva daqueles que oferecem o serviço, sem se preocupar em entender se as demandas e as necessidades de crianças e adolescentes também estão sendo atendidas. Esta é uma forma de silenciamento dos sujeitos, uma vez que pressupõe que os adultos sabem o que é melhor para eles, sem que haja uma problematização deste lugar de saber. A falta de escuta das opiniões de crianças e adolescentes é preocupante, uma vez que o Conselho deveria ser exemplo de como os direitos desses grupos geracionais deveriam ser garantidos, entre eles, o de participação.

Também verificamos que no trabalho realizado pelo Conselho, de elaboração dos Planos Municipais de Ações Socioeducativas e de Convivência e Fortalecimentos de Vínculos também não foi cogitada a participação de crianças e adolescentes na sua proposição, como também não consta, no texto aprovado, ações que pudessem ouvi-los/as a partir da sua inserção nos programas, projetos e atividades executados.

Com isso, percebemos que há uma dificuldade nesse contexto em incorporar crianças e adolescentes como sujeitos com os quais se deve dialogar ao se propor, monitorar e avaliar as políticas sociais destinadas a eles/elas, enquanto uma prática sistemática. O que pudemos perceber foram ações pontuais e fragmentadas, como será abordado a seguir.

 

POSSIBILIDADES E DESAFIOS DA PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO CMDCA

O Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) construiu o Plano Decenal de Direitos Humanos (2011) com um eixo específico para tratar do "protagonismo e participação de crianças e adolescentes" que apresenta o objetivo estratégico de: "promover o protagonismo e a participação de crianças e adolescentes nos espaços de convivência e de construção da cidadania, inclusive nos processos de formulação, deliberação, monitoramento e avaliação das políticas públicas" (p. 4). Outro documento importante feito pelo CONANDA foi a Resolução 159, de 2013, que afirmou que caberá aos conselhos estaduais "articular, acompanhar e monitorar junto aos conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente a realização de atividades de participação de crianças e adolescentes" (p. 2). Dessa forma, o CONANDA começou a exercer uma cobrança maior da presença infanto-juvenil nos Conselhos, em busca de garantir o direito à participação desse grupo social.

No CMDCA que analisamos nesta oportunidade, a participação de crianças e adolescentes no processo de proposição, planejamento e avaliação das políticas públicas ocorre pontualmente nas Conferências Municipais, realizadas a cada três anos. O Conselho promove pré-conferências com crianças e adolescentes que participam dos projetos que recebem cofinanciamento do FMIA e destas são eleitos/as representantes para a conferência municipal, que participam junto com outros atores/atrizes da sociedade civil e do governo. Entretanto, apesar dos esforços, percebemos que os materiais produzidos nos referidos eventos não foram em momento algum trazidos ao âmbito do CMDCA para fazer valer os interesses de crianças e adolescentes que conseguiram participar dos encontros. Assim, por um lado, o texto tem pouca efetividade como um plano de ação a ser seguido e monitorado. Por outro, a participação infanto-juvenil possui pouco impacto na dinâmica do Conselho. As suas percepções sobre o município, as dificuldades vividas e as possíveis mudanças assinaladas acabavam não alcançando um lugar prioritário.

No intuito de promover a aproximação do Conselho com crianças e adolescentes, foram realizados encontros anuais, pelo CMDCA, com os sujeitos desse grupo geracional que eram atendidos pelos projetos selecionados. No final de cada ano, crianças e adolescentes de diferentes lugares podiam se conhecer e exibir suas produções culturais, tais como: apresentações de dança, teatro, capoeira, música, entre outras. Aconteceram quatro encontros que tiveram um caráter de confraternização, voltados para promover a socialização e avaliação dos projetos. Dessa forma, não tinham como principal objetivo provocar a escuta sobre as vivências destes sujeitos nos projetos, por exemplo, para que pudessem interferir na avaliação dos mesmos e, consequentemente, na condução de políticas públicas.

Assim, notamos que havia a necessidade de construir um espaço de escuta de crianças e adolescentes, em que pudéssemos conhecer melhor as dificuldades enfrentadas em seu cotidiano e as suas demandas para o município, de forma mais constante e não apenas pontual. Em parceria com o CMDCA, desenvolvemos ao longo de dois anos oficinas, dentro do projeto de extensão, onde eles/as puderam compartilhar questões que precisavam lidar na família, na escola, nos projetos de contraturno escolar e na comunidade.

Nas oficinas, crianças e adolescentes apontaram problemas como: a violência e o tráfico de drogas, vistos como algo sem chances de mudança; a falta de equipamentos públicos básicos na sua comunidade, como escolas, postos de saúde, creche, espaços de lazer; a inversão do papel da polícia, pois para eles/elas, os que deveriam assegurar a sua segurança eram os mesmos que temiam; o programa municipal de habitação, que retirou muitas famílias de seus locais de moradia para residirem em conjuntos habitacionais, gerando dificuldades de se adaptarem à nova realidade; questões ambientais, como a poluição do principal rio da cidade e da ausência de parques e áreas verdes; transporte, muitos se queixaram de não conhecerem o centro e das dificuldades de se deslocarem na cidade.

Além disso, relataram situações vividas na escola e nas ruas, em que sofreram racismo por serem negro/as, preconceito e discriminação por terem alguma deficiência física ou por sua orientação sexual. Em relação às escolas, reclamaram também da falta de espaço e tempo para brincadeiras, expressões culturais e de contato com a natureza. Essas contribuições fizeram com que compreendêssemos mais sobre as dificuldades vividas por crianças e adolescentes no município, revelando como a invisibilidade e a falta de participação deste grupo geracional nas políticas públicas é ainda agravada pelas questões de gênero, raça, desigualdade social e pelo território de moradia.

Uma das principais questões apresentadas por crianças e adolescentes foi a falta de espaço nas instituições para debater temas que consideravam importantes. De um modo geral, ressaltaram que apesar de se sentirem pertencentes à comunidade em que vivem, não possuem muitos espaços, formais e nem informais, para refletir e opinar sobre problemas que afetam seu dia-a-dia, e propor possibilidades de transformação. Os/as adolescentes reclamaram que muitos assuntos eram considerados "tabus" pelos adultos e, por isso, acabaram não sendo conversados na família e na escola, tais como: uso de drogas, sexualidade, aborto. Observamos isso nas falas de dois adolescentes que participaram do projeto: "na minha escola a diretora não gosta que falem sobre sexo, fala que eles têm boca suja e que quando a professora explicou isso em sala, ela não gostou" e "na minha casa minha mãe não gosta de falar sobre isso, disse que se um dia eu quiser arrumar um filho, é para eu arrumar um serviço primeiro".

Não por acaso, essas foram temáticas escolhidas por eles/as para serem discutidas em algumas oficinas. Percebemos que em muitas atividades propostas os/as adolescentes ficaram calados/as ou tímido/as, com medo de expor suas opiniões e posicionamentos talvez por um possível julgamento dos outros e das equipes técnicas dos projetos que participavam e que se encontravam no mesmo espaço. Através de um trabalho de interação com dinâmicas de grupo foi construído um ambiente de maior confiança, onde eles/elas passaram a se sentir mais à vontade para se expressar.

Foram encontradas resistências no decorrer das atividades, principalmente, por parte das equipes técnicas dos projetos. Essas queriam que as atividades fossem previamente passadas a elas, no intuito de instruir a fala dos/as participantes e prepará-los/as para terem bom desempenho nas oficinas. Explicamos que não era necessário, pois gostaríamos que os encontros fossem um espaço de participação onde crianças e adolescentes pudessem juntos/as elaborar sentidos, a partir de suas vivências e reflexões; sem que fosse necessário se preocuparem se suas respostas estavam "certas" ou "erradas" (Pérez, Silva, & Coelho, 2019).

Além disso, notamos que os/as profissionais demonstraram dificuldade de lidar com temas, como sexualidade e gênero, justificando questões religiosas da própria instituição e uma cobrança moral das famílias. Esse posicionamento acabou por reforçar a fala da/os adolescentes da tentativa de silenciamento de "temas tabus", não considerados apropriados pelos adultos para serem conversados com eles/as. Nesse caso, percebemos como a participação infanto-juvenil pode encontrar resistência nas entidades, principalmente, porque muitas possuem um caráter confessional e seguem com a perspectiva de proteção, controle e disciplinamento social das crianças pobres. A sexualidade permanece sendo compreendida como objeto de repressão, principalmente, aquelas consideradas desviantes.

Tendo em vista essa relutância inesperada, foi reconhecida a necessidade de trabalhar com integrantes da equipe técnica dos projetos que acompanhavam os/as adolescentes. Neste caso, foram feitas rodas de conversas com psicólogos/as, assistentes sociais e educadores/as, objetivando fazer um trabalho de sensibilização sobre o tema da participação infanto-juvenil e como vem sendo abordada nas instituições onde trabalham. Embora muitos/as profissionais tenham falado que as instituições buscam promover debates, era difícil conseguirem se colocar numa posição de escuta dos sujeitos e, por meio disso, construir um espaço de troca de saberes. Nas oficinas, foi possível observar os adultos depositando seus conhecimentos, de forma a ensinar, aconselhar ou questionar os posicionamentos de crianças e adolescentes. Notamos como é difícil para os adultos, enquanto grupo geracional, se colocarem numa relação mais horizontalizada com crianças e adolescentes, buscando a construção de outras formas de relação para além da tutela ou do ensino.

Como uma forma de avaliar as oficinas, foram feitas enquetes do que crianças e adolescentes mais gostaram nos encontros e o que mudariam, buscando compreender se o projeto cumpriu seu objetivo de promover a participação. Ele/as ressaltaram ter gostado muito de visitar outros lugares, de debater temas que não tinham espaços para discutir e ter a oportunidade de se expressarem e serem ouvidos/as. A partir disso, pensamos como seria importante ter no CMDCA um fórum para que crianças e adolescentes pudessem participar de forma efetiva e frequente, e trabalharem junto com os/as conselheiros/as na defesa e promoção de seus direitos, colocando em debate pautas que são consideradas importantes para esse grupo geracional.

Foi feita uma devolutiva dos resultados do projeto de extensão em um evento na Universidade em que promovemos o diálogo com o CMDCA para pensarmos em futuros desdobramentos destas ações. No entanto, o Conselho teve dificuldade de dar continuidade a esta proposta, considerando a sobrecarga de trabalho dos/as conselheiros/as e dos/as técnicos/as, da falta de recursos financeiros disponíveis, e por não considerarem prioridade, dentro desse contexto, a criação de um espaço permanente de participação. É importante destacar também que, apesar das discussões realizadas, a temática da participação continuou ausente dos projetos submetidos aos editais do FMIA.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cena descrita na abertura do presente artigo sobre a reunião com candidatos à prefeitos tem profunda relação com o lugar dado à fala das novas gerações no contexto de políticas públicas de proteção e promoção de direitos. A hierarquia geracional presente na cena também foi observada na condução feita pelo Conselho dos projetos que atendem crianças e adolescentes. Os/as adultos/as conselheiros/as e/ou técnicos/as não têm como prioridade a promoção da participação das gerações mais novas nos projetos onde elas mesmas são público-alvo. Essas situações são indicativas da enorme distância que separa a legislação da prática da participação. Assim, o Conselho que deveria garantir, monitorar e avaliar se os direitos das crianças estão sendo respeitados, inclusive os direitos de participação, não os coloca como uma prioridade, sendo sempre adiados para um momento mais oportuno, num futuro que parece inalcançável.

Com a experiência descrita, criamos uma abertura para ouvir o que crianças e adolescentes têm a nos dizer sobre suas realidades e vivências. Porém, não apenas como uma ação da Universidade, de quais formas podem fazer parte do Conselho, tendo suas opiniões levadas em conta nas tomadas de decisão? Incluir a participação de crianças e adolescentes em espaços democráticos já instituídos e voltados para os adultos é um grande desafio, uma vez que requer necessariamente repensar a sua organização, de forma a se tornarem espaços atraentes e respeitosos aos tempos e às demandas desse grupo social. A hierarquia geracional vem historicamente constituindo-se como uma barreira. Será que adultos, de modo geral, querem a participação de crianças e adolescentes nesses contextos de tomada de decisão? O que isso implica em mudanças na organização e nas negociações dos projetos pelas entidades?

A partir do trabalho desenvolvido, avaliamos que essas questões são centrais para enfrentar os obstáculos à participação, com vistas a aumentar a representatividade das gerações mais novas junto ao Conselho. Com base na legislação, desenhamos algumas sugestões possíveis: (a) formação e sensibilização sobre o tema da participação de crianças e adolescentes para conselheiros/as de direitos, tutelares e profissionais de instituições governamentais e não governamentais envolvidos/as no atendimento direto à criança e ao adolescente; (b) construção de editais de Chamamento Público com critérios de seleção que considerem a participação de crianças e adolescentes nos projetos a serem cofinanciados pelo FMIA; (c) criação de instrumentos de monitoramento e avaliação dos projetos, que recebem recursos do FMIA, com a escuta de crianças e adolescentes; (d) construção de um fórum permanente de participação de crianças e adolescentes no CMDCA; e) Criação de ações que incentivem a participação de crianças e adolescentes nos programas, nas instituições e nos serviços públicos e privados voltados para esse público; (f) continuidade de debates com candidatos à prefeitura e à câmara de vereadores com a participação de crianças e adolescentes; (g) ampliação da participação infanto-juvenil nas Pré-conferências e Conferências municipais de direitos humanos, abarcando a diversidade de crianças e adolescentes existentes no município, considerando seus territórios, etnias, raças, gêneros, classes sociais, deficiências e grupos etários.

Essas sugestões não pretendem esgotar as possibilidades de atuação de crianças e adolescentes no CMDCA, uma vez que em cada município possui especificidades que deverão ser consideradas. No entanto, notamos que muitas vezes há uma dificuldade de pensar concretamente o direito à participação, e como pode ser promovido e garantido nos espaços de controle social. A partir das experiências narradas neste artigo, pudemos vislumbrar algumas ações que problematizam os lugares hierárquicos ocupados por crianças/adolescentes e adultos e que abrem caminhos para a participação infanto-juvenil.

 

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Recebido em: 13/07/2020
Aprovado em: 10/08/2021
Financiamento: O projeto de extensão "Construção de espaços de escuta e participação de crianças e adolescentes: uma parceria com o Conselho Municipal de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campos dos Goytacazes", coordenado pela professora Beatriz Corsino Pérez obteve Bolsa de Desenvolvimento Acadêmico, pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal Fluminense em 2016 (PROAES-UFF2157)

 

 

Contribuição dos Autores:
Concepção: BCP, JNTM, SSL
Coleta de dados: BCP e JNTM
Análise de dados: BCP e JNTM
Elaboração do manuscrito: BCP, JNTM, SSL
Revisões críticas de conteúdo intelectual importante: BCP, JNTM, SSL
Aprovação final do manuscrito: BCP, JNTM, SSL
Consentimento de uso de imagem: Não se Aplica
Aprovação, ética e consentimento: O projeto de extensão "Construção de espaços de escuta e participação de crianças e adolescentes: uma parceria com o Conselho Municipal de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campos dos Goytacazes", coordenado pela professora Beatriz Corsino Pérez, foi cadastrado no SIGPROJ (Nº do Protocolo na Pró-Reitoria de Extensão Universitária 224237.1115.248120.05022016) e no SISBOL (PROAES-UFF2157), foi avaliado e aprovado pela Pró-Reitoria de Extensão, pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal Fluminense e pela Plenária do Conselho Municipal de Promoção dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes de Campos dos Goytacazes/RJ.
O projeto de extensão "Assessoria as instâncias públicas de controle social no âmbito das políticas de proteção e promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes: fortalecendo a participação e o controle social" , coordenado pela professora Juliana Thimóteo Nazareno Mendes foi cadastrado no SIGPROJ (Nº do Protocolo na Pró- -Reitoria de Extensão Universitária: 240203.1113.124903.16062016), avaliado e aprovado pela Pró-Reitoria de Extensão, e pela Plenária do Conselho Municipal de Promoção dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes de Campos dos Goytacazes/RJ.
1 O Fundo Especial para a Infância e Adolescência é previsto pela Lei Federal nº 8.069/90 em que dispõe que sua criação deve ser uma das diretrizes da política de atendimento à criança e ao adolescente, em todas as esferas. No âmbito municipal, ele é criado pela Lei que institui a Política Municipal de Atendimento à Criança e ao adolescente.
2 Projeto de extensão "Construção de espaços de escuta e participação de crianças e adolescentes: uma parceria com o Conselho Municipal de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campos dos Goytacazes", coordenado pela professora Beatriz Corsino Pérez, NIJUP/UFF, com apoio da PROAES-UFF.

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