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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dez. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A feminização do homem hétero em eXistenZ, de David Cronenberg

 

The feminization of the straight man in eXistenZ, by David Cronenberg

 

La feminización del hombre hetero en eXistenZ, de David Cronenberg

 

 

Fernando MascarelloI; Amadeu de Oliveira WeinmannII

IDoutor em Cinema pela USP em 2004. E-mail: mascadu@terra.com.br
IIDoutor em Educação pela UFRGS em 2008. E-mail: weinmann.amadeu@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma revisitação analítica ao filme eXistenZ (1999), de David Cronenberg, focalizando um de seus temas centrais, mas pouco explorado por sua fortuna crítica: a feminização do homem no espaço das práticas eróticas heterossexuais. O tema se articula no filme, em nosso entendimento, por meio de suas figurações alegóricas da erotização anal do homem e dos erotismos tântrico e taoista. Nossa abordagem exploratória tem o duplo caráter metodológico de interpretação fílmica e escuta psicanalítica, construindo-se nas interfaces entre os campos da psicanálise e dos estudos de cinema. Ela se ampara também em conceitual dos campos dos estudos dos homens e das masculinidades, feministas e queer, e, para fins de descrição do objeto, em subsídios buscados nos emergentes estudos acadêmicos tântricos e taoístas. Em psicanálise, mobilizamos conceitual antifalocêntrico de formulação recente por autores como Jacques André, Gerald I. Fogel, Silvia Bleichmar e Monique Schneider.

Palavras-chave: Psicanálise; Masculinidades; David Cronenberg; Tantra; Taoísmo.


ABSTRACT

This article proposes an analytical revisitation of the film eXistenZ (1999), by David Cronenberg, focusing on one of its central themes, but little explored by its critical fortune: male feminization in the arena of heterosexual erotic practices. The theme is articulated in the film, in our understanding, through its (1) allegorical figuration of man's anal eroticization and of the tantric and daoist eroticisms. Our exploratory approach has the double methodological character of film interpretation and psychoanalytic listening, built at the interfaces between the fields of psychoanalysis and film studies. It is also supported by concepts from the academic fields of men's and masculinities, feminist and queer studies, and, for the purpose of describing the object, from subsidies sought in the emerging Tantric and Daoist academic studies. In psychoanalysis, we mobilize recent antiphallocentric formulations by scholars such as Jacques André, Gerald I. Fogel, Silvia Bleichmar and Monique Schneider.

Keywords: Psychoanalysis; Masculinities; David Cronenberg; Tantra; Daoism.


RESUMEN

Este artículo propone una revisión analítica de la película eXistenZ (1999), de David Cronenberg, centrándose en uno de sus temas centrales, pero poco explorado por su fortuna crítica: la feminización del hombre en el espacio de las prácticas eróticas heterosexuales. El tema articulase en la película, a nuestro entender, por medio de sus figuraciones alegóricas de la erotización anal del hombre y de los erotismos tántrico y taoísta. Nuestro enfoque exploratorio tiene el doble carácter metodológico de interpretación fílmica y escucha psicoanalítica, en las interfaces entre los campos del psicoanálisis y los estudios cinematográficos. También se apoya en conceptos de los campos de los estudios masculinos y de masculinidades, feministas y queer; y, con el propósito de describir del objeto, de los subsidios buscados en los estudios académicos tántricos y taoístas emergentes. En psicoanálisis, movilizamos formulaciones antifalocéntricas recientes de autores como Jacques André, Gerald I. Fogel, Silvia Bleichmar y Monique Schneider.

Palabras-clave: Psicoanálisis; Masculinidades; David Cronenberg; Tantra; Taoísmo.


 

 

INTRODUÇÃO

A fim de jogar o jogo, Allegra Geller e Ted Pikul precisam se plugar. Allegra umedece os dedos e, com eles, lubrifica a bioporta lombar de Pikul, ainda em estado virginal. Tenta inserir a ponta saliente do UmbyCord. Pikul reclama de dor, pergunta se não está infectada. Ela insiste, a bioporta só está excitada e quer ação. Vemos ele de costas pra Allegra, revoltado: "Mas acho que eu não estou a fim de ação. Eu, o portador da bioporta excitada!"

Pikul agora tem uma bioporta funcional, instalada por Kiri Vinokur. Porque Gas, o frentista do posto, usando uma ferramenta que mais parecia uma britadeira, tinha instalado nele uma bioporta defeituosa, para contaminá-lo e poder dar cabo de Allegra...

Logo em seguida, sentado na cama e mais calmo, Pikul oferece de novo as costas a Allegra. Ela chupa a extremidade do UmbyCord e mete na abertura do parceiro, que a acolhe. Pikul apalpa atrás, pesquisando se está tudo bem e indaga: "Você leva uma vantagem injusta sobre mim. Como posso vencer a designer do sistema?" Allegra também se pluga e responde: "Você não poderia vencer o cara que inventou o jogo de pôquer?" E ainda: "Viu? Já está entrando no clima..."

Ele se cala, ela o contempla doce e maliciosamente e vai formando, com os dedos da mão direita, uma pinça com que aciona o bico arredondado do gamepad feito de tecidos de anfíbios mutantes. O corpo de Pikul se projeta para cima, ereto, ele abre os olhos e estuda comovido os contornos físicos da nova dimensão virtual. Sem pressa, faz passear suas mãos pelo corpo e pelo rosto, acaricia até mesmo a superfície da parede, respira fundo, então busca de novo o olhar de Allegra. "Eu não fazia ideia... foi incrível, me sinto simplesmente eu mesmo". "É comum uma transição assim, tão suave de um ponto a outro?" Ela responde que sim, "depende do estilo do jogo".

Duas ou três cenas mais tarde, seguindo no universo do jogo, Allegra investe decidida sobre ele no depósito ao fundo da loja de games. Pikul se entrega aos beijos e avanços dela mas continua inquieto... "E nossas novas identidades?" Allegra diz que elas podem cuidar de si mesmas. Ele não se contenta: "Onde estão nossos corpos verdadeiros? E se estiverem em perigo?" Ela tenta tranquilizá-lo: "Estão onde os deixamos. Quietinhos, de olhos fechados... como se estivessem meditando." Não convencido, Pikul se desvencilha do corpo dela e se afasta. "Me sinto vulnerável, como se estivesse desencarnado." Mais uma vez, ela desconversa e puxa ele de volta para transa: "Não se preocupe. Se houver algum problema, pulamos fora do jogo."

Mais adiante, numa das cenas no restaurante chinês, Pikul traz isso à tona: pausar o jogo. "Todos os jogos podem ser pausados, certo?" Allegra argumenta: "Mas você não quer ver o que há de tão especial no especial do cardápio?" Então, de súbito, de novo projetando o corpo para cima, ele grita: "Pausar eXistenZ!" A imagem corta para cama, a mesma onde começou o jogo, e lá estão os corpos deles dispostos lado a lado, contemplativos, "meditando". Allegra pergunta, frustrada e sarcástica: "E agora, como você se sente na sua vida real, essa pela qual você voltou?" Pikul diz que parece totalmente irreal. "Já está viciado, hein?", ela sentencia. "Quer voltar pro restaurante chinês, não é? Porque aqui nada acontece. Estamos seguros. É um tédio..."

 

2

Nessa transcrição que faço de uma seleção das cenas mais deliciosas, fica bem sugerido que o filme eXistenZ, de David Cronenberg (1999), constrói como um de seus temas centrais a "feminização do homem no campo das práticas eróticas hétero". Sob a moldura de uma trama de ficção científica que, dez anos depois, serviria de inspiração para os criadores da série Black mirror por conta de sua história sobre jogos de realidade virtual, não é difícil identificar, em eXistenZ, os habituais fascínio e repulsa exercidos pelo feminino sobre os protagonistas homens da maioria dos perturbadores filmes de Cronenberg (vejam-se Crash: Estranhos prazeres (1995); M. Butterfly (1993); Gêmeos - Mórbida semelhança (1988); Videodrome: A síndrome do vídeo (1982), entre vários outros). Fascínio e repulsa que, em meu modo de ver, se singularizam em eXistenZ, para um Ted Pikul convocado e guiado por Allegra, por sua articulação ao redor das representações alegóricas da erotização do ânus do homem e do erotismo de extração oriental (tântrico, taoísta), associados a um gozo não-fálico, não-heteronormativo e logo desviante: feminino, feminizante. E não é demais enfatizar o que já fica patente pela transcrição do texto fílmico: gozo inédito, convidativo, porém carregado de ameaças à garantia fálica e, por isso, disparador permanente de reações viris.

Porque, por um lado, para jogar o jogo chamado "eXistenZ", projetado por uma Allegra Geller que nos é apresentada como o maior talento criativo da indústria de games (além de chefe de Pikul), os jogadores devem todos se plugar ao gamepad ou controle "por trás", por meio de uma prótese lombar assemelhada a um ânus. E por outro lado, o jogo que a partir desse plugue tem início, no "estilo" como é jogado, pode prestar-se a uma interpretação enquanto saborosa alegoria fílmica de uma transa onde ambos os parceiros são passivos e contemplativos, se abrindo a prazeres historicamente associados ao feminino. São aqueles prazeres da família da entrega, da pele, da demora, da penetrabilidade e da interioridade, fomentadores em potencial de uma dinâmica de reterritorialização erógena, de um "para além do genital". Mais que isso, ainda, conjecturo, com base em diversas pistas fílmicas, que a encenação desses prazeres femininos em eXistenZ possa remeter, furtiva e quiçá inadvertidamente (a contrapelo portanto das próprias "intenções" do autor), ao erotismo esse, contemplativo, meditativo e não-ejaculatório, praticado por tântricos e taoístas desde séculos.

Fundamentalmente, desde o aparecimento em seus contextos culturais de origem, os erotismos tântrico (Índia, Tibete) e taoísta (China) derivam do prolongamento do coito através de técnicas de evitamento da ejaculação, ou seja, de retenção do esperma pelo homem, tendo dois objetivos maiores. Como objetivo principal, geralmente, nas múltiplas e distintas manifestações históricas dessas formas de erotismo, utiliza-se esse ato sexual, performado de modo contemplativo e ritualístico, como técnica de meditação e de circulação de "energia" (ou bioeletricidade, em linguagem das ciências médicas contemporâneas) (Kohn & Wang, 2009; Kripal, 2007; Urban, 2003). Secundária e simultaneamente, muitas vezes, e cada vez mais no Ocidente contemporâneo, são explorados pelos parceiros prazeres "não-genitais" das mais diversas espécies, com destaque para modalidades não-ejaculatórias de orgasmo masculino e também feminino, de que é exemplo destacado o chamado "orgasmo seco" no homem, e para o êxtase místico (Carrellas, 2007; Chia & Winn, 1984).

Nesses casos, a contemplação e a ritualização aparecem associadas a uma feminização do coito, por conta dos diversos aspectos femininos dos prazeres sexuais buscados, vinculados à entrega, à demora, à interioridade, ao compartilhamento e à procura por sensações prazerosas e/ou orgásticas através de regiões erógenas não-genitais. Apesar de os erotismos tântrico e taoísta serem minoritários e, variando conforme época e local, muitas vezes subterrâneos e até mesmo perseguidos no interior das tradições religiosas e/ou esotéricas asiáticas (Kohn & Wang, 2009; Urban, 2003), suas práticas articulam-se dentro de um marco mais universal da cultura esotérica (a qual também se faz presente na Europa, África e Américas) em que se entende que a "energia sexual", para o homem alegadamente concentrada no esperma, não deve ser objeto de "desperdício" via orgasmo ejaculatório, por ser a principal fonte de energia vital para o desenvolvimento da espiritualidade.1

Fundamental é ressaltar, claro, que o conceito de "feminino", tal como aparece nas noções de "feminização do homem hétero", "gozos e prazeres femininos" e "feminização do coito", é aqui empregado, para além de seus aspectos históricos e culturais, em um sentido filosófico (epistemológico, ontológico, político) assentado no reconhecimento da "diferença sexual". Passadas três e cinco décadas, respectivamente, do advento do pensamento feminista acadêmico e da teoria queer, o fato é que diversas modalidades de reconhecimento teórico da diferença sexual - mesmo que controversas e com frequência alvo de críticas pelo suposto caráter conservador de seu dualismo e/ou essencialismo - seguem definindo hoje vertentes teóricas importantes "empenhadas na crítica ao patriarcado e à heteronormatividade", as quais podem ser encontradas no interior tanto da psicanálise contemporânea de corte antifalocêntrico, quanto da teoria feminista e dos estudos acadêmicos tântricos e taoístas.

Começando pela psicanálise, um conjunto representativo de teóricos, embora ainda minoritários, têm se lançado, nas últimas três décadas, a revisar e reelaborar teoricamente a dimensão feminina da psicossexualidade, retirando-a de seu estatuto de inferioridade e imperfeição consignado pelo par fálico/castrado e pela inveja do pênis. Pilares da moldura falocêntrica da segunda metade do percurso freudiano, estes sobrevivem, na visão desses autores, reconfigurados na arquitetura teórica lacaniana do falo simbólico e da castração universal (ter x ser o falo etc.).

Nessa direção, uma positivação da feminilidade pode ser vista, por exemplo, na obra do francês Jacques André (1996), que promove um resgate teórico contundente da dinâmica psíquica relativa às sensações vaginais precoces da menina, vinculadas à chamada "confusão cloacal" ânus/vagina (com o bolo fecal como primeiro "pênis"). Segundo André, isso teria sido objeto de recalque teórico na obra freudiana a partir de sua virada falocêntrica dos anos 1920, que fez do clitóris como "pequeno pênis" o cerne da psicossexualidade na menina. Além disso, o autor se baseia na teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche para propor que, mais que apenas uma dimensão psiquicamente constitutiva de homens e mulheres (a qual é mais recalcada ou "repudiada" pelos homens heterossexuais, no entendimento da psicanálise), a feminilidade seria definidora das próprias origens da sexualidade, pelos efeitos da ação intrusiva ou "efractante" dos pais de ambos os sexos sobre o bebê, pensado por André como uma "criança-orifício". Já o estadunidense Gerald Fogel (2006) busca positivar a dimensão feminina da psicossexualidade conferindo-lhe nomeação conceitual mais definida, denominando-a "cloacal" por associá-la à "interioridade genital" (incluindo o ânus) "tanto de mulheres quanto de homens". Fogel sugere considerar essa dimensão cloacal como a "metade 'feminina'" constitutiva dos sujeitos de qualquer sexo, "da mesma forma como fálico refere à metade 'masculina'", relacionando-a não somente a aspectos mais diretamente psicossexuais como a passividade e a penetrabilidade, mas a outros aspectos psíquicos mais amplos como a receptividade, a plasticidade, a abertura à alteridade e ao imprevisto etc.

Penso que a manutenção da ideia de diferença sexual, nas formulações dessa vertente teórica psicanalítica antifalocêntrica, se coaduna (embora as óbvias assimetrias disciplinares entre as concepções psíquica e filosófica do feminino) com o entendimento filosófico de feminino defendido por diversas autoras reconhecidas da teoria feminista no século 21, com destaque para algumas feministas neomaterialistas. Boa parte dessas últimas, como as australianas Alison Stone (p. ex., 2006, 2016) e Elizabeth Grosz (p. ex., 2004), inspiram-se filosoficamente na ontologia e na política da diferença sexual formuladas, ao longo de sua trajetória, por Luce Irigaray. Stone (2006, 2016), por exemplo, não apenas resgata os méritos do dualismo sexual clássico de Irigaray, típico de suas obras dos anos 1970 - com seu célebre chamado à superação do patriarcado pela (re)construção e afirmação (ou "autoexpressão") de uma "cultura do feminino" -, como defende o que percebe como o destino desse dualismo, no pensamento irigarayano desde meados da década de 1980, em um "essencialismo realista" que desierarquiza o privilégio à cultura na sua relação com a natureza.

A fim de contornar alguns problemas importantes que identifica nessa segunda metade do percurso de Irigaray - como sua pouca atenção à interseccionalidade e aos intersexuais, concomitante a eventuais tendências ao heterossexismo -, Stone propõe um movimento de síntese, mediado pela filosofia da natureza de Schelling, entre o essencialismo realista irigarayano e o antiessencialismo construcionista e performativista de Judith Butler. No modelo ontológico neomaterialista que disso resulta, a autora assevera a possibilidade de um desdobramento histórico (Schelling) da natureza/cultura feminina, que contemple não apenas a (re)construção de uma cultura feminina superadora do patriarcado, mas também a manifestação e afirmação das múltiplas combinatórias potenciais entre o feminino e o masculino. Nessa formulação de Stone, portanto, restam acolhidas, em uma atitude integradora, tanto a diferença ou dualidade sexual irigarayana quanto a multiplicidade reivindicada por Butler e outros teóricos queer.

Essas visões psicanalíticas e neomaterialistas do feminino aqui aproximadas - uma feminilidade psíquica positivada na forma de penetrabilidade, passividade, receptividade, plasticidade e abertura à alteridade e ao imprevisto, e um feminino entendido filosoficamente, em suas relações com o masculino, como em dualidade complexa e passível, portanto, de combinatórias múltiplas e (re)construção histórica, são também bastante próximas, em termos gerais, das concepções de feminino (e masculino) encontradas no Tantra e no Taoísmo e em suas formas de erotismo esotérico.

Infelizmente, não é possível sequer ensaiar uma síntese satisfatória, aqui, da variedade de atitudes seja quanto ao entendimento mais detalhado das relações feminino x masculino ao longo dos debates filosófico e esotérico históricos tântricos e taoístas, seja no manejo dessas relações nas práticas e rituais eróticos concretos, nas muitas e distintas vertentes e escolas da Índia, Tibete, China ou do Ocidente contemporâneo, passadas e presentes. Aliás, para fins de ilustrar essa diversidade em apenas dois exemplos, basta dizer que, no terreno da filosofia taoísta, diferentes correntes debatem se o percurso místico tem como horizonte o feminino ou o andrógino (Ames, 1981); e que, no universo do erotismo tântrico clássico, as práticas ritualísticas na Índia frequentemente continham traços misóginos, ao contrário do que sucede habitualmente nas formas "New Age" ocidentais, sintonizadas com a cultura (em geral pró-feminista) pós-contracultural e mediadas pelo conceito de "divino feminino" (Kripal, 2003).

De toda maneira, para nossos fins de investigação do erotismo tântrico/taoísta alegorizado em eXistenZ, um filme realizado e com narrativa ambientada no Ocidente atual, o mais importante é que as visões "ocidentais contemporâneas" dessas práticas eróticas de origem oriental não apenas são compatíveis com a ideia de uma "feminização do homem" no coito como a propugnam, inclusive alinhando-se à luta antipatriarcal (Bruckner & Finkielkraut, 1989) e mesmo aventurando-se pelo terreno da diversidade queer (Carrellas, 2007).

Enfim, é munido desse entendimento psicanalítico, filosófico e erótico do feminino, reconhecedor da diferença sexual e aberto à multiplicidade e à diversidade, que proponho investigar as práticas de feminização dos homens heterossexuais alegorizadas em eXistenZ. Minha motivação para revisitar o filme é, precisamente, o fato de seus comentadores, seja nas esferas crítica ou acadêmica, pouco terem se debruçado sobre a incursão do filme pelas práticas eróticas, antes referidas, feminizantes do homem no espaço do erotismo hétero: incursão mais visível no caso da erotização anal do homem no coito hétero, e bem menos visível e talvez não-deliberada2 no do erotismo de origem oriental, taoísta e tântrico.3

Pelo mundo, desde os anos 1980, a fértil e variegada obra de Cronenberg tem sido objeto de um grande número de estudos acadêmicos (boa parte deles informados por teorias psicanalíticas), os quais, via de regra, se interessam mais seletivamente por uma ou algumas das obsessões temáticas do diretor - que incluem em especial, em rearranjos os mais diversos a cada filme, os vínculos entre gênero, sexualidade, o abjeto, o mutante, a tecnologia e as relações corpo-máquina, tendo como pano de fundo, na maior parte das vezes, o contexto do capitalismo contemporâneo corporativo e pós-industrial. No caso particular de eXistenZ, ocorreu que o enfoque mais comum de críticos e pesquisadores tendeu a privilegiar, mesmo que não exclusivamente, as repercussões das novas tecnologias protéticas e virtuais sobre o corpo e a subjetividade (p. ex., Vieira & Coelho, 2005; Rodley, 1999).

Sim, é verdade que, mesmo dentro dessa tendência predominante entre a recepção crítica do filme, tanto a metáfora protética anal quanto a representação fílmica do jogo como alegoria de uma transa foram bem apontadas pelos comentadores. Também, eventualmente, alguns críticos e acadêmicos, principalmente aqueles mais pautados pelo viés da política de gênero, se detiveram sobre algumas questões referentes à relação da masculinidade com o feminino colocadas por eXistenZ. Porém, o tema mais pontual antes referido, dos modos dos homens relacionarem-se com a erotização do seu ânus no espaço das práticas heterossexuais, não recebeu atenção mais dedicada. E tampouco, salvo por raras exceções de um ou outro blog de cinefilia ou esoterismo que dela se aperceberam, via de regra nem sequer foi aventada, pela fortuna crítica e acadêmica do filme, a possível remissão alegórica nele contida aos erotismos tântrico e taoísta.4

Tomar eXistenZ pelo viés que proponho pode ensejar, quero crer, um movimento em pista dupla nas interfaces entre os campos dos estudos de cinema e da psicanálise. Num primeiro movimento, filiando-se à vertente do campo dos film studies que guarda como fundamento teórico o recurso (entre outros) a conceitual psicanalítico, se poderia almejar construir, com o suporte pontual ou mesmo central de teorias psicanalíticas, interpretações fílmicas para esses aspectos pouco analisados (a feminização do homem hétero via erotização anal e erotismo "oriental") do filme de Cronenberg.

Mas também, desde o campo da psicanálise, me pareceria ser possível, a partir de uma escuta do filme, sair em busca de um ou outro insight teórico que agreguem ao entendimento psicanalítico desse fascínio e repulsa disparados por essas sendas que mais robustamente se abrem aos homens, contemporaneamente, para convidá-los, como faz Allegra, à sua feminização na esfera das práticas eróticas hétero (Tais sendas, vale dizer, passam a ser mais robustamente abertas em decorrência, sobretudo, dos ganhos culturais pós-empoderamento das mulheres e pós-afirmação da diversidade sexual LGBTTQI+). Nesse segundo movimento, conforme a tradição inaugurada por Freud e teórico-metodologicamente esboçada em seu texto sobre os escritores criativos (Freud, 1908/1996), estaríamos nos servindo, a fim de melhor compreender algum fenômeno que interrogue à psicanálise, da matéria-prima oferecida pelo universo fantasístico de um artista de sensibilidade fora do comum, cuja subjetividade capta, funde e corporifica, em suas obras, certas ansiedades notáveis e ainda pouco inteligíveis de seu tempo.

É o trilhamento dessa pista dupla que pretendo sugerir nesse texto, como via de revisitação e escuta de um eXistenZ com que penso estarmos em débito na apreciação de sua peculiar abordagem à feminização dos homens em práticas eróticas heterossexuais. Sublinhando que se trata de um artigo de "caráter exploratório", nele apresento, além dessa aproximação inicial já realizada, primeiramente, na seção 3, algumas reflexões teórico-políticas em torno ao tema, apoiadas em formulações de autores como Raewyn Connell (1995), Robert Heasley (2005), Judith Butler (2003), Eve Sedgwick (1985) e Lynne Segal (1994). Tal apoio em autores dos estudos dos homens e das masculinidades, queer e feministas - que vêm somar-se às já citadas Irigaray, Alison Stone e Elizabeth Grosz - é feito em busca, em primeiro lugar, de conceitual apto a enfrentar algumas das insuficiências teóricas da psicanálise que têm sido apontadas, historicamente, no que diz respeito ao tema da feminilidade e, mais contemporaneamente, aos da masculinidade e da heterossexualidade (Chodorow, 1994). Em segundo lugar, também busco situar o trabalho (tanto em termos da interpretação fílmica quanto da escuta psicanalítica) num horizonte (micro)político, que passe por uma melhor compreensão da repulsa ou repúdio à feminilidade, cultural e psiquicamente.

Além disso, cabe enfatizar que o esforço empreendido nessa seção 3 pode ser vinculado a um investimento mais amplo no sentido do diálogo com esses campos de estudo (feminista, queer, homens e masculinidades) tal como já vem sendo realizado, mais recentemente, por diversos teóricos psicanalíticos, de que são exemplo os antes mencionados André (1996) e Fogel (2006); Monique Schneider (2006) e Silvia Bleichmar (2015), trazidas na seção 5; ou ainda Pedro Ambra (2015), Facundo Blestcher (2017) e Felippe Lattanzio (2020). Por intermédio desse diálogo, tem-se buscado subsídios epistemológicos, teóricos, políticos, historiográficos e etnográficos a fim de, por um lado, estender a capacidade da psicanálise de fazer frente ao novo cenário cultural e político em gênero e sexualidade, e, além disso e não menos importante, situar politicamente as tentativas de compreensão teórica psicanalítica de muitos dos quadros clínicos atuais, resultantes que são desse novo cenário.

Em sequência a isso, na seção 4, desenho uma breve síntese da discussão acadêmica da filmografia de Cronenberg pelo viés de gênero e das representações da masculinidade - protagonizada por teóricos de cinema como Barbara Creed (1993), Linda Ruth Williams (1999) e Scott Loren (2011). Ao sintetizar essa discussão, procuro focalizar suas análises das tensões entre o masculino e o feminino na obra cronenberguiana, com o intuito de situar a abordagem particular de eXistenZ a essa temática dentro do itinerário filmográfico do diretor.

Por fim, limito-me a reunir, na seção 5, um levantamento provisório, em psicanálise, de conceitual passível de uso para a construção de interpretações das figuras fílmicas da erotização anal do homem em práticas hétero e do erotismo tântrico/taoísta. Recorro, para tanto, a obras de nomes da área como Bleichmar (2015), Schneider (2006) e André (1996), e, subsidiariamente, dos filósofos Paul Bruckner e Alain Finkielkraut (1989). De passagem, aponto a indicação, por tais autores, de algumas lacunas das teorias psicanalíticas referentes ao tema da constituição psicossexual masculina, para sugerir as potencialidades de eXistenZ como objeto de escuta visando à elaboração teórica sobre essa temática em psicanálise.

 

3

Comecemos, pois, dialogando com os estudos dos homens e das masculinidades, queer e feministas. Um dos fundamentos teórico-políticos dos men's and masculinities studies é a tensão complexamente constitutiva, segundo proposto por Raewyn Connell (1995), entre masculinidades hegemônicas e não-hegemônicas. A formulação de Connell, de inspiração gramsciana, deu origem a um sólido debate teórico nesse campo de estudos, ao longo dos anos 1990 e 2000, tendo sido introduzidas uma série de subcategorias: masculinidades cúmplices, subordinadas, marginais, subalternas, dissidentes, alternativas etc. Por óbvio, a discussão abrangeu as masculinidades não-heterossexuais, mas enfatizou também, em linha com a produção teórica queer, a fluidez de fronteiras e as interseções entre, por um lado, o hétero, o homo e o bi, e, por outro, entre o masculino, o feminino e o trans.

Assim, sem pretender desconsiderar toda a pluralidade, fluidez e mobilidade que definem a performatividade das identidades sexuais e gêneros, creio que a noção de "masculinidades heterossexuais dissidentes", aparecida no debate mencionado, pode ser muito proveitosa para pensar as espécies de práticas eróticas encenadas ou alegorizadas em eXistenZ. Formulando-a assim, de maneira fluida, múltipla e sem fixidez, respeitadora das singularidades, certos autores vêm mobilizando essa categoria para atender à necessidade de pensar os sujeitos que se percebem, se dão a ver e vivem suas sexualidades majoritariamente, ainda que de modo não necessariamente exclusivo ou permanente, como homens héteros, mas que performam suas heterossexualidades sob formas que se afastam da norma.

No caso de eXistenZ, esses afastamentos da norma são promovidos pela feminização do protagonista masculino no universo das práticas eróticas heterossexuais. Mais especificamente, parece-me que a exploração, alegorizada na relação entre Pikul e Allegra, das possibilidades (feminizantes) da erotização anal do homem e do erotismo de tipo tântrico e taoísta configuram política e culturalmente um enfrentamento, pelos personagens, a temáticas-tabu no campo da sexualidade masculina hétero em suas formas hegemônicas. Procurando tomar o fenômeno sob a ótica da teoria queer, poderíamos, dada a condição de tabu desses territórios eróticos, que os faz insuficientemente reconhecidos ou cartografados, localizá-los na dimensão do que Judith Butler (2003) propõe acessar como o "não-inteligível" ou "abjeto". Com estas noções, trabalhadas a partir do conceito de abjeto elaborado por Julia Kristeva, Butler (2003) espera caracterizar, precisamente, aquilo que é segregado e mantido na esfera do indizível, do não-reconhecível, com vistas à sustentação do que, ao contrário, é reconhecido e afirmado como constitutivo das normas sexuais e de gênero.

Muito próxima à categoria das heterossexualidades masculinas dissidentes, outra bastante útil, igualmente originada no contexto dos estudos dos homens e das masculinidades, é a dos "homens queer heterossexuais" (straight-queer men), proposta por Robert Heasley em seu conhecido artigo "Queer masculinities of straight men", de 2005. Ela vem reconhecer, justamente, aquela mobilidade, fluidez e as sobreposições teoricamente indicadas pela reflexão queer entre o hétero e o bissexual e entre o masculino e o feminino, tendo sido formulada por Heasley com base em estudo etnográfico realizado com universitários estadunidenses. Em seu relato, o autor propõe uma tipologia de masculinidades straight-queer, a fim de visibilizar e explorar o fato de que "muitos homens héteros experimentam e demonstram uma 'masculinidade queer'" (p. 310) - sendo esta definida por Heasley como "formas de ser masculino fora das construções heteronormativas de masculinidade que desestabilizam, ou têm o potencial de desestabilizar, as imagens tradicionais da masculinidade heterossexual hegemônica" (p. 310).

A tipologia de Heasley compreende cinco categorias "não-lineares, não-hierarquizadas e não-excludentes" de homens straight-queer: (a) homens héteros afeminados (sissy), (b) hétero-queers pautados por justiça social, (c) hétero-queers facultativos, (d) hétero-queers engajados e (e) homens vivendo à sombra da masculinidade. Elas refletem as combinações, em diferentes graus e interseções, de aspectos repudiados pelas masculinidades hegemônicas, tais como identidades e experiências enviesadas de modo mais intenso pela feminilidade e/ou pela homoafetividade, em paralelo a aproximações mais substanciais aos universos culturais e de sociabilidade de mulheres e de gays - bem como dos diversos graus de consciência ideológica, ação política e publicização, por esses sujeitos, dessa sua performatividade queer.

De grande importância são as motivações teóricas e políticas de Heasley (2005). Para o autor, carecemos de "uma linguagem ou moldura para considerar as formas como os homens héteros podem desestabilizar o paradigma dominante do masculino hétero", ou que "confiram legitimidade à experiência vivida" por esses straight-queers (p. 311). Ao contrário, argumenta ele, "na literatura sociológica e psicológica", homens heterossexuais queer (straight males-with-queerness) são, em geral, tão-somente "identificados como desviantes ou patologizados, por serem inadequados ao seu gênero ou sexualmente confusos" (p. 311). Por tudo isso, para Heasley, "construir uma tipologia de masculinidades straight-queer [significa] começar a dar voz e legitimidade à queeridade que existe no interior do mundo masculino heterossexual" (p. 310), graças à "ampliação de discursividade sobre o tópico" viabilizada por essa "[nomeação] da diversidade da masculinidade e de sua relação com o queer." (p. 319).

Para além de aspectos mais superficiais, relativos às possíveis incursões homoeróticas experimentais de alguns dos chamados "hétero-queers engajados" (a categoria mais assumida em sua queeridade), Heasley, em seu relato, não entra em detalhes sobre práticas eróticas, nem tampouco se pronuncia sobre a feminização de homens no universo do erotismo heterossexual. No entanto, e sem querer especular sobre qual(is) das categorias por ele propostas melhor acolheria(m), teoricamente, as espécies de práticas feminizantes alegorizadas em eXistenZ, há elementos da reflexão teórico-política de Heasley em torno à condição straight-queer que nos podem ser de enorme valia. Em primeiro lugar, suas motivações se coadunam integralmente aos nossos propósitos; seu projeto de uma teorização que venha contribuir para a legitimação da condição dos homens hétero-queer por meio da ampliação da discursividade a seu respeito configura exatamente o tipo de estratégia que, a meu ver, faz-se necessária, quiçá urgente, no que toca aos homens dissidentes por sua eventual feminização no erotismo hétero.

Por outro lado, o cruzamento entre a noção de abjeto em Butler e a tipologia straight-queer de Heasley (2005) pode lançar boa luz sobre a condição de pouca inteligibilidade cultural das masculinidades héteros dissidentes. Heasley argumenta que, ao comparar-se com as representações, frequentemente estereotipadas, da heterossexualidade masculina hegemônica, verifica-se um déficit representacional das masculinidades queer de homens héteros (p. 310) - daí, entre outras causas, sua falta de legitimidade como modo de masculinidade. Tomando o fenômeno sob a ótica butleriana do abjeto como não-inteligível, carente de suficiente representação, seria possível formular, pois, que "não somente a homossexualidade masculina é abjeta, mas também a queeridade dos homens héteros" - aí incluindo, para nossos fins mais pontuais, as práticas-tabu feminizantes envolvendo a erotização do ânus do homem e o erotismo tântrico ou taoísta em relações heterossexuais.

Num paradoxo, ao menos à primeira vista, um tanto quanto surpreendente, penso que práticas hétero-queer como as etnografadas por Heasley e as problematizadas em eXistenZ talvez permaneçam, hoje, no registro do indizível de modo mais acuado e recalcitrante que a própria homossexualidade masculina - embora, evidentemente (em alguma medida, talvez, também por essa pouca visibilização), sejam objeto de níveis bem menores de estigmatização e violência. Possivelmente, os determinantes dessa ininteligibilidade cultural estejam ligados à demasiado precária organização, no interior do universo hétero não-hegemônico, de redes identitárias de atuação política e de visibilização de práticas dissidentes que se assemelhem às que já foram paulatinamente construídas, ao longo de décadas, pela cultura LGBTTQI+. Veja-se, como exemplo, que, entre os homens das cinco categorias sugeridas por Heasley, apenas os "hétero-queers engajados" ousam exibir publicamente a sua queeridade - alguns deles, estes sim, transformando essa performatividade pública inclusive em ação política de desafio frontal às normas das masculinidades hegemônicas. Retornando a eXistenZ, arrisco sugerir que a escassa dedicação, antes mencionada, à análise da alegoria protética anal e a não-identificação da alegoria tântrico-taoísta pela fortuna crítica e acadêmica do filme podem ser vistas, quem sabe, como efeito dessa ininteligibilidade e dessa vacuidade política da condição hétero-queer nos próprios meios jornalísticos e acadêmicos.

A dificuldade, o desinteresse ou o constrangimento da maioria dos homens héteros em "tirar do armário" (dizendo de um ponto de vista mais social) sua queeridade de modo geral, ou, mais especificamente, sua feminilidade ou fantasias de feminização durante o sexo com uma mulher (sob um ponto de vista mais psíquico que social, falaríamos em dificuldade de "bancarem o seu desejo"...), por certo mantêm forte relação com o que Eve Sedgwick (1985), outra destacada teórica queer, denomina "pânico homossexual". Associado, em eXistenZ, a uma de suas manifestações mais óbvias, o "terror anal" (ver Sáez & Carrascosa (2011), com sua formulação da impenetrabilidade anal como fundamento da masculinidade hétero, e também Preciado (2009)), esse pânico consiste no temor que a maioria dos homens héteros carrega de que, por exemplo, seus sonhos, fantasias ou atos falhos, seus gestos ou expressões e mesmo suas eventuais práticas eróticas efetivas (passadas ou presentes) envolvendo outros homens, ou, ainda, a erogeneização do ânus no coito hétero ou na masturbação possam indicar, revelar ou demonstrar, a si próprios ou a outros, significativas dimensões homossexuais latentes.

Pelo motivo de não emergirem na esfera pública e, o mais das vezes, sequer na intimidade dos casais heterossexuais, tais fantasias e práticas eróticas feminizantes dos homens héteros permanecem habitando o território do abjeto e não-inteligível butleriano. Mas é silenciosamente sabido, pelo conhecimento comum e também academicamente - mesmo que de modo marginal e insuficientemente reverberado -, que a erotização anal do homem e a busca de muitos homens pelos prazeres da passividade ou da submissão frente a uma mulher no coito são práticas efetivas ainda que subterrâneas. Por exemplo, no campo do feminismo, a teórica Lynne Segal (1994) toma justamente, entre outros, esse tipo de fenômeno encontrado no erotismo heterossexual contemporâneo (baseando-se em estudos etnográficos feitos por antropólogas junto a prostitutas) para indicar o potencial político subversivo do sexo hétero, usualmente negligenciado pela militância e pelo pensamento feministas.

 

4

Munidos desses subsídios teóricos, voltemos nossas atenções, então, à filmografia de Cronenberg, mediante uma revisão analítica de sua fortuna crítica - em especial aquela pautada pela política de gênero. Esta última se distingue por exibir, como um de seus interesses centrais, a característica obsessão do diretor pelo corpo abjetificado, seja durante o período em que foi o protagonista maior do chamado body horror (dos anos 1970 a meados dos 1980), seja numa fase seguinte, quando viria a ser reconhecido como um dos grandes expoentes do cinema de arte de final de século. Porque é necessário, com vistas a interpretar a figuração, em eXistenZ, da erotização anal do homem e do erotismo tântrico e taoísta, fazer dialogar o universo fantasístico particular do filme com o conjunto mais amplo da obra cronenberguiana e sua recepção crítica. Isso também é importante para o eventual encaminhamento de uma elaboração teórica psicanalítica, sustentada em uma escuta de eXistenZ, em torno ao tema da feminização dos homens no espaço do erotismo hétero.

Há um certo consenso entre a crítica feminista acadêmica de que a carreira de Cronenberg ganha impulso, ao princípio, com base numa representação das mulheres enviesada pela ideia de um feminino monstruoso e mutante, segundo a noção cunhada pela teórica de cinema Barbara Creed (1993). Essa noção do "feminino monstruoso", de largo emprego, desde então, na análise de subgêneros mais recentes do cinema de horror, Creed derivou do conceito de abjeto, intimamente associado ao feminino, tal como proposto na obra de Julia Kristeva - o qual foi apropriado, conforme mencionei, também por Butler (2003).

Nessa crítica feminista da obra do diretor, surgida em finais dos 1980, havia certo dissenso quanto ao valor político de seus filmes; ao passo que uma boa parte o acusava de misoginia, outra parcela enxergava nos filmes um vetor de denúncia e problematização - ainda que sob a forma de sintoma - dos mecanismos patriarcais responsáveis por essa visão monstruosa da mulher. Mas, como traço comum a essas análises feministas, despontava o interesse pelos sentidos políticos das representações das mulheres na obra de Cronenberg, sentidos que eram tratados como refletindo o tensionamento, muito particular ao seu universo criativo, do masculino em seu enfrentamento (via repulsa, abjetificação) com o feminino. Em uma torção talvez inesperada - mas que hoje faz muito sentido por conta das mutações da própria abordagem do diretor -, alguns estudos passaram a deslocar seus esforços para uma análise mais direta das representações do masculino em seus filmes. A teórica Linda Ruth Williams, reverberando já a migração do foco de Cronenberg para os efeitos da repulsa ao feminino sobre os corpos de seus próprios personagens homens - evidenciado com Scanners: Sua mente pode destruir (1981) - acusa esse duplo deslocamento (de diretor e crítica) no artigo "The inside-out of masculinity: David Cronenberg's visceral pleasures", de 1999.

Williams (1999) assinalava a "continuada preocupação de Cronenberg com a 'masculinidade em crise" (p. 32), a fim de sustentar que, "embora críticas feministas como Creed tivessem enfatizado a feminilidade monstruosa (mutante) na obra de Cronenberg, no geral, e certamente em seu trabalho mais recente, ele se mostra muito mais interessado pela masculinidade em mutação" (p. 35, [grifo nosso]). Jogando com a ambivalência do termo "inside-out" (em tradução, "avesso"), a autora postula que, de fato, "o abjeto cronenberguiano é masculino, articulado [...] através da exploração dos interiores masculinos" que se visibilizam ou exteriorizam (são, portanto, trazidos de "dentro para fora"), particularmente em seus filmes dos anos 1980 e 1990 (p. 35, [grifo nosso]). Permeia todo o texto de Williams a ideia de que, nesse período, o feminino com que se debatem os protagonistas homens é, sobretudo, aquele que habita o seio da própria masculinidade, policiado, contido, emparedado, mas que insiste em extravasar, entre outras formas, por meio do corte ou despedaçamento de seus corpos (Scanners, Na hora da zona morta [1983], A mosca [1986]) ou da sua exibição de fendas femininas que terminam por se abrir (Videodrome, Mistérios e paixões [1991], M. Butterfly, Crash). Em síntese, afirma a autora, "a feminilidade é central na masculinidade em Cronenberg, precisamente por conta de sua interioridade" (p. 37).

Usando como parâmetro essa noção de Williams de uma "masculinidade em mutação" nos filmes de Cronenberg, o pesquisador Scott Loren (2011), uma década mais tarde, sugere uma nova abordagem à periodização da obra do diretor - já à luz, portanto, dos gangster films (Marcas da violência, de 2005, e Os senhores do crime, de 2007) que este realizaria na década de 2000. Segundo Loren, além da atenuação do abjeto cronenberguiano, aparece nesses dois filmes uma inédita investigação da violência masculina, pelo diretor, desde o ponto de vista de personagens que, embora forjados por práticas patriarcais violentas, delas "parcialmente se emancipam" ao "se aliarem a [personagens mulheres] representantes de práticas sociais maternais e de agenciamento matriarcal" (p. 155). Ou seja, se, nos seus filmes dos 1970, a masculinidade se punha em mutação ao produzir mutações monstruosas sobre o corpo feminino, e, nos dos 1980 e 1990, é a própria masculinidade que se revela monstruosa e mutante, nos filmes de gângster da década de 2000, finalmente, observa-se um "recuo dessa monstruosidade": agora, os protagonistas homens se lançam a subverter a ordem patriarcal pela adesão a práticas e tecnologias matriarcais (p. 155) - entre as quais o cuidado, o afeto e os laços familiares em modos não-convencionais.

Tomando em conta as análises de Williams e Loren sobre o itinerário de Cronenberg no que tange às representações da masculinidade em mutação, parece pertinente, para nossos fins, complementar suas reflexões com a indicação de uma singularidade da fase referida habitualmente como o "cinema de arte cronenberguiano" dos anos 1990. Penso que é preciso apontar que passa a receber cada vez mais espaço dramático, nesses filmes, a experimentação, feita pelos protagonistas homens, da dimensão feminina de seus desejos no campo dos relacionamentos eróticos - algo que não ganhava muito destaque nos filmes da década anterior. Disso temos exemplo nas vivências bissexuais de Bill Lee em Mistérios e paixões; na homossexualidade vivida como hétero por René Gallimard em M. Butterfly; na pluralidade "omnissexual" (Loren, 2011, p. 163) do percurso erótico de James Ballard em Crash; e, por fim, na heterossexualidade dissidente de Pikul segundo a alegoria do jogo em eXistenZ.

É considerando esse maior investimento narrativo no erotismo visto nos filmes dos anos 1990 que podemos, enfim, começar a refletir sobre o lugar ocupado por eXistenZ na trajetória criativa de Cronenberg. Um primeiro ponto a salientar, então, é que, após promover uma deriva de seus personagens por escolhas de objeto as mais diversas, ao longo dessa década mais inclinada ao erotismo, o diretor opta por fazer culminar essa fase de sua carreira, de modo talvez paradoxal ou inesperado, com um filme que aborda o erotismo heterossexual - o qual, contudo, é performado como queer ou dissidente, é essencial lembrar.

Curiosamente, Loren (2011) também aponta esse caráter de ponto de chegada do filme para o percurso cronenberguiano dos anos 1990, ao identificá-lo como um "ponto de virada" na obra do diretor (p. 155). Para o autor, eXistenZ constituiria uma transição preparatória à subsequente adesão, pelos protagonistas homens de seus gangster films, às tecnologias e agenciamentos femininos, já que, ao contrário de sua filmografia até então, o aparato técnico neles incidente sobre corpos e subjetividades é marcadamente feminino: os controles do jogo se assemelham a órgãos internos da mulher, exigem cuidados, convidam à interioridade, e, isso não bastasse, é uma mulher (Allegra) a responsável por sua criação e navegação (p. 164).

Em terceiro lugar, há que levar em consideração uma outra posição igualmente habitada por eXistenZ no itinerário cronenberguiano. Tanto crítica e público quanto o próprio cineasta percebem o filme como uma espécie de sequência frouxa, uma década e meia mais tarde, a Videodrome, por conta de uma série de aproximações temáticas e narrativas. Isso porque ambos os filmes trazem, por um lado, tecnologias desenvolvidas por corporações de mídia e entretenimento que, agindo sobre os usuários, colocam em xeque o estatuto de suas relações com a realidade. Além disso, tanto um quanto o outro exibem protagonistas homens eventualmente penetrados através de fendas/orifícios produzidos sobre seus corpos.

Observe-se, aliás, que Williams (1999) confere grande destaque à imagem central de Videodrome, uma das mais potentes da filmografia de Cronenberg: a fenda "vaginal" aberta sobre o estômago do protagonista Max Renn, por onde este é penetrado e "inseminado" com uma fita de VHS e de onde, depois, ele saca ou "dá à luz" uma pistola. Para a autora, a imagem serve como ilustração exemplar das relações entre masculinidade e feminilidade, exterioridade e interioridade. Seu entendimento de que a "vagina estomacal" de Renn constitui uma "articulação não somente entre fora e dentro, mas entre homens e mulheres, para um homem" (p. 37), parece igualmente aplicar-se à prótese anal lombar de Ted Pikul - respeitando-se as muitas variações de contexto interpostas por Cronenberg em eXistenZ.

Mas, voltando às relações entre um filme e outro, além de suas semelhanças narrativas e temáticas, Videodrome deixa um célebre gancho dramático em aberto na cena final, ao qual já se sugeriu repetidamente que eXistenZ oferece alguma resposta - transformando os dois filmes em um "díptico". O primeiro tem como temática o sado-masoquismo (em versões consentidas e não consentidas) e sua relação com o patriarcado e o capitalismo; e seu protagonista é um homem que, na última sequência do filme, se deixa persuadir, em suas alucinações, por uma personagem feminina e comete um suicídio ritualístico, enquanto ouve essa mulher proclamar que, depois de morto, poderá transmutar-se em uma "nova carne". É sabido que essa "Nova Carne cronenberguiana" (que gozou de um consistente culto cinefílico durante os 1980) já foi objeto de muitas indagações por críticos e cinéfilos. Se pensamos na resposta provavelmente construída pelo diretor em eXistenZ, seria ela movida por um anseio por "homens menos misóginos porque mais acolhedores de sua feminilidade intrínseca?"

Fechando esta seção, busquemos articular, pois, os diferentes lugares supostamente ocupados por eXistenZ no itinerário de Cronenberg. Poderíamos aventar, de saída, que o caráter de ponto de virada de eXistenZ indicado por Loren - por antecipar a posterior adesão dos protagonistas homens a práticas sociais, mas não eróticas, femininas - talvez assinale, também, um beco sem saída para um dos vetores do itinerário do diretor, como que um ponto de esgotamento do processo de investimento dos seus filmes dos 1990 na vivência, por personagens homens, de aspectos femininos do seu desejo no campo do erotismo.

Por outro lado, sendo isso plausível, resulta surpreendente constatar que Cronenberg se lançou a elaborar alguma resposta à questão sobre a 'Nova Carne', enunciada ao final de Videodrome, justamente com um filme que veio se colocar como um ponto de virada ou esgotamento. Se isso for verdade, podemos cogitar que essa 'encruzilhada cronenberguiana' para a qual confluem, por uma via, a experimentação erótica por homens de sua feminilidade constitutiva (filmes dos 1990), e, por outra, as possíveis especulações sobre um "novo homem" com uma 'Nova Carne' mais assumidamente feminina (díptico Videodrome- eXistenZ), é, em síntese, o espaço abjeto, muito pouco inteligível e por isso tão desafiador -para o próprio diretor, talvez - "da feminização do homem no campo do erotismo hétero".

 

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Por fim, dialogando com esse quadro teórico (seção 3) e analítico (seção 4), passemos a um levantamento provisório de conceitual psicanalítico que municie à construção de interpretações das figuras fílmicas, encontradas em eXistenZ, da erotização anal do homem e do erotismo tântrico/taoísta. Sugiro, de momento, três novos vetores de diálogo entre os estudos da obra de Cronenberg e a psicanálise antifalocêntrica. A repulsa à feminilidade pelos homens, estruturante do percurso de toda sua filmografia, talvez possa ganhar se pensada a partir das críticas de Monique Schneider (2006), em seu Généalogie du masculin, à negação do feminino tal como formulada pelas teorias psicanalíticas. Já as proposições de Silvia Bleichmar (2015) em torno às angústias homossexuais como pano de fundo constitutivo da heterossexualidade masculina, vistas em Paradojas de la sexualidad masculina, parecem esclarecedoras para recortar o tema do terror anal abordado em eXistenZ. Por fim, o estudo da visibilização da interioridade do corpo dos personagens homens, expediente fílmico de Cronenberg, segundo Williams, para a expressão monstruosa ou abjeta de sua feminilidade constitutiva, poderia ser potencializado se visto também sob a ótica das formulações de Jacques André (1996) sobre a feminilidade primária comum a homens e mulheres. Presente em eXistenZ em vinculação com a abertura protética lombar de Ted Pikul, tal acesso aos interiores masculinos poderia ser considerado, particularmente, mediado pela revisitação de André à chamada "confusão cloacal" (anal/vaginal) identificada por Freud (com base em Lou Salomé) nos estágios precoces da constituição psicossexual dos sujeitos de ambos os sexos.

Porém, como referi ao princípio, observe-se que, ao promover esses diálogos, será inevitável constatar que o próprio campo psicanalítico, nos dizem esses autores, acusa uma série de insuficiências na visitação teórica ao tema da constituição subjetiva masculina, particularmente no que concerne ao destino psíquico conferido à feminilidade intrínseca aos homens. As obras de Schneider (2006 [2000]) e Bleichmar (2015) foram provavelmente as primeiras a assinalar, precisamente, o descuido com o tema da masculinidade em psicanálise. À época, respondiam às confrontações interpostas tanto pelos estudos queer e dos homens e das masculinidades, quanto pela própria clínica contemporânea. Bleichmar (2015 [2006]), ao avaliar as causas do que aponta como uma verdadeira "ausência de uma teoria psicanalítica da masculinidade" (p. 72), que faz a clínica ficar refém de uma concepção teórica em que esta é resultado de "uma espécie de evolução endógena", sustenta que "a ilusão de que a teoria sexual da masculinidade não oferecia grandes interrogantes, nem estava aberta a revisões no seio do freudismo", decorreu de uma habituação "a que as reflexões acerca da sexualidade feminina constituíssem o eixo de grande parte das pesquisas psicanalíticas" (p. 15).

As duas autoras põem mãos à obra para atacar o problema. Schneider (2006) recorre, entre outros, ao trabalho de Elisabeth Badinter, cujo livro XY - De l'identité masculine (1992) é um dos primeiros a abordar a constituição histórica do masculino, nas sociedades dos mais diferentes tempos e lugares, como um processo de "negação do feminino" - processo cujas nuances configuram, como creio que ficou demonstrado, exatamente um dos eixos centrais de organização do universo fílmico criado por Cronenberg. Em diálogo com Badinter, Schneider examina de que modos a teorização psicanalítica fez reverberar essa cisão aguda entre feminino e masculino articulada na cultura ("essa negação fundadora do masculino - não ser a mãe ou não ser a mulher"), mantendo-a, ao mesmo tempo, "durante muito tempo ocultada na pesquisa psicanalítica" (2006, p. 24). A autora dedica-se a problematizar, psicanaliticamente, como a interdição, ao masculino, de elementos tais como a pele e o corpo vincula-se à armação de um "escudo epidérmico" de proteção, redutor da sensibilidade emocional, e de uma destinação racional ou intelectual que apartam a masculinidade do exercício do sensível e da interioridade, mantidos, dessa maneira, a segura distância no território do feminino.

Já a intervenção de Bleichmar (2015) é sobre as consequências clínicas das insuficiências teóricas em torno à constituição psíquica do masculino. Mais especificamente, ela lamenta a falta de um exame mais cuidadoso de um fenômeno da dinâmica edípica que aponta como o grande paradoxo da sexualidade masculina. Trata-se do fato de que "só se possibilita a instauração da virilidade [no menino] às custas da incorporação [fantasmática] do pênis paterno", do que decorre, simultaneamente, a "instauração" de um outro fenômeno psíquico: a perene "angústia homossexual dominante no homem" (p. 30), acompanhada, comumente, dos temores de feminização, passivização e submissão anal. E aqui chegamos ao tipo de angústia que, justamente, Cronenberg encena ao retratar o terror anal vivido por Pikul, não apenas quando da erotização do seu "ânus protético" no jogo sexual com Allegra, mas também antes, durante a instalação da bioporta (que o habilita a entrar no jogo...) por outros dois homens: instalação "defeituosa", por Gas, e "funcional", por Kiri Vinokur.

Essas lacunas teóricas, para Bleichmar (2015), fazem com que a psicanálise mantenha "uma dívida clínica, mas também uma dívida ética" com muitos pacientes homens, por ter interpretado seus fantasmas de masculinização, que com frequência envolvem a relação com outro homem e/ou a erotização do ânus, como fantasmas homossexuais, e "sem oferecer [a eles] outra alternativa que a aceitação resignada de aspectos 'homossexuais inconscientes'" (p. 30). A autora pontua, é claro, que frente a essa fantasmática, "a escolha de objeto sexual em uma ou outra direção" dependerá das "vicissitudes e dos movimentos constitutivos que a envolvem, efeito tanto das alianças edípicas originárias como dos traumas que o sujeito registra ao longo de sua constituição como sujeito sexuado" (p. 36). No entanto, Bleichmar reivindica enfaticamente a necessidade de considerar tais fantasmas homossexuais como também inerentes ao desenvolvimento psicossexual da heterossexualidade masculina - aspecto que não poderia ser negligenciado pela clínica.

Finalmente, também as propostas de Jacques André (1996) em As origens femininas da sexualidade, já trazidas na seção 2, poderiam lançar luzes sobre o tema da feminilidade constitutiva de todo homem, com que se embatem os personagens de Cronenberg. Uma de suas reivindicações centrais é que, "longe de fazer da feminilidade um avatar incerto da história edipiana [da menina], quando não uma descoberta da adolescência", se elabore, "ao contrário, uma concepção da feminilidade que tem uma íntima relação com a constituição do sujeito psicossexual como tal", da ordem do originário, portanto, seja para meninos ou meninas (p. 23). O autor contrapõe-se, pois, ao primado do falo em Freud, sustentando que a "ideia-mestra" por trás dessa concepção ao final prevalente na obra freudiana, a da "masculinidade originária da menina", a hipótese de "um mesmo órgão genital (viril) em todos os seres humanos", vem a ser, de fato, nada mais que uma teoria sexual infantil (p. 54).

Partindo da teoria da sedução generalizada de Laplanche, André (1996) propõe que, de origem, exposta aos cuidados "efractantes" ou intrusivos dos pais, "a criança seduzida é uma criança-cavidade, uma criança orificial" (p. 98). Em linha com isso, reafirma a ideia que por vezes emergia na obra freudiana - antes do que vê como o seu apagamento por "recalque teórico" a partir dos anos 1920 - de uma sensibilidade vaginal precoce nas meninas. Um movimento teórico de André, nesse contexto, que pode ser muito útil para considerar a figura da prótese anal em eXistenZ, é sua retomada de um escrito de Lou Salomé e de especulações de Karl Abraham em sua correspondência com Freud em 1924 sobre a erogeneidade da zona "cloacal" (ânus/vagina nas mulheres, que corresponderia a ânus/próstata/pênis nos homens), com vistas a salientar, justamente, o caráter cloacal ("anal, é claro, mas também confusamente vaginal") (André, 1996, p. 30) dessas sensações vaginais precoces - apreciadas pelo próprio Freud (citado por André, 1996, p. 30) antes de sua virada teórica dos anos 1920, como quando ele associa, por exemplo, o bolo de excrementos ao "primeiro pênis".

As consequências da feminilidade originária, em ambos os sexos, e da erogeneidade cloacal (que vincula as sensações anais às genitais, desde idade precoce, tanto em meninos quanto em meninas) e da figura do pai sedutor da origem e, depois, do período edipiano, são analisadas por André (1996) no tocante ao desenvolvimento psicossexual tanto das mulheres quanto dos homens - compondo um material teórico de grande riqueza, a ser melhor explorado pela pesquisa psicanalítica sobre a sexualidade masculina. O autor empreende um retorno demorado ao texto História de uma neurose infantil, de Freud, sobre a análise do Homem dos Lobos, para sugerir, por exemplo, que o seu recalque da feminilidade (cf. Freud, no caso, instalar-se na posição da mulher na cena originária e receber o "bastão-pênis" do pai) diz respeito não tanto a uma "mulher castrada", mas a uma "mulher-orifício" (André, 1996, p. 81) - ou seja, o que é recusado pelo menino, fundamentalmente, é não uma feminilidade fálica, "de fora", mas uma feminilidade de origem, "de dentro", constitutiva de todo homem.

Conforme já mencionei, os três autores aqui mobilizados - Schneider, Bleichmar e André - apontam as diversas lacunas da teorização, em psicanálise, sobre a constituição da subjetividade masculina, propondo formulações no sentido de reverter os seus efeitos. Pois o fato é que essa insuficiência teórica se verifica de modo ainda mais agudo na literatura psicanalítica sobre o erotismo heterossexual; sendo um sintoma disso, mais especificamente, a virtual inexistência de reflexões que tenham como objeto o erotismo de origem oriental.

De modo a suprir essa carência teórica, encaminhando algum diálogo entre o erotismo tântrico/taoísta e o conceitual psicanalítico, para fins da interpretação de eXistenZ, recorro à obra A nova desordem amorosa, dos filósofos franceses Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut (1989). Publicado em 1977, o livro denunciava, no calor da hora, os resultados ambivalentes da experimentação sexual vivida nos 1960 e 1970: esses seriam efeito, sobretudo, do realinhamento da normatização patriarcal, burguesa, genital e falocêntrica em torno ao sexo livre e ao novo imperativo de gozo - realinhamento em boa parte mediado, segundo os autores, por versões popularizadas da psicanálise reichiana.

No que é ainda mais desconcertante para aquela cena intelectual, os autores propunham, como estratégia subversiva, o apelo ao "coitus reservatus" - denominação latina às práticas de retenção do esperma durante o ato sexual -, apresentando suas potencialidades revolucionárias com base no exame da escassa literatura, então disponível no Ocidente, sobre o erotismo taoísta. Usando vocabulário psicanalítico - embora por vezes de modo impreciso - analisam as técnicas taoístas de retenção do esperma como potenciais catalisadoras de uma revolucionária renúncia à masculinidade fálica, equivalente a um movimento de "feminização e desgenitalização do homem", seja pela abertura aos modos imprevistos de gozo da mulher, seja pelo mergulho exploratório nos prazeres pré-genitais não-ejaculatórios.

De acordo com Bruckner e Finkielkraut (1989, p. 229), o pênis, nesse tipo de prática, permanece sendo "um objeto dispensador de amor e de prazer, mas que não possui em si mesmo a força que simboliza [como falo] porque a transmite ao corpo inteiro", constituindo-se, pois, em "órgão de que não se deve gozar caso se queira gozar de todos os demais" (p. 229). E dado que "a emoção já não pode ficar fixada, armazenada, detida em nenhuma região", termina por "desterritorializar-se" por sua expansão a todas as partes do corpo (p. 229). Já no que diz respeito à "feminização do ser masculino", os autores entendem que o homem, nesse cenário, faz-se ele mesmo sulco, fenda: o pênis tende a converter-se em "uma espécie de vagina", "no sentido de que [...] se põe em estado de porosidade, de disponibilidade total" não só às "substâncias energéticas" do corpo feminino, mas às "mais diversas emissões sensoriais" do seu próprio organismo (p. 230).

 

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Nosso recorrido, ao longo do texto, por esses diversos campos acadêmicos -psicanálise; estudos de cinema; estudos feministas, dos homens e das masculinidades e queer; e os emergentes estudos tântricos e taoístas - demonstrou, quero crer, as muitas possibilidades de uma revisitação analítica ao eXistenZ de Cronenberg por meio do recorte temático proposto: a feminização do homem no espaço das práticas eróticas heterossexuais. Amarrada em torno às figurações alegóricas da erotização anal do homem e dos erotismos tântrico e taoísta, essa dimensão do filme segue carente, como vimos, de um olhar mais atento no interior da densa e multifacetada crítica acadêmica do itinerário cronenberguiano.

Passível de utilização, nessa empreitada, para fins de interpretação fílmica, penso que a psicanálise teria também muito a ganhar: ao promover-se uma escuta psicanalítica do filme, um ou outro insight poderia advir no sentido de uma revisão, atualização e expansão de seu entendimento teórico da constituição psicossexual dos homens. Como procurei indicar, isso poderia ser potencializado, "teórica e politicamente", via triangulação com conceitual dos estudos feministas, dos homens e das masculinidades e queer - de que são exemplo as categorias das masculinidades hétero-queer e/ou heterossexuais dissidentes - para fins de acesso às facetas abjetas e pouco inteligíveis da feminização do homem no espaço do erotismo hétero. Por fim, uma análise de eXistenZ por esse prisma parece ainda assinalar como - entre outros elementos da sexualidade que permanecem mantidos em condição abjeta - os erotismos tântrico e taoísta pedem, também eles, passagem à inteligibilidade, mediante o seu reconhecimento, como objetos de estudo, pela reflexão acadêmica contemporânea.

 

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Submissão: 24/06/2020
Revisão: 09/01/2022
Aceite: 26/01/2022
Financiamento: Não se Aplica

 

 

Contribuição dos Autores:
Concepção: FM
Coleta de dados: FM
Análise de dados: FM
Elaboração do manuscrito: FM
Revisões críticas de conteúdo intelectual importante: AOW
Aprovação final do manuscrito: AOW
Consentimento de uso de imagem: Não se Aplica
Aprovação, ética e consentimento: Não se Aplica
1 Para uma introdução mais detalhada a essas duas formas de erotismo (incluindo sua controversa importação ao Ocidente, sobretudo desde a contracultura dos anos 1960, quando diversas escolas de transmissão passam a ser acusadas de comodificação e/ou charlatanismo e/ou eliminação da moldura meditacional esotérica [ver, p. ex., Kripal, 2007; Urban, 2000]), os chamados "estudos acadêmicos tântricos e taoístas", dois subcampos dos estudos religiosos desenvolvidos e consolidados, no decorrer dos últimos 30 anos, em diversos departamentos universitários na Europa, América do Norte e Ásia (mas sem repercussões identificáveis, até o momento, no Brasil), já disponibilizaram consistente literatura. Ótimos exemplos são Tantra: Sex, secrecy, politics, and power in the study of religion, de Hugh Urban (2003); "Remembering ourselves: On some countercultural echoes of contemporary tantric studies", de Jeffrey J. Kripal (2007); "The cult of ecstasy: Tantrism, the New Age and the spiritual logic of late capitalism, de Urban (2000); e Internal alchemy: Self, society and the quest for immortality, org. Kohn e Robin R. Wang (2009).
2 Em entrevistas de Cronenberg sobre eXistenZ, há alguma elaboração do diretor a respeito da metáfora fílmica anal da prótese lombar, mas não se encontram menções ao erotismo tântrico ou taoísta (ex., Grünberg, 2006).
3 São inúmeros os elementos em eXistenZ que, a meu ver, autorizam a entender que a alegoria dessa transa contemplativa remeta aos erotismos tântrico e taoísta. Por exemplo, no plano visual, tanto o design e a iconografia da abertura do filme, quanto a disposição coreográfica/geométrica dos corpos de Pikul e Allegra, deitados sobre a cama e conectados por cabos ao gamepad, remetem com nitidez à iconografia esotérica e erótica taoísta. Já na esfera narrativa, veja-se a longa série, estruturada e recorrente, de diálogos entre Allegra e Pikul (de que a Introdução oferece uma mostra) que carrega duplo sentido e, em nível metafórico, pode ser tomada como a representação de um tour iniciático à experiência erótica taoísta ou tântrica, em que ela é mestra e ele é discípulo. A fala de Allegra sintetiza: "[Nossos corpos] estão aonde os deixamos. Quietinhos, de olhos fechados... como se estivessem meditando."
4 Fora do espaço da recepção crítica em sentido estrito, um peculiar exemplo de recepção da alegoria tântrico-taoísta do filme, no campo das artes, é o da banda Post-Human Tantra, do artista transmidiático brasileiro Edgar Franco, que não apenas assinala sua inspiração direta em eXistenZ, como criou uma performance denominada "Penetrating the Virgin Bioport", apresentada no Festival "Children of the Darkness II", em Anápolis, GO, em 2017 - criação esta que já foi inclusive objeto de análise acadêmica (Fortuna, 2017).

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