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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dez. 2022

 

ENTREVISTA

 

Cuidado e questões de gênero: invisibilidade, paternalismo, autossacrifício e a crise de cuidados. Entrevista com Ilze Zirbel

 

Care and gender issues: invisibility, paternalism, self-sacrifice and the care crisis. Interview with Ilze Zirbel

 

Cuidado y cuestiones de genero: invisibilidad, paternalismo, autosacrificio y crisis del cuidado. Entrevista con Ilze Zirbel

 

 

Carlos Roberto Castro-SilvaI; Milena Dias CorreaII; Claudia CamiloIII

IPós- Doutorado em Ciências Sociais, University of Western Ontario, Canadá. E-mail: roberto.castro@unifesp.br
IIMestre em Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo. E-mail: milena.correa@unifesp.br
IIIMestre am Antropologia, Freie Universität Berlin: Berlin, DE. E-mail: camiloclaudia34@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto apresenta uma conversa-entrevista entre um grupo de pesquisa sobre as práticas de profissionais de saúde atuantes na Atenção Básica em Saúde e a Dra em filosofia Ilze Zirbel, pesquisadora do campo das Teorias do Cuidado. A conversa ocorreu durante um encontro do grupo de pesquisa, na cidade de Santos, no dia 29.11.2019 e foi registrada em áudio sendo, em seguida, transcrita e editada na forma de entrevista. Nela são abordadas questões de gênero, classe e raça envolvidas nas atividades e relações de cuidado, o que toca nas temáticas do privilégio e da exploração, do autossacrifício e da coerção, bem como da autonomia e da interdependência de seres humanos. O pano de fundo é o da necessidade de políticas públicas visando o cuidado da população e desenvolvimento do senso de cuidado tanto em homens quanto em mulheres.

Palavras-chave: Cuidado; Autonomia; Interdependência; Gênero e interseccionalidade; Atenção Básica em Saúde.


ABSTRACT

This text presents a conversation-interview between a research group on the practices of health professionals working in Primary Health Care and a researcher in the field of Care Theories. It addresses issues of gender, class and race involved in care activities and relationships, which touches on the themes of privilege and exploitation, self-sacrifice and coercion, as well as autonomy and interdependence. The background is the need for public policies aimed at the care of the population and the development of a sense of care for both men and women.

Keywords: Care; autonomy; Interdependence; Gender and intersectionality; Basic Health Care.


RESUMEN

Este texto presenta una conversación-entrevista entre un grupo de investigación sobre las prácticas de los profesionales de la salud que trabajan en Atención Primaria y un investigador en el campo de las Teorías de la Atención. Aborda temas de género, clase y raza involucrados en las actividades y relaciones de cuidado, que toca los temas de privilegio y explotación, autossacrificio y coacción, así como autonomía e interdependencia. El trasfondo es la necesidad de políticas públicas orientadas al cuidado de la población y al desarrollo de un sentido de cuidado tanto para hombres como para mujeres.

Palabras clve: Cuidado; Autonomía; Interdependencia; Género e interseccionalidad; Atención sanitaria básica.


 

 

INTRODUÇÃO

Em mais de 10 anos anos de trabalho em ensino, pesquisa e extensão na Universidade Federal de São Paulo, relacionados com as práticas da Estratégia Saúde da Família, a questão da produção do cuidado tem-se mostrado um balizador importante da qualidade dos vínculos estabelecidos no território entre os diferentes atores sociais envolvidos. A atenção para os vínculos acontece devido ao privilegiamento de um olhar para a realidade por meio da lente da intersubjetividade/afetividade, ou seja, para aquelas características psicossociais que delineiam os modos de sociabilidade e práticas em saúde. A referência da psicologia sócio-histórica e cultural tem contribuído para a compreensão da subjetividade construída a partir da interação dos sujeitos com seu meio social, além do aprofundamento da discussão de processos de politização das práticas em saúde, principalmente sobre a apreensão das relações de poder no território, e as formas de mobilização comunitária, consequentemente, no enfrentamento da exclusão social, destacando o protagonismo de mulheres na saúde e em movimentos sociais.

Este texto resultou da transcrição de uma conversa-entrevista realizada entre o grupo de pesquisa Laboratorio de Estudos sobre a Desigualdade Social (LeDS) e a pesquisadora do campo das Teorias do Cuidado. Ela é pós-doutora e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O grupo em questão desenvolveu uma pesquisa, denominada: "Ética do cuidado e construção de direitos: acolhimento psicossocial em práticas da saúde da família em situações de exclusão social", com financiamento da Fundaçao de Amparo à Ciencia do Estado de São Paulo (FAPESP), com profissionais de saúde, lideranças comunitárias e moradores de quatro diferentes comunidades dos morros e mangues da Vila dos Pescadores procurando identificar como as pessoas desses territórios compreendiam o cuidado. A conversa foi posteriormente transcrita, sendo esse texto um dos seus resultados. Nele são abordadas questões de gênero, classe e raça envolvidas nas atividades de cuidados. A primeira seção introduz essas questões por meio da ideia de privilégio (masculino, de classe, de raça) atrelada ao não-exercício das atividades de cuidado. A segunda sessão aponta para o entrelaçamento entre a desvalorização do cuidado e a sua exploração, nas mais variadas formas, incluindo o problema da migração de cuidadoras, descrito na literatura como 'fuga de cuidado'. A seção seguinte aborda o tema da imagem que os representantes das comunidades têm do cuidado e o problema do autossacrifício. Na sequência é abordado o cuidado marcado pela religiosidade, como uma missão de vida. A parte final da conversa-entrevista pontua a relação entre autonomia, interdependência, senso de cuidado e políticas públicas.

 

QUESTÕES DE GÊNERO E PRIVILÉGIOS

Equipe de Pesquisa: A questão das mulheres como principais agentes de cuidado na sociedade é bastante debatida nos estudos sobre o cuidado. Você poderia nos falar um pouco sobre isso?

Entrevistada: Carol Gilligan (1982), a pesquisadora que publicou o primeiro livro sobre a Ética do Cuidado (década de 1980, nos EUA), e que veio a ser o disparador de toda uma gama de pesquisas sobre o tema, faz um comentário bastante interessante em uma entrevista realizada para celebrar os trinta anos de publicação do livro. Ela comenta que havia passado aquelas três décadas debruçada sobre uma pergunta metodológica que a levava a buscar compreender porque as mulheres adquirem toda essa habilidade de cuidado, mas que, recentemente, modificara a pergunta e passou a indagar porque os meninos a perderam. Ela efetuou uma 'virada epistemológica'. Há um pressuposto metodológico importante por trás dessa nova questão: a de que todos nós, seres humanos, temos desde muito cedo a percepção da importância das atividades de cuidado e temos, igualmente, uma aptidão para cuidar.

Gilligan é uma psicóloga moral que trabalha com crianças para compreender como elaboram seu raciocínio moral e o usam para decidir o que é certo e errado. Após trinta anos de pesquisa e observação de crianças, ela desenvolveu a crença de que meninos e meninas têm uma inclinação semelhante para o cuidado e que o modelo binário de gênero causa um dano na capacidade moral das crianças ao impedir que meninos hajam de maneira "cuidadosa" (valorizando conexões e relações afetivas, cuidando de si e das demais pessoas) e as meninas devem fazê-lo, mas são, simultaneamente, silenciadas.1

Aqui eu abro um parênteses para poder acrescentar ao trabalho de Gilligan o de outra pesquisadora: Nel Noddings (1984). Noddings fala de cuidado ético e cuidado natural, defendendo a ideia de que crianças têm noção do que é um bom cuidado através das experiências que já tiveram com vários adultos. Isso não está racionalizado pelas crianças, não está transformado em linguagem ainda. Elas só sabem que certas coisas são melhores que outras e algumas pessoas as respeitam mais do que outras, as ouvem mais, cuidam mais e melhor etc. Elas têm pistas que indicam a quem procurar em meio às circunstâncias em que vivem. Tais pistas indicam, de alguma forma, o que é um bom cuidado e, com base nele, é possível desenvolver um cuidado ético, estendível a outras pessoas.

Voltando agora para Gilligan. No seu trabalho de campo, ela observou que tanto meninos quanto meninas têm a tendência de se ajudarem entre si, enquanto crianças. No entanto, a partir dos 5 anos, os meninos começam a podar a si mesmos para não seguirem cuidando, pois descobrem como funciona o sistema de gênero e que cuidar é papel das meninas.

Nós percebemos (e replicamos) um certo modelo para meninos e meninas. É comum ouvir dos pais: "Ah! É menino. Não quer ajudar a guardar os brinquedos ou tirar a própria louça da mesa!" Nem a menina quer, mas afirmamos que para o menino é 'natural' não querer e o autorizamos a não fazê-lo. A menina vai ter de fazer, porque é menina e será super elogiada se o fizer! E ela percebe que se continuar fazendo receberá a aprovação dos adultos, o que é muito importante para alguém que está buscando se inserir em um meio social. Outro exemplo, bastante comum, é o do menino quando empurra ou bate. A grande maioria das pessoas afirma ser uma atitude natural dele "por ser menino", mas não fazem essa afirmação para as meninas. Pelo contrário, elas são pressionadas a não agir dessa maneira, considerada "feia" para uma menina. Essas práticas vão sinalizando para ambos o que podem ou não fazer e indicam para as meninas que elas devem praticar o autocontrole e investir na docilidade e nas atividades direcionadas ao coletivo. Para os meninos é dito que não precisam fazer nada disso. Eles também não precisam cuidar de si mesmos. As meninas e mulheres farão os alimentos para eles, lavarão suas roupas, arrumarão seus quartos, casas e locais de trabalho. Os meninos serão privilegiados e podem investir em outras coisas. A sociedade também considerará essas outras coisas mais importantes do que as das meninas. Aliás, as atividades e trabalhos de cuidado nem serão identificados como equivalentes ao dos homens. Serão afirmadas como atividades auxiliares (não centrais) e quase invisíveis (nem se fala delas, parecem até automáticas: as meias limpas "brotam" nas gavetas, a refeição aparece pronta na mesa em certos horários e a louça suja estará limpa da próxima vez).

Estou esperando ser publicado um livro de uma outra autora, a canadense Jennifer Nedelsky. Ela está trabalhando em um material já faz uns anos. Trata-se de um exercício imaginativo para implementar regras sociais que colocam o cuidado como um valor central. Estive com ela em um congresso e ouvi a respeito desse livro. Haverá uma regra geral para a sociedade: "Ninguém que pode cuidar de si estará autorizado a comprar no mercado de trabalho alguma atividade de cuidado". Ou seja: todos teremos de cozinhar, lavar, varrer a própria casa, ir ao mercado, lavar a própria roupa, cuidar da própria saúde. Nos momentos de vulnerabilidade extra, tudo bem, pode-se recorrer a outra pessoa. Do contrário, não.2

Durante o congresso, a reação de quem ouvia Nedelsky falar sobre isso era de que tratava-se de uma sociedade utópica ou que as pessoas de classe média ou ricas não aceitariam essa regra, de maneira nenhuma. E aqui parece que vejo algumas famílias brasileiras que reclamaram das mudanças de legislação para as trabalhadoras domésticas. Reclamavam porque não queriam vê-las como trabalhadoras. Queriam os privilégios de viver sem se responsabilizar pela limpeza do próprio ambiente ou pela produção das próprias refeições, mas esse privilégio ficaria mais caro. Além disso, há uma questão de raça e classe envolvida. Essas pessoas acreditavam em algum tipo de "direito" de exploração das trabalhadoras do doméstico e esse direito está atrelado a diferenças raciais e de classe. Para elas, a pessoa com menor poder aquisitivo (pobre) e menor escolaridade (porque é pobre e teve de trabalhar desde muito cedo) deve aceitar qualquer tipo de trabalho e as regras de quem tem mais poder aquisitivo. Em um país com o passado escravocrata como o nosso, as pessoas que se encontram nessa situação de "não poder negociar" são, em geral, negras. Assim, cria-se um imaginário de que a pessoa identificada como preta, ou negra (que nem mesmo é uma cor), é a que não pode exigir nada e deve aceitar os trabalhos que a pessoa branca decidir, pelo preço que ela quiser pagar.

Por mais complicado ou inverossímil que possa parecer, podemos fazer um exercício de imaginação para os efeitos de uma regra como a pensada por Nedelsky. E uma das coisas que podemos imaginar é que esse tipo de sociedade precisará de outras regras também para o mercado de trabalho. Elas afetarão as questões de gênero, raça e classe. Eu não posso trabalhar 8 horas por dia se tiver de chegar em casa e fazer a minha comida, lavar a minha roupa, cuidar das crianças e das pessoas adultas em vulnerabilidade acentuada que moram comigo.3 Imaginem se essa for a realidade de todos os homens brancos e de todas as classes? O mercado seria certamente afetado. Acredito que as horas da jornada de trabalho semanal seriam reduzidas. E podemos imaginar que as qualidades identificadas pelas primeiras pesquisadoras da Ética do Cuidado como qualidades gerais de quem cuida4 também acabariam tornando-se qualidades mais generalizadas entre a população e não apenas "coisa de mulher". Pode ser, então, que tivéssemos uma sociedade na qual as habilidades do cuidado estariam mais desenvolvidas na maioria das pessoas.

 

FUGA DE CUIDADO, INVISIBILIDADE DAS ATIVIDADES E QUESTÕES DE CLASSE, RAÇA E IMIGRAÇÃO

Equipe de Pesquisa: Você falou dessa questão da sociedade imaginária e de que aqui no Brasil temos essa forma de viver que leva muitas famílias a contratarem alguém para limpar a própria casa, fazer a comida ou a compram em algum lugar. Parece que alguns países da Europa fazem isso de outra maneira, já que esse tipo de mão de obra não está disponível tão abundantemente ou esse não é o hábito da maioria das famílias, mesmo de classe média. Ou seja, não é algo que tem a ver apenas com os usos do tempo, mas com o tipo de sociedade. Nosso país tem uma prática associada ao seu passado de colonização. No pano de fundo está a ideia de que há pessoas cuja função é servir as outras. Isso desapareceria nessa outra sociedade, dessa autora canadense? Fiquei pensando nisso porque algumas pessoas que tiveram a experiência de viver um tempo fora do país, ao voltarem, mudaram um pouco essa relação dentro de casa. Decidiram dividir mais as coisas e não contratar mais ninguém para trabalhar no doméstico.

Equipe de Pesquisa: Mas essa é uma realidade de classe média pra cima. Quem é pobre não paga ninguém para fazer faxina. Tem esse lugar que não é geográfico, mas de demarcação de classe econômica mesmo, que é fundamental e importante.

Entrevistada: Vocês têm razão. Há diferenças entre a sociedade de Nedelsky ou de outros países em relação à nossa. Nós temos, na América Latina, pelo menos duas características a serem pensadas que dizem respeito a esse assunto: Uma herança de escravidão e um mercado de trabalho com poucas 'oportunidades' para mulheres. Nosso presente está estruturado em cima de um passado no qual um grupo estava acostumado a ser servido pelos demais e tivemos gerações e gerações de novas pessoas socializadas nesse tipo de realidade. Uma realidade repleta de pessoas que acreditam em 'subordinados humanos' e que acreditam, de alguma forma, que estes deveriam submeter-se por causa da cor da pele e da condição econômica. Atrelado a isso está a questão do mercado de trabalho. O racismo perpetuou a questão da hierarquia para o campo da educação e do trabalho. E ainda temos que acrescentar as questões de gênero. As mulheres negras estão na ponta mais baixa do sistema hierárquico e muitas delas são chefes de família. Com pouca educação (ou mesmo com muita!) essas mulheres ficam sem emprego. É na brecha do racismo e do sexismo que elas são acomodadas... como empregadas para as atividades de cuidado (cozinheiras, babás, diaristas, domésticas...). Elas vendem suas habilidades, mas não são reconhecidas como especialistas.

Há um ótimo trabalho de pesquisa realizado por sociólogas francesas, e aqui incluo também a Helena Hirata, uma filósofa brasileira, nascida no Japão e que leciona em Paris (vejam o cruzamento que ela tem de culturas). Essas pesquisadoras discutem um fenômeno que estamos chamando de fuga de cuidado (Dumitru, 2009), detectado há algum tempo.

Algumas décadas atrás falava-se em 'fuga de cérebro'. Infelizmente, parece que teremos isso diante de nós mais uma vez, no Brasil, por causa das medidas políticas do atual governo e seu desprezo para com o campo científico e nossos pesquisadores e pesquisadoras. Bom, agora também estamos falando da fuga de cuidado. O esquema é parecido: o Sul global (e essa expressão pode ser pensada para além da questão geográfica, inclusive) exporta para o Norte suas profissionais qualificadas ou dispostas a se qualificar em atividades de cuidado. Em geral, são enfermeiras e faxineiras. Um exemplo forte é o das Filipinas. Há vários artigos apontando para o caso das mulheres filipinas. Há uma quantidade grande de mulheres que estão se especializando e migrando para os Estados Unidos ou a Europa, onde os salários são melhores. Elas enviam parte do salário que recebem para as suas famílias, no país de origem. Parece que uma parte considerável do PIB das Filipinas já está atrelada a esse montante que vem de fora, enviado pelas cuidadoras que partiram. Empresas têm treinado moças em espaços que reproduzem uma casa ocidental. Elas aprendem o quê e como limpar, de acordo com o gosto da classe alta desses países da Europa e dos EUA.

A pergunta das pesquisadoras do cuidado é: qual o efeito disso para o país que perdeu esse contingente de cuidadoras? Um grupo muito grande dessas mulheres parte para conseguir melhorar a vida dos seus filhos, que ficaram no país, em geral com as avós.

A questão fica alarmante quando levamos em conta um dado da ONU afirmando que em 20505, pela primeira vez, o mundo será mais velho do que jovem. E não é o eixo norte que vai envelhecer (a Europa já envelheceu). É o eixo sul! E o sul do mundo tem menos políticas sociais que poderiam garantir algum amparo à sua população idosa, por exemplo.

Equipe de Pesquisa: Mas então estas atividades estão aumentando de status nos países que contratam tantas cuidadoras?

Entrevistada: Na verdade, não. Elas seguem sendo consideradas atividades subalternas ou "coisa de mulher" (o que, muitas vezes, é a mesma coisa), o que implica algo de menor valor social.

A pergunta que Joan Tronto (1993) faz em seu principal livro é muito importante: "Se o cuidado é tão essencial para a existência da humanidade, porque é tão desqualificado ou invisibilizado?" A resposta que ela dá tem a ver com a desvalorização que nós mulheres sofremos nessas sociedades. Há uma relação entre invisibilidade e poder. Nossas atividades precisam ser invisíveis para que a situação de poder e privilégio de determinados homens continue funcionando. Enquanto o cuidado for feminino, eles não precisam exercer nenhuma dessas atividades. Além disso, enquanto houver uma valoração diferenciada para as atividades de homens e mulheres, as atividades de cuidado, enquanto femininas, serão secundárias e de menor valor. As atividades deles seguem com o status de 'mais importantes'.

Tem mais um detalhe: em meio à fuga de cuidado, as atividades identificadas como tal não são apenas coisa de mulher, mas também são coisa de imigrantes. Os imigrantes são outro grupo considerado 'não importante' e cujo trabalho tem menor valor, ainda que isso não seja verdadeiro (certos países paralisariam se sua população imigrante fosse retirada deles).

No fenômeno da fuga de cuidado estão presentes as mesmas técnicas de invisibilidade para com o trabalho de mulheres que nós já conhecemos. São técnicas que desqualificam as atividades de cuidado, assim como as pessoas que as desempenham. O imigrante e a imigrante sofrem uma política de desqualificação de si e de suas atividades, permitindo que as atividades de cuidado permaneçam desqualificadas. Trata-se, ainda, de pessoas em situação de vulnerabilidade exacerbada, que não dominam, muitas vezes, a língua do país para onde vão, não têm muita escolaridade ou não possuem cidadania naquele país. As práticas atreladas aos documentos podem implicar um efeito muito perverso nas relações de trabalho e de vida das pessoas que migram: deixá-las na clandestinidade permite pagar ainda menos pelos trabalhos que desempenham.

Temos que enfrentar esses modelos de sociedade.

Voltando ao tema do mercado de trabalho: Se distribuíssemos melhor as atividades de cuidado, entre mulheres e homens, nos espaços domésticos e públicos, o valor delas aumentaria? Ou seguiriam como algo secundário? Talvez, mas valeria muito tentar, apostando que poderíamos criar uma sociedade melhor.

 

COMO REPRESENTANTES DAS COMUNIDADES VÊM O CUIDADO. O PROBLEMA DO AUTOSSACRIFÍCIO

Equipe de Pesquisa: Pensando um pouco na área da saúde. A maioria dos trabalhadores são mulheres e há uma certa desvalorização da saúde porque é vista como trabalho de mulher. Ao mesmo tempo, tivemos em Cubatão e aqui em Santos alguns minicursos para agentes comunitários de saúde nos quais apareceram mais homens. Antes eram as agentes comunitárias (no feminino) e agora temos também homens. Houve também uma valorização das Organizações Sociais de Saúde (OSS). Em Cubatão todos os profissionais são contratados por meio delas, apenas o gerente é concursado. Há uma terceirização da saúde. Em Santos, na Atenção Básica, teve a inserção das OSS, mas teve concurso também. Além dos profissionais, médicos, enfermeiros, também os profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) (psicólogo, educador físico...) se concursaram. Quem é concursado tem mais estabilidade. Então, tem a questão de gênero e essa outra, a da história da vida desses agente?.

Entrevistada: Muito interessante. São maneiras internas de produção de status e valores. Gênero e questão de valor e status ou mesmo de hierarquia, são coisas que andam sempre juntas.

Equipe de Pesquisa: E há mais. Através dos relatos (da pesquisa de campo) percebemos que há pessoas, em especial mulheres agentes comunitárias de saúde, que servem de referência para a maioria da comunidade e que enfrentam violência doméstica em casa. Há a questão da baixa escolaridade, da educação para a submissão (etc.). Nesse contexto, a profissão de agente comunitário representa um upgrade na vida. Temos relatos de pessoas que se recuperaram de situações muito adversas e hoje são agentes comunitárias. Isso não é relatado, comumente. A gente sabe porque conversa e pergunta. Esse poderia ser um caminho de politização desse cuidado. Demonstrar o valor dele. No entanto, o que mais aparece (como característica das atividades de cuidado) é a filantropia, a caridade, o lado maternal...

Equipe de Pesquisa: Essa coisa de gostar de "ajudar as pessoas" é associada ao cuidado e não é vista como trabalho, mas como 'missão', 'vocação'.... Dá-se mil adjetivos.

Entrevistada: Aqui entramos em mais um tema-problema. Eu citei, em outro momento6, o paternalismo e a opressão como problemas que podem surgir no exercício das atividades de cuidado e aos quais precisamos estar alertas, mas há um terceiro problema, bastante forte e grave, que aparece como pano de fundo dessa fala de vocês: o problema do autossacrifício. O cuidado é atrelado às mulheres. E há, no imaginário geral, um estereótipo da 'mulher que se doa'. Espera-se isso de uma mulher. Acredita-se que isso faz parte da "natureza" de uma mulher etc.

Um dos primeiros problemas enfrentados pela primeira pesquisadora da Ética do Cuidado (e que nos persegue até hoje), a psicóloga Carol Gilligan, foi o do alto risco das discussões sobre o cuidado intensificarem certas cobranças sobre as mulheres. Como trabalhar com o tema sem naturalizá-lo? E, ao mesmo tempo, como incluir as mulheres na rede das atividades do cuidado nos dois lugares que podem ocupar: o de agentes e o de recebedoras de cuidado? Como não seguir sacrificando as mulheres e como lidar com o autossacrifício produzido por esse imaginário todo? O discurso do autossacrifício pode ser imolador, destruidor. Muitas feministas viram esses problemas e criticaram fortemente as defensoras de uma ética do cuidado como um tipo de ética da qual as mulheres eram as grandes representantes.

Se o cuidado não é politizado, corremos o perigo de manter as mulheres nos mesmos lugares. Algo perigoso do ponto de vista da autonomia, da liberdade, da emancipação, do amor próprio etc.

O autossacrifício é, então, um dos problemas persistentes nesse campo. Temos uma herança cristã extremamente forte. Essa herança cristã associa o cuidado com sacrifício e com morte. O modelo é Jesus Cristo, que deu a si mesmo, até a morte. Houve, ainda, a contra-reforma católica que, alguns séculos atrás, tentara impedir a perda de seus fiéis para as religiões protestantes focando nas mulheres. As mulheres protestantes eram muito ativas e o contra-ataque do catolicismo veio na figura da Maria, um modelo de mulher que foi fortemente preenchido pelo discurso do autossacrifício, ao invés de apontarem para a sua agência, coragem e enfrentamento social. Vamos lembrar que a figura bíblica é de uma jovem que encontrava-se grávida, sem ser casada, em um contexto cultural, político e religioso misógino, nada favorável às mulheres.

Mesmo que a mulher cuidadora não seja religiosa, nossa cultura está impregnada por um imaginário de autossacrifício, que é colado no cuidado e colado na mulher.

Gilligan fez uma diferença entre o cuidado maduro e aquele exercido em um estágio intermediário ou inicial. Esses estágios iniciais têm muito de autossacrifício, quando implementados por mulheres. Mas o cuidado maduro dosa. Ele não foca apenas nas outras pessoas. Ele também cuida da pessoa que cuida.

Há um artigo que discute o problema do autossacrifício para as teorias feministas e a ética do cuidado, que li recentemente (Cawston & Archer, 2018). Nele é apontada a diferença entre os diversos tipos de autossacrifício, desde o imolador (não sei se essa palavra existe em português, mas vem de imolação: uma morte em sacrifício para uma divindade) até o empoderador. No caso do cuidado imolador, a pessoa pode não se matar fisicamente, mas o faz de outras formas: deixando de ser ela mesma, abrindo mão das coisas que julga importantes, abandonando seus sonhos etc.

É comum encontrarmos mães que tiveram filhos com deficiência assumindo não apenas o cuidado desse filho ou filha na infância, mas assumindo a crença de que isso é 'para a vida toda'. E muitas assumem a postura de auto-imolação. Não sendo raro, inclusive, que produzam um sentimento de 'culpa' no filho ou que sintam por ele rancor, raiva... , ainda que velada. Muitas pessoas adultas, com deficiência, que começam a perceber esses sentimentos 'de fundo' na pessoa que cuida, não querem carregar essa culpa, que não é delas. É da sociedade.

Voltando às mães, elas introjetam a ideia de que tornaram-se prisioneiras das necessidades de cuidado dos filhos e não podem mais ter uma vida para si.

Esse artigo me surpreendeu por causa da defesa do conceito de autossacrifício. Para os autores, há formas empoderadoras de autossacrifício que vão na contra-mão da mentalidade geral. Visam uma causa maior ou o coletivo. Arun Gandhi, Martin Luther King, a sufragista Emmeline Pankhurst e a anarquista Dorothy Day, são exemplos de ativismo não violento que implicou autossacrifício. No centro do argumento está a luta de pessoas que, em nome da ação política, abriram mão de inúmeras coisas. Estamos falando de pessoas altruístas, maduras e que abrem mão, voluntariamente, conscientemente, de um tipo de vida por outro, por uma razão que julgam muito importante. Gandhi, por exemplo, era de uma classe alta indiana e abriu mão do tipo de vida que poderia levar.

Equipe de Pesquisa: Muitas vezes a mãe abre mão pelos filhos. E ela o faz por escolha.

Equipe de Pesquisa: Mas pode ser uma escolha altruísta ou imoladora.

Equipe de Pesquisa: Sim, mas pode ser altruísta também. A gente tende a achar que esse tipo de escolha implica sempre abrir mão da própria vida. E não é necessariamente assim.

Equipe de Pesquisa: Eu estava lendo um livro do neto de Gandhi do Arun Gandhi (Gandhi, 2018) que conta um pouco da convivência dele com o avô. Ele vai dando vários exemplos de uma construção de consciência do coletivo, presente em Gandhi. Você percebe que não é uma pessoa voltada para o próprio ego. Ele tem uma visão de mundo que 'justifica' esse autossacrifício. Na alimentação, por exemplo. Ele poderia comer melhor, mas para ele não era necessário.

 

AUTONOMIA, INTERDEPENDÊNCIA E COERÇÃO

Entrevistada: Você usou uma palavra que é central, em relação a Gandhi, e que diz respeito ao que estávamos falando sobre a mulher que decide ou não assumir as atividades de cuidado: a consciência. Isso me fez pensar no tema da autonomia e de como ele está sendo explorado e discutido fortemente, faz muito tempo, pelas feministas. Está-se tentando elaborar um conceito de autonomia diferente do tradicional e que, por enquanto, estamos chamando de autonomia relacional.

A autonomia é um tema muito importante, mas sua definição pode apresentar aspectos nocivos e o campo dos estudos sobre o cuidado pode nos ajudar a ver isso. Da maneira que costumamos pensar, a autonomia é o contrário da dependência. Entendemos as pessoas autônomas como não sendo dependentes de ninguém. E esse tipo de pessoa não existe!!!

Precisamos rever o conceito de autonomia. Vou dar um exemplo: Quando alguém entra em uma ordem religiosa e se submete às ordens de outra pessoa (seu superior ou superiora). Ele ou ela continua sendo livre, autônomo?

O exemplo aponta para uma situação na qual uma parte da autonomia ou liberdade de alguém é cedida. Claro que há homens e mulheres que entram nessas irmandades muito jovens e poderíamos nos perguntar se houve realmente uma escolha, se houve reflexão suficiente, se a pessoa tinha outras possibilidades de vida plenamente satisfatórias etc. Mas, se a escolha foi madura o suficiente, a pergunta pode ser feita: Ela segue sendo uma pessoa livre e autônoma? Ou sua liberdade foi suspendida?

Voltando para as mulheres. Pensemos em uma determinada sociedade que define até mesmo o que uma mulher pode desejar. O próprio desejo, a construção do desejo, passa pelo que é possível ou ensinado a desejar. Então, quando uma mulher diz: "Eu quero cuidar dos filhos, do meu marido e permanecer em casa". Ficamos em dúvida. Foi escolha livre ou induzida? Ela tem outras possibilidades? Qual foi o grau de cobrança social que sofreu (ou do companheiro, por quem ela está apaixonada)?

Temos que continuar trabalhando com o conceito de autonomia, mas me parece que temos de aceitar que há graus variados de autonomia e precisamos levar em conta todas as questões materiais e sociais que impedem sua implementação. O padre tem um grau de autonomia. Essa mulher que decide ficar em casa também tem um grau de autonomia, ou variados graus. O que temos de perceber e pensar diz respeito às áreas de interdição da autonomia e seus motivos. Se ela está bem com aquilo e tem consciência de que abriu mão de várias coisas, mas feliz com as que está vivendo, então está tudo bem.

A bioética trabalha com a ideia de consentimento informado. Há vários problemas com ele, problemas em fazer com que funcione de acordo com o ideal que o sustenta, por exemplo. Mas sua ideia geral pode ser aplicada a esses nossos exemplos (de quem entra em uma ordem religiosa ou de quem assume todas as tarefas no ambiente doméstico, por toda a família). A questão central é a informação. É preciso compreender as diversas implicações daquilo que está sendo proposto, antes de dizer sim ou não. No caso dos dois exemplos que dei, a informação equivale a saber que há outras formas de viver a própria vida, outras possibilidades. Houve uma avaliação consciente delas, antes da escolha? Vezes incontáveis, não há.

Equipe de Pesquisa: É que algumas coisas são tão desconhecidas e a pessoa só teve aquela opção. Então, é até óbvio que opte pela vida que lhe dizem ser a que tem de seguir.

Entrevistada: Sim. Essa é uma das discussões que também é feita, por exemplo, em relação às crianças educadas em comunidades religiosas. O Estado deveria exigir, em nome da liberdade delas, que frequentassem escolas laicas ou poderia permitir que suas famílias as colocassem em escolas que reforçam a maneira de ver o mundo de seus pais? Isso provavelmente implicaria uma vida inteira atrelada a um tipo de pensamento que as impediria de fazer escolhas diferentes dos pais. As questões de gênero são fortíssimas nessas comunidades. É uma situação hiperdelicada. De um lado, temos um pensamento liberal que prega a primazia da liberdade (e não a da escolha das famílias) e, de outro, um modelo que faz uso do discurso liberal, associado ao religioso, para não permitir interferências no espaço familiar. No meio disso nos perguntamos sobre o que queremos oferecer às nossas crianças enquanto sociedade. Queremos que elas tenham reais possibilidades de escolha?

Equipe de Pesquisa: Mas a questão é: existe escola laica?

Entrevistada: Uma pergunta pertinente. Pelo menos, poderíamos estar oferecendo mais possibilidades às crianças e não um modelo único de educação. No fundo, muita coisa depende do tipo de relação familiar que se tem. Se é opressiva, mesmo com religião e escola religiosa, pode ocorrer a rebeldia impulsionada pelo sentimento de injustiça ou de opressão. E se há um relacionamento bacana (ou muitos privilégios envolvidos), ela tenderá a escolher o modelo de vida proposto pela família e pelos amigos da comunidade religiosa, mesmo tendo conhecido outras formas de viver. No fundo, o problema é a coerção. E, em certos casos, é a violência ou a opressão imposta para a manutenção de um certo modelo de vida ou visão de mundo. Se não houver violência, nem opressão e ela sente alegria de estar naquela comunidade, se a sexualidade dela não é suprimida ou ela não é obrigada a ter relações sexuais com alguém porque casou com essa pessoa (etc.), então, provavelmente, há uma escolha que se sustenta.

 

O CUIDADO RELIGIOSO OU 'MISSIONÁRIO'

Equipe de Pesquisa: A espiritualidade é uma questão complexa. Algumas pessoas têm mais necessidade de ter uma vida que classificamos como 'espiritual'. E elas vão se agregar às igrejas, a algum grupo religioso.

Entrevistada: Sem falar que há as questões de cuidado envolvidas nas práticas religiosas e nas comunidades religiosas. Vocês apontaram para isso na pesquisa de campo, chamando de cuidado missionário. Para além do tema do autossacrifício, que comentei há pouco, ou da liberdade, temos a complexa rede de relações entre as pessoas em um grupo religioso.

O cuidado missionário, aponta claramente para isso. Há muitos elementos envolvidos nele. É um tipo de cuidado que trabalha com uma lógica e uma finalidade própria.

Conversamos ainda hoje sobre a pessoa, uma mulher, que atuava em sua comunidade fazendo o que lhe era possível para auxiliar as pessoas carentes e no fato dela ter precisado de um auxílio relativo à sua saúde mental.

Ela aponta para um aspecto negativo que resulta do seu esforço em participar de um culto religioso. Às vezes, a pessoa não está preparada para lidar com os efeitos da pregação religiosa e ela mesma cria um universo paralelo para lidar com isso. Nesse universo ela pode flertar com a loucura ao dialogar com outras crenças que estão em sua cabeça. Às vezes ela anuncia que viu Deus ou que ela mesma é um tipo de deus.

Em geral, os discursos teológicos (religiosos) se autossustentam, criam um pensamento que é circular. As respostas a um problema que é da ordem do teológico é resolvido mediante argumentos também teológicos. Na verdade, é muito difícil, teológica e racionalmente, juntar a imagem moderna de Deus, que é a de um "Deus de amor", compassivo e bondoso, com a imagem antiga, que é a de um "Deus punitivo", até mesmo vingativo e cruel (que destrói ou manda destruir cidades inteiras, incluindo crianças e animais inocentes, como consta nos registros bíblicos). Há um esforço muito grande para resolver isso. Há respostas já elaboradas, claro, e elas são circulares, uma vez que você responde a um problema gerado pelo sistema com algo dentro do próprio sistema, para mantê-lo intacto.

Há experiências muito positivas e experiências muito negativas no âmbito religioso. Por exemplo: quando a pessoa começa a refletir sobre os problemas que ela tem em sua vida. Ela pode encontrar soluções aos problemas que levanta, ou não. Uma pessoa religiosa, que se dedica à sua comunidade, se esforça honesta e profundamente, que ora, reza, faz jejum, vai a todos os encontros, procura colocar em prática o que lhe dizem que agrada a Deus ou que ela deveria fazer etc., e tem de enfrentar algo grave, imprevisto, aparentemente injusto, como reagirá? Quais respostas ela tem para lidar com algo assim? Ela está fazendo tudo certo. No entanto, surge um câncer, um atropelamento, a perda do emprego, a vida material não avança ou retrocede muito. São momentos de crise, muito pesados. Ela precisa resolver isso, não só na vida das coisas concretas, mas no plano das suas crenças também.

O meio religioso já possui respostas para isso. Me lembro de três. Duas remetem a solução do problema à própria pessoa e outra, não. Na primeira resposta há a ideia de pecado envolvida. A culpa é da pessoa. Ela fez algo de errado e está 'pagando' por isso (o que é uma contradição dentro da teologia cristã que desenvolveu-se no sentido de afirmar que "Cristo pagou todos os pecados" ou que "Deus julgará os maus no dia do juízo final"). Na segunda maneira de responder, Deus quer ensinar algo a ela. Todas as culturas têm esse tipo de experiência de que "adversidades nos ensinam" coisas, de que aprendemos algo muito importante e valioso nos momentos ruins da vida. Nem que seja simplesmente valorizar os bons momentos ou aquilo que temos, assim que a saúde é restabelecida, ou a vida continua após a morte de uma pessoa muito importante para nós. E a teologia incorporou isso também, na forma da expressão "Deus quer te dizer algo" ou ensinar algo com isso. Há frases como "agora você não entende, mas depois entenderá". Há versículos bíblicos, tanto no antigo como no novo testamento, que dizem isso praticamente dessa maneira (como um versículo da carta de Paulo à comunidade do porto de Corinto, na Grécia) ou com outras palavras.

Nos dois casos acima, temos de procurar a resposta em nós: ou é um pecado ou é um aprendizado. E uma conduta mais apropriada deveria surgir, em consequência (não cometer o mesmo pecado ou nos aperfeiçoar), o que poderia recolocar as coisas nos trilhos.

A terceira resposta tem um caráter apaziguador, ainda que possamos dizer que é um tipo de resposta um tanto vazia, como é a do "porque sim". É assim, porque é assim. Ponto!

No caso religioso a resposta é dada na base de afirmações como: "Não sabemos o que vai na mente de Deus", mas devemos ter a certeza de que isso é "para o bem". Ou: "Deus tem um plano", é preciso confiar. Para algumas pessoas essa resposta funciona.

Haveria outras alternativas? Quais são as alternativas para coisas tão desconhecidas, aleatórias ou que estão além do nosso alcance? Há alternativas políticas, para muitas delas, mas esse raciocínio não costuma nos ser oferecido.

Os gregos lidavam com isso fazendo uso do imaginário da roda da fortuna. As moiras, na mitologia grega, eram três irmãs que fabricavam, teciam e cortavam o fio da vida, tanto das pessoas como dos deuses. Eram elas que determinavam o destino. O tear que usavam para tecer esse fio foi chamado de Roda da Fortuna. As voltas da roda posicionam o fio do indivíduo às vezes no alto, outras vezes em baixo, implicando períodos de boa ou má sorte.

A confiança de que tudo está nas mãos de Deus ajuda a criar uma postura de aceitação das adversidades enfrentadas. A resposta de que não entendemos, mas Deus sabe o que faz, pode servir para toda a vida, mas pode depender das condições da pessoa também. Adversidades demais e que aparentam ser realmente injustas, são difíceis de acomodar nessa resposta.

O autossacrifício das mulheres nas atividades de cuidado também pode ser encaixado aqui. E novamente podemos nos lembrar da quantidade de mulheres que cuidam de pessoas de sua família que apresentam uma deficiência e que dizem que essa é a vontade de Deus para a vida delas. É comum pensarem que será para toda a sua vida esse cuidado delegado por Deus à elas.

Em meio a esse conflito, as pessoas mais profundamente envolvidas, podem desenvolver uma espécie de realidade mental que gira em torno dessa crença. Não aceitar isso significaria um abalo grande demais. Seria o fim da estrutura que explica o funcionamento do mundo e dos comportamentos adequados. Quando isso é retirado, o pânico pode se instalar ou a saúde mental pode ser afetada. Tudo entra em xeque.

Quando a pessoa vive em condições muito precárias, com vulnerabilidades exacerbadas, a resposta do "confia em Deus mesmo sem entender" pode não se sustentar por muito tempo. Em especial, quando a resposta precisa ser urgente (falta comida na mesa e não é só hoje, será nos próximos dias). Muitas vezes a comunidade entra em cena e socorre a pessoa e ela interpreta aquilo (ou é dito para ela) no sentido de ser Deus agindo e colocando novamente as coisas nos trilhos. Mas pode ser uma luta para toda a vida, quando as condições materiais ditam um sofrimento e uma luta constantes. E ela percebe que não é assim para outras pessoas, muitas nem se identificam mais com a crença religiosa.

Nossa espiritualidade também passa pela materialidade do corpo, pelas condições de vida material.

Me parece que a separação da Teologia das outras disciplinas do meio universitário, efetuada faz séculos, ocasionou o tipo de problema que estamos vivendo agora no Brasil. Não há mais diálogo entre alguns grupos de pessoas que se dedicam ao campo religioso e grupos que se dedicam a pensar o mundo de outras maneiras. A Teologia acabou nas mãos de grupos bastante diversos. Alguns estão melhor preparados para exercer esse tipo de reflexão e outros estão completamente despreparados. Há pastores brotando diariamente no Brasil, basta dominar a leitura da bíblia e poder repetir crenças presentes no consenso geral.

A linha teológica que é elaborada, espelha muito o grupo que a elabora. Dois extremos disso são os pastores que não têm quase preparo nenhum e os pastores e pastoras de elite, que se autodenominam apóstolos ou bispos (e há mulheres que se autodenominam apóstolas e bispas também, o que denota a absorção de certos avanços sociais) e produziram uma teologia como a teologia da prosperidade, voltada para o enriquecimento do seu "time de elite" (seus membros com mais status religioso). Esse grupo tornou central alguns versículos bíblicos e um pensamento do tipo causa-e-efeito que usa o enriquecimento como "prova" de um favoritismo divino. Ela ajuda a apaziguar a consciência de quem tem muito dinheiro em meio a um país com diferenças de classe agudas, com muita miséria. E ajuda pastores e pastoras a seguir enriquecendo enquanto conseguem convencer seus fiéis (que também querem acreditar naquilo) de que isso é "sinal de deus" e não uma técnica associada a um tipo de discurso teológico.

Infelizmente, temos exemplos de verdadeiras perversões na produção das "provas divinas" e na captação de membros. Tenho um exemplo da minha cidade, que envolve o diálogo entre um pastor e um acadêmico. Os dois conversavam sobre o fato do intelectual provavelmente nunca vir a enriquecer e o pastor lhe disse para abrir uma igreja. Para convencê-lo, deu o próprio exemplo. Ele tinha largado tudo para virar pastor, fazia poucos anos, e já estava muitíssimo bem economicamente. E contou um exemplo de como era fácil. No exemplo, um fiel o havia procurado. Estava com muitas dificuldades econômicas, com dívidas, e a família andava muito mal. Para resolver as coisas, ele tinha sido obrigado a por um terreno a venda, mas já fazia meses e nada acontecia. O pastor lhe disse: eu vou orar contigo. Após a oração afirmou que Deus havia falado com ele e lhe dito que era para o fiel baixar o preço do terreno. Ele seria vendido em breve e as dificuldades iriam ser superadas. No meio da conversa ainda comentou que o fiel não se preocupasse em pagar dízimo da venda desse terreno porque era para ele seguir em frente e ficar bem. Uns tempos depois o fiel voltou dizendo que tudo havia acontecido da maneira que Deus havia indicado. O terreno foi vendido, as dívidas foram pagas, a família voltou a funcionar como antes. O membro queria pagar o dízimo, e assim o fez.

O que o membro não sabia foi que o pastor comprou o terreno, provavelmente por meio de outra pessoa. Ele produziu a "prova" divina, comprou um terreno abaixo do preço do mercado, para revender mais tarde e ficar com a diferença. Ele poderia ter dito: se você baixar o valor do terreno eu o compro de você, para ajudá-lo. Mas ele preferiu agir de outra maneira para produzir um efeito religioso que poderia funcionar como marketing para a sua pessoa como representante divino: deus falou por meio dele e resolveu o problema do seu fiel. Eu fiquei muito chocada com a postura desse pastor e com a tranquilidade dele em ridicularizar o intelectual que "jamais iria enriquecer", enquanto que ele tinha enriquecido em poucos anos após ter "virado pastor".

Não me entendam mal. Uma comunidade religiosa pode ser algo maravilhoso. Ela pode dar apoio, conforto, vida social, amizades sólidas, boas parcerias, esperança etc. Quando realmente funciona. Ela pode ser muito importante em meio a um mundo moderno com características de um individualismo competitivo, cidades superlotadas, horas de trabalho extenuantes etc.

Mesmo que muitas pessoas no mundo moderno tenham chegado à conclusão de que as respostas religiosas não são suficientes para uma série de questões e tornaram-se atéias. Há milhares de pessoas que não se identificam mais com nenhuma religião e, ainda assim, estão bem. Mas há milhares de outras que seguem precisando ou querendo viver experiências religiosas em meio a grupos religiosos, por variados motivos. E nós ainda não conseguimos produzir tantas alternativas coletivas, de cunho comunitário, em meio ao mundo moderno, o que torna os espaços religiosos extremamente importantes. Neles pode haver diálogos, discussões, amadurecimento intelectual e emocional, se tivermos neles líderes religiosos e religiosas bem treinados e adeptos de uma ética adequada. Temos tentado criar espaços alternativos como clubes (de futebol, de leitura, de dança...) que proporcionam conversas, vínculos afetivos..., mas não na mesma intensidade e com o mesmo grau de alcance que alguns grupos religiosos.

Se pensamos em uma comunidade carente, que precisa muito do apoio de pessoas de fora do núcleo familiar, não há como o modelo individualista moderno implementar-se por completo.

 

SENSO DE CUIDADO E POLÍTICAS PÚBLICAS

Entrevistada: As pessoas necessitam das redes, necessitam do posto de saúde, da comunidade religiosa, de quem puder dar a mão. Não é possível viver só, de maneira nenhuma, nem materialmente, nem psicologicamente. O modelo individualista nos afeta e nos causa sofrimento constantemente. Se não me tornei o 'chefe de família' que garante o sustento ou 'a mulher que fica em casa cuidando dos filhos', preciso de uma coletividade para me acudir de tempos em tempos.

Equipe de Pesquisa: A comunidade religiosa, ao acolher as pessoas dentro ou fora dela que estão passando por necessidades, exerce o cuidado.

Entrevistada: Exato. E nos momentos de carência, estar em uma rede comunitária pode significar seguir vivendo ou mitigar as imensas dificuldades produzidas por uma sociedade que não enfrenta política e economicamente as desigualdades que produziu.

Equipe de Pesquisa: Estou pensando agora em como essas redes de apoio estão se perdendo. Lembro que na minha escola pública havia uma papelaria que era uma cooperativa dos pais. Os livros eram encapados e doados para a turma seguinte. A gente recebia os livros dos colegas das turmas anteriores e passávamos a primeira semana encapando o material, sabendo que tínhamos de cuidar dele. Assim como recebíamos, iríamos repassar a diante. Hoje, quando passo diante da escola vejo que ela virou uma jaula. Antes, as pessoas iam lá. Havia uma horta comunitária. Agora, ninguém mais vai. Nem é possível entrar.

Entrevistada: Mas há outras redes que seguem funcionando. Penso agora, em especial, em outro exemplo que testemunhei: o das mulheres que praticam solidariedade por ocasião do nascimento de uma criança. No exemplo que presenciei, elas separavam as roupas dos seus bebês e passavam para a próxima grávida da rede de contatos. As roupas da criança de seis meses iam para a que estava com três. Elas davam e recebiam das outras que tinham crianças. Formaram uma rede de cuidados materiais, geral, de apoio, com consciência das dificuldades e necessidades de outras mulheres em situação semelhante. E é só um exemplo, muito comum no nosso país. Há outros, que envolvem ficar com as crianças da vizinha, dividir alimentos etc.

Outra coisa interessante tem a ver com o desapego envolvido das práticas dentro das redes comunitárias, seja uma comunidade religiosa, seja uma comunidade carente. É comum ouvirmos frases do tipo: "parece que quanto menos tem, mais ajuda".

Trata-se de um desapego atrelado ao que vou chamar de senso de cuidado. Parafraseando a ideia de senso de justiça, que aparece na teoria de um filósofo bastante conhecido, John Rawls.

O senso de cuidado advém da consciência que temos das nossas necessidades básicas, das nossas vulnerabilidades, da possibilidade de sofrimento e morte. Todos temos necessidades, vulnerabilidades, podemos sofrer e morrer.

Essas redes de apoio e cuidado operam pautadas no raciocínio de que a vida é um valor superior ao da propriedade privada, mesmo que não digam isso com essas palavras. Elas insistem na vida e abrem mão dos objetos.

Interessantemente, essa também pode ser uma questão de gênero. O senso de cuidado está mais presente nas mulheres como resultado da organização social e a delegação das atividades de cuidado para as mulheres, enquanto que os homens foram incentivados a focar em uma carreira, um emprego formal, em competir com os outros etc. Claro que há mulheres que não se encaixaram, não curtiram suas experiências como cuidadoras e seguem outros caminhos. Assim como temos homens muito mais felizes em redes coletivas do que vivendo de maneira individualista, que se identificam com atividades de cuidado e sentem prazer e alegria em exercê-las.

E retomamos aqui a questão do cuidado como um valor político (Zirbel, 2017), que precisa ser implementado por meio de políticas públicas também, para garantir a vida e as necessidades básicas de uma população. Políticas para o cuidado básico, pelo menos.

Uma sociedade com suas necessidades básicas garantidas pode ir para o passo seguinte, aquele que podemos imaginar junto com Jeniffer Nedelsky: da divisão das atividades domésticas em casa e da divisão das atividades de cuidado na sociedade. Essa outra maneira de viver e se organizar exigiria modificações nas relações de trabalho formal, inclusive.

Enquanto isso, muitas práticas de cuidado vão se inserindo em meio às falhas do coletivo, do social e do político. Questões políticas precisam ser associadas ao cuidado. Para isso, temos de pensar o cuidado institucionalizado, inclusive. Quais características deveria ter? Se queremos uma quantidade maior de profissionais exercendo um cuidado maduro, dialógico, pautado nos objetivos de emancipação da pessoa que está em situação de vulnerabilidade, ou deficiência etc., como proceder? Temos de pensar nessas coisas enquanto sociedade.

 

REFERÊNCIAS

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Burke, L. (2015). Part-time work, part-time care: The radical yet strangely sensible proposal for our future. In News.com.au. Seção Finance Work. https://www.news.com.au/finance/work/at-work/parttime-work-parttime-care-the-radical-yet-strangely-sensible-proposal-for-our-future/news-story/167fbdb12215aab5102446c9909514f0        [ Links ]

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Nedelsky, J. (2018). Part Time for All: In Support of Families, Equality and Good Governance "New Norms of Work and Care: Re-Thinking What it Means to be a Responsible Adult. In Palestra proferida na Universidade de Ottawa no Centro de Health Law, Policy and Ethics. https://www.youtube.com/watch?v=e9sUJNVsSGM&t=38s; a palestra foi transcrita e está disponível em: http://d3n8a8pro7vhmx.cloudfront.net/bicn/legacy_url/66/BIEN2014_Nedelsky.pdf?1439837502        [ Links ]

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Zirbel, I. (2017). Teorias políticas, justiça, exploração e cuidado. Guairacá - Revista de Filosofia. 33(1),48-64. <https://revistas.unicentro.br/index.php/guaiaraca/article/view/5061/3466>         [ Links ]

 

 

Submissão: 14/10/2020
Revisão: 09/12/2021
Aceite: 15/03/2022

 

 

1 Gilligan, 2013, iniciando aos 7:45 minutos do vídeo.
2 Nedelsky foi professora de Direito e Ciência Política na Universidade de Toronto até 2018 quando passou a lecionar na faculdade de Direito de Osgoode, Universidade de York, em Toronto. O congresso citado aqui é o Conference within a Conference: Care Ethics, que teve lugar no encontro anual da Western Political Science Association de 2014. Nessa ocasião, Nedelsky apresentou o paperCare: Norms, Policies, and Economic Structures, no dia 15 de abril às 08 horas da manhã, no painel 27.05. A programação do evento pode ser consultada no site: http://wpsanet.org/meeting/2014program.pdf e a indicação da apresentação de Nedelsky está na p. 160.
3 Nedelsky já tem publicado artigos falando dessas mudanças, infelizmente, não há nada em português ainda, mas é possível ler a respeito em inglês em: (Burke, 2015; Nedelsky, 2018).
4 (Noddings, 1984; Ruddick, 1989; Tronto, 1993).
5 Trata-se do relatório World Population Ageing - 2013 (United Nations, 2013).
6 Em uma outra entrevista publicada. (Castro-Silva, C. R., Anhas, D. D. M., Rosa, K. R. M., Dutra, L. H., Zangirolani, L. T. O., & Pezzato, L. M., 2021). Quando falamos de cuidado, do que estamos falando? Entrevista com Ilze Zirbel. Psicologia & Sociedade, 33.

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