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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.1  Salvador  1996

 

 

Psicanálise: dificuldades e impasses no fim do século *

 

 

Adilson Sampaio **

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O autor traça o percurso da Psicanálise neste século pontuando as dificuldades e impasses aos quais chegamos.

Palavras-chave: Psicanálise, Instituição psicanalítica.


 

 

Os impasses em que se debatia a clínica das perturbações da saúde mental no fim do século passado encontraram na proposta freudiana uma abertura que significou, antes de mais nada, o fim do niilismo terapêutico no âmbito das neuroses e uma perspectiva de acolhimento, pesquisa e esclarecimento, também visando efeitos terapêuticos nas demais formas de sofrimento psíquico.

A Psicanálise nasce, portanto da medicina e se orienta, primariamente, para a busca de efeitos terapêuticos.

Contudo, Freud, pesquisador da área de neuroanatomia, neurofisiologia e neurofarmacologia, irá orientar-se para o campo da investigação psicológica, operando uma ruptura com os sistemas explicativos da medicina e da neurologia do século XIX, aproximando-se da mais rigorosa consideração de qualquer fenômeno psíquico para desenvolver uma estratégia conceitual que chega a abranger qualquer produção do psiquismo.

O cientificismo do final do século vivia a ilusão de que os "fatos falariam por si mesmos" na demonstração empírica em que racionalistas e empiristas reduziam a verdade ao real demonstrado, com a exigência de uma linguagem unívoca, associada à claridade das noções em referência a um ideal de conhecimento universal ou, pelo menos, universalizável.

A obra freudiana associa-se e integra a ruptura epistemológica com esse pensamento cientificista na dimensão do conhecimento sobre o homem.

Porém a Psicanálise representa também uma ruptura afetiva com a psicologia, pois o discurso freudiano inseriu o sujeito no registro do inconsciente e, colocando a pulsão como um dos fundamentos do psiquismo, estabelece em outras bases as relações entre o registro do corpo e o psiquismo, encontrando na linguagem a mediação fundamental entre estas dimensões do humano, de modo a poder assim descentrar o sujeito da consciência e fundar o psiquismo no registro do inconsciente.

É a articulação entre o registro do corpo e o psiquismo, através da linguagem e no contexto intersubjetivo, que constitui a problemática central do discurso freudiano.

Apesar do seu início tímido na virada do século, encontrando oposições importantes ao seu reconhecimento como saber, a Psicanálise foi se impondo paulatinamente, com prestígio crescente, adquirindo um reconhecimento nos campos da medicina, da psiquiatria e das ciências humanas em geral, com importantes interações com a filosofia e significativas repercussões sobre as artes, inscrevendo-se na história deste século com tal ênfase que ele, merecidamente, tem sido denominado o "Século da Psicanálise".

Mas a difusão da Psicanálise não teve o mesmo sucesso nos vários países e, se ela se implantou em certas culturas do ocidente, em outras isto não ocorreu.

No Reino Unido, por exemplo, a Psicanálise chegou cedo, firmou-se, porém jamais conseguiu, realmente, influenciar a cultura como um todo de modo marcante. Mas permanece com prestígio, com importante representação, onde a preocupação clínica é central, sendo o trabalho teórico subordinado, em última instância, à experiência clínica.

Em contraste com a situação britânica, o destino da Psicanálise nos Estados Unidos foi muito diferente, chegando a dar origem ao que alguns observadores e críticos denominam "cultura psicanalítica".

Na década de trinta a Psicanálise se deslocou de maneira decisiva da Europa para os Estados Unidos, onde aquilo que deveria ser "a peste" transformou-se numa "tecnologia da adaptação" dos indivíduos num espaço social caracterizado por mudanças rápidas.

A Psicologia do Ego, formulação teórica por excelência dessa versão da Psicanálise, assume nos anos cinqüenta e sessenta, a dominância absoluta do campo psicanalítico, quando a hegemonia internacional da Psicanálise americana atingiu o apogeu.

Desde então a Psicanálise vem perdendo o lugar de destaque que ocupava na sociedade americana, sofrendo um desgaste progressivo.

Enquanto a Psicologia do Ego representava a corrente no campo psicanalítico, a teoria de Melanie Klein se destacava durante décadas como paradigma e herdeira das exigências básicas do discurso freudiano. Com o destaque conferido à pulsão de morte, com a construção da cartografia fantasmática do infante, a ênfase na transferência e nas relações de objeto e a singular tensão decorrente da utilização que ela faz da perspectiva genético-evolutiva em contraponto com as duas posições, o sistema kleiniano apresenta-se muito distante de uma visão ortopédica da psicanálise.

De modo semelhante ao "boom" da psicanálise nos Estados Unidos, seguiu-se na França, na esteira dos conflitos que culminaram com a expulsão de Lacan da Associação Internacional de Psicanálise, um poderoso movimento lacaniano, com um clímax nos anos setenta e que já começava a refluir a partir do início dos anos oitenta.

Quando de sua introdução no cenário francês, as idéias psicanalíticas se defrontaram com posições francamente hostis e sem dúvida, foi pela mediação da leitura de Lacan que o discurso freudiano foi finalmente reconhecido na França.

Pouco antes de sua morte Lacan confessava: "Sou um traumatizado pelo mal entendido. Como não me acostumo com ele, canso-me tentando dissolvê-lo. E assim, termino por alimentá-lo". E, na verdade, sua vida é uma história marcada por rupturas e dissoluções.

Embora a experiência de confrontação no campo psicanalítico sempre tenha se processado num clima de tensão, com estocadas entre os rivais sobre quem era o "legítimo" detentor da herança freudiana, a retórica utilizada era diplomática. Mas a partir dos anos cinqüenta Lacan instaura uma "metáfora de guerra", produzindo sucessivas rupturas nos quadros institucionais franceses, enquanto cresce a importância de suas concepções.

O campo psicanalítico é o campo do circuito do desejo e é este que a teoria lacaniana distribui em três registros: o do real, o do simbólico e do imaginário.

O "Discurso de Roma" marca início de uma etapa em que o registro simbólico se constitui como condição privilegiada para o chamado "retorno a Freud", destacando a importância estratégica de retomar a leitura dos textos freudianos, na medida em que o pensamento psicanalítico teria se "desviado" das exigências básicas do discurso freudiano, ao se distanciar do paradigma central da experiência psicanalítica, que se realizaria, de direito, no campo da linguagem e da fala.

O desvio alegado era representado pela Psicologia do Ego, mas o sistema kleiniano também era criticado por inserir a experiência psicanalítica no registro do imaginário.

Mas neste "retorno a Freud", ao sabor dos momentos e das conveniências, Lacan faz recorte, separa ou estabelece ligações dos textos, incita à seleção e chega a dizer: "Trata-se de considerar como caduco o que de fato o é, na obra de um mestre sem igual".

Mas num outro contexto dirá sem rodeios: "Este escrito manifesta uma vez mais o valor fundamental de "todos" os escritos de Freud. Cada palavra merece ser medida em sua incidência precisa, em seu tom, em seu percurso particular, merece ser inserida na mais rigorosa análise lógica".

Até então tudo se passa na precisão da relação da dimensão simbólica e a relação imaginária, não só pela primazia do simbólico, como pela sua própria incompletude.

Este primado do simbólico repousa sobre uma tríplice suposição: palavra plena, intersubjetividade e exaustão da história do sujeito no simbólico.

Deste período dos anos cinqüenta Lacan vai se afastar a partir de 1964. Dirá em determinado momento: "O imaginário é o lugar onde toda a verdade se enuncia".

A introdução do real em sua relação com o simbólico marca um corte no ensino de Lacan.

No último período de seu ensino, marcado por uma virada em direção ao real, a noção de letra vai substituindo a noção de significante e se amplia o interesse de Lacan pela topologia, que culmina com a apresentação do nó borromeano.

O ensino de Lacan é denso, rico e indispensável a qualquer analista. Mas não é a única verdade no campo psicanalítico, por sinal um campo teórico onde as paixões dos interlocutores estão envolvidas em larga escala e o que se encontra em pauta não é apenas o valor da verdade de uma teoria, mas principalmente o sistema de transmissão do discurso psicanalítico. É que a Psicanálise é um saber no qual a transmissão se regula pela transferência, tendo sido no sistema de filiação das instituições analíticas que o discurso freudiano se sacralizou em diferentes tendências. E é esta marca transferencial que ecoa com insistência, no confronto de posições.

É curioso observar que, já coincidindo com o refluxo da Psicanálise na França, ocorre uma vigorosa difusão da Psicanálise lacaniana em escala internacional, envolvendo Espanha, Portugal, Itália, Japão e, muito particularmente, a América Latina, constituindo um movimento que pretende se opor à hegemonia, até então absoluta, da Associação Psicanalítica Internacional.

Assim, neste final de século, no Brasil e na Argentina, a Psicanálise apresenta pujança equivalente à que existia nos Estados Unidos e, pouco depois, na França, décadas atrás.

Até o final dos anos sessenta a Psicanálise no Brasil circunscrevia-se essencialmente às Sociedades filiadas a IPA, com atuação em São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro, e a alguns núcleos filiados à Federação Internacional de Sociedades Psicanalíticas, com destaque para o Círculo Psicanalítico de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, e da Sociedade Psicanalítica Iracy Doyle, no Rio de Janeiro.

Mas a partir do início dos anos setenta, com a chegada ao Brasil de um expressivo número de psicanalistas argentinos, rompidos com a IPA e também atingidos em seu país por uma ditadura militar, tem lugar um vigoroso movimento de difusão da Psicanálise, que se amplia ainda mais com o início da penetração do lacanismo.

Multiplicam-se, então, as instituições psicanalíticas, com predomínio absoluto das de orientação lacaniana. Mas as outras Sociedades também se expandem. Oriundo de Belo Horizonte e com formação carusiana, Carlos Pinto chega a Salvador em 1971 e funda o Círculo Psicanalítico da Bahia, que sucessivamente irá dar lugar ao surgimento do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, ao Círculo Brasileiro de Psicanálise, seção Rio de Janeiro e ao Círculo Psicanalítico de Sergipe.

O momento é de expansão e entusiasmo, pois se reafirma agora no Brasil, como nunca antes ocorrera, o valor teórico, cultural e terapêutico da Psicanálise.

E a grande expansão da Psicanálise entre nós ocorre com um sensível reordenamento do próprio perfil do campo psicanalítico, agora aberto aos profissionais das mais diversas orientações, aos quais é oferecida a mais ampla possibilidade de formação analítica nas mais diversas instituições.

Possivelmente diminui, já agora, de modo significativo, o número de pessoas que buscam, efetivamente, tratamento; e cresce o número dos supostos pretendentes a analista.

Como contrapartida desta situação, a clínica é colocada como que em segundo plano, como que referendando os prognósticos de Freud: "No futuro, provavelmente, se atribuirá maior importância à Psicanálise como ciência do inconsciente do que como procedimento terapêutico".

A enorme competição gerada pela saturação na área e a falta de clientes, aliadas aos baixos rendimentos provenientes da clínica tiram o consultório do lugar privilegiado que ocupava antes.

E a Psicanálise clínica aparece como algo tão abstrato, para muitos psicanalistas, quanto o paciente volátil e desaparecido dos seus consultórios.

Com seus serviços menos requisitados, o psicanalista teve de se orientar para outras direções: o estudo das teorias, preparo de aulas, seminários, debates, conferências. O grupo de estudos prolifera, mas a experiência clínica é esquiva. Os anfiteatros, as páginas de revistas e de jornais, as salas de aula e, até mesmo, as telas de televisão tornaram-se o "setting" do analista e do seu saber, aplicável às mais diversas áreas da cultura.

O consumo de livros aumentou consideravelmente, a ponto do mercado brasileiro ter se tornado o terceiro do mundo de acordo com informações da "Presses Universitaires de France". No Brasil, pelo menos doze editoras publicam textos de Psicanálise e novas editoras se constituem, publicando apenas títulos de Psicanálise. Oitenta por cento dos textos são de autores estrangeiros traduzidos para o Português. O livro de Peter Gay, por exemplo, "Freud, uma vida para o nosso tempo", vendeu no Brasil mais exemplares nas três primeiras semanas (10.000) do que no Reino Unido em um ano (8.000).

Contudo, já é evidente na maioria das publicações uma marcante monotonia dos temas, que se apresentam repetidos, distantes da experiência clínica e insistindo sempre nos mesmos pressupostos teóricos. Soam como arranjos diferentes da mesma partitura.

Mas neste contexto parece que o próprio psicanalista se socializou e a própria relação entre as instituições sofre apreciável modificação: a antiga postura de fechamento foi abalada e a coexistência tornou-se possível num clima mais ameno, que tende a substituir a suspicácia e a hostilidade.

Contudo, nesta virada do século, a Psicanálise também apresenta dificuldades e impasses.

Primeiramente, parece de importância fundamental pensar psicana-liticamente sobre os processos de implantação, difusão e retração da Psicanálise em diferentes culturas, buscando a singularidade de cada caso, na apreciação do impacto recíproco cultura x Psicanálise, especificando como a cultura tem modificado a Psicanálise e como a Psicanálise tem modificado a cultura.

Pensar a política institucional de modo a viabilizar a melhor produção científica e o mais consistente processo de transmissão possível, visando sempre resgatar a melhor tradição clínica.

Aprofundar a reflexão sobre os problemas de tempo e duração da análise, bem como os delicados critérios de seu término. Reavaliar a questão das estruturas clínicas, aprofundando a discussão, visando a relativização da rígida assepsia estrutural, ou mesmo, uma redefinição da estrutura com base nas contribuições topológicas.

Reavaliar, sobretudo, a questão da psicose.

Pode a foraclusão aparecer como uma explicação radical dos processos psicóticos?

Psicose é mesmo paranóia e esquizofrenia?

Qual a especificidade da melancolia?

E a questão da mania?

E as patologias de borda?

Como articular estas questões com os avanços das neurociências e os progressos da neurobiologia do cérebro?

Pode o psicanalista ignorar esses avanços?

Qual o lugar da Psicanálise no contexto da instituição hospitalar, no atendimento de pacientes orgânicos e na organização do atendimento de massa a nível ambulatorial?

A atual tendência à teorização e a "filosofização" não deveria ser contrabalançada por uma reavaliação da distância entre os "progressos teóricos" e a eficácia clínica?

Quais as condições concretas da possibilidade do discurso freudiano e da experiência analítica?

Por outro lado, ou este discurso fundador e fundamental se renova sempre, permitindo que a Psicanálise possa ir além dele, ou a própria Psicanálise, presa aos seus paradigmas, estará se distanciando perigosamente de sua dimensão científica, com os riscos de progressivamente se constituir como uma seita, naturalmente buscada e procurada por muitos, mas cujos efeitos estarão próximos à "eficácia simbólica" do xamanismo.

 

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* Trabalho apresentado em "O Século da Psicanálise" – Encontro Internacional, Salvador, Ba, Outubro 1993.
** Psicanalista. Círculo Psicanalítico da Bahia

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