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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.1  Salvador  1996

 

 

Perversão na criança

 

 

Gildete Lino de Carvalho *

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora conceitua "Perversão", ligada ao conceito de falo e castração, seguindo o percurso de Freud. Estabelece uma articulação entre "Perversão" e "A Função do Pai", segundo Lacan. Evoca a clínica da Perversão com crianças, passando por Françoise Dolto. E questiona o termo Perversão na Criança, em confronto com o que se passa na clínica e por se encontrar a criança ainda em pleno processo de estruturação simbólica.

Palavras-chave: Perversão e criança, Sexualidade, Pulsão, Falo, Castração, Desejo, Clivagem, Recusa.


 

 

INTRODUÇÃO

Nenhum ser humano se constitui sem a presença do outro – do grande Outro.

No momento inaugural da vida do infans, apenas dois personagens em jogo – a criança e a mãe. Relação dual, imaginária e absolutamente indispensável. Mergulhada nessa relação ilusória, a criança se converte naquilo que a mãe deseja. O seu desejo é o desejo do outro no duplo sentido - ser desejado pelo outro.

Tomar o desejo da mãe como se fora o próprio. A criança se identifica com aquilo que é objeto de desejo da mãe, crê que é por ele que a mãe é feliz, porém a criança desconhece que a mãe busca nela algo mais que vai além dela mesma – a sua completude narcísica. Assim, a criança termina por entrar no conflito central de sua existência - ser o falo da mãe que, ao se reconhecer castrada, em última instância, se constitui como falta real, buraco.

A exigência fálica, falta imaginária desse objeto, inevitavelmente, vai ser responsável pelo implemento da lei da castração simbólica.

Como isso se passa? Pela mediação do nome do pai, metáfora do desejo materno. A intrusão da figura do pai imaginário, tal como a criança fantasia, concorrente fálico, junto à mãe, esboça a passagem dialética do ser para o ter. Isso só será possível, se a aparição do pai à criança for percebida por ela num dado momento, como alguém supostamente detentora do objeto que a mãe deseja. "O estatuto de pai é um puro referente, cuja função simbólica é sustentada pela atribuição do objeto imaginário fálico. Todo terceiro que responder à função, mediatizando os desejos respectivos da mãe e do filho, vai instituir por sua incidência o alcance legalizador do incesto". (Joel Dor, 1991).

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERVERSÃO. Seguindo os caminhos de Freud

A Psicanálise nasce com a preocupação do patológico e termina se esbarrando com que há de constitutivo no sujeito. De modo que, nos seus primórdios, a Psicanálise que, influenciada pelo modelo médico, dividia os homens em dois grupos - normais e perversos, saudáveis e doentes, vai modificando os seus conceitos, através do que revela o inconsciente, que regido pelo processo primário, suporta oposições inconciliáveis, de modo que, o normal e patológico no discurso do cliente em análise, se alternam.Os sonhos são permeados dessas antinomias - "a perversão dos não perversos, o crime do inocente".

Em seu "Vocabulário da Psicanálise", Laplanche e Pontalis não deixam de apontar que só se pode falar de Perversão em relação à sexualidade.

O próprio Freud distingue um certo número de pulsões, sempre ligadas às pulsões sexuais que evocam a dinâmica do processo da perversão.

A noção de pulsão, central na metapsicologia freudiana, é um elemento chave na economia psíquica, característica da perversão, bem como constitutiva da evolução da sexualidade infantil. É também o vetor psíquico que vai atualizar o processo. 1905 – "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" – o conceito de pulsão aparece explicitamente na obra de Freud. Com a introdução desse conceito, Freud aborda seu 1° ensaio sobre a teoria da sexualidade, intitulado "Aberrações Sexuais", situando-as em função de sua dupla determinação: um desvio relativo a seu objetivo e a seu objeto. A originalidade de Freud, segundo Joel Dor, reside no fato de, desde o início, vincular as aberrações sexuais ao conceito de pulsão; segundo, a perversão aparece não só como um processo que se manifesta por um desvio do objetivo da pulsão, como também uma inflação do processo sexual normal. Pode-se dizer que, em nenhum indivíduo normal falta um elemento que se pode designar como perverso, acrescentando-se ao objetivo sexual normal; a 3ª observação de Joel Dor recai no fato de que no capítulo "Generalização sobre as perversões", o texto freudiano inclina-se para considerações cada vez mais gerais referentes à sexualidade. Freud mostra que essa modificação no objetivo do processo pulsional encontra um lugar quase legítimo na vida sexual normal dos sujeitos. Daí se depreende que todo o processo sexual se coloca na mesma situação dessa flutuações pulsionais.

A idéia de pulsão parcial surge, para Freud, no estudo das perversões, após o confronto que faz entre neurose/perversão. Porque a sexualidade perversa está sujeita às pulsões parciais, Freud tematiza a perversidade polimorfa, no centro da organização sexual infantil. Esses componentes pulsionais da sexualidade, inicialmente autônomos, têm sua organização secundaria-mente, sob o primado da zona genital, na puberdade. Assim, a organização da perversão no adulto se explica por uma regressão a um estágio anterior da evolução libidinal, onde eletivamente o sujeito permaneceria fixado.

Em 1915 em "Pulsões e Destino das Pulsões" – Freud define rigorosamente o objetivo e objeto da pulsão. Tal objeto, diz ele, é totalmente variável e não é eleito como objeto de satisfação possível senão em função da história do sujeito. Pode ocorrer que o mesmo sirva simultaneamente à satisfação de várias pulsões. Quando a ligação da pulsão ao objeto é particularmente íntima se dá o que chamamos de fixação.

Freud aponta 4 destinos da pulsão – o recalcamento e a sublimação de um lado; e do outro, a transformação no seu contrário e o retorno sobre a própria pessoa que constituem duas vicissitudes pulsionais diretamente em operação nas perversões. De um lado, a possibilidade de um retorno da pulsão da atividade à passividade. De outro a transformação do conteúdo do processo pulsional. Os exemplos que Freud convoca para ilustração, são do domínio da perversão – o par sadismo/masoquismo; o par voyeurismo/exibicionismo. Estes concernentes aos objetivos pulsionais. O objetivo ativo – olhar, atormentar – é substituído pelo passivo, – ser olhado, ser atormentado. Quanto à "Transformação do conteúdo", a melhor ilustração consiste na transformação do amor em ódio.

A questão da castração está no cerne de toda problemática da Perversão. E só poderá ser compreendida a partir de uma lógica fálica. A presença simbólica do falo vem em lugar da ausência real do pênis da mãe e ao fazer sua aparição, no imaginário surge como fetiche.

O fetiche tem portanto, em sua origem, o estatuto de uma falta de objeto – o falo.

Uma criança de 04 anos, do sexo masculino, em uma sessão de análise modelava bonecos de argila. A um deles apontava que era o boneco-mãe. Tomado de angústia, com um ódio incontrolável, aos pontapés esmurra a terapeuta quando esta lhe diz: a mãe não tem pênis.

A investigação do fetichismo indica os caminhos palmilhados por Freud e ilustra de forma irrefutável, a quem deseja elucidar suas dúvidas acerca do complexo de castração – diante da visão do genital feminino. (Fetichismo – 1927 – Freud).

As noções metapsicológicas capitais tais como a recusa do ego vão desempenhar um papel importantíssimo na elucidação do processo perverso. A recusa, conceito que aparece a partir de 1923 e, até o final de seus trabalhos, Freud não deixará de fazer referência a ela. Introduz a noção de recusa em relação direta com castração em "A Organização Genital Infantil" – 1923.

A constatação da falta de pênis na menina é concebida pela criança como resultado de uma castração e a criança é obrigada a confrontar-se com a própria castração. Em 1925 "Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos", diz Freud: "a recusa não parece nem raro, nem perigoso para a vida mental da criança, mas nos adultos introduziria uma psicose. A menina recusa-se a aceitar o fato de sua castração, obstina-se em sua convicção que possui um pênis e é obrigada em seguida a se comportar como se fosse homem". No mesmo texto, em relação ao comportamento sexual do menino: "Quando o menino percebe pela primeira vez a região genital da menina, conduz-se de maneira indefesa, pouco interessado antes de tudo; não vê nada ou então, por uma recusa,atenua sua percepção, procura informações que permitam concilia-la ao que ele espera".

Em 1924 – "A perda da realidade na neurose e na psicose", Freud estabelece um paralelo entre a recusa e o recalcamento. Se o recalcamento aparece como um mecanismo indutor das neuroses, a recusa é descrita como um processo indutor das psicoses. Só que "o recalcamento fundamenta-se eletivamente em formações psíquicas que se apresentam como exigências do Isso", enquanto que a recusa é uma rejeição de certos aspectos da realidade. Na neurose um fragmento da realidade é evitado, do modo da fuga, na psicose ele é reconstruído. A neurose não recusa a realidade, ela somente não quer saber nada dela. A psicose recusa-a e procura substituí-la. A recusa não é específica da psicose, ensina Freud já que se encontra ilustrada em uma perversão como o fetichismo.

Freud vai associar a recusa da realidade a outro processo metapsicológico – "a clivagem do eu" que remeterá mais uma vez à problemática psicótica.

No caso do fetichismo, a recusa à realidade baseia-se eletivamente na ausência de pênis na mãe (na mulher).

No aparelho psíquico, duas representações inconciliáveis entre si: uma, normal, dá conta da realidade, enquanto que a outra, sob influência das pulsões, libera o eu desta última.

Freud também assinala que não só nos fetichistas há coexistência desta dupla atitude a respeito da castração.

Essa persistência do comportamento sexual normal, paralela ao comportamento perverso, é totalmente explicada pela clivagem do eu. Para Freud a distinção radical entre as perversões e as neuroses são de ordem tópica e estrutural; na neurose, estando no seio de uma tópica intersistêmica – entre o Eu e o Isso.

Na perversão, situamo-nos em uma tópica intrasistêmica, já que as representações inconciliáveis habitam no interior do mesmo sistema. Na neurose, o mecanismo é o recalcamento, na perversão – a recusa.

Ora, se a perversão está ligada definitivamente ao império das pulsões parciais e, se estas mesmas pulsões são o apanágio da sexualidade da criança, pode-se falar em perversão como uma estrutura, formada, estabelecida na criança? O "perverso polimorfo" de Freud ainda tem um percurso a realizar e a interferência do ambiente ou de uma ação terapêutica eficaz, é susceptível de mudar o curso do que seria um dia a patologia da perversão.

Vando, um menino de 09 anos, cujo pai prefeito da cidade, alcoólatra, de família tradicional, castigava o filho de tal forma que não dá margem a dúvida sobre a sua perversão. O menino além de não estudar, era considerado insuportável pelas diabruras que praticava. O seu gozo, consistia em assustar o pai – "Quero matar meu pai de susto". Assustava também os transeuntes na rua, realizando malabarismos com a bicicleta ou com skate, ameaçando derrubar as pessoas que passavam. Gostava de brincar de assustar os próprios companheiros, criando um cenário com caveiras e luz negra. Certo dia, faz asas delta de papelão para voar morro abaixo. Sabedor dessa possível façanha o pai chama-o e lhe diz: Vando vá à funerária e encomende seu caixão. Ao mesmo tempo, estupefacto e sorrindo, me conta sobre o pai. Via-se sem dificuldade o traço sadomasoquista dessa criança que tinha uma mãe que, embora preocupada com ele, não lhe dedicava amor de que necessitava. Dizia-me que gostava do filho quando dormindo – filho confundido com o primeiro filho morto, cujo luto ela não efetuara.

A nível transferencial no consultório, no início do tratamento, faz armadilhas, para desmoralizar a minha secretária. "Desmoralizar", ou seja, transgredir, é o que mais gostava.

No decorrer do tratamento, se evidenciou a patologia do casal parental. Pois que, não se amavam, pai alcoólatra, mãe histérica, vivendo o luto pela perda do primeiro filho. Toda a constelação familiar tramava uma perversão para esse garoto. O espaço para linguagem via transferência, tornou possível um outro percurso, uma saída neurótica.

 

PERSPECTIVA CLÍNICA

A perspectiva clínica de uma criança submetida a uma pulsão parcial difere fundamentalmente da de um adulto perverso. O perverso não busca a análise por sua perversão. Ele não traz esta exigência do saber, como neurótico, vez que a sua patologia incide exatamente na recusa de saber, sendo impossível para ele assumir a posição de quem não sabe, frente ao "sujeito suposto saber". Para Lacan "o saber do perverso é igualmente um saber constituído que recusa conhecer sua inserção subjetiva num não saber que o precede: é um saber que se pretende verdadeiro, é a gnose. E finalmente um saber rígido implacável, inapto para ser revisto diante do desmentido dos fatos".

Em princípio temos uma contra-indicação à análise do perverso ou o aceitamos com reserva.

"O perverso vem à análise por algum tipo de conflito ou conseqüências produzidas pelo objeto do seu desejo.

Ele não quer de modo algum suprimir sua fonte de prazer, mas atenuar os efeitos de um feed-back da sua passagem ao ato". (Carlos Pinto).

A criança dita "perversa" não demanda análise, inclusive porque nenhuma criança busca análise. É levada pelos pais. E estes, só o fazem quando o sintoma da criança desorganiza a homeostase da família, quando não, especificamente do casal parental.

Françoise Dolto em "Seminário da Psicanálise da Criança" - 1985, situa a perversão infantil dizendo: "A perversão se produz a partir do fato de que o adulto que aplicou a castração não o faz em nome desse ser humano que o adulto tem por missão ajudar a desenvolver, mas, unicamente em nome do seu próprio narcisismo. É em nome de sua única vontade, e não em nome da lei á qual ele próprio adulto está sujeito, que o adulto impõe então, a seu filho, a renúncia ao prazer, a restrição do prazer. O adulto que de maneira sadia, nem desprezo, nem crueldade, coloca os interditos que ele próprio reconhece é, então, para a criança um mestre de desejo humanizado". Coloca ainda Françoise Dolto que, o desejo de uma criança perversa é sempre são. "Ela repete alguma coisa da qual ela espera ser curada. Porque essa coisa faz sofrer.

Uma criança que é cruel com as outras crianças, com animais, repete alguma coisa da qual ela tem a solução, mas a criança, sem dúvida encontrou o exemplo dessa coisa em alguém que tem valor para ela, ou então, ela sofreu isso da parte de alguém que ela considerava um modelo. Todavia, não quer renunciar a essa pessoa ou à lembrança dessa pessoa, associadas, para a criança, a seu próprio narcisismo".

Continua Dolto: quando uma menina faz xixi na roupa, durante o dia para provocar o pai, ela sabe que isso vai lhe valer uma surra. E o que é uma surra para uma criança que está ainda na fase anal, ou mesmo na fase pré-edipiana? É um substituto do coito.Ela provoca o pai para um coito com ela, designando-lhe pelo xixi, o lugar em que algo faltava a ela. Desse modo, e por prazer masoquista, ela a meninazinha forçava o pai a surrá-la.

Para concluir, a criança "perversa" em análise atua dentro do consultório. E não raro o analista é surpreendido por um xixi feito no consultório, beliscões e pontapés.

Aqui fala Françoise Dolto – "Nós psicanalistas, não temos projeto pedagógico diretivo; mas não podemos deixar de ter, em relação às crianças, um projeto de estruturação, de castração das pulsões, umas após outras. Não podemos deixar de dizer, nem deixar fazer indiscriminadamente tudo - quem cala consente".

Muito se tem ainda a falar sobre as implicações dessa patologia. Não se pode prescindir da função do pai para a compreensão da constituição do sujeito desejante e das conseqüências quando há falência dessa função.

"Só a renúncia ao objeto primordial do desejo é a condição que salvaguarda a possibilidade do próprio desejo, dando-lhe justamente um novo estatuto induzido pela função paterna: novo estatuto que autoriza o direito ao desejo do outro. Por causa da sua dinâmica particular o perverso é então cativo de uma economia desejante insustentável, pois que o subtrai a esse direito ao desejo. Assim ele se esgota para negociá-la tentando demonstrar regularmente que a única lei que reconhece é a lei imperativa do seu próprio desejo. E não a lei do desejo do outro". (Joel Dor)

A atribuição fálica do pai que lhe confere a autoridade de pai simbólico (representante da lei), nunca será reconhecida, exceto para ser contestada, atuando o perverso com dois estereótipos estruturais, impossíveis de serem superados: o desafio e a transgressão". (Joel Dor)

 

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REVERSO – Revista Psicanalítica – Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Outubro, 1992         [ Links ]

ESTUDOS DE PSICANÁLISE – Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Setembro – 1994        [ Links ]

 

 

* Psicanalista. Círculo Psicanalítico da Bahia

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