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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.1  Salvador  1996

 

 

Daphnis e Chloé *

 

 

Lúcia Azevedo **

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

Apresenta-se um breve resumo do romance "Pastorais-Daphnis e Chloé", de Longus, poeta retórico grego. Destacam-se os pontos que se articulam à citação de Lacan, no Seminário XI, a propósito da sexualidade e das pulsões parciais. Estes pontos dizem respeito a que não existe, no humano, para Lacan, uma totalização pulsional, ou uma pulsão genital. Para ele, as coisas do sexo, o homem não nasce sabendo como fazê-las; isso é próprio dos animais. Ao contrário, para o vivo humano, "o inocente não sabe", isso para ele é da ordem do Édipo, da cultura e precisa ser aprendido dos mais velhos; precisa ser passado, de geração em geração. Como neste romance, escrito, talvez, no século II ou III d.C.

Palavras-chave: Pastorais, Pastorais de longus, Psicanálise, Sexualidade, Pulsões parciais.


 

 

A propósito do Seminário XI de Lacan: "Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise", andei à procura de "Daphnis e Chloé"1.

Remexendo enciclopédias e compêndios de mitologia grega, localizei Daphne, ne final: ninfa amada e perseguida por Eros, recusou o seu amor e foi transformada numa árvore, o loureiro; aquela cujas folhas teciam as "coroas de louro". Mas nada encontrei aí que se adapte aos comentários de Lacan, nesse seminário.

Também Daphnis (nis final) é figura da mitologia. Semideus, filho de Hermes com uma ninfa, foi abandonado, desde o nascimento, em meio aos loureiros.

Muito belo, exímio tocador da siringe (a flauta de Pan), jurou amor eterno à ninfa Liquê; mas foi atraído pelos ardis de uma encantadora princesa, caindo em sua trama de amor; o que lhe custou, como vingança de Liquê, a perda da visão.

Também aqui, o enredo não me parece conduzir ao texto de Lacan.

Quanto a Chloé, nada localizei na mitologia a seu respeito.

Mas, na verdade, "Daphnis e Chloé" nada tem a ver com a mitologia; trata-se de um texto literário, do retórico Longus, provavelmente grego, datando talvez dos séculos II ou III d.C.

Nada se conhece a respeito de Longus. É provável que nem seja mesmo esse o nome do autor de "Daphnis e Chloé"; parece que esse nome - Longus – teria a ver com o título original do texto, o qual sofreu distorções nas suas primeiras traduções. É um romance no estilo pastoral. Intitula-se, mesmo: "Pastorais"; sub-título: "DAPHNIS E CHLOÉ".

Daphnis e Chloé eram duas crianças, pastores, que viviam na guarda de seus rebanhos de cabras e ovelhas; eles viviam num lindo bosque dedicado às ninfas e ao deus Pan, próximo à cidade de Mitiléne, na Ilha de Lesbos.

Haviam sido abandonados por seus pais, quando ainda bebês, neste bosque; e aí foram acolhidos e adotados por dois casais de pastores. Os objetos de reconhecimento, encontrados ao lado de cada um dos bebês, quando eles foram achados pelos pastores, sugeriam que eles deviam ser filhos de famílias abastadas. Por isso, a intenção dos pais adotivos era a de criá-los como tal, com cuidados muito especiais, e não como simples pastores.

Entretanto, o deus Eros apareceu, em sonhos, a estes pastores e lhes ordenou a criar os meninos no bosque, nos afazeres da vida pastoril.

Assim, então cresceram, Daphnis – o menino; e Chloé – a menina: no cuidado diário dos animais, em meio aos encantos do bosque, ela tecendo oferendas às ninfas e ele, homenageando o deus Pan com os sons magníficos de sua flauta, a siringe.

Mas a intenção de Eros era transformá-los no mais belo e famoso casal de amantes do mundo!

E eis que, um dia, Daphnis caiu numa armadilha para lobos e ficou muito sujo de lama. Chloé, então, o ajudou a sair do fosso e a lavar-se. E foi nisso que, ao ver Daphnis banhar-se, ela se deslumbrou com a beleza de seu corpo nu, a cor de sua pele, a sua tez; e o sentiu com suas próprias mãos, e ficou fascinada!

E a partir de então, ei-la toda tomada pelo desejo ardente de voltar a vê-lo. Tal desejo a dominava inteiramente, a capturava por completo; ela já não conseguia dormir, alimentava-se mal, não mais cuidava de seus rebanhos; sua vida era, toda, aquele desejo...

Então o boiadeiro Dorcon apaixonou-se por ela. E lançou, a Daphnis, seu desafio; e, ao vencedor, o beijo de Chloé!

Daphnis enfrentou-o e venceu, e ganhou o beijo dela!

E aí, tudo aquilo que ela sentira ao vê-lo banhar-se, é ele que, a partir de agora, vai sentir também, ao provar o calor de seu beijo.

E ei-lo dominado pelo mesmo desejo; já não tinha paz, não mais conseguia dormir, nem comer, presa do mesmo mal. "Será que o beijo dela é venenoso?", perguntava-se, muitas vezes; ao que ele próprio retrucava: "se assim o fosse, ela mesma já teria morrido..."

Assim os dias se desenrolavam, o tempo passava e aquele desejo ardente os envolvia por completo e os embaraçava cada vez mais.

Então...

Lá distante, Eros apareceu ao bom velho Philétas. Ele era o mais velho da redondeza, homem justo e o mais hábil tocador de siringe. Eros lhe apareceu como um menino travesso, a destruir seu belo jardim; foi levar-lhe a missão de ir ter com Daphnis e Chloé, para lhes falar das coisas do Amor.

Foi, então, Philétas ao encontro dos meninos, no Bosque das Ninfas. E cumpriu sua missão, dizendo a Daphnis que toda aquela inquietação que os dominava, a tormenta que os envolvia, a ele e a Chloé, aquela doença era o Amor. E mais, foi-lhes levar também o remédio: que se abraçassem, se beijassem como já faziam; mas também que se deitassem nus, um lado do outro! Eis aí a receita...

A trama do "Pastorais" pode ser vista como um misto de conto de amor e aventura de guerra. Numerosos episódios conturbam a vida que se diria pacata, para dois pequeninos pastores: invasões de povos vizinhos, da Cidade de Metymne, turbas, raptos, ameaças de sevícias homossexuais...

Mas em meio a toda a turba, eles continuavam suas vidas, imersos na doença do Amor e sem perder nenhuma oportunidade para se abraçarem e se beijarem; mas a doença não melhorava.

E Daphnis se deu conta de que faltava a terceira parte da receita de Philétas: deitarem-se, despidos, um ao lado do outro. Vê como os animais se acalmam e se serenam, depois que se deitam lado a lado... dizia ele a Chloé.

E se lançaram a isso. Mas Chloé não entendia bem essa receita; se os animais não se despem de suas peles, e não se deitam para se amarem, por que, com eles, há de ser assim? E diante de seus argumentos insistentes, Daphnis cedeu. E tentaram se amar do mesmo modo que faziam os animais – vestidos, e de pé... Mas, para tristeza e decepção sua, Daphnis não conseguiu. Não conseguiu e chorou desesperadamente.

Pouco adiante, Lycénion – moça bela, que veio da cidade – presenciou aquele espetáculo. Compadecida com a inexperiência do jovem – e encantada com sua formosura – apresentou qualquer desculpa a Chromis, seu marido e saiu disfarçada, a fim de ir consolar Daphnis.

Disse-lhe, mentindo, que as ninfas, em sonho, a mandaram ensinar-lhe a se desincumbir junto a Chloé. E que, para tal, ele devia beijá-la e abraçá-la com o mesmo ardor com que costumava beijar e abraçar Chloé. E assim se fez. E Lycénion então mostrou a Daphnis, na prática, como se faz Amor.

Satisfeito, lisonjeado, ele logo se apressou para ir experimentar, junto a Chloé, toda a maravilha que acabara de aprender com Lycénion.

E Lycénion o advertiu, antes que se fosse, de que Chloé iria sangrar muito; mas que ele não se assustasse, e que tivesse cuidado para que ninguém a visse chorando. E acrescentou, maliciosa na despedida: Lembre-se de que fui eu – e não ela – quem fez de você um homem!

Mas novo clima de inquietação voltou a tumultuar aquele bosque e uma série de novos acontecimentos turbulentos vieram impedi-lo de viver, com Chloé, a tão sonhada aventura do Amor.

Acontecimentos que culminaram com a descoberta, para todos os circunstantes, sobre sua origem e a de Chloé; e com a identificação de seus pais biológicos.

Finalmente, em meio a muita alegria, pais adotivos e pais biológicos celebraram a grande festa das bodas de Daphnis e Chloé, na presença de toda aquela gente moradora dos arredores do Bosque das Ninfas. Só então Daphnis conseguiu a oportunidade de deitar-se com Chloé, os corpos nus, como lhe receitara Philétas, e concretizar tudo aquilo que lhe ensinara Lycénion.

Lacan cita esta fábula – não é uma fábula vã – diz ele, a propósito de seu estudo da sexualidade e das pulsões parciais, no Seminário 11.

Está aí pontuando que nada existe, no psiquismo, no humano, que fale a favor de uma pulsão genital, de uma genitalidade, de uma totalidade ou de uma complementariedade dos sexos.

Não existe inscrição inconsciente do encontro sexual, muito menos da função reprodutora.

No vivo humano a sexualidade não converge para o congresso sexual, nem para a reprodução. A sexualidade se manifesta via pulsão e a pulsão é sempre parcial. É no registro da oralidade, da analidade, do escópico e da voz que a pulsão se expressa. Nada no homem corresponde ao instinto animal de cruzamento sexual ou de procriação. Exatamente porque falta no homem este instinto é que a sexualidade se desenvolve.

O congresso sexual, no vivo humano, é da ordem da cultura, do Édipo; é aprendido, de geração em geração. E, a propósito, Lacan diz: "... o que se deve fazer, como homem ou como mulher, o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro. Evoquei... a Velha do conto Daphnis e Chloé, cuja fábula nos representa que há um último campo, o campo da realização sexual, cujos caminhos no final das contas, o inocente não sabe" (Grifo meu). E diz, ainda, Lacan: ..."a relação sexual fica entregue ao aleatório do campo do Outro. Fica entregue às explicações que se lhes dêem. Fica entregue à velha, de quem se precisa – não é uma fábula vã – para que Daphnis aprenda como se tem que fazer, para fazer amor."

Geniais, estas citações. Foi exatamente assim no conto. Os meninos não sabiam. Algo lhes brotou no corpo, no registro das pulsões parciais. Mas eles não sabiam que isso tinha a ver com o congresso sexual; nem como fazê-lo...

E então, Eros incumbiu o velho Philétas de lhes ensinar. Philétas foi nomear, para eles, o Amor; foi dar nome àquilo que lhes inquietava no corpo. E mais: foi lhes dar a receita para a doença do Amor; foi lá e falou; disse tudo a Daphanis.

Lacan diz, entretanto, que a velha foi quem ensinou.

A figura feminina é Lycénion; mas não é velha; ao contrário, é uma bela jovem, que veio da cidade, por ter desposado o velho Chromis, morador das proximidades do Bosque das Ninfas.

Mas, quando foi ao encontro de Daphnis, foi disfarçada em mulher madura. Foi e mostrou, na carne, como se faz Amor.

Temos então, no texto, a lição de Amor por duas vias. No caminho da palavra, através do Velho Philétas e por ordem de Eros. Philétas aí, então portador da palavra, da nomeação, da ordem simbólica, mensageiro de Eros, ele, o Velho; equivalente à função paternal; mensageiro, na palavra, da ordem simbólica. Philétas era o Velho mais velho da região, o mais justo e o mais hábil no toque de seringe, a flauta de homenagear Pan. Tão justo que foi convocado para julgar a querela com o povo de Metymne, querela que quase descambou para uma guerra. Homem competente, pois, para questões de juízo, de razão, de lei... Função paterna.

No outro caminho, o caminho do corpo, a lição veio através da mulher, Lycénion, e por sua própria iniciativa; articulada na mascarada, ela foi disfarçada em mulher madura; inventou uma desculpa para dizer ao marido; ela mentiu que sonhara com as Ninfas; e mentiu mais a Daphnis. Pois, para atraí-lo para longe de Chloé, ela inventou que um ganso, do qual ela estava cuidando, fugira para o alto de um monte; para lá, então, se lançou o pobre rapaz para ajudá-la naquela suposta caça ao ganso desviante. Tudo, pois, em nome da tremenda atração que sentia pela beleza deslumbrante do jovem Daphnis.

Fico a pensar nestas colocações de Longus...

O homem, na ordem da palavra; a mulher, no corpo...

Como a civilização ocidental da época, século II ou III dC, via os papéis masculino e feminino? Na mensagem de Lycénion, temos a mascarada, a mulher em busca do desejo, o gozo, o corpo...

Na beleza poética deste texto, uma riqueza fantástica... Muitos pontos a se trabalhar – a feminilidade, a sexualidade na adolescência, a função paterna, o masculino, etc, etc...

Mas minha proposta foi a de centrar a atenção especificamente neste ponto, para o qual Lacan convocou este texto: para o humano, o congresso sexual é da ordem da cultura; as coisas do sexo precisam ser aprendidas; elas se transmitem, de geração em geração, dos mais velhos aos mais jovens; nada tem a ver com o natural, o biológico, o inato, como acontece com o animal, em que o instinto, o biológico, é que conduz ao sexo. E a Pastoral demonstra lindamente isso! A percepção do poeta, há quase 2000 anos atrás, dá conta disso! Pois que, os meninos tentaram imitar as ovelhas, tentaram fazer igualzinho ao que fazem os animais; e... não conseguiram! ... "o inocente não sabe". Foi preciso ser aprendido de Philétas, o Velho; e de Lycénion, a jovem.

Gostaria, entretanto, de comentar alguns outros pontos, que muito me chamaram a atenção, embora não articulados diretamente a esse tema central. São pontos que marcam situações do cotidiano daquela época, dos hábitos e do pensar de então e que refiro aqui, apenas de passagem, com sua beleza e seus aspectos pitorescos. São pontos que, sem dúvida, me merecem um novo debruçar sobre eles, num outro momento; quem sabe...

Assim:

A simplicidade com que o pai de Daphnis se justifica, por tê-lo abandonado no bosque: tinha ele já três filhos, ao nascer Daphnis. E se achava já senhor de uma descendência suficiente!

E mais, chega mesmo a declarar que os objetos de reconhecimento, que pôs junto ao bebê, quando o deixou no bosque, eram mesmo objetos para serem sepultados com ele; demonstra que não guardava qualquer expectativa de que o bebê pudesse vir a salvar-se...

O homem, aí, amo e senhor da vida de seu próprio filho... O que representariam, para a sociedade de então, objetos a serem sepultados com o morto?

Ao final do conto, as famílias se reúnem para um jantar de confraternização, pelo reencontro dos filhos, dos pais adotivos, dos pais biológicos. E é este mesmo pai, o pai de Daphnis, que o chama em particular, e lhe pergunta se Chloé ainda é donzela. Se não o fosse, não poderia sentar-se à mesa... Aí, o poder do homem, o lugar da mulher, o pai – mais para o pai imaginário da horda...; a autoridade, em nome de quê?

Apesar da ousadia de Longus neste conto erótico – ousadia reconhecida por comentadores literários – a consagração do ato sexual entre os meninos, só se dá, mesmo, após a celebração das bodas. Por que isso, numa sociedade pagã?

O comentário final de Lycénion, a Daphnis: "lembre-se de que fui eu, e não ela, quem fez de você um homem!" É a mulher, mais velha, que faz o menino tornar-se homem. Pressente-se aí a idéia da circulação do falo; a noção de ordem simbólica. É o homem que tem, mas precisa da mulher, que não tem; ter e não ter se intercambiam; foi a mulher, Lycénion, que teve e que permitiu a Daphnis ter, para desincumbir-se junto à outra mulher, Chloé, que não tinha...

A mulher, em Longus como na Bíblia, foi ela que provocou; o Amor começou com ela. Mas é, sobretudo, a mascarada, poderosa, desejante; senhora de uma sabedoria, a sabedoria da circulação do falo.

 

BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, J.S. – Mitologia Grega - Editora Vozes, 5a Edição, 1993         [ Links ]

ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA – 14ª Edição Vol. XIV         [ Links ]

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LACAN, J. – "O Seminário" – livro 11. 4ª Ed. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988         [ Links ]

LONGUS – "Pastorales (Daphnis et Chloé)". Soc. "D´Ed des belles lettres". Paris, 1934.         [ Links ]

MEUNIER, M. – "Nova Mitologia Clássica" - Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 2ª Edição, 1976.        [ Links ]

 

 

* Trabalho apresentado na VII Jornada do Circulo Psicanalítico da Bahia, 1995.
** Psicanalista. Círculo Psicanalítico da Bahia
1 Pág. 177-196

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