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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.1  Salvador  1996

 

 

Aspectos psicológicos de pacientes com câncer de mama *

 

 

Marly Piva Monteiro **

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora trabalha as dificuldades do tratamento de pacientes portadores de Câncer de mama, do ponto de vista da relação médico paciente e nos aspectos psicológicos envolvidos nestes quadros.

Palavras-chave: Câncer de mama, Terapia, Castração.


 

 

São de Heidegger as seguintes palavras: "Morrer da minha morte é a única coisa que ninguém pode fazer por mim. A minha morte é a minha possibilidade mais pessoal, mais autêntica e simultaneamente, a mais absurda. Não está no fim da minha vida, está presente em cada momento da minha vida, no meu próprio ato de viver. Constantemente a procuro esquecer, fugir-lhe, iludi-la pelo divertimento, pela indiferença, pela corrida competitiva ou pelos mitos. Viver autenticamente é, pelo contrário, viver em inteira conformidade com este sentido da vida, viver na constante expectativa da morte e da sua imanência possível. Então atingimos a liberdade perante a morte".

É impossível falar da vida sem falar da morte e vice-versa. Discorrer sobre câncer da mama é falar da morte subjacente. Fico feliz em aceitar esta oportunidade de trocar experiências porque ela atesta o cuidado e a preocupação de quem, sem descurar dos aspectos técnicos e científicos, tem a sensibilidade de perceber o ser humano que existe por trás de cada paciente, o ser humano que existe em cada um de nós. Elizabeth Kubler Ross, psiquiatra que se dedicou à Tanatologia e que citaremos várias vezes no curso da nossa palestra, afirma que: "A vida só vale a pena quando sentimos que alguém sinceramente se interessa por nós". Acho pois, que é desta maneira, interessando-nos sinceramente pelos nossos pacientes que podemos fazer com que cresça sua auto-estima e lutem pela dignidade de morrer a que todo ser humano tem direito. São realmente os instantes mais intensos da nossa vida aqueles que deveriam ser partilhados com alguém e a morte é um deles com a especificidade de ser único e jamais revivido. Morre-se apenas uma vez.

Num "Workshop" realizado na Flórida com pacientes de câncer foi estabelecido um código para determinar o modo como queriam ser atendidos. Entre as suas reivindicações estão as seguintes:

1. O direito de serem tratados como seres humanos até à morte

2. O direito de expressarem seus sentimentos e emoções a respeito da morte próxima, a seu modo.

3. O direito de não morrer sozinhos.

4. O direito de terem respostas honestas às suas perguntas.

5. O direito de não serem enganados.

6. O direito de morrerem em paz e com dignidade.

7. O direito de serem cuidados e tratados por pessoas capazes, sensíveis, que tentem entender suas necessidades e possam sentir que se gratificam na ajuda a pessoas que enfrentam a morte face a face.

Não posso deixar de pensar que quando se faz disto um código é porque a relação médico-paciente (ou médico, afins e pacientes) não está sendo satisfatória.

Quando se convida uma psicanalista para discutir uma relação vivida no dia a dia por cada médico com seu cliente é porque as coisas não vão bem.

Muito embora as pacientes de câncer de mama apresentem particularidades em seu psiquismo, sobre as quais pretendemos nos estender no decorrer desta exposição, ainda assim, não seria possível abordá-los sem que antes fizéssemos um passeio pelos intrincados caminhos por que passa a relação metafórica que cada pessoa estabelece com esta doença. Qualquer doença é uma ameaça ao ser humano, uma irrefutável comprovação da sua fragilidade e a hipótese de sua destruição. Cada uma delas, porém, tem um sentido figurado, um fantasma próprio. Algumas doenças, no entanto, pagam maior tributo a estas fantasias. Haja vista a lepra que marginalizava os doentes, afastando-os das cidades e do convívio, desde os tempos mais remotos até os séculos XVIII – XIX. E por que não dizer até os dias atuais? Mesmo depois que Hansen descobriu o bacilo e a Imunologia nos permitiu concluir que "Não tem lepra quem quer mas quem pode", ainda hoje existe grave problema na reintegração social de pacientes de antigos leprosários e muito preconceito quando à enfermidade. Quem não tem a experiência de receber, vez por outra, cartas dos internos do leprosário do BETIM em Minas Gerais?

A sífilis seria outro exemplo elucidativo. Além do fantasma da morte, a sífilis era ainda associada ao medo do castigo pelo prazer sexual. Em Paris no século XVIII, as pessoas com diagnóstico de sífilis tinham que deixar as cidade sob pena de prisão ou de morte. Houve também uma proposta de associar ao tratamento destas pacientes quando eram prostitutas, palestras de pudicas senhoras, como coadjuvante. É óbvio que este aspecto tenha sido consciente e inconscientemente explorado pela sociedade para, transformando a sífilis num flagelo moral, reprimir a sexualidade, como tem sido tentado com a AIDS ou SIDA, atualmente. No correr dos séculos, as doenças foram sempre usadas em suas metáforas, para reforçar acusações contra a sociedade, como diz Susan Sontag e ao mesmo tempo para coibi-la. O outro exemplo é a tuberculose que se por um lado era a doença dos boêmios, tinha por outro, a característica de ser a doença dos sensíveis, apaixonados e poetas.

Emprestava um talento especial aos que dela eram vítimas. De Manuel Bandeira já se disse que foi a morte que deu vida à sua poesia e não fosse o "mau destino" (a tuberculose), não passaria do arquiteto que o pai tanto desejaria. Em "Desencanto" quem diz é o próprio poeta: "Eu faço versos como quem chora...de desalento... de desencanto..." E termina assim: " Eu faço versos como quem morre"...

Castro Alves, jovem poeta boêmio, faleceu aos 24 anos devido à tuberculose. A influência da morte e da "tísica" são constantes em suas poesias. Senão vejamos: Em "Mocidade e Morte" descreve deste modo a indignação pela vivência da morte precoce:

"Morrer quando este mundo é um paraíso
E a alma um cisne de dourada plumas?"

Na 7ª estrofe do mesmo poema:

"Morrer é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nos guia na tormenta
Condenado – escutar dobres do sino
Voz da morte, que a morte lhe lamenta"

E adiante fala da doença que o extermina:

"E eu sei que vou morrer ... Dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida"

Castro Alves não esconde a sua revolta, ainda neste poema:

"E eu morro, ó Deus! na aurora da existência.
Quando a sede e o desejo em nós palpita"

Convicto da inevitabilidade da sua condição, resigna-se na "Quando eu morrer" mas não sem fazer um derradeiro apelo:

"Quando eu morrer... lancem meu cadáver
No fosso de um sombrio cemitério
Odeio o mausoléu que me espera a morte
Como o viajante deste hotel funéreo".

Mas o câncer sempre teve a sua metáfora ligada à destruição e à morte. O uso da palavra câncer está irremediavelmente associado à idéia de crescimento desordenado, incontido, caos, destruição. Define uma condição arrasadora que extrapola a linguagem médica e alcança o discurso político e social. O terrorismo, poder-se-ia dizer que é "um câncer social". A Guerra do Vietnã e Watergate foram considerados "Cânceres" na vida política dos EEUU.

A inflação está sendo o "Câncer da política econômica brasileira". O peso desta metáfora é carregado pelos pacientes de forma desgastante. No meio médico os eufemismos com Ca, Neo e Tu são formas de evitar a palavra.

Entre os leigos, a doença, substitui esta expressão. A respeito disto, gostaria de mencionar um dado da minha experiência e também de alguns colegas com quem tive oportunidade de conversar sobre terapia de pacientes cancerosos. Todos os pacientes de câncer sabem que têm câncer e o mencionarão, desde que sintam em nós a coragem de fazê-lo. Relembro a situação de alguém que me dizia: – "Agora sei que posso confiar em você, depois que ouvi você falar do meu câncer". Nenhum dos pacientes ignora a sua real situação, mas todos a negam de alguma forma ou em algum momento. Há coisas deveras intrigantes no trabalho com este tipo de cliente. Por exemplo, fazer uma sessão com essas pessoas, onde o temor da morte seja claramente trabalhado e no final surja o desejo de realizações a longo prazo.

Como no caso de uma pessoa que falava em fazer Vestibular: morreria um mês depois de D. Hodgkin. Ou outra que planejava casar-se e ter filhos, o que por sinal realizou e continua vivendo, apesar de ter tido um prognóstico muito reservado, há alguns anos, devido ao seu sarcoma. Um jovem costumava dizer, depois que falava do seu desespero, que de vez em quando precisava vir à tona para respirar. Nestes momentos atribuía as suas dores ao reumatismo e falava em curar-se. É necessário muita sensibilidade para perceber quando a negação é um mecanismo desintegrador, impedindo a possibilidade de elaborar a morte e quando ela, como nos casos citados, é reparadora e necessário para o cliente.

Não se deve reforçá-la, mas aceitá-la e compreendê-la. As equipes de Psicooncologia dos hospitais americanos falam em manter a "esperança" do paciente sem enganá-lo. Esperança é fundamental, é preciso ter esperança para empenhar-se em alguma coisa, até para viver a morte.

Tenho visto pessoas empreenderem trabalhos, escreverem livros, terminarem tarefas há muito inacabadas, resolverem complicadas relações emocionais e poderem, deste modo, morrer mais tranqüilas e em paz consigo mesmas.

Manuel Bandeira, em seu poema Desesperança, conclui assim seus versos: "Ah! Como dói viver quando falta a esperança!".

As sociedades ocidentais não vêem a morte como um fenômeno natural, as pessoas não são preparadas para morrer, ao contrário, vive-se negando a morte. Para o nosso inconsciente, somos todos imortais, no dizer de Freud e sentimo-nos ameaçados ao falar da morte. O próprio Freud que teve um osteossarcoma da mandíbula, teorizou sobre a morte sem nunca ter conseguido falar da própria. Contam que Leon Tolstoi teria dito à sua secretária: "E se me fosse feita uma exceção?" Em um dos seus brilhantes discursos Abraham Lincoln declarava: "O homem foi feito para imortalidade." Clarice Lispector diz que "falar de quase tudo que importa é difícil".

Mas que "Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar. O coração tem que se apresentar diante do NADA e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas."

Estes clientes necessitam de falar, e ser escutados. Eles não terão tanto o que escutar quanto o que têm a nos dizer.

Não posso esquecer o primeiro encontro que tive com um paciente no hospital, após a quimioterapia do dia anterior. Vomitando freqüentemente e com uma incômoda moniliase, quase não podia falar. Escreveu: "Há muito tempo estava para vir alguém que me escutasse. Hoje você veio. Estou sem poder falar direito, mas da próxima vez vai ver como falarei. Tenho muito para lhe contar". Lembro-me de outra cliente que quando perguntei como se sentia com uma doença que a fizera perder coisas, disse-me entre lágrimas: "Ninguém nunca me perguntou isso.

Parece que não queriam saber."

É com estes clientes e somente com eles que aprendemos sobre estas vivências. As pacientes de câncer de mama defrontam-se com estes graves problemas que todos os pacientes de câncer enfrentam, mas o nosso objetivo aqui não é focalizar esta questão que nos levaria muito longe. É preciso entender o que particulariza estas clientes em função da localização da sua doença. O que representa para alguém saber que o seio está doente e terá que ser retirado? Perder o seio para continuar viva. A priori, parece que não é nada tão grave assim. Uma questão de estética que a menor ou maior dose de vaidade feminina tornaria mais ou menos dramática. É, no entanto, através do corpo que se tem noção concreta da morte. A primeira forma de descarga da ansiedade do ego é o sofrimento corpóreo; toda as formas regressivas de doença se refletem no corpo e no esquema corporal. O medo de ter o seu corpo destruído é igual a ser destruído, deixar de ser, morrer. Assim sendo, a retirada de qualquer órgão, corresponde a uma mutilação, uma alteração do esquema corporal que já implica na ameaça de morte. Sabemos que em tempos antigos as penas para certos crimes iam das mutilações à morte. A sensação de integridade, de ser inviolado e imperecível é expressa no amor a si mesma. E a doença, ameaçando a integridade, mostra a perda desta capacidade de forma provisória ou definitiva. Nesta ameaça incluem-se as alterações do esquema corpóreo, da auto imagem, das relações interpessoais, do status social e dos projetos e realizações.

A aparente preocupação que têm estas clientes, após a cirurgia, apenas com a sua saúde corporal, nada mais é que a comprovação desta afirmativa. A impressão que poderíamos ter aos primeiros contatos de que não consideraram importante a perda do seio, é na verdade uma representação diferente do mesmo sentimento e do deslocamento da catexia para negar o medo da castração, o medo da morte. Sente-se salva, como se tivesse escapado da morte. O seio é um órgão altamente erogenizado, sua participação no ato sexual é relevante, sua ablação interfere direta a indiretamente na consecução do prazer. Além disso, a necessidade que têm as mulheres de se enfeitar e se fazerem bonitas, não se liga somente à vaidade, mas à necessidade inconsciente de reparar seus objetos internos danificados.

Num primeiro momento, há uma preocupação com a melhora física e é curioso como o tempo da recuperação já delineia o rumo que terão as reações da paciente, se esta recuperação for longe, o estado depressivo se evidenciará, se a convalescência é rápida é porque o mecanismo de defesa maníaco prevaleceu. A constatação da mutilação parece reforçar a culpa pelos desejos agressivos. É a evidência do castigo, a castração. E se constitui numa agressão intolerável para cada paciente, a nível consciente porque à sua imagem corporal externa atribui a estima e o respeito das pessoas. A mulher se enfeita, não só para agradar aos homens, como objeto sexual, mas para se sentir amada, ao parecer bonita. Vinicius de Morais chega a dizer: "As feias que me perdoem, mas beleza é essencial."

A necessidade de negar esta perda mutiladora, esta alteração grave da imagem corporal, faz com que seja freqüente o aparecimento de dores no peito. As sensações são conhecidas como "seio fantasma" correspondendo aos membros fantasmas das amputações. A situação das pacientes casadas é agravada pela reação dos maridos. A rejeição a esta mulher mutilada e castrada pode ser difícil de ser expressa, por gerar muita culpa e surge de formas disfarçadas. Mas além de perder efetivamente uma fonte de satisfação erógena e de admitir que seu objeto de amor foi danificado e está feio, disforme, o marido ainda sente sua mulher como perigosa por deter em seu meio (no mais íntimo de si mesma algo tão corrosivo – um tumor). Da experiência de alguns cirurgiões com quem conversei surgiram as seguintes observações:

a) grande número de mulheres esconde das amigas a mastectomia por sentirem-se envergonhadas.

b) Outras só aceitam o coito de olhos fechados

c) Muitas insistem no uso das próteses nos porta-seios submetendo-se a micoses e escaras freqüentes. Este medo inconsciente que domina faz com que recuse a relação sob os pretextos mais variados. Mas há sempre solicitações do marido ou da esposa para esclarecimento sobre a vida sexual, após as cirurgias.

Se isto não bastasse para evidenciar a preocupação destas pacientes e cônjuges com este tema, o Albert Einstein Medical Center na Philadelfia organizou uma regulamentação dos direitos sexuais dos pacientes de câncer, da qual consta:

1ª O direito de ser pessoa com a sexualidade física, emocional, espiritual e social garantidas.

2ª O direito de receber aconselhamento sexual com ou sem a presença do parceiro.

3ª Direito à informação que o auxilie a adaptar-se a uma nova forma de relação

4ª Direito de estabelecer necessidades sexuais e negociar a realização destas necessidades.

5ª De obter informação para o uso de preservativos ou métodos adicionais que lhe permitem o livre uso e gozo da sexualidade genital.

6ª Direito do paciente e do parceiro de assumir o "risco de contaminação."

7ª Direito de comunicar-se francamente com o parceiro e estabelecer um sistema de comunicação que permite expressar suas necessidades sexuais e poder também expressar seus sentimentos "negativos" (a respeito dele ou de situação).

No código, mais uma vez a evidência do impasse.

Contudo nós sabemos ainda, como psicanalistas, que o valor simbólico do seio é de uma profundidade muito grande. Os seres humanos são, em toda a escala zoológica, aqueles que nascem mais desprotegidos e incompletos. O bebê humano, se não for cuidado e alimentado, fatalmente sucumbirá. E este fato primeiro, deixa marcas indeléveis em todos nós. Ora, a pessoa que se incumbe dos primeiros cuidados com o bebê é uma mulher, mais comumente a mãe. É ela quem amamenta. E é, portanto, através do seio que o bebê começa a se relacionar com o mundo. O seio é portanto, o primeiro objeto de amor. Esta relação é porém, bastante complexa. Quando o bebê nasce, ele não tem a percepção de outra coisa senão ele próprio. O mundo é ele, dono e único senhor. É onipotente. Como ao sentir fome, aparece um peito para saciá-lo, pensa que ele é quem o faz surgir, alucina-o. Quando chora e recebe o seio sente-se satisfeito e feliz, adormecendo a seguir. Tem o prazer da plenitude e a satisfação oral da sucção.

E como só este meio lhe permite estabelecer uma relação, é assim que adapta seus processos mentais a esta condição. A criança pode engolir, ingerir e pôr para fora, cuspir ou vomitar. Embora na maioria das vezes que chora e grita, o bebê seja satisfeito, haverá fatalmente um momento em que isto não ocorrerá. A mãe mais disponível, em algum instante frustrará este bebê. E neste momento, em que chora desesperadamente e não é atendido, o bebê vai perceber que ele nem sempre pode fazer surgir o peito; então, este não depende só dele, nem lhe pertence.

Sentindo agora as contrações do seu estômago e intestinos por causa da fome, as dores, o desconforto e o queimor do desespero, ele cospe (projeta) este seio frustrador e mau. A ansiedade se torna insuportável, para livrar-se dela, não há outro recurso, senão valer-se da fantasia, pois que suas condições de desenvolvimento não lhe permitem ação física. Ao mesmo tempo, entretanto, deseja destruir este seio e teme vingança pela lei taliônica.

Se eu destruo, ele me destruirá como conseqüência, pagarei pela minha agressividade. Isto faz com que estes desejos destrutivos sejam atribuídos ao peito mau. Sou eu quem quer destruir, estou ameaçado de destruição. Este peito ruim não é meu, não pode ser, o meu é o outro, o bom, este o bebê ingere (introjeta). É desta forma que a criança resolve sua agressividade de modo menos doloroso para si. Ao chegar ao período do desmame, quando perder definitivamente o peito e com ele o leite e todas as coisas boas que simboliza, a criança atribuirá esta perda aos seus desejos destrutivos. Uma nova crise se esboçará – agora perde o peito que tanto desejou destruir - eis o seu castigo. O sofrimento é intenso, mas a complacência da mãe neste momento, vai permitir à criança perceber que ela não é a dona do peito bom mas que a mãe é quem possui os dois, o bom e o mau, ou seja, tanto pode gratificar quanto frustrar. Deste modo, é perdendo o peito, que o bebê pode repará-lo, reintegrando-o como um só e único, estabelecendo então sua primeira relação com um objeto total – a mãe. Ao mesmo tempo serão totalizados numa só pessoa, os sentimentos de amor e ódio, possibilitando à criança viver de outra forma, a ambivalência. Pois, no início desta etapa, percebendo o seio como um só, ainda resta a ameaça de, tentando introjetar o bom, trazer para dentro de si o outro também, o mau. Ou, ao projetar o mau, correr o risco de perder irremediavelmente o bom. Mas é na experiência desta reparação, após a perda, que a criança aprenderá a amar, a lidar com a sua ambivalência, a enfrentar as perdas que ocorrerão pela vida afora. E a depender do modo como esta etapa tenha sido superada, estruturará sua vida psíquica. É da relação com o peito que dependerá, portanto, o desenrolar do psiquismo de cada ser humano, não importa o sexo. E esta relação como vimos, envolve situações de intenso sofrimento e dificuldades.

X... nunca fora chegada a doenças. Poucas vezes procurara médicos. Durante o banho percebera um caroço e não deu aparentemente muita importância ao fato. Dois meses depois resolveu marcar consulta com um ginecologista; daí para a cirurgia, a distância foi apenas uma mamografia. O médico a tranqüilizou dizendo que extirparia o tumor e se fosse necessário, a mama, mas que havia possibilidade de uma plástica. E era só. X convenceu-se de que era assim mesmo e achava ridículo cogitar da perda de um seio, apenas. Achou que isto não a afetaria muito. Encarou a cirurgia como uma "simples operação" que lhe salvaria a vida. Curando-a definitivamente. Em pouco tempo sua vida voltou ao que era antes e esqueceu tudo. Três anos após, um novo tumor, acordou-a para a verdade. A metástase deu-lhe o choque de dimensão da realidade. É como se um buraco enorme se abrisse sob seus pés. Sentiu-se perdida e desesperada.

Era como se tivesse uma bomba que poderia estourar em seu peito. Tinha a impressão de que o mundo desabara sobre sua cabeça.

– Nada tenho para dar aos meus filhos, agora – era o pensamento que a atormentava. Por que teria sido tão castigada? Por que escolhida enquanto havia tanta gente que merecia mais que ela um tal castigo?

Fazia-lhe mal encontrar as pessoas tão fortes e sadias ao seu redor. E os consolos irritantes que lhe davam e fingia aceitar! – Cristo carregou uma cruz às costas para poder se salvar. Ele nos põe à prova... Há outros que já nascem sofrendo...

Seus pensamentos andavam céleres. Quanta raiva sentia dos tratamentos dolorosos e extenuantes, da terrível quimioterapia que mutilava mais ainda, deixando-a sem cabelos, ferindo-lhe a boca, provocando-lhe vômitos constantes. Que raiva de todos aqueles médicos e enfermeiras que tanto a faziam sofrer em nome de uma pretensa saúde que nem tinha certeza de alcançar novamente. Como isso lembrava seus tempos de menina quando a mãe lhe interrompia uma brincadeira porque chegara Dr. Antonio para lhe dar injeção.

E sorridente o acolhia enquanto ralhava a até segurava com força a filha para que ele a furasse com a seringa. Era uma raiva tão parecida com a que sentia agora! E o pior é que, antes, como neste momento, era impossível dizê-lo, sobretudo porque seria considerada muito má, se falasse estas coisas de quem tudo fazia para o seu bem. Devia ter feito algo muito grave, sido muito má com alguém, para passar por tudo isso.

E a atingiram logo no peito, no que tinha de melhor em si. O mesmo peito que amamentara seus filhos. E agora que mãe estava sendo para eles? O que lhe estava dando? Continuava fingindo que tudo sairia bem. Há alguns dias atrás, ela e o marido tinham combinado ir ao teatro. Mesmo com as dores a atormentá-la, decidiu que não era justo privá-lo. Enquanto se preparava, o pranto escorria-lhe pelas faces. Um dos meninos entrou no quarto e insistiu em saber a razão do choro. x... Não suportou - teve uma crise. Começou a gritar que ia morrer, que não suportava mais tanto sofrimento. Preferia a morte. Quando pôde perceber estavam os quatro abraçados, chorando. Este grande momento de verdade, seria depois analisado com muita culpa pela mulher, como se não tivesse o direito de fazer sofrer os filhos e o marido. O abandono e a rejeição ameaçavam x... Perdera um dos seus atrativos, o marido não iria mais desejá-la. Aliás notava como, alegando que ela devia poupar-se, ele vinha se esquivando das relações sexuais. Estava definitivamente castrada. Incapaz para atrair, passível de não ter mais o direito ao prazer sexual. Uma castração a nível mais profundo – a possibilidade da perda do prazer sexual, mutilada. Vivendo a incerteza de uma castração ainda maior, o aniquilamento, a morte. A estória de x... bem poderia ser a estória fiel de alguma, ou a colcha de retalhos das estórias de nossas pacientes com câncer de mama.

A revivência dos acontecimentos traumáticos dos primeiros dias de vida se faz de uma forma dolorosa. Desta vez é o próprio peito destruído, como um terrível castigo pelos desejos destrutivos da criança – a mãe se vinga dela tirando-lhe o mais essencial - o seio, o leite e todas as coisas boas por ele simbolizadas.Em seu lugar fica algo que corrói, que consome, e acaba destruindo. O castigo, como a pena de Talião "olho por olho, dente por dente".

Tem agora o peito destruído quem tanto desejou, um dia, destruir o de alguém. E a destruição deste peito traz consigo a possível perda do prazer sexual, a castração e a destruição total a irreversível, a morte.

É, portanto, destes sentimentos de ódio, inveja, ansiedade e dor que a cliente necessita falar. O médico deve ter condição de escutá-la sem medo. É preciso que entenda sobretudo estes aspectos complicados. Alguém terá de ser capaz de suportar o ódio desta cliente para que ela possa, vivendo-o novamente, sentir que nem por isso destruirá o novo objeto. Prestar-se a este objeto mau que precisa ser exorcisado, é o grande papel do terapeuta ou do médico para provar à cliente que ela não é destrutiva. Contudo não é pretendendo fazer-se indestrutível nem onipotente que irá consegui-lo. A maior dificuldade com que se defronta o profissional é o fato de admitir sua própria fragilidade e impotência. Trabalhando com estas clientes encaramos a nossa própria morte de frente. E faço questão de frisar isso, não somos preparados nem médicos, nem enfermeiros, nem psicólogos, nem psicanalistas, nem religiosos. Temos que reconhecer que é no trato com esses pacientes que aprenderemos sobre a morte. Eles é que sabem o que é morrer porque estão vivendo a morte. Nestes momentos de pânico, são as defesas mais arcaicas, como a negação e a onipotência que são acionadas. E isto exige além da disponibilidade, um preparo especial para tal atendimento. Todos ao redor se negam ou se omitem. O cliente conta apenas conosco. Não podemos abandoná-lo em momento tão crucial.

Por tudo que aqui vimos, é muito clara a mobilização que o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico do câncer provocam na paciente e no ambiente que a rodeia. A equipe da saúde não está isenta destas consequências. Não é raro que, pelo menos alguém da família precise ser atendido em função das dificuldades para enfrentar a situação, como pode acontecer que as nossas próprias atitudes reflitam nossos conflitos mais íntimos ao lidar com estas pacientes.

O casal vive com muita angústia a doença de um dos cônjuges. No caso do paciente com câncer de mama, a atitude dos maridos é quase sempre de rejeição. Muitas vezes esta rejeição pode vir camuflada em cuidados excessivos com a esposa, para não cansá-la, o medo de uma provável gestação ou de contágio. A nível inconsciente, o menino também invejou um dia, o peito materno e quis devorá-lo para tê-lo só para si, quando ele o gratificou, bem como sentiu ímpeto de destruí-lo quando foi por ele frustrado. A realização insuportável destes desejos se fez presente em uma outra mulher – mãe que inconscientemente o ameaça. Ela que já foi tão onipotente num período em que a sua impotência era total – dela dependia a sua sobrevivência. De certa forma revive a angústia de castração, como o castigo que a mãe lhe iria impor pela sua inveja das coisas boas que ela possuía (o seio e o leite) e ele tanto desejou para si mesmo. A inveja tão recalcada, da gravidez e amamentação é reexperimentada da forma mais arcaica e, portanto, reproduzindo a ansiedade indizível dos primeiros tempos de vida. A constatação da castração da mulher ameaça o marido à medida que mobiliza a sua angústia de castração se ela o foi, ele também poderá ser. Aproveito para fazer uma consideração – tenho até aqui me referido a paciente do sexo feminino embora seja possível aos homens, serem, com menos freqüência, vítimas desta afecção. Porém não tendo acompanhado nenhum cliente do sexo masculino, nestas circunstâncias evitei teorizar, apenas, mas fico muito inclinada a pensar que pelas reações percebidas no comportamento de companheiros destas clientes, não seria muito improvável supor como se sentiria um homem na mesma situação. Estivemos o tempo inteiro a falar da morte como destruição, fim, mas esquecemos que ela também tem um lado construtivo, estimulante e criativo. Para Thomas Mann, autor de "Morte em Veneza", "sem a morte haveria muito poucos poetas na terra". E para Schoppenhauer, "a morte é o verdadeiro gênio inspirador da filosofia". É em nome da continuidade e da pretendida imortalidade que ela impõe, que o homem decide empenhar-se na procriação da espécie ou na criação de obras que o perpetuem. A morte é um incentivo para as atividades humanas. O homem, único ser que tem a certeza de que sendo, um dia não mais será, vive para negar a morte. É ela o seu grande desafio para continuar vivo. Por tudo isso, eu diria, como E. Kubler Ross que "aprendi mais lidando com esses pacientes que em todo o tempo da minha vida. E tenho a firme convicção de que nenhum de nós será capaz de imaginar o quanto de benefício proporcionou a cada cliente que acompanhou nestas circunstâncias".

Acho E. Kubler Ross sintetiza muito bem o que sentimos a respeito deste trabalho quando diz que: "Trabalhar com pacientes moribundos não é deprimente nem mórbido, mais uma das mais gratificantes experiências que alguém pode viver". É vivenciando as emoções profundas de instantes como os que se segue que sinto que ela tem razão.

Jamais consegui apagar da mente o olhar comovido de alguém a cujo chamado atendera em situação muito dramática, já na UTI, e segurando minha mão me disse chorando: "Obrigada, você chegou num momento muito importante".

O momento de realidade da morte é vivido com muita intensidade e indizível sofrimento. É então, que revendo a própria vida, cada um se propõe a um encontro – o encontro consigo mesmo.

O medo é a tônica quando o desconhecido se avizinha e é justamente nesta hora que a solidão é mais cruel, é exatamente a hora em que as pessoas estão mais sós. Corajoso, não é ser capaz de sorrir ao cliente, para, na pretensão de dar-lhe força, impedi-lo de chorar e expressar seus sentimentos, mas comover-se e viver junto com ele esta experiência, sem desesperar-se e sem evadir-se. É perder o pudor de admitir que somos tão frágeis como nossos clientes e por isso capazes de compreendê-los e aceitá-los.

 

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SONTAG, Suzan – A doença como metáfora. Edições Graal Ltda – Rio de Janeiro – 1984        [ Links ]

WILLIAMS, H.R. – To live and to die: When, why and how – Springer Verlag – Berlim – 1973        [ Links ]

 

 

* Trabalho apresentado ao "I Conclave Internacional de Mastologia", Salvador, Ba
** Psicanalista. Círculo Psicanalítico da Bahia

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