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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.1  Salvador  1996

 

 

Drogas e adolescência

 

 

Tarcísio Matos de Andrade *

Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Medicina

 

 


RESUMO

O autor trata dos diferentes modos de relação com as drogas, permitindo diferenciar diferentes tipos de usuários focalizando principalmente as ocorrências no período da adolescência.

Palavras-chave: Toxicomania, Droga, Adolescência.


 

 

"Porque no fundo a juventude é mais solitária do que a velhice.
Esta frase lida em um livro que já não recordo, ficou na minha cabeça,
porque a julgo justa".

Texto encontrado no diário de Anne Frank, uma
adolescente de descendência judia, durante o refúgio
com a família, enquanto fugia à perseguição alemã.

 

"Os adolescentes até bem pouco tempo não serviam para nada, eles começaram a ser valorizados na idade moderna". Palavras de Francisco Hugo Freda - psicanalista Argentino, radicado na França onde coordena, em Reims, um Centro para tratamento de toxicômanos - em uma de suas conferências: "A adolescência: uma crise do Pai".

Entre nós, a expressão: "aborrecentes", em referência às crianças maiores, ou a acentuação para o adolescente de incapacidades e/ou falhas, que não lhes são exclusivas, e que olhando de perto estão igualmente presentes na vida dos adultos, marcam que esta é uma quadra da vida para a qual nós, os adultos, ainda não nos situamos com clareza.

O consumo de substâncias psico-ativas (SPA) costuma ter início na adolescência, e estudos brasileiros, entre escolares, demonstram que ele vem crescendo a cada ano.

Ressalte-se, no entanto que quando estes estudos referem-se a consumo na vida, ou seja, àqueles que experimentaram a droga em questão pelo menos uma vez, longe está de representar dependência química ou ainda de se traduzir em número de futuros toxicômanos.

Se a ótica social não dá conta da adolescência, menos ainda o faz com o consumo de SPA entre os adolescentes. Somos parte de uma sociedade pragmática, apressada, em que as conclusões e com elas os rótulos são tomados como sinônimo de eficiência. A prática médica reflete bem esta condição: o diagnóstico em detrimento da análise cuidadosa dos sintomas. Os médicos deveriam perpetuar em si eternos propedêutas (atitudes de busca constante das causas e interações e a postura de quem tem sempre uma dúvida a ser esclarecida). A sociedade em que todos estamos deveria se indagar mais, assim os diagnósticos seriam mais adequados e justos.

A cada dia cruzamos em nossa prática em atenção aos usuários de SPA com situações de extremo reducionismo: adolescentes experimentadores ou que fazem uso eventual de SPA ilícitas, rotulados como "viciados" ou "drogados"; trazidos pessoalmente, ou nos relatos de seus familiares, ao centro de tratamento. Trata-se, já de saída, de duas palavras perversas que reduzem estes adolescentes, muitas vezes em plena vicissitude dos vários potenciais que a vida lhes oferece, a uma prática - "viciados" -, ou a um efeito químico, - "drogados" -, quando sabemos que no cômputo geral do consumo de SPA, a condição de estar em uso ou sob o efeito destas substâncias ocupa somente pequena parte do cotidiano destas pessoas.

Não é incomum adolescentes usuários estarem inseridos em práticas produtivas como música, esportes, relações afetivas adequadas e até mesmo com bom desempenho no processo formal de produção e educação.

Seria um lugar, se não comum, mas já bastante trilhado pelos que se dedicam com adequação à compreensão do assunto, deslocar a ênfase do consumo de SPA para as SPA lícitas, como os medicamentos, o tabaco e o álcool.

Este último, sobretudo, em franca ascensão de consumo, respaldado na aceitação e indefinição popular do que seja bebedor social, e reforçado por ídolos nacionais cooptados, a cada dia em maior número, pelos elevados cachês recebidos.

Sobre as SPA ilícitas, adicionado ao efeito químico, estão os efeitos morais determinados muito mais por uma questão legal do que pela perda de controle devido a um consumo excessivo. Todos os nossos encontros, sejam com pessoas ou objetos, nos fazem marcas de maior ou menor amplitude, dimensionadas na natureza objetiva do encontro e na subjetividade daquele que o vivencia. O encontro do adolescente com SPA ilícitas tem a marca de um efeito químico, de uma concepção social sobre aquele produto pelo ato de experimentar algo novo em um momento da vida em que experimentar é, em essência, a maneira de buscar novos caminhos, tradução que é da busca de si mesmo, no processo de se auto conhecer, se determinar, e se constituir adulto. Esta forma de consumo costuma ser autolimitada, de natureza esporádica e se restringe à satisfação da curiosidade, embora não esteja restrita necessariamente a uma única vez.

Um passo adiante; o consumo de SPA pode estar inscrito na busca de aceitação pelo grupo, na necessidade de identificação, em um contexto em que o luto pelo corpo e pela condição infantil, agora insistentemente pontuados pelos pais nos constantes "você não é mais uma criança", não pode ser resolvido pela apresentação física de um adulto que ele ainda não tem, nem pelas regalias e responsabilidades do adulto que ele ainda não é.

Uma outra forma de consumo é aquela em que sem se constituir o universo do jovem, as SPA ocupam parte importante do seu tempo, subtraindo-o de relações sociais, familiares e práticas culturais e esportivas, embora todas ou algumas destas inserções, de alguma forma, estejam preservadas.

Trata-se, habitualmente, de jovem com algum nível de dificuldades psicológicas que se acentuam por ocasião de crises pessoais, familiares ou nos seus círculos de amizades; aprofundando o consumo em suplência ao seu sofrimento.

Em nível de maior comprometimento está a dependência química. A dependência química ocorre em um nível mais acentuado de dificuldades psicológicas, em que o sujeito, na ausência de referenciais seguros – e neste particular a função da família é muito importante –, busca a qualquer custo uma forma de reconhecimento. Em um contexto de privação social econômica – um número muito grande de famílias no Brasil vive à margem dos mais elementares benefícios sociais – a desestruturação familiar é mais freqüente. No entanto, esta desestruturação também ocorre no seio de famílias sócio-economicamente bem constituídas, mas falhas em suas funções parentais. Diante da ausência de modelos ou em presença de modelos inadequados, muitas vezes reproduzidos na escola e outras instituições que teoricamente deveriam dar continuidade às relações familiares o jovem se sente sozinho, sem identidade e aí prevalece a concepção popular do "falem mal, mas falem de mim", e ser dependente químico, toxicômano, é uma forma de não ser ninguém.

Neste contexto, rompidas as relações familiares, institucionais e afetivas, pelo que de negativo eles representaram e representam, o jovem passa a uma relação muito estreita e contínua com as SPA – está instituído o caminho da dependência química.

A indefinição do adolescente está em seu discurso (em eco à concepção dos adultos), quando diz: "Vou estudar para ser alguém na vida"; o que significa que naquele momento ele não se reconhece como sendo.

A adolescência está, portanto, contextualizada em uma crise de identidade. É na vertente mais profunda desta crise que situaremos o consumo de drogas em suas formas mais intensas e preocupantes, quando deixando de ser apenas rito de passagem – variante de percurso, mas que pouco lhe faz marcas e por isto mesmo com relativa facilidade para ela encontrará substitutos – passa a ser então o que faz a diferença, o que marca a sua individualidade.

O que permite a convivência pacífica entre as pessoas são as diferenças, o destino da semelhança entre os seres humanos é a exclusão ou a morte. De certa forma um ditado popular dá conta disto quando se diz que "dois bicudos não se beijam". A medida em que no processo de individuação a resultante pode ser uma identidade mal definida, as tentativas de refazer este percurso se processam pela tentativa de se encontrar no real aquilo que não pode ser simbolizado. Assim sendo, não é suficiente apenas que o adolescente faça, mas principalmente, que ao fazer, se veja sendo visto. O real da diferença com os pais pode ser as roupas extravagantes, a tatuagem, a exposição ao risco, as SPA. Trata-se de um período difícil, em que o jovem ao mesmo tempo que exige liberalismo como sinônimo de liberdade, necessita e pede, de várias maneiras, da parte dos pais, um limite. Os que lidam com a assistência a jovem usuários de SPA, sabem da necessidade destes jovens serem percebidos em suas transgressões. É assim que eles "dão bandeira" deixando pistas de sua prática através de bagas de cigarro de maconha "esquecidos" nos bolsos das roupas, no banheiro e outros locais de consumo.

Começamos este texto com Anne Frank, uma adolescente dizendo da sua solidão. Mais que isto, sobretudo nas crises mais acentuadas de identidade, o adolescente carrega consigo uma profunda angústia. Mesmo em se tratando das situações de dependência química – as toxicomanias – estamos diante de sintomas, e estes carecem, antes de tudo, de ser entendidos. Não é incomum que o uso de SPA ou a passagem de um consumo eventual para uma forma sistemática, ou para o uso de SPA mais pesadas, ocorra no contexto de crises pessoais e familiares e de ruptura de relações afetivas. Da mesma maneira, a descoberta pela família do consumo de drogas pelo adolescente, ao suscitar medidas de vigilância constante, podem levar a uma maior necessidade de consumo e outras práticas de transgressão, dado que lhe está sendo tirado, dentro do contexto de sua frágil estrutura de identificação, algumas das oportunidades de autodeterminação de que ele dispunha – neste caso, a liberdade de ir e vir e de pertencer a tal ou qual grupo e/ou ambiência.

Em determinadas situações, sobretudo quando a angústia prevalente é muito intensa, fica a sensação de que a droga para o adolescente é uma medicação. Bem que ele poderia estar em uso de um ansiolítico ou outra droga qualquer, do registro formal dos recursos médicos farmacológicos. Não o faz porque na busca de si mesmo, sobretudo diante de modelos identificatórios inadequados (que não lhe possibilitaram uma identidade madura), representados inicialmente pelas figuras parentais e, como desdobramento destas, pela escola e demais instituições, ele não os toma como referência e se medica a seu jeito. Trata-se, portanto, de uma automedicação feita de forma incorreta, incorreção esta que transcende os efeitos colaterais do produto farmacológico e se agrava nas implicações legais relacionadas à sua prática e na maior exposição aos riscos, alguns extremamente graves como é o caso da infecção pelo HIV. Ainda recentemente, em um grupo de 100 usuários de drogas injetáveis, entrevistados por técnicos do programa que coordenamos no CETAD/UFBA, o grupo de maior prevalência de infecção pelo HIV foi o dos adolescentes, na faixa dos 12 aos 17 anos, com 68% deles infectados. Esta é uma população em que, pela inexperiência, o consumo de drogas injetáveis se inicia pelas mãos de outros usuários mais antigos que também lhes fornecem suas próprias seringas, principal fonte de infecção.

Não é incomum atendermos jovens que por si próprios, ou nas palavras de seus familiares, se nomeiam toxicômanos. Olhando-os de mais perto, a droga esta contextualizada na inscrição do seu nome no mundo dos adultos, na busca de inscrever no Outro os seus pensamentos, ocupando muitas vezes um lugar que longe está de poder ser considerado uma toxicomania.

Precisa a Clínica, médica e/ou psicanalítica, beber em outras fontes, incorporar à sua prática referenciais da antropologia, da sociologia e a compreensão psíquica do contexto em que se situam o sujeito e seus atos. Aumenta-se assim a chance de se tratar problemas médicos e psicológicos dentro do âmbito em que eles sempre estiveram, otimizando a eficácia de nossos atos.

 

BIBLIOGRAFIA

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* Médico, Psicanalista, professor da Faculdade de Medicina da UFBA, Psicoterapeuta e pesquisador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas - CETAD/UFBA, onde coordena o Programa de Redução de Danos entre usuários de drogas injetáveis.

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