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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.2  Salvador  2000

 

PSICANÁLISE E CRIAÇÃO

Agora invento coisas para viver *

 

Eny Lima Iglesias**

Círculo Psicanalítico da Bahia



RESUMO

O texto trabalha, a partir de um caso clínico, a relação entre a escuta analítica do agir como acting - out e o agir criativo conseguido através da superação dos obstáculos que a pulsão encontra e que dificultam a mobilidade do sujeito.

Unitermos: Sujeito,criatividade,pulsão, corpo pulsional, corpo erógeno, acting - out



“Agora, eu invento coisas para viver” disse um cliente no seguinte contexto: após assistir uma entrevista com um psicanalista na televisão, resolveu comprar o livro que foi objeto do debate. Leu com atenção e pediu-me para tirar sua dúvida quanto ao que era “gozo”. Disse-lhe que fizesse associações sobre o que lera e no curso destas fez referência a sua última depressão quando não tinha disposição para fazer absolutamente nada além das obrigações. Não queria conversar com ninguém e até a análise esteve em vários momentos ameaçada de ser interrompida. “Nada me animava, eu só queria morrer. Pelo que li, acho, que me satisfazia com aquela situação tão desagradável. Agora, estou diferente, invento coisas para viver.”

Nessa posição limite, entre a vida e a morte é onde pode surgir o sujeito para integrar o que foi elaborado em efetivas possibilidades de sublimação e criação. Vemos assim que estruturou uma forma singular de existência e um estilo próprio para viver.

Diz Birman (1999) que para que a criatividade se imponha é necessário que pelo desejo, tudo possa ser reinventado tanto no sujeito como no mundo.

É pelo descentramento do sujeito do campo do eu e da consciência que se tem a possibilidade da experiência do desejo através da via do insconsciente e das pulsões. O desejo sucumbe frente á exaltação do narcisismo.

Da parte do analisando existe o desejo de agir o qual muitas vezes é mal interpretado: ou acting-out ou resistência. “A escuta psicanalítica deve ultrapassar a consideração de certas referencias teóricas e de certos códigos onde as ações do analisando recebem a rúbrica de resistência ao processo analítico ou modalidade de acting-out pois se está impedindo ou dificultando que as palavras, pensamentos e fantasias se processem numa ação eficaz”, continua Birman (1999).

A evocação do fazer e do agir remetem à ordem da prática, da superação de obstáculos existentes na realidade.

Diz ainda que é por esse viés que o fazer se encontra com o registro do corpo, dado que o corpo e o fazer implicam algo da ordem do espaço.

Freud, com o conceito de pulsão dá um corpo ao sujeito e desse modo supera o dualismo cartesiano que reduz a corporeidade ao registro da matéria, enquanto o espírito estaria relacionado ao pensamento e linguagem. No pensamento freudiano o sujeitoé corpo e pensamento que se constitui pelo destino das pulsões. Portanto o registro da ação e da reflexão não se opõem. Porem a tradição pós-freudiana inscreveu o corpo e os afetos do lado da biologia e deu ao pensamento e a linguagem outra transcrição. Desse modo, o registro da ação passou a se opor ao do pensamento e se esvaziou o sujeito de sua capacidade de criação subjetiva pois é por esta via que se inscreve na existência. A psicanálise pós –freudiana abdicou do desejo em nome das virtudes do eu e desse modo se esqueceu da corporeidade do sujeito e que este se inscreve na existência pela via da práxis. Esses atributos são desdobramentos dos campos da pulsão e do desejo, que fundam a mobilidade do sujeito, conclui Birman.

Acompanhando a construção teórica conceitual de Freud que foi evoluindo e forçando mudanças na sua práxis percebe-se que foram as contradições, descontinuidades e rupturas que o fizeram avançar da biologia médica, que vê o corpo como natural, como uma organização que funciona como uma máquinacomposta de partes carregada de energia. O princípio de prazer levaria a excitação ao seu nível mais baixo para restituir o equilíbrio, ou seja, a homeostase. O princípio do prazer se opõe ao princípio da realidade, ou seja a homeostase. O princípio do prazer se opõe ao princípio da realidade, mas com um novo sentido. O princípio da realidade consiste em fazer com que o prazer se renove, consiste em resguardar nossos prazeres, estes prazeres cuja tendência é atingir o cessamento. Se o princípio do prazer existe é segundo alguma realidade e esta é a realidade psíquica.

Freud vai percebendo que a objetividade da ciência, onde o saber é constituído por um conhecimento objetivo, não coaduna com a psicanálise pois, esta visa aquilo que a ciência exclui: um saber que é a da ordem de uma subjetividade, que ele aprendeu pela via da transferência. Este é o saber do inconsciente, que precisa ser decifrado, decodificado pois, é uma linguagem simbólica que se utiliza de restos para se expressar. No caso dos sonhos são os restos diurnos, nos atos falhos são os restos das palavras e nos sintomas restos enquanto parte do corpo. Fica marcado, desse modo, a diferença entre corpo natural e corpo simbólico, este dependente da linguagem, que se expressa e fala como um corpo erógeno carregado de intensidades.

Nos textos Metapsicológicos de 1915, Freud, trabalha o corpo da psicanálise como o corpo pulsional que as histéricas mostraram através das marcas de seus corpos, que são marcas do pulsional edo erógeno. A perda de satisfação tem por efeito constituir marcas no corpo, marcas que chamamos de zonas erógenas.

O corpo erógeno é o corpo imaginário, constituído através da imagem corporal que a criança unifica pelas identificações imaginárias. A imagem veste o corpo real dessexualizado e desordenado, característico da prematuração do ser humano, mediante a mensagem do outro. È da mensagem do outro que depende de fato, a constituição dessa imagem corporal, na medida em que, só ela pode
validá-la ou anulá-la quando a criança busca a aprovação. O corpo erógeno como resultado das relações de espelhamento é um efeito da articulação entre Real e Simbólico, sendo da ordem do representacional.

Já o corpo pulsional corresponde ao real, não é representável pois não está submetido a linguagem nem ao biológico por se distinguir da necessidade. O corpo biológico ou dos instintos é o corpo da necessidade, enquanto o corpo pulsional ou da pulsão, é um corpo de querer, de falta ou de exigência. Tanto o corpo da necessidade quanto o corpo da pulsão são ambos reais, mas enquanto a necessidade envolve o interior do corpo, os órgãos internos, como estômago, intestino, etc, a pulsão envolve as zonas de superfície do corpo e as aberturas erógenas. Estas aberturas são pontos onde o interno encontra o externo, são interfaciais, superpostas e conectadas através da figura topológica do oito interior que escreve ou desenha um corpo sobre o outro. O inconsciente freudiano se engrena no corpo, no ponto da pulsão.

Freud diz que o corpo como fonte da pulsão é o que lhe dá seu caráter distinto e essencial, porém na vida mental nós a conhecemos por seus alvos. Então, como distingir o prazer instintual do prazer da pulsão, já que ambos têm um alvo comum de prazer? O corpo dos instintos é um corpo dessexualizado. O instinto é real e o real é dessexualizado, mas não significa que não haja prazer, apenas significa que o prazer arcaico é desprovido de erotismo. É, diz Lacan, o princípio do prazer não acossado pela pulsão, pois esta é erótica. A pulsão segue a lei do prazer, mas a transgride ou força o prazer. Forçamos o prazer constantemente pois necessitamos dele e é dessa forma, que conhecemos fisicamente a pulsão. Freud quando usou o termo “trieb” quis enfatizar o significado da pulsão enquanto dirigir, empurrar forçar, pôr em movimento, propelir, impelir, impulsionar, estimular, promover, sustentar, praticar. É essa força constante do prazer que altera o fluxo instintual que é programado para manter a homeostase: o instinto com seus ritmos orgânicos, ocasionalmente sossega, enquanto a pulsão é o próprio desassossego. A pulsão comparada com o instinto é mais artística, mais inventiva, mais livre, em razão de estar relacionada com o ponto decisivo da emergência humana que é a perda.

Sendo humanos começamos a vida na pulsão e não no instinto pois, a pulsão está enganchada fundamentalmente na linguagem, força o prazer, e desse modo, rejeita a ética do princípio do prazer que émanter o estimula em certo ponto, nem de mais, nem de menos, em homeostase. A pulsão força atingir seu alvo para satisfazer-se mas o atinge apenas em partes pois é no seu percurso que se satisfaz ao operar com a gramática na voz ativa, passiva e reflexiva. Quando a criança Freud urinava no quarto dos pais, como menciona Lacan no Seminário 2, não era por sentir necessidade de urinar, mas porque estava fazendo o circuito da pulsão: urinar, ser urinado e se fazer ser urinado, a pulsão o conduz a forçar ser reconhecido como urinando, ou como ser urinador, com o objetivo de demonstrar
domínio, mais do que sujeição. A pulsão é uma estrutura radical na qual o sujeito ainda não está colocado. O que é o sujeito para além do significante? É a pulsão. É sempre no nível da pulsão que encontramos a resposta para a questão inefável do sujeito.

As pulsões não falam, porque se satisfazem silenciosamente na ação. Na busca da satisfação a pulsão precisa de um objeto e Freud formulou um objeto da pulsão e um objeto do desejo, deixando claro que o objeto absoluto falta. A pulsão não tem objeto próprio, qualquer objeto pode ser objeto da pulsão, e é a fantasia que vai intermediar a relação pulsão – objeto. Na literatura psicanalítica os objetos são tomados freqüentemente como objetos da demanda, objetos demandados pelo outro ou pela mãe. Na fantasia neurótica o objeto do desejo ou objeto causa de desejo é definido como, ou pela demanda do Outro.

Para Lacan a pulsão se liga a fantasia fundamental, nãocomo objeto da demanda do grande Outro, mas como objeto a . Este é um símbolo que denota tanto um lugar vazio no ser e estão no gozo e não no simbolismo. Este objeto que é condensador de gozo, é objeto da pulsão. Estamos sempre envolvidos numa nova fantasia, um novo pedaço de desejo, que é precisamente a definição do objeto a. Ou seja, um excesso de desejo é o significado do gozo, um excesso que estanca o deslizamento dos significantes, fixando, desse modo, um limite para o sentido no real.

Quando em 1920, Freud, opôs pulsão de vida e a pulsão de morte estava propondo algo que existe para além do princípio do prazer. Definiu a pulsão de morte como uma pulsão sem representação inconsciente, autônoma e que tenderia para a descarga fora de toda a lei. Esta tendência para se livrar de toda a excitação também diz respeito ao princípio do prazer onde, o prazer por definição tende ao seu fim, o princípio do prazer é que cesse o prazer que, desse modo, estaria a serviço da pulsão de morte.

Em 1930, em “O mau estar na cultura” vê a pulsão de morte como pulsão de destruição que o ser humano, marcado pela maldade, lança mão da agressividade para atingir seu objetivo. Trata a pulsão de vida ou sexual como conservadora, alcançando a satisfação através da união e organização. Em oposição está a pulsão de morte como desorganizadora, anárquica e disjuntiva, produz a diferença em contraponto com a mesmice da pulsão de vida. Com estes elementos Lacan trabalhou e repensou a pulsão de morte, vendo na disjunção e desorganização a possibilidade de uma reordenação, uma revolta que lança o sujeito para o desejo, para uma singularidade desejante, e neste sentido, a pulsão de morte é pulsão de vida.

Ao impedir que a repetição seja repetição do mesmo, a pulsão de morte impõe um novo começo. É pela repetição que é possível o processo transferencial e por conseguinte, o processo analítico:

“ O que resulta deste encontro não é mais tornar consciente o inconsciente, mas dar voz ao inconsciente através da dispersão das forças pulsionais possibilitando a construção inconsciente. O dinamismo pulsional será o movente deste processo que se viabiliza pelas intensidades do analista e do analisando que estão em jogo. Um jogo de forças em que a imprevisibilidade e a imponderabilidade são as regras. A força pulsional com sua capacidade desorganizadora operará no processo analítico o registro ético estético da psicanálise, como diz Birman (1996). Temos aí a grande virada do projeto científico de Freud para um processo em que os efeitos da análise se produzem pela combinatória ética – estética de um projeto analítico. As intensidades estão presentes como desorganizadoras e reordenadoras das forças pulsionais e por isso, estética; a auteridade, o corpo a corpo dessas duas subjetividades implicadas no processo analítico marca o limite entre as duas intensidades, por isso, entendê-lo como ético”

O ato interpretativo tem por função promover a surpresa, o inusitado que busca desordenar um discurso organizado que fecha o inconsciente, não permitindo deslizamentos que promovem e produzem o real do discurso inconsciente. Este é o final do discurso freudiano que é fundamental para a psicanálise na atualidade. Freud formula que a feminilidade está no centro do erotismo do sujeito e que isso é causa de horror tanto para homens como para mulheres, pois nesse registro o referencial fálico está ausente e em suspensão. Na feminilidade os enunciados são parciais e fragmentários, distante da falácia universalista, diz Birman. Por isso mesmo a feminilidade é fonte de horror . Nela, afinitude e a incerteza humanas tornam corpo, colocando o sujeito em aberto face a seu fazer.

A feminilidade, como registro crítico dos enunciados totalizantes, delineia a psicanálise como uma estilística da existência, pela qual se indica que a construção artesanal da singularidade é a condição “sine qua non” do ofício de psicanalisar. Como se sabe, conclui Birman, não se pretende a cura das doenças com a psicanálise, pois as perturbações do espírito não são enfermidades, mas dissonâncias advindas da ausência de qualquer referencial universalizante para o sujeito.

Já que fomos destituídos da imortalidade o existir vai depender da capacidade de transferir para os outros, para linguagem, para o objeto o que se pode criar no ser mortal através do amor, da sexualidade e da sublimação.



BIBLIOGRAFIA:


BIRMAN, J. Mal - estar na atualidade - Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1999
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_________ Por uma estilística da existência - Rio de Janeiro, Editora 34, 1996        [ Links ]

FREUD, S. As Pulsões e seus destinos (1915) - Rio de Janeiro, Imago Editora - vol: XIV.         [ Links ]

_________ Mal - Estar na civilização (1930) - Rio de Janeiro, Imago Editora - Vol : XXI        [ Links ]

LACAN, J. O Seminário, livro 2 - Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor,1984        [ Links ]

_________ O Seminário, livro 11 - Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1988         [ Links ]

Notas
* Trabalho apresentado na X Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia
** Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia

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