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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.2  Salvador  2000

 

COMENTÁRIOS

Psicanálise não é uma confissão de intimidade:
A banalização do tabu *

 

Tarcísio Andrade**


RESUMO

O autor faz uma reflexão acerca da função e do lugar do analista, face a uma nova concepção e articulação da clínica psicanalítica em suas extensões intra e extramuros.

Unitermos: Psicanalista, Psicanálise, lugar do analista


Convidado a, fazer uma apresentação no X Jornada do Círculo Psicanalitico da Bahia CPB, talvez eu não tivesse aceito se não fosse o que ouvi de uma cliente poucos momentos antes de comunicar a minha decisão. Sei que preciso de terapia, mas tenho dúvida se não devo procurar outro terapeuta, talvez uma mulher. Eu não sei se vai ser possível eu falar de aspectos íntimos da minha vida, haja vista o fato de você ser uma pessoa conhecida. O dizer que precisava de terapia, me parecia verdadeiro, uma vez que ela me procurou em um momento de muitas dificuldades e vinha visivelmente se beneficiando do tratamento. Sua vida está mais organizada, embora os questionamentos sobre si própria e o iniciar de um novo percurso a deixem, às vezes, bastante desconfortável. A dúvida quanto a trocar de terapeuta era a repetição de outros momentos em que por viagens minha ou dela, na primeira sessão de retorno questionava sempre a continuidade da terapia, o que foi interpretado como o receio de que após algum tempo de afastamento ( a última vez durou dois meses ) não fosse mais aceita.

Ao ouvir desta cliente a colocação acima, soou em mim a frase: Psicanálise não é uma confissão de intimidades. Pensei então: vou escrever sobre isto para a jornada. Foi assim que confirmei a minha participação. Um título que me pareceu bonito, diria mesmo excitante, mas que era só um título. As dificuldades na articulação do tema me trouxeram à mente os comentários de dois amigos a meu respeito. Um deles de quem sou muito próximo pela parceria no trabalho de redução de danos à saúde entre usuários de drogas, ao escrever sobre o trabalho que realizo no CETAD/UFBA1 disse que sou uma pessoa que gosta de desafios. O outro amigo, no seu jeito franco de ser e em meio a uma risada que lhe é característica me falou algo semelhante, só que em uma versão mais crua “você tem tendência para cachorro”. Referia-se ao meu trabalho com usuários de drogas injetáveis, algo que lhe pareceu os ossos do oficio. Depois como a amenizar, acrescentou: bem você que é psicanalista deve ter suas razões.

Retorno ao argumento apresentado pela cliente mencionada acima, tomando-o na cadeia significante ou como dizia meu analista, na estrutura da cebola – uma casca a recobrir outra casca e mais outra e mais outra..., no tempo em que as interpretações eram a tônica do processo analítico e mesmo uma via de gozo para nós, iniciados ou veteranos na prática da psicanálise. A percepção do tratamento psicanalítico como uma confissão de intimidades, já ouvida por tantos de nós em nossos consultórios, e coerente com o imaginário popular sobre análise e o ofício de psicanalista, é perpassada pelo temor do analisando de se deparar com o desconhecido de seu desejo. Na cliente mencionada acima, o desejo de, em sua identificação com a figura materna, dá conta sozinha das inúmeras tarefas que tomava sob sua responsabilidade, inclusive na relação com o esposo. Tarefas estas que se constituíam causas dos seu sintomas, cuja resolução não poderia deixar de fora a referência ao outro.

Com esta percepção me ocorreu a lembrança de uma citação de Freud. Em a história do movimento psicanalítico2 . Diz Freud: aprendi a controlar as tendências especulativas e a seguir o conselho de meu mestre Charcot: olhar as mesmas coisas repetidas vezes até que elas comecem a falar por si mesmas”.
Não me era até então claro, e talvez ainda não o seja, porque esta frase me agradou tanto desde a primeira vez que a ouvi, em uma conferência de Antônio Franco Ribeiro do Circulo Psicanalítico de Minas Gerais, há alguns anos passados. Falando a Freud, sem perceber, Charcot antevia a própria prática da psicanálise.

Se “os sonhos não são para serem interpretados” - outra marca para meus ouvidos, a partir de uma fala de Carlos Pinto Corrêa -, e se já não há lugar para tantas interpretações, qual o lugar reservado para os psicanalistas deste final de século? Me quedo comparando a interpretação das resistências, a algumas terapias não halópaticas, nas quais ao infringir pelo menos uma das minuciosas orientações prescritas, o cliente passa a ser responsabilizado pelo insucesso do tratamento. Seria injusto com as práticas não alopáticas não dizer que na alopatia para salvaguardar a sua ciência, o médico muitas vezes atribui o insucesso do tratamento ao paciente. Seria bom que estivéssemos falando de outros psicanalistas, de gerações passadas, mas isto aconteceu com nós mesmos, e é ainda muito recente.

Me ocorreu então a figura do analista como uma testemunha, mas não apenas isto. Um facilitador, então? E aí volto a uma provocação que tenho feito quando digo que a palavra conscientizar deveria desaparecer dos dicionários, sendo preservada apenas em sua forma reflexiva “conscientizar-se”. Neste caso cabe ao educador, e aqui sou tentado a dizer ao terapeuta, o papel de possibilitar ao outro a partir de suas possibilidades, do seu desejo, o percurso em direção a um novo saber, um saber sobre si próprio. Mas isto está na proposta pedagógica de escolas primárias que se fundamentam na teoria do construtivismo, e também na atitude do simplório homem do campo quando com a ponta da sandália levanta a poeira para observar a direção em que sopra o vento, antes de atear fogo a coivara. A coivara precisa ser acesa como as crianças precisam se apropriar de um determinado conteúdo programático, mas o percurso não está determinado, ele se constitui na demanda de outro, e isto se ancora na psicanálise. Não incomum professores e pedagogos destas escolas de base construtivista estão ou estiveram em análise e circulam em instituições psicanalíticas. Em uma aproximação ao exposto, devo dizer que melhor conceito da cura psicanalítica, eu o tenho encontrado em uma tela de um artista boliviano que retrata dois camponeses caminhando lado a lado, aonde se lê: “caminante, no hay camino, el camino se hace ao caminar”.

A esta aparente indefinição do que se constitue a clínica psicanalítica, caberia mesmo a indagação: do que se trata? A medida em que se preserva o trabalho com o inconsciente, a transferência e a livre associação, o novo é uma adaptação a uma outra realidade. Uma nova realidade, dentro de um processo de criação mútua entre nós que oferecemos nossos serviços e os que por eles demandam. Esta permeabilização entre o saber psicanalítico e outras áreas do conhecimento, e seus reflexos em nossa prática me fazem lembrar uma fala que me fez marcas por ocasião de um dos Congressos do Circulo Brasileiro de Psicanálise (CBP) “não faz mal que o psicanalista seja deslocado de sua posição e que em dado momento não se veja diante de um procedimento analítico, desde que tudo volte ao caudal da psicanálise”. Sem me propor a uma interpretação mais acurada sobre esta fala, eu me arriscaria a dizer que há mais de uma década, estas palavras já chamavam a atenção para outras formas de posicionamento da psicanálise diante das novas formas de sintomas. A toxicomania, mas não apenas a toxicomania; também os clientes que nos procuram por manifestações orgânicas interpretadas pelos médicos clínicos como doenças de natureza psicogênicas e mesmo os paciente com sintomas neuróticos que hoje nos procuram, já não se apresentam como os de há 15 anos atrás. Mudaram eles ou mudamos nós? Mudamos todos.

Recorro agora a uma observação de campo do trabalho comunitário que realizamos no CETAD com usuários de drogas injetáveis (UDI)3 . No início o que parecia banal, nada tinha de banalidade. “Doutor e o resultado do meu HIV?” Perguntado no meio da rua ou em presença de vários outras pessoas na sala de espera do serviço médico, parecia que a relação com esta doença se fazia de forma pacífica para aquelas pessoas. “Aqui todo mundo está com AIDS”, diziam alguns deles a mim e aos outros durante o trabalho de campo. Algumas evidências, no entanto apontavam o que escondiam estas falas: Quando posteriormente teve confirmado positivo o teste para HIV, uma das pessoas que perguntara de público pelo resultado, me procurou e muito abatido disse: “a fé remove montanhas e Deus há de remover esta montanha que desabou sobre mim”. Naquele momento, ainda com poucas pessoas doentes, a doença estava associada a debilidade física e mesmo a caquexia, e a maioria das pessoas não apresentavam estes aspectos ou mesmo outros sinais da doença. Desse modo a rotulação de AIDS para todos era uma forma de negar esta possibilidade e o tom jocoso com que era falado refletia a dificuldade de lidar com a realidade. Os técnicos no campo eram referidos como as pessoas que trabalhavam com AIDS. Por muito tempo não houve menção à relação entre AIDS e o uso de drogas injetáveis. Esta relação trazida à público em outro bairro, manteve por muito tempo, os usuários de drogas, afastados do programa.

Talvez por não saber o que fazer diante de uma realidade tão dura e diferente da que até então eu vivenciara nos intramuros do consultório e das instituições, mas também pela impregnação do referencial psicanalítico, a minha postura, também passada adiante para os técnicos que se incorporaram ao trabalho naqueles primeiros momentos – era a de não determinar o que os usuários de drogas deveriam fazer. Estávamos empenhados em observar e verificar as possibilidades de futuras intervenções.

Com o passar do tempo várias pessoas espontaneamente, começaram a fazer referências às mudanças em suas práticas inclusive à redução do consumo injetável, à mudança de drogas injetáveis para maconha e a não reutilização de seringas. Ele passaram também a falar de forma mais sintônica das possibilidades de infecções pelo HIV/AIDS. Houve um esvaziamento dos fantasmas, a partir do real dos resultados dos testes sorológicos realizados, das seringas novas, dos preservativos disponibilizados, e das possibilidades de subjetivação relacionados a estes meios de prevenção. Destas observações adveio a segunda parte do título desta apresentação, que eu chamei a banalidade do tabu. Banalização no sentido de tornar falável, discussível, objeto de atenção algo antes mal + dito porque temível, mal + dito porque mal falado.

À medida que os técnicos do CETAD respeitavam as práticas dos UDI’s, adentravam suas realidades e com eles compartilhavam experiências e dificuldades - mas diferente deles por não usar drogas e estarem inseridos em uma outra realidade - eram tomados por estes usuários como suportes identificatórios. Este é um viés pelo qual se aplica os cuidados pessoais e a preparação das moradias para receber os técnicos durante as visitas à comunidade e a redução espontânea do recurso às drogas. Alguns destes usuários trocaram a identidade de toxicômanos pela de agentes de saúde e outros têm oscilado entre estas duas posições, prevalecendo no entanto as relações com o nova posição assumida.

Trocando idéias com um colega de instituição sobre a banalização do tabu, ele me chamava atenção para um outro fato: a banalização da violência, quando por força da repetição, a violência não mais nos sensibiliza e passa a ser incorporada ao cotidiano. São duas situações diversas em que a banalização da violência está no lugar do que antecede a banalização do tabu. Mas o fato de por força da repetição ser perdido o efeito traumático, me fez retomar o conselho de Charcot a Freud e rever o texto “Recordar, Repetir e Elaborar” ( Freud, 1914) . Sem a força dada por Freud às interpretações, o repetir atualizado no testemunho do analista propicia a este último ver a si mesmo enquanto ver o outro ver-se sendo visto. E nisto consiste o tratamento psicanalítico.

Notas
* Apresentado na X Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, 1998
** Médico Psicanalista, Professor Adjunto Doutor de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina – UFBA e Coordenador do Programa de Redução de Danos entre usuários de drogas do CETAD/UFBA
1
2 Freud, S (1914). História do Movimento psicanalítico. ESB, Vol. XIV, Imago. Rio de Janeiro, 1969.         [ Links ]
3 Andrade, T. M. Condições psicossociais e riscos de infecção pelo HIV entre usuários de drogas injetáveis do Centro Histórico de Salvador, Bahia – Brasil. Tese de Doutorado, apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, 162p.         [ Links ]


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