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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.3  Salvador  2001

 

FUNÇÃO PATERNA

 

Que pai é esse1

 

 

Eny Lima Iglesias2

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O texto aborda os desdobramentos da função paterna, percorrendo os meandros da sua formulação, para ampliar a compreensão dos três registros possíveis do pai em psicanálise: real, simbólico e imaginário. Desta abordagem, a autora vai extrair os efeitos clínicos da formulação lacaniana com vistas ao final de análise.

Palavras-chave: Função Paterna, Matemas da sexuação, Nome do Pai, Sinthome, Pai real, Pai simbólico, Pai imaginário.


 

 

Ao dar este título ao trabalho fiquei sem saber se deveria usar ponto de interrogação, interjeição ou reticência. Esta dúvida fez sentido pois o pai é muito mais que um ponto, ele é um vector. O dicionário de Aurélio define vector como “segmento de reta orientado; conjunto de n-quantidades que dependem de um sistema de coordenadas n-dimensionais e que se transformam segundo leis bem determinadas quando se muda o sistema. Condutor, portador”. Daí poder-se dizer que o pai é o portador, o representante de um caráter de radical exterioridade que ordena uma função.

Freud coloca o mito do pai no centro de sua doutrina. Ao escrever Totem e Tabu em 1912, pretendia explicar porque os aborígenes australianos evitavam o incesto utilizando um sistema exôgamico de relações numa organização social onde severas regras éticas eram observadas. A mulher e o desejo eram as grandes ameaças. Ele associou esses aborígenes com os neuróticos que, para evitar as relações incestuosas fazem severas restrições a sua vida anímica. Definiu o Tabu, tal como o sintoma, como uma formação de compromisso, ou seja, é uma solução possível de viabilização das pulsões incompatíveis.

Que pai é este de Totem e Tabu? É o pai todo-poderoso, não castrado, que tem todas as mulheres para si e por isso foi alvo da hostilidade dos filhos que o mataram. Após o ato, os filhos descobrem que também amavam esse pai; o amor é então, transformado em sentimento de culpa e a palavra do pai se converteu em lei simbólica. Este pai morto foi a condição de retorno da ordem e do estabelecimento de um laço social com a renúncia dos filhos ao gozo da mãe.

Para a Psicanálise, o pai é um operador simbólico, o qual não remete à existência de nenhum pai encarnado. Ë uma entidade simbólica que ordena uma função que é estruturante do ponto de vista do inconsciente. O ser falante diante da função simbólica exercida pelo pai fica assujeitado numa sexuação pela operação de castração.

Onde está o pai? Freud buscou encontrá-lo em Totem e Tabu que considerava sua obra mais bem escrita, segundo Jones, o livro que permaneceu sendo um dos seus favoritos durante toda a vida, recorrendo constantemente ao mesmo. A partir do pai primitivo, déspota, tirano, obsessivo tem-se a exceção à regra da castração como universal. A onipotência deste “ao menos um” suscita a ambivalência nos filhos. Eles têm ódio e inveja pelos atributos que permitem ao pai ter todas as mulheres. Matam o pai tirano e em seguida o consomem num banquete canibalesco para se apropriar das marcas de sua onipotência e assumir o seu lugar. Com a culpa e o arrependimento fazem o asseguramento de um culto através do qual a dívida será honrada pela rendição à instituição simbólica da proibição do incesto.

A edificação do homem em pai se realiza ao preço de uma promoção simbólica que se mantém porque é sustentada por um interdito que tem força de lei. Em outras palavras, o homem que tinha todas as mulheres só advém como pai a partir do instante em que morre como homem. Todos os homens são submetidos à função fálica, ou seja, são estradas. E’ a exceção do “ao menos um” que funda a lei que impõe a castração a todos os outros. O pai morto edificou-se ou transformou-se em Pai simbólico.

Pai, isso não é tão simples, diz Lacan no Seminário Relação de Objeto. Ele observa que nos conflitos psíquicos a incidência paterna se apresenta sob o tríplice aspecto do pai simbólico, do pai imaginário e do pai real.

Lacan diz que Totem e Tabu é feito para nos dizer que, para que os pais subsistam é preciso que o verdadeiro pai, o pai singular, o pai único, esteja antes do surgimento da historia, e que seja o pai morto. Freud visava mostrar que, só por intermédio do pai real, que vem, num momento qualquer, preencher esse papel e função, é que permite dar a relação imaginária sua nova dimensão: sair do puro jogo especular do “eu ou o outro” para dar encarnação a essa frase do Deus monoteísta: “Eu sou aquele que sou”. Este é o único que poderia responder à posição de pai, na medida em que é o pai simbólico, e o pai simbólico é impensável. Só podemos situá-lo no mais além, quase numa transcendência, ou alcançá-lo através de uma construção mítica, pois o mito é sempre a tentativa de articular a solução de um problema.

O pai simbólico é o depositário legal de uma lei que lhe vem de outro lugar e nenhum pai real pode se vangloriar de ser seu detentor ou fundador. Ele é apenas seu representante. A prescrição simbólica, a indicação desta lei supõe uma negociação imaginaria prévia que se desenrola entre pai – mãe – filho, reunidos na triangulação edipiana e todos têm que se referir a um 4º elemento: o falo. Só este 4º elemento constitui o parâmetro fundador suscetível de inferir a investidura do pai simbólico a partir do pai real, pela via do pai imaginário.

O falo é a unidade significante do real da diferença dos sexos. Constitui o centro de gravidade da função paterna, que vai permitir a um pai real assumir a sua representação simbólica. O falo é o único agente regulador da economia do desejo e de sua circulação com referência à mãe e ao filho. É um objeto enigmático o qual se pode ao mesmo tempo possuir e do qual se é igualmente desprovido. E’ ele que gera os conflitos e disputas acirradas entre pais e filhos, homem e mulher, esposa e esposo. São lutas imaginárias onde todos querem mostrar que possuem este objeto agalmático que momentaneamente preenche a falta e sacia o desejo. Porém, só o homem é o detentor do falo, esse objeto imaginário que orienta a diferença sexual no que se refere ao masculino e ao feminino.

A esta operação Lacan chamou de operação do Nome do Pai ou Metáfora paterna remetendo o pai ao estatuto de um significante que substitui o desejo da mãe. Através da sua presença e ausência, a mãe introduz o filho a uma primeira formulação do simbólico. Se o desejo da mãe funciona sem ser nomeado, como puro capricho, estão assentadas as bases para uma estrutura psicótica ou perversa. Ë função do pai nomear o desejo da mãe e substituí-lo pelo significante Nome do Pai dando assim uma significação nova e barrando o gozo obsceno experimentado entre mãe e filho.

A experiência analítica faz ver que toda relação inter-humana está fundada numa investidura que vem do Outro. Este Outro está doravante em nós sob a forma de inconsciente e nada em nosso desenvolvimento pode se realizar senão através desse Outro absoluto como sede da palavra. E’ a palavra daquele que pode falar: do pai, é que dá fundamento ao Édipo, centro de organização simbólica. O pai simbólico traz dificuldade por ser o significante de que jamais se pode falar, é necessário aceitá-lo como um dado irredutível do mundo significante.

O pai imaginário é aquele com quem lidamos o tempo todo. É a ele que está referida toda a dialética, seja a de agressividade, identificação, idealização, necessária para o sujeito ter acesso à identificação ao pai. Nas experiências neuróticas assustadoras é o pai imaginário, aquele que assusta e dá medo, pois a ele que se refere o gozo, enquanto ao pai real concerne a interdição do gozo.

O pai real é de apreensão mais difícil devido à interposição das fantasias da criança junto à necessidade da relação simbólica. Saber com que realmente estamos lidando é uma dificuldade presente no desenvolvimento psíquico de todos os seres humanos. O pai real é o personagem do meio ambiente da criança e a ele é dada a função de destaque no complexo de castração. Há um elo entre pai real e castração. Para isso ele precisa assumir a função sexual viril para se tornar o pai castrador. O caso Hans exemplifica de forma quase transparente o pai real. Hans não pode suportar seu pênis real na medida em que este não foi ameaçado pelo pai. Hans desejava um pai que se zangasse com ele e o castrasse. Mas o pai de Hans se obstinava em não querer castrá-lo.

O acesso à posição paterna é uma busca difícil e penosa. O pai real se reveste das insígnias do homem real que, para ser pai, deve ser investido a se fazer reconhecer como pai simbólico. É necessário que a ele seja suposto ter este atributo imaginário fálico, fonte de ódio e de inveja, que o institui como o único a ter direito; daí porque: o homem, enquanto Pai, tem de dar provas, num dado momento de que realmente possui aquilo de que todo homem é desprovido. Ele é que tem o trunfo maior, por isso se introduz na ordem simbólica como um elemento real, ao contrario da mãe que é simbolizada no real por sua ausência e sua presença.

No seminário O avesso da Psicanálise de 1969-1970, Lacan, partindo do discurso do mestre, diz que o pai real é uma noção cientificamente insustentável, pois nada mais é que um efeito de linguagem. Na sua argumentação ressalta que não poderia haver ato no começo da história, nenhum ato que pudesse ser qualificado de assassinato, pois só poderia haver ato num contexto preenchido por tudo o que advém da incidência significante, e o homem na sua entrada no mundo já está imerso na ordem simbólica. Ele justifica o mito dizendo: “o mito não poderia ter outro sentido a não ser o de um enunciado do impossível”. No mito freudiano há no seu enunciado a equivalência entre o pai morto e o gozo. Que o pai morto seja o gozo isto se apresenta a nós como o sinal do próprio impossível que é o que fixa a categoria do real. O real é o impossível.

Vemos Lacan mudar complemente sua teoria, que dizia que a castração está relacionada ao pai real, para definir a castração como princípio do significante mestre. A castração é a operação real introduzida pela incidência do significante, seja ele qual for, na relação do sexo. É ela que determina o pai como esse real impossível. A partir desse ponto a forma segura de definir o pai real é como agente de castração.

A idéia de colocar o pai onipotente no princípio do desejo é refutada por Lacan, pelo fato de que foi do desejo da histérica que Freud extraiu seus significantes mestres. A mola propulsora, para Lacan, está no gozo, o qual separa o significante-mestre do saber como verdade. O gozo constitui um obstáculo para que o sujeito produza como significante mestre um saber sobre a verdade. Daí porque o discurso do mestre é o avesso do discurso psicanalítico.

Isidoro Vegh no artigo “Onde o pai não chega” utiliza as fórmulas da sexuação para tirar algumas conclusões sobre o mito da horda primitiva. Para a fórmula: ele diz que Freud trabalhou este matema: para todo homem se cumpre a função fálica, a castração. Todos estão submetidos a uma eficácia, algo lhes está proibido, o incesto, a relação com a mãe. Em Totem e Tabu, a comunidade dos filhos está marcada pela intervenção do pai. Para todo filho, para todo x, se quer dizer-se homem, terá que cumprir uma condição: sua relação com a castração. Em termos modais se cumpre a ordem do possível. No seminário 20, Lacan diz que é pela função fálica que o homem como todo toma inscrição. Ele chama isso função do pai.

Podemos ler em: para uma mulher enquanto mãe, seu filho, antes de ser aquele que tem um pênis, é todo seu falo. A castração marca aos filhos que querem dizer-se homem, mas também á mulher enquanto mãe. Existe aí uma dupla proibição. Uma ao filho: ”não te ditarás com tuamãe”, e outra à mãe: “não reintegrarás teu produto”. Se esta operação funciona, uma mulher se diz não toda, se define por ser alguém a quem falta algo. É a primazia universal do falo, efeito do inconsciente estruturado como linguagem, eficácia da palavra, condição de uma lógica de incompletude. Então este matema é freudiano, pois a mulher, em referência ao falo é “não toda”. Em termos modais a castração na mulher é contingente. É no pára de não se escrever que reside o que chamei de contingência, diz Lacan Quer dizer que a mulher tem diversas formas de abordar o falo. Ela goza para além do falo, é o gozo do corpo, é um gozo que talvez ela mesma não saiba nada a não ser que ela o experimenta, isto ela sabe.

Terceiro matema: existe ao menos um x que diz não a castração: é o pai da horda. A exceção cumpre uma função lógica necessária; para que todos os x possam constituir um conjunto, ao menos um deve ficar excluído. Razão de estrutura que aparece em cada analisante, remete a função do pai da horda, reservatório de todo gozo. Inverte-se a lógica aristotélica que põe o necessário na ordem do universal. O necessário se escreve na exceção. O não pára do necessário é o não pára de se escrever.

Três matemas lacanianos de origem freudiana. Até aqui chegou Freud: o amor ao pai determina que o filho cumpra seu mandato, sustentado no sentimento de culpa. Freud salva o pai e aí detém sua obra na culpa pelo parricídio.

O quarto matema, não é freudiano, mas lacaniano. Diz: ”não existe um x para o qual não se cumpra a castração”.

Trata-se da existência e em termos modais vamos situar o impossível: . Não existe um x, alguém que diga não a função fálica. Desse modo comprovamos a inexistência do Outro. O impossível é o não pára de não se escrever.

Na última fase do trabalho de Lacan há uma modificação do estatuto do pai. De forma resumida podemos dizer que do pai edípico passou para os Nomes-do-Pai, indicando que o significante do Nome-do-Pai, que inscreve o sujeito na lei, não é válido para todos. Cada um tem seu significante do pai ou até vários significantes do pai. Agora o pai da lei é substituído pelo significante unário – o traço unário que é modo como o sujeito se inscreve no Outro. Do significante passou para a letra, que diferentemente do significante que remete a outro significante, se detém, faz buraco e como sulcos que se formam na terra, vai fazendo traçado por onde passa o real do gozo. Com isso ele vai além dos efeitos de verdade do significante e busca os efeitos de gozo no real.

Com a formalização dos nós borromeanos, Lacan faz a passagem dos Nomes-do-Pai ao Sinthome onde o Sinthome é a letra particular do sujeito. A amarração dos nós vai efetuar-se por meio do Sinthome, o qual é diferente para cada sujeito.

O que pode observar-se é que do pai ao Sinthome tanto o significante quanto a letra tem a mesma função – fazer nó. Enodam para o sujeito o campo do significante e do significado, enodam significante e significação, bem como fazem nó entre o simbólico e o imaginário.

Esta é a clínica do real onde o sujeito vai responder a sua falta-a-ser sem o pai, mas com outras paixões para encontrar novos objetos de satisfação pulsional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. – Totem e Tabu, ESB vol. XII., 1976        [ Links ]

LACAN, J. – Seminário IV – As relações de Objeto – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1991.         [ Links ]

_________ – Seminário XX – Mais, Ainda – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998.         [ Links ]

VEGH, Isidoro – Matices del psicoanálisis, Editorial Agalma, Buenos Aires, 1991.         [ Links ]

XAVIER DE MENEZES, José Euclimar – Fábrica de Deuses, Unimarco Editora, 2000.         [ Links ]

 

 

1 Trabalho apresentado na XII Jornada do Circulo Psicanalítico da Bahia, Novembro de 2000.
2 Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.

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