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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.3  Salvador  2001

 

FUNÇÃO PATERNA

 

A clínica cem anos depois: novas figuras de gozo

 

 

Luis F. F. de Andrade

 

 


RESUMO

O autor se interroga sobre as novas formas de sintomas surgidas na sociedade ditas pós-moderna, em comparação com o tempo da descoberta freudiana. Cem anós após a descoberta do inconsciente, novos invólucros surgiram para os sintomas, mercê so discurso da ciência e de seu efeito, o discurso capitalista. São novas figuras de gozo que já não se enquadram na concepção clássica das formações do inconsciente e de seu tratamento, e desafiam a psicanálise. A toxicomania é uma delas. A segunda clínica de Lacan – a do gozo –, articula em função do objeto a e, em última análise, apoiada na teoria dos nós, nos permite compreender sua economia e orientar nossa práxis.

Palavras-chave: Sintoma, Gozo, Toxicomania, Discurso capitalista, Nó de Borromeu.


 

 

"Do fundo da inconsciência
Da alma sobriamente louca
Tirei poesia e ciência,
E não pouca.
Maravilha do inconsciente!
Em sonho, sonhos criei.
E o mundo atônito sente
Como é belo o que lhe dei.”

(Fernando Pessoa).

Faz cem anos que Freud, decifrando o sintoma histérico, descobriu o inconsciente e inventou a psicanálise. Este fato, dito assim, de forma tão singela, não revela o alcance extraordinário deste acontecimento. Talvez o próprio Freud tenha, no só-depois, se surpreendido com o tamanho de sua obra. Lacan se refere a isto quando fala do enorme pavor de que o homem é tomado ao descobrir a imagem do seu poder revelado na ação mesma que lhe é própria1 . É que esta descoberta, na medida em que produziu uma revolução no conhecimento à altura do nome de Copérnico, veio para denunciar que o verdadeiro centro do ser humano não se encontrava mais no lugar que lhe outorgara, até então, o cientismo e toda uma tradição humanista2.

Embora em “A ciência e a verdade” Lacan considere o nascimento do discurso científico moderno a condição de possibilidade para a descoberta do inconsciente3 , no Seminário V ele se admira que o inconsciente não tenha sido descoberto antes, que até Freud ninguém se tenha dado conta de que toda a nossa vida está imersa no inconsciente, “que toda a vida humana está estruturada a partir da Outra coisa”.4 Foi preciso o gênio de Freud situar o inconsciente no nosso interior para que nos déssemos conta de sua exterioridade. E isto ele o fez sem grande estardalhaço. Apenas ouvindo as histéricas, analisando seus sonhos, escrutando os atos falhos, esquadrinhando a estrutura dos chistes e outras manifestações atípicas da vida quotidiana. Eram formações que chamavam a atenção pela sua determinação causada fora do registro da consciência.

Aos olhos do desavisado pode parecer pouca coisa. Mas não é. Esta revolução, que mostrou não ser o homem mais senhor em sua própria casa, não somente infligiu um rude golpe à ciência do sujeito da representação, mas criou, simultaneamente, um dispositivo que isolou, por assim dizer, um novo tipo de discurso, até então desconhecido. Falo do discurso analítico tal como formalizado por Lacan, na sua articulação aos discursos do mestre, do universitário e da histérica5 .

O ato de instauração do discurso analítico coincide com o momento mesmo da restituição de sua verdade à histérica. Neste instante, diz Lacan, dissipa-se o teatro na histeria, a histérica passa a página e Freud inventa a psicanálise6.

Deste então a prática da análise determinou uma nova forma de tais7 , cujo alcance abrange o esclarecimento dos outros discursos e a compreensão dos fenômenos humanos segundo a articulação do simbólico, do imaginário e do real8.

Tudo isto não deixa de ter relação com alguma coisa que muda a face das coisas em nossa época9 .

É dentro desta perspectiva de mudanças ocorridas entre o nascimento da psicanálise e os dias atuais que pretendo centrar minhas reflexões.

Na Conferência XXXI das Novas Conferências, Freud afirma a importância que teve para o desenvolvimento e a acolhida da psicanálise o fato de seu trabalho ter começado pelos sintomas, pois isto o levou à descoberta do inconsciente, da sexualidade e das pulsões10 . O sintoma foi, pois o ponto de partida para a teorização e para a prática de Freud. Graças a isto ele delimitou o quadro das neuroses atuais, das neuroses de transferência e das neuroses narcísicas, sem falar nas suas teorizações sobre a psicose.

Mas foi sobretudo na escuta das histéricas que ele soube ler, na escritura de um corpo imaginário, a verdade do inconsciente que estava ali e ninguém vira. Paradoxalmente, foram as histéricas, tão ávidas por um amo, que deslocaram Freud de seu lugar de mestre, obrigando-o a inventar as vias de acesso ao desejo que conhecemos hoje sob a forma do discurso analítico.

Mas, hoje, onde estão as grandes histéricas? Os tempos mudaram, e a psicanálise tem sua parte nisto. Claro que as neuroses continuam existindo, mas, a olhar de perto, seu quadro clínico já não apresenta aquela figuração florescente, tão de encher a vista, a igual que um nenúfar de Claude Monet, do que temos a vívida impressão ao lermos os primeiros escritos de Freud ou os historiais clínicos dos seus contemporâneos.

É que com os tempos mudaram igualmente os invólucros formais do sintoma. As novas formas de sintoma apresentam-se de preferência com uma envoltura social. As novas formas de vida, novas formas de sintoma e novas figuras de gozo, comprovando que “o significante é a marca do sujeito no movimento do mundo”11 , e que, por sua vez, o movimento do mundo oferece ao sujeito novos significantes que o representam e lhe servem de objeto de gozo. O sujeito busca então novas estratégias para se haver com seu sintoma, que ainda continua a nos atrair pela sua dimensão estritamente humana.

Assim, a psicanálise de 2000 não é mais a mesma de 1900. O discurso do mestre que predominava na Viena fin-de-siècle, capital de um império decadente, mas que nem por isso perdia sua pose vitoriana, este discurso foi fragmentado e tivemos que sair á procura de outros mestres ou, quem sabe, eles nos foram impostos.

O que aconteceu? Aconteceu que o discurso da ciência, esse primo carnal do discurso da histérica, espatifou a ordem reinante, decapitou os mestres de plantão, proclamou um saber-fazer como palavra de ordem e instituiu o discurso capitalista como nosso grande patrão. Vamos homogeneizar as diferenças, vamos competir loucamente, vamos produzir sem parar e consumir adoidados tudo o que for de troço – o que os ingleses chamam de gadgets. Em suma, vamos nos mostrar e vamos gozar todos juntos. Quem puder que goze mais. Afinal, esta sociedade está cheia de objetos de gozo, enquanto o objeto causa do desejo foi mandado pr’ás cucuias. Como diz Lacan, a mais-valia é a causa do desejo da qual uma economia, a da produção extensiva, insaciável, fez seu princípio.12 E agora, mais do que nunca, o sujeito não é mais senhor em sua própria casa.

Todo mundo sabe como se chama o nosso último grande significante mestre: a globalização. É isto que chamo de a grande homogeneização, o nivelamento por baixo – ou mais bem por cima! -, o esquecimento das diferenças e do particular. A mesma roupa para todos; os mesmos penduricalhos para todos; as mesmas farmacopéias para todos. Até as classificações de doenças foram reduzidas a siglas ou a estados, nos quais o sujeito entra como boiada passando em cancela: aos magotes. A própria psiquiatria clínica agoniza, à espera da última grande tacada da neurobiologia e da psiconeurofarmacologia anunciadas reiterada e efusivamente pela grande mídia. Como se o sujeito fosse apenas um indivíduo perdido na imensa maré cheia da globalização e do discurso capitalista. Como se cada um não fosse cada um, sujeito de fala, dividido, tributário da falta e ancorado, necessariamente, no significante fálico e no seu próprio universo fantasmático.

O curioso é que esta civilização que homogeneíza é igualmente a que segrega. Em 1967 Lacan já previa “uma extensão sempre mais intensa dos fenômenos de segregação” como conseqüência da universalização imposta pela ciência, universalização esta que passa não pelo significante mestre pautado pelos valores dos ideais e sim pelos valores do mercado submetido ao manejo dos meios econômicos. Se os sujeitos não dançam conforme a música, como se diz, isto é, se não entram no circuito global da distribuição de bens, só há um meio de tratar o problema: segregando-os. Não é à toa que vemos os espaços urbanos reservados para os drogados em Amsterdã ou Zurique, triste ressurgência de guetos adaptados à modernidade. Isto para ficar só num exemplo, que é o que mais nos convém.

Esta pós-modernidade –chamada por Habermas de “capitalismo tardio” – se caracteriza, em termos filosóficos, pela crítica da razão, pelo enaltecimento dos valores da vida e da espontaneidade, pela morte da metafísica, pelo descentramento do sujeito e pela proclamação do relativismo. Em termos político-culturais, temos a globalização da economia, a produção desenfreada de bens de consumo, inclusive da própria cultura, uma dilatação do mercado e uma prodigiosa corrida às compras. Em conseqüência, os grandes ideais foram esfrangalhados, e um novo estilo de vida, pautado pela celebração maníaca do consumo, se instalou mercê de um novo gênero discursivo, onde o gozo prevalece sobre o desejo. Estou falando do discurso capitalista, este filho bastardo do discurso da ciência.

Por que responsabilizar o discurso da ciência por este estado de coisas? Já disse que este discurso se aproxima do discurso histérico. Mas, enquanto o discurso histérico se depara com a impossibilidade de saber tudo sobre o objeto de seu gozo, o cientista pode sempre alcançar o saber que busca, embora ao preço de sua exclusão enquanto sujeito do desejo. Esta exclusão do sujeito, livra-o não apenas das trapalhadas do desejo, mas retira-lhe igualmente qualquer preocupação com a verdade. Em compensação, é exatamente disto que a ciência retira sua eficácia produtiva, sob a forma de logos technikós – a ciência a serviço da técnica -, possibilitando um nível de intervenção na realidade cada vez maior. Ou seja, a tecnologia é capaz de produzir uma enxurrada tamanha de objetos, que a questão já não é mais saber se eu preciso de tal ou qual objeto, mas se eu tenho ou não recursos para comprá-los.

É claro que tal estado de coisas produz uma demanda incondicional de objetos, cujo valor agalmático ofusca a lei do desejo em benefício da economia do gozo. Assim, não é de admirar que deste pacto perverso entre a ciência/tecnologia e o capitalismo o sujeito do desejo fique excluído.

O próprio sujeito do inconsciente sai depreciado. O que é questionável no discurso científico é sua pretensão de sempre considerar a falta como preenchível, diz Lacan.13

A pena é que todo este simulacro de domínio e alegria não só não apazigua a infelicidade comum, como até enouriça o mal-estar fundamental.

Ora, era exatamente esta infelicidade comum que Freud pretendia, ab origine, oferecer à histérica em troca de sua miséria. Leiamos hoje esta “infelicidade comum” como sendo o tributo que temos de pagar por sermos seres de falta. Então o que a psicanálise tem a oferecer hoje e sempre é exatamente isto. É somente por aí que ela pode manter a promessa de uma vida melhor que o sujeito procura.

Cem anos depois a clínica mudou, porque a sociedade mudou. E a psicanálise foi mudando também. Afinal ela não é peça de museu. Pelo contrário, ela é uma experiência viva, a dimensão mais integral da realidade humana, no dizer de Lacan14 .

Por um lado, no interior da psicanálise, a par das mudanças socio-culturais, novos avanços se fizeram no campo teórico-clínico e na própria metapsicologia, cujos exemplos maiores creio serem Melanie Klein, Wilfred Bion e, “last but not least”, Jacques Lacan.

Por outro lado, surgiram, na clínica, novos casos que configuram o que chamei acima de novas formas de sintoma e novas figuras de gozo.

É sobre esta nova clínica que quero falar agora.

Esta nova clínica é fruto, creio ter deixado claro, do discurso da ciência em conluio com o discurso capitalista. Fenomenologicamente ela se expressa através de formas variadas, tais como a bulimia, a anorexia, as depressões larvadas, o stress, um tipo de discurso perverso, os fenômenos psicossomáticos, as chamadas perturbações narcísicas, os “border line”, as passagens ao ato, a toxicomania. Esta lista não é exaustiva.

Não podendo falar de tudo, escolhi a toxicomania, por ser um sintoma paradigmático do discurso capitalista e, por outro lado, por se encaixar como uma luva na demonstração de como a metapsicologia lacaniana, na sua segunda versão clínica, nos esclarece sob esta figura moderna de gozo, ao mesmo tempo que ilumina nossa práxis.

Em “O mal-estar na civilização”, Freud, ao distinguir as três fontes de sofrimento do homem, a saber – nosso próprio corpo, as forças da natureza e nossas relações sociais –, situa a droga como o paliativo mais eficaz para amortecer nossas aflições em vista da felicidade15, independentemente da posição do sujeito em relação à falta que o constitui.

A toxicomania apresenta-se como um fenômeno singular no interior do discurso capitalista. É uma forma de resistência à universalização homogeneizante da lógica capitalista, embora, paradoxalmente aí esteja enganchada pelos valores de uso e troca. Por isso ela aparece na cena social como o paradigma do sintoma moderno, do discurso capitalista, no qual o consumo se organiza anulando o sujeito.

O importante é saber que lugar a droga ocupa na economia libidinal do sujeito, pois isto é fundamental para a direção da cura.

Falar de toxicômano é falar de uma figura de gozo. Num sentido amplo, enquanto tratamento de gozo, a toxicomania pode ser tomada como um sintoma. Mas, num sentido estrito, não é um sintoma, pois o de que se trata é justamente de evitar a castração pela via do gozo, através de uma ruptura com o Outro e uma cristalização da elaboração fantasística. Não há formação de compromisso. Não é uma formação do inconsciente. O significante “droga” está no lugar do sintoma ou, melhor dito, é quando o sintoma já não basta, que a droga advém como solução. Mas é uma solução que rechaça o laço social com o Outro. Por isso que Miller fala de um gozo cínico: forma de radicalizar a oposição ao gozo fálico. A droga assume o caráter de um objeto insubstituível, de valor absoluto, tornando-se objeto causa do gozo e não do desejo.

É por se recusar a entrar no circuito do gozo fálico, representado em nossa civilização pelos objetos de consumo e competição, que o toxicômano “faz greve do falo”, como diz Colette Soler16. Por isso Lacan dizia que a droga leva o sujeito a romper o casamento com o seu pipi17 , quer dizer, romper o casamento com o gozo fálico, que é um gozo fora do corpo, enquanto o gozo da droga é um gozo autoerótico. Portanto, a droga busca velar a castração, rompendo com o falo. Daí porque o sujeito é levado a excluir o Outro enquanto Outro do sexo. Neste sentido, podemos dizer que o toxicômano é um fora do sexo. Digamos que o toxicômano pensa que só existe o seu corpo.

Não sendo este mais-gozar um sintoma neurótico, visto que este gozo é um gozo distinto do gozo fálico, também não é uma perversão, embora desminta o outro sexo. É que, ao contrário da perversão, que tem uma forma específica de fantasia, o gozo da droga não passa pela fantasia. Portanto a toxicomania não é uma estrutura clínica, mas uma operação sobre a estrutura.

Isto nos coloca de imediato ante o problema de sua classificação.

Não sendo sintoma de neurose, não sendo perversão, a toxicomania nos interroga sobre suas relações com a psicose e com os fenômenos psicossomáticos, na medida em que tem a ver com a presença, sim ou não, do Nome do Pai e da forclusão.

Por que falar aqui de psicose? Não estou dizendo que a toxicomania seja uma psicose, nem que a psicose seja uma toxicomania. Mas o fato é que a clínica tem mostrado a presença cada vez maior de toxicômanos que na verdade são psicóticos, e que na ausência de drogas surtam18 . Por outro lado, é legítimo que, do ponto de vista teórico, nos perguntemos sobre os limites de aproximação e de diferenciação entre o psicótico e o toxicômano.

O mesmo se pode dizer em relação aos fenômenos psicossomáticos, nos quais igualmente está em questão o alcance da incidência do significante paterno e onde se observa uma forma de gozo específica, distinta do gozo fálico.

Resumindo, tanto na psicose, quanto na toxicomania e nos fenômenos psicossomáticos temos a ver com uma economia de gozo que não tem nada a ver com o gozo fálico. Nestas três formas clínicas um tipo de gozo é promovido em detrimento do desejo que é anulado, ou eclipsado ou contornado. Nos três casos, de uma forma ou de outra a mediação que a significação do Outro introduz entre o sujeito e sua forma de gozo é eliminada.

No que concerne à psicose, é de se perguntar qual a função da droga, já descrita por Freud como o melhor moderador do mal-estar e da infelicidade. Nos que não surtaram, provavelmente a droga funciona como um elemento estabilizador do gozo, a título de suplência. Tem por objetivo preservar o sujeito do delírio, e impedir o confronto com a castração no campo do Outro. Nos sujeitos que estão em surto, provavelmente os elementos químicos, funcionam como um moderador de gozo, um alívio afetivo.

Já na neurose com toxicomania verdadeira, o sujeito, ante a castração do Outro, inventa uma nova forma de gozo, que rompe com o gozo fálico.19

Nos fenômenos psicossomáticos, para os quais Lacan fala de um gozo específico20 , o sujeito, na e pela sua lesão, goza de um gozo do Outro, em ocorrência o gozo da Mãe, que lhe foi enxertado no próprio corpo como se fosse um pedaço do corpo do Outro. Sabemos que é uma afecção que contorna o Outro da linguagem e que se caracteriza pela compactação da cadeia significante, seu surgimento e avatares estando quase sempre condicionados por uma indução significante, função de certos acontecimentos, datas ou palavras. O que a análise pode fazer é procurar outorgar um sentido a esta lesão, dando condições ao sujeito para a subjetivação do que lhe foi deixado em herança. Se isto se consegue, a cadeia significante volta a fluir, e o que era holófrase, digamos assim, vira sintoma.

Aqui, tal como na psicose, temos a ver com uma falha na metáfora paterna, mas não com o alcance radical que se verifica na psicose.

E no toxicômano? Bem, se existe uma ruptura com o falo, isto significa dizer que um acidente com o Nome do Pai teve lugar. Só que aqui não se trata de uma forclusão e exclusão do Outro da lei. O gozo não passa pelo Outro como na psicose. Lembro que na psicose o sujeito está assujeitado ao gozo do Outro enquanto objeto desse gozo. O toxicômano goza no seu corpo e se coloca ante o Outro enquanto o Outro do significante, do saber. Um acidente do Nome do Pai ao nível da cunhagem (Prägung) é remediado pelo social que vem em socorro do sujeito conferindo-lhe um nome: você é toxicômano. Ao que o sujeito retruca, identificado: Eu sou toxicômano. A droga é o significante que nomeia, em vez de representar o sujeito para outro significante. O social faz suplência, produzindo e fornecendo o significante. Como diz Lacan: “Ser nomeado de alguma coisa, eis o que coloca numa ordem que se encontra efetivamente para se substituir o nome do pai”.21

O fato de eu ter colocado a toxicomania ao lado da psicose pode levar a crer que seu lugar se situa do lado da primeira clínica lacaniana, a do significante do Nome do Pai, a da metáfora paterna. Ora, mas se ela, enquanto gozo, escapa aos limites impostos pelo gozo fálico, eclipsando o desejo, como poderia estar submetida a esta formalização?

A questão da classificação é algo muito presente na clínica atual. É verdade que Freud infligiu o primeiro golpe à classificação psiquiátrica. Mas isto não impediu que continuássemos a ter como referência, na nossa práxis, um certo quadro nosológico apoiado no tripé neurose, perversão e psicose. Nos dias atuais, esta delimitação não é rechaçada mas é, digamos assim, flexibilizada na medida em que a clínica mostra um sem número de casos em que as fronteiras se confundem ou se elastecem. De repente não se sabe bem se temos diante de nós uma histeria ou uma psicose, uma toxicomania ou uma psicose, uma histeria ou um fenômeno psicossomático22.

Na clínica lacaniana esta dificuldade se acomoda muito bem ao que conhecemos como sua segunda clínica, a clínica do Real. Temos assim o Lacan da década de 50, época da predominância da teoria do significante, onde a polaridade que define a classificação se rege pela presença ou pela ausência da metáfora paterna. É uma clínica descontínua: o Nome do Pai está ou não está. Logo temos o Lacan dos fins da década de 7023 , quando o registro do gozo e do objeto a toma vulto, culminando no nó de Borromeu e, logo, no quarto nó, o da suplência do Nome-o-Pai, que Lacan chama de “sinthome”. Aqui se verifica, por exemplo, uma gradação possível no campo das psicoses, que explica o fato de certas amarrações psicóticas se fazerem de forma intermitente, fornecendo ao sujeito o apoio de sucessivos pontos de basta (point de capiton), de tal forma que as metáforas delirantes não têm lugar ou o têm de forma leve e intercalada. Digamos que o sujeito se aguenta mercê de bengalas imaginárias que vão e vêm, ou que ficam.

Esta segunda clínica lacaniana ainda está à espera de certos polimentos ou desdobramentos, mas tem se revelado fecunda na exploração de certos fenômenos clínicos até então confusos, como são os casos border-line e todos aqueles onde a economia do gozo prevalece sobre a do desejo, como as toxicomanias e as lesões psicossomáticas. As novas figuras de gozo, que não se enquadram adequadamente na primeira formalização, encontram na segunda um instrumento útil para a clínica e promissor para a investigação.

Do ponto de vista clínico, a interpretação será feita não apenas em consonância com a estrutura significante, onde o sintoma é visto como uma metáfora, mas levando em conta a equivalência entre o real, o simbólico, o imaginário, e seus enlaces e limites que formam o nó do Real. Daí a afirmação de Lacan: “É de sutura e de entrançamento que se trata na análise”24 . Ou seja, o enlace é a operação própria ao ato analítico. Isto, contudo, não abole o que Lacan diz no Seminário XV25 onde o corte é promovido ao estatuto de operação analítica. Agora é como se ele dissesse: para haver corte é preciso que haja enlace e sutura adequados.

Isto significa que o analista pode intervir de vários modos: desde o imaginário, desde o simbólico, desde o real26. Quer dizer, uma intervenção pode dar-se no imaginário do sentido, através de uma pontuação, de uma frase, de uma citação, etc. O sujeito é desestabilizado em sua cristalização imaginária. Isto pode se verificar, sobretudo no tempo das entrevistas preliminares.

A intervenção no simbólico se dá na própria rede dos significantes, pois parte do princípio de que o sintoma é uma metáfora, fruto da substituição de um significante recalcado por outro, cujo significado faz enigma, mas por onde o sujeito alcança o real do gozo. É enquanto que uma interpretação justa apaga o sintoma, diz Lacan, que a verdade se especifica por ser poética. Quer dizer, para o encontro com a verdade, o analista oferece poiesis em vez de sentido. O exemplo deste tipo de intervenção é a interpretação dada por Freud ao homem dos ratos a partir da palavra “dick”, servindo-se da homofonia entre o nome próprio e o adjetivo, para denunciar a verdade da relação imaginária entre o paciente e seu primo.

A intervenção desde o real faz emergir a dimensão de gozo onde o sujeito se encontra preso. É a mais difícil e arriscada. Consiste em uma construção interpretante, cujo paradigma poderia ser aquela que alcança a articulação do gozo do Outro com o objeto “a”. Articula os três registros, enfatizando, porém a relação do real com o imaginário, produzindo então um duplo efeito: o sujeito é advertido da inexistência do Outro e do lugar em que se consome no seu gozo. Implica em interpretar a castração do Outro, em vez do gozo do Outro. Faz ver que o Outro do qual o sujeito se faz objeto de gozo, este Outro não existe. Se o sujeito se oferece como objeto ao gozo do Outro, identificando-se com o objeto a que sustenta este gozo, não adianta apelar para o poder da palavra. Ela não terá eficácia. É aí que opera a intervenção desde o real. É pela sustentação de seu desejo enquanto analista, interditando-se ao gozo, que o analista pode ter sucesso em fazer que o que é objeto de gozo, de demanda pulsional, caia para dar lugar ao objeto causa do desejo. A incerteza é o preço que o analista paga por esta aposta: ele nunca sabe se vai dar certo ou não. Mas ele tem que suportar esta incerteza, situada no desencontro entre o ideal da cura e o que o sujeito tece para si mesmo. Afinal, existe algo que o sujeito deve tecer no real, que vai além da prática da análise, e isto é uma limitação. Digamos, a título de consolação, que um final de análise situa o sujeito num modo diferente em relação ao gozo e à criação. A partir daí, ele pode gozar e criar de modo diferente. Ele terá, digamos assim, operado um metabolismo do gozo para melhor domesticá-lo.

Em suma, temos que pensar, graças à introdução do nó Borromeu, a possibilidade de uma variedade de intervenções que vão além de uma simples oposição entre escansão e interpretação. A intervenção do analista deve indicar o lugar de fixação ao gozo que retém o analisando e o impede de avançar no caminho do seu desejo. Se esta fixação é no objeto a enquanto ponto de gozo, o corte se dará por um dos três registros – real, simbólico, imaginário – a fim de produzir uma nova eficácia para o objeto: em vez de objeto da pulsão, objeto causa do desejo.
Resta-nos interrogar sobre o que um toxicômano pode esperar de uma análise, e o que o analista pode fazer ante esta nova figura de gozo, que foge à modalidade clássica das formações do inconsciente tal como descritas por Freud e pelo primeiro Lacan.

Se a ausência de identificação ao desejo do Outro faz da nomeação do gozo toxicômano uma forma de representar-se – “sou um drogado” – o trabalho terá por objetivo desintoxicar a droga enquanto significante a partir do qual o sujeito se nomeia, permanecendo anônimo. Desintoxicá-lo de seu gozo significa fazê-lo abandonar esta forma de “felicidade” `a qual ele está preso, significa deixar de ser o objeto do Outro, do mercado de capital perverso, trocando o objeto de sua demanda pulsional de gozo no corpo, pela descoberta do objeto enquanto causa do desejo. Parodiando Lacan, o toxicômano está preso à droga como a uma falsa mulher, que ele se empenha que seja um falo. Isto não impede que seja um falso falo, pois a única relação com o falo consiste em que o falo é o que nos impede de ter uma relação com algo que seja nossa contrapartida sexual27.

Colette Soler acha que a civilização não deveria esperar muito do psicanalista no que diz respeito aos drogados. Afinal, diz ela, “a análise consiste em analisar e não retificar o gozo em sua orientação fundamental.”28 Não concordo totalmente com esta opinião. Que a civilização espere muito do discurso analítico, é realmente duvidoso. Mas daí a dizer que a análise nada pode oferecer ao sujeito em termos de formas de prazer, é muito diferente. Afinal, a forma de gozo de um sujeito é da ordem da contingência e não da necessidade. É preciso que o toxicômano chegue a ceder o gozo da droga, substituindo-o por outra forma de gozo. Não se trata de abolir o gozo. Trata-se de submetê-lo às coordenadas da significação fálica e do princípio do prazer. No Seminário “O ato psicanalítico” Lacan diz que “a análise, isso faz alguma coisa” e a própria Colette Soler o reconhece quando diz que o analisante, isso se modifica, e analisando-o, se o modifica. Que não se saiba de antemão em que direção, isso não invalida o risco da aposta.

O manejo da cura? Para demarcar a estrutura que a droga oculta, é preciso em primeiro lugar fazer falar, fazendo frente ao não falar, ou ao manter-se por fora do dizer, que o tóxico requer enquanto forma de esvaziamento da significação. Deve-se conseguir que o sujeito dê sentido, e, sobretudo sentido sexual, à sua experiência. Não se trata de se concentrar no objeto droga. É preciso ir além desta forma de gozo para possibilitar o aparecimento do sintoma inerente ao sujeito do inconsciente. É a chance de se obter o esvaziamento do significante “droga” com o qual o sujeito se nomeia.

Evidentemente não é pela nomeação “você é toxicômano”, como resposta à demanda do sujeito, que se romperá o curto-circuito pulsional em que ele se acha enredado. O que se visa é justamente que o sujeito se despoje desta identificação em que se nomeia, pela criação de um novo significante que lhe abriria as portas para a significação sexual de sua posição no mundo. Suportar a demanda, na esperança de que novos significantes apareçam na interpelação do sujeito, casando-o com o falo e marcando-o com o sexual – tal é a aposta que se propõe ao analista. Isto é possível? Só vendo.

Quanto às formas de intervenção, se no imaginário, no simbólico ou no real, é o tipo de tática que somente cada caso definirá no seu tempo justo.

No seu escrito sobre a psicose, Lacan diz que o analista não deve recuar ante a psicose29 . Digamos o mesmo no que respeita à toxicomania, esta figura de gozo que a pós-modernidade nos oferece em tão larga escala. Como diz Lacan: “melhor que renuncie quem não possa unir a seu horizonte a subjetividade de sua época”.

Faz cem anos que Freud descobriu o inconsciente e inventou a psicanálise por ter ousado, com sua escuta, ler e interpretar os sintomas de um corpo que escrevia o que não podia dizer: a histérica.

Cem anos passados, uma nova sociedade produziu corpos que mostram o que não escrevem: a toxicomania, as passagens ao ato; e corpos que sofrem por não poderem escrever, nem mostrar: a psicossomática30 . Passamos de velhos sintomas a novas figuras de gozo. Este é desafio da psicanálise contemporânea. Passamos de velhos sintomas a novas figuras de gozo. Este é desafio da psicanálise contemporânea.

 

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VEGH, Isidoro. – Las intervenciones del analista. Buenos Aires: ACME Agalma Editorial, 1997.         [ Links ]

________– Hacia una clínica de lo Real. Buenos Aires: Paidos, 1998.         [ Links ]

VÁRIOS AUTORES – Os Casos raros, inclassificáveis, da clínica Psicanalítica. Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.         [ Links ]

 

 

1 Écrits (1966), p. 242.
2 Ib., p. 402.
3 Ib., p. 871.
4 Seminário V, As formações do inconsciente, p.176.
5 Seminário XVII, L’envers de la psychanalyse.
6 Seminário 18: D’un discours Qui ne serait pas du semblant [9.7.71]. Inédito.
7 Televisão, p. 31.
8 La tercera, in “Intervenciones y Textos” 2, p. 81.
9 Seminário 18: D´discours qui ne serait pas du semblant [9.7.71]. Inédito.
10 S. Freud, “Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise”. ESB, XXII, p.75.
11 Seminário 10: L´Angoisse. 19.12.1962 Inédito.
12 Radiophonie.
13 Seminário 10: L’Angoisse, 30.01.1963 [Inédito].
14 O Simbólico, o Imaginário e o Real. 1953.
15 S. Freud, O mal-estar na civilização (1930). ESB, XXI, p. 95s.
16 In “O brilho da inFelicidade”, p.51.
17 Jornada de Estudos dos Cartéis na Escola Freudiana de Paris, 1975.
18 Cf. A. Beneti, “Toxicomania e suplência” in O Brilho da inFelicidade, p. 219.
19 Cf. Beneti, loc. Cit.
20 In “O Sintoma” [Conferência de Genebra, 1975] in Intervenciones y Textos 2. P. 139.
21 Les non-dupes errent. 19.3.74. Inédito.
22 Ver sobre isto Os casos raros inclassificáveis da clínica psicanalítica. São Paulo, Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998. Sobre a questão das classificações queira ver Michel Foucault, As palavras e as coisas, e Lévi-Strauss, O pensamento selvagem.
23 Ver sobretudo os Seminários 21 [Les non-dupes errent], 22 [R.S.I.] e 23 [Le sinthome]. Inéditos.
24 Le sinthome, 13.01.76. Ver também. R.S.I., 11.02.75.
25 L’acte psychanalytique, 67-68. Inédito.
26 Devo estas considerações a Isidoro Vegh, Las intervenciones del analista, Buenos Aires, ACME, Agalma ed., 1997, e Hacia una clínica de lo real, Buenos Aires, Paidós, 1998.
27 La Tercera, loc. cit., p. 108.
28 In O brilho da inFelicidade, p. 53.
29 Écrits, p. 574.
30 Cf. Isidoro Vegh, Las intervenciones del analista, p. 179.

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