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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.3  Salvador  2001

 

TEMAS LIVRES

 

Remediar para elaborar

 

 

Djalma Sant’Anna1

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O trabalho pretende abordar a possível relação suplementar entre a Psiquiatria e a Psicanálise. Proponho que a Psiquiatria pode atuar no sujeito em crise, por intermédio da medicação, no primeiro momento, possibilitando que o mesmo transcenda o plano objetivo para que a Psicanálise, no segundo momento, possa agir a partir do sujeito.

Palavras-chave: Psiquiatria, Psicanálise, Medicação, Sujeito em crise.


 

 

É sabido quanto a psicofarmacologia tem crescido nos últimos anos e o quanto à psicanálise, não sei se cedeu ou perdeu espaço não só para as chamadas “terapias alternativas”, mas também, para os psicofármacos. Principalmente no campo dos antidepressivos. Todos os dias chega à nossa clínica pacientes já com seus diagnósticos de depressão, fobias, síndrome ou doença do pânico, etc. Têm uma dor, uma angústia, um sofrimento e só conseguem falar deles. Como colocar um paciente desses, em crise, numa análise, se só consegue falar de sua dor, que o atormenta tanto?

Nesse momento, quero chamar atenção para o bom senso, ao invés do radicalismo: quer por parte de psiquiatras que acham que basta os prozacs da vida para operar uma mágica e resolver a questão, ou por parte de alguns analistas que ignoram determinados quantitativo e ou, qualitativo de sofrimento do paciente, querendo prender este por anos num divã, fantasiando que a psicanálise é o único instrumento para tal demanda.

A psicanálise nos mostra nossos buracos, nossas falhas e a impossibilidade da onipotência. Isso tem um efeito bumerangue – é necessário que vejamos seus próprios limites, como na psiquiatria ou qualquer outra especialidade.

Outro ponto que desejo questionar é o fato de que sempre se disse que o profissional que pratica a psicanálise com o paciente, ele mesmo, não deveria medicá-lo por causa da transferência implícita na relação. Quantas vezes fazendo análise com determinado cliente não saímos dos seus ditames rígidos para remediar sua dor tanto quanto uma medicação o faria? E esse procedimento não significa que a análise se deteriorará. Não, se nossa escuta for sempre fundamentada na psicanálise.

Num congresso recente ouvi de um psicanalista que se intitulava o mais velho dentre nós, que nos encontros de psicanálise se diz muita coisa que não se faz nos consultórios e nestes se faz outras tantas que não se diz naqueles encontros. Talvez precisemos falar mais dessas coisas. A propósito, inclusive, do tema desse encontro: “Clínica: Eu faço assim...” Poder falar claramente da medicação, da sua função, da utilização e do bom senso ao fazê-lo.

A dor é algo de insuportável no ser humano e que quase sempre, diante do investimento narcísico que impõe, impede-nos da elaboração. Porque não remediar para que possamos oferecer condições futuras de elaborar? Freud nos diz que devemos ter muito cuidado quando lidamos com pacientes fóbicos, em dar interpretações no sentido de que aquele abandone o objeto de sua fobia. Pois este que é um substituto na verdade, não deixa de ser um paliativo, um remédio – porque não dizer – para algo que é muito mais temeroso e ameaçador que emana de sua força pulsional. Não devemos nos distar, é do nosso ouvido psicanalítico, mesmo que seja ples psicoterapia. Pois estaremos muito mais preparados para fazê-lo do que aqueles que praticam tais procedimentos e não oferecem a qualidade de nossa escuta. A psicanálise precedida de bom senso, deve nos ser útil também para tais posturas e não apenas para praticá-la de forma pura. Se é que posso dizer isso.

Vários estudos de pesquisadores têm demonstrado que pacientes com depressão, com distúrbio bipolar e outras doenças psiquiátricas apresentam alterações bioquímicas cerebrais que apontam para o funcionamento dos neurotransmissores. Nesse instante não nos interessa o que veio primeiro: se o sintoma e a conseqüente alteração bioquímica ou, se esta e o posterior sintoma. O fato é que há uma alteração real. Porque não tentar equilibrar este paciente do ponto de vista bioquímico já que sua alteração o faz sofrer? E isso não tem nada contra a psicanálise. Pelo contrário: pode prepará-lo para lidar, por intermédio da técnica psicanalítica, com suas dificuldades internas, possibilitando uma elaboração que possivelmente estivesse prejudicada pelo investimento narcísico de sua doença, dotando-o de capacidade para enfrentar novos sintomas substitutivos, ou os velhos que venham a retornar.

Em “Análise Terminável e Interminável” Freud diz: “Em estados de crise, a análise é, para todos os fins, inutilizável. Todo o interesse do Ego é tomado pela realidade penosa, e ele se retrai da análise que está tentando ir além da superfície e revelar influências do passado”.2

É necessário, por exemplo, que nos questionemos, cada vez que temos um paciente em análise que não consegue sair do gozo, numa eterna lamúria por tempo muito prolongado e nossa impotência, mais uma vez marcada, apenas nos lembra que aquilo fala de pulsão de morte e que ele não consegue abrir mão do gozo. Será que esse paciente não sofre de uma alteração bioquímica que o coloca em depressão, sem que isso venha a contradizer a pulsão de morte ou gozo da psicanálise? Não seria válido uma avaliação psiquiátrica acurada para termos equacionada a possibilidade da necessidade ou não, de medicar esse paciente? Isso não é apenas priorizar, mas antes de tudo, criterizar a nossa clínica.

A grande questão que desejo abrir nesse fórum é a relação da psicanálise com a psiquiatria: se complementar ou suplementar, mas nunca antitética.

Segundo Frota-Pessoa, geneticista, nenhuma das doenças mentais tem determinismo de todo genético. O ambiente sempre participa de sua geração, mesmo que a interferência genética seja substancial. Aqui podemos ler a série complementar de Freud, quando ele fala das neuroses e seus fatores geradores, classificando-os em pulsionais e adquiridos e acrescenta que a análise teria mais sucesso quando esses fatores fossem predominantemente ambientais. Em paralelo as pesquisas – como já foi dito – falam de alterações bioquímicas nas doenças mentais. Numa classificação simplista poderíamos dizer que a medicação agiria na alteração bioquímica e a psicanálise na verdade histórica do paciente, que constitui o seu inconsciente recalcado. Mas, a nossa proposta transcende essa forma aparentemente complementar de ver as coisas, que poderia dar uma falsa visão de algo que se completa. Pretendemos falar de crise e elaboração. E isso varia de cliente para cliente assim como, de analista para analista. O fato é que a crise na nossa fantasia impede a elaboração. E se conseguirmos de alguma forma remediá – la, pode-se abrir no campo da palavra a possibilidade do ir além. A possibilidade do envolvimento do paciente com seu sintoma. Com a respectiva responsabilidade que lhe cabe. O que marcaria a grande diferença entre responsabilidade e culpa.

A psiquiatria olha o paciente, observa os fenômenos, descreve-os, classifica-os para poder agir sobre eles. O tratamento é farmacológico, e eu diria, também pedagógico. No sentido de que o psiquiatra deverá orientar o paciente como usar a medicação e também de informar sua função. Já aí abrindo a possibilidade de fazer algo que no primeiro momento, parece tão pregnante quanto mágico. É a função bengala da medicação enquanto se está impossibilitando de andar com suas próprias pernas.

Já a psicanálise não se baseia na observação metódica de fenômenos. A semiologia que lê em sinais e sintomas, os elementos que vão compor o quadro clínico na psiquiatria, agora, dá lugar à semiologia da fala. Tendo como base aquilo que o sujeito quer dizer. E não o que quer dizer na linguagem médica, aquilo que o sujeito diz. Ou seja: trata-se de fazer um reconhecimento do que o sujeito diz, para quem diz e em que momento é dito no processo associativo da fala. Não se trata de agir sobre o sujeito como na psiquiatria, mas a partir dele. A resposta do analista não tem a ver com o entendimento nem com a correção do dito em função da realidade. Mas, com o fato de fazer o sujeito trabalhar seus próprios ditos. Trata-se de uma verdade entrecortada na fala do paciente através do analista. Esta fala que no seu encadeamento revela uma verdade e não um fato.

Na psiquiatria os sinais são traduzidos para uma linguagem referenciada e antecipada, enquanto na psicanálise a significação está em causa, à medida que se desloca ao invés de fixar-se na interpretação do analista.

O primeiro passo da psicanálise é reconhecer o saber que tem valor de verdade na fala do paciente, para então poder responsabilizá-lo pelo que diz. E não culpabilizá-lo. A partir daí o sujeito pode dirigir-se ao analista não simplesmente para obtenção de um remédio, mas na transferência, onde o inclui nas suas produções psíquicas.

Depois de tentar falar naquilo a que se propõe – pelo menos na minha ótica – a psiquiatria e a psicanálise podemos ver que tipo de relação é possível entre as duas clínicas. O título desse trabalho – Remediar Para Elaborar – tem a intenção de instigar essa relação, diante do paciente que sofre e que vem em busca do nosso auxílio.

Refiro-me a casos de pessoas cujo sintoma urge com uma intervenção rápida, numa situação de crise, quer seja de depressão, pânico ou mesmo de psicose, e que seu sofrimento o impede de ir além. Esse primeiro momento pode não passar necessariamente pela fala do paciente. Medicar, acolher ou mesmo conter, pode adquirir prioridade, para que depois o sujeito se ponha em condições de endereçar uma fala a alguém que possa ler nela uma verdade. Nesse sentido o trabalho psicanalítico vem suplementar o psiquiátrico, para fazer com que o sujeito possa se situar em sua ação ou sintoma. É preciso saber esperar o tempo da fala ou se necessário, apressá-lo com a oferta de uma escuta.

Volto a insistir que na minha opinião, o mesmo profissional pode fazer as duas coisas desde que capacitado para tanto. Ou, profissionais diferentes com-tanto que saibam o limite de cada um.

Sobre a verdade que está na enunciação do sujeito, nas entrelinhas de sua fala e que pode ser lida pelo analista, não tem relação com os fatos ou com a verdade material. É ela uma verdade histórica. E esta diz respeito ao retorno do recalcado ou rejeitado.

Em “Moisés e o Monoteísmo”, Freud faz uma analogia entre as primeiras experiências infantis que produzem, num ou noutro moinício da humanidade no que se refere ao surgimento da idéia de um único grande Deus. Ele diz: “... uma idéia como essa tem o caráter compulsivo: tem-se que acreditar. Na medida em que é distorcida pode ser chamada de delírio; e na medida em que traz um retorno do passado deve ser chamada de verdade ”.3

A crença em questão é o valor que Freud atribuiu à verdade. Esta é compulsiva. O sujeito fala e sua verdade se impõe na compulsão à repetição.

O analista parte daí: fazê-la aparecer como indício do sujeito. A realidade que lhe diz respeito não tem a ver com os fatos, mas a realidade psíquica como valor de verdade. É a única que interessa ao analista.”4 Transformar essa verdade é uma questão para o trabalho da análise. Mas, é fundamental saber que não há outra verdade em jogo. A transformação só pode se efetivar na posição subjetiva. Pois não há uma realidade objetivada que se contraponha à do sujeito. Por intermédio do trabalho analítico o sujeito pode ir se reposicionando. O que possibilita sua reorganização.

Poderíamos tentar resumir a questão dizendo que num primeiro momento a psiquiatria financiada pela realidade objetiva e pela ação do saber médico, intervém remediando a dor do paciente, interferindo na crise, possibilitando assim que numa relação de suplementariedade, por intermédio da fala e do saber do paciente, possa emergir sua verdade história, realidade psíquica, endereçadas ao analista na transferência, fazendo com que o sujeito se reposicione subjetivamente e opere sua reorganização.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. – Moisés e o Monoteísmo. ESB Vol. XXIII – Rio, Editora Imago 1975..Págs. 148 a 154        [ Links ]

_________ – Análise Terminável e Interminável. ESB Vol XXIII – Rio, Editora Imago, 1975. Pág. 265        [ Links ]

NASCIMENTO, Isabela. – Depressão Unipolar: Uma Revisão. In: Revista Informação Psiquiátrica, U.E.R.J., Vol. 18, 1999 Pág. 76.         [ Links ]

FIGUEIREDO, Ana Cristina. – A Relação entre psiquiatria e psicanálise: uma relação suplementar. In: Revista Informação Psiquiátrica, U.E.R.J., Vol.18, 1999. Págs. 87 a 88.         [ Links ]

 

 

1 Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
2 Freud, S. – Moisés e o Monoteísmo, E.S.B. vol. XXIII, pag. 154.
3 Figueiredo, Ana Cristina. A Relação entre Psiquiatria e Psicanálise: Uma Relação Suplementar, Rev. Inf. Psiquiátrica, U.E.R.J, vol.18, pag. 88.
4 Figueiredo, Ana Cristina. A Relação entre Psiquiatria e Psicanálise: Uma Relação Suplementar, Rev. Inf. Psiquiátrica, U.E.R.J, vol.18, pag. 88.

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