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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.3  Salvador  2001

 

TEMAS LIVRES

 

Gozo e alcoolismo1

 

 

Virgínia Lúcia Britto S. Galvão2

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O trabalho faz uma articulação do alcoolismo com a psicanálise e a possibilidade de tratamento psicanalítico para alcoolistas.

Palavras-chave: Alcoolismo, Gozo, Tratamento.


 

 

Observamos a propagação dos happy hours, o uso daquele whiskinho no jantar, antes de uma reunião com clientes ou para encarar um encontro amoroso. Em ocasiões festivas, a presença do vinho, champanhe e outras bebidas é inquestionável, como líquido imprescindível. Médicos muitas vezes receitam uma dose de alguma bebida antes de dormir como uma espécie de tranqüilizante, ou uma taça de vinho tinto no almoço para baixar o colesterol. O álcool relaxa, encoraja e transforma os mais tímidos em fluentes galanteadores.

“Humprey Bogart, ator norte-americano do filme Casablanca – chegou a dizer, numa tirada de humor, que o problema da humanidade é que a natureza fez o homem com duas doses a menos, o que o deixa mal humorado, irritadiço e careta: duas doses a mais e muitos de seus problemas estariam resolvidos.”3

Freud escreve em Mal Estar da Civilização: “O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhe concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse “amortecedor de preocupações”, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar um refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos.”

Esse líquido mágico parece transportar-nos a uma situação de prazer, onde os problemas, as dores e as limitações desaparecem. Aquele lugar ansiado do encontro com o objeto perdido, situação de plenitude onde nada falta – momento de prazer primitivo com a mãe. O alcoolista encontra no álcool a química que tampona sua falta, o gozo que lhe parece eterno enquanto dura o efeito da droga. A sensação de plenitude cessa quando finda a ação química da mesma. O mal estar aparece e com ele a ânsia por mais álcool, recomeçando o circuito alcoólico: álcool – mal estar – mais álcool, repetição compulsiva em torno da droga.

Charles Melman, descreve o alcoolismo como discurso que se modula por uma submissão particular à mulher, enquanto detentora e distribuidora de um gozo cuja totalização seria para ele sempre recusada ou dissimulada. Gozo marcado pela prevalência de uma fixação oral, constantemente re-aguçada durante a vida. A fixação neste lugar, se presta também à representação imaginária do gozo por um fluxo, líquido ou verbal, fora de descontinuidade e fora do limite. Por não reconhecer aqui outro limite senão o fisiológico, o do corpo, o gozo se choca com este, (o corpo) como se fosse um obstáculo difícil a ser vencido. A ânsia pelo gozo esbarra nos limites do corpo, que resiste, agarrando-se à vida. Esse processo mortífero, se estende para aqueles que estão próximos, a família, e principalmente para seu corpo, a liquidar.

Freud diz: “Meu passo seguinte foi dado em Mais Além do Princípio do Prazer (1920), quando, pela primeira vez, a compulsão para repetir e o caráter conservador da vida instintiva atraíram minha atenção. Partindo de especulações sobre o começo da vida, e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto para preservar a substância viva, e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso eqüivalia dizer que, assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta desses dois instintos”. Vida e morte acompanham o ser humano. A compulsão à repetição desde Freud, já se apresenta como um grande desafio ao prosseguimento das análises, ao prosseguimento da vida, expressão nítida de tanatos. Freud, descreveu o princípio do prazer como a tendência do organismo em reconduzi-lo à mais baixa tensão. O organismo se protege contra a elevação da tensão e do desejo buscando a satisfação, ou seja, a descarga. Este é um ciclo de auto-regulação biológica e do prazer. O que o organismo busca é essa homeostase, apaziguar a demanda pulsional. No alcoolista, a utilização do álcool parece situar-se como um regulador biológico. Porém, essa regulação biológica não é mais fundada sobre uma lei que seria a do significante, a dependência orgânica instalada está diretamente ligada à química orgânica, havendo a necessidade de doses cada vez maiores para reproduzir o fenômeno da embriaguez.

O alcoolismo parece ser a tentativa de corrigir a castração, por uma relação que não é marcada por nenhum limite. A tentativa de fazer valer um “gozo Outro” (um gozo pelo Outro), isto é, uma forma de gozo que nada deve à castração. Um gozo sem limite, que pode ir ao termo, ou seja, à morte.

Um homem me disse certa vez que escondia garrafas em vários lugares da casa porque ficava com medo de faltar sua bebida. É desesperador para o alcoolista o desaparecimento do objeto apesar de não estar necessitando dele para consumo. Mesmo assim, precisa da garantia de sua presença. O alcoolista procura através do álcool fazer com que o objeto esteja presente mesmo quando este desapareceu, por isso esconde garrafas no seu armário. Porém, mesmo se o objeto desapareceu quando não esta necessitando dele para consumir, continua tendo a necessidade da sua presença, apesar da cadeia significante à qual está remetido não falar disso. Se este objeto, álcool, vem a desaparecer, provoca nele uma crise de angústia, que pode bascular no delírio. Não ter mais esta coisa a seu alcance, é insuportável para o alcoolista. Parece que o consumo do álcool se faz na tentativa de incorporar o objeto, tê-lo finalmente preso ao corpo. E por que no corpo? Porque o corpo esta tatuado, marcado pela cadeia significante. Buscando essa operação impossível de ter esse objeto no corpo, o alcoolista ingere cada vez doses maiores, marcando assim um encontro com a morte, quando então conseguiria o seu intento, a incorporação do objeto.

Como tratar o alcoolista? É possível fazer um trabalho Psicanalítico com ele?

Inicialmente a demanda não é de análise. Procura o profissional geralmente em decorrência da angústia gerada pelas perdas: perda da família, do trabalho, os amigos não o toleram e a vizinhança reclama. Vão em busca de uma solução para essas questões, alimentando, quase sempre a fantasia de que o analista vai ter uma fórmula para conquistarem o beber controlado, evitando assim os transtornos causados pelo abuso do álcool. Desfeita esta ilusão, o paciente passa a perceber-se como protagonista da sua história e não mais aquela vítima da incompreensão de todos aqueles que estão próximos, com exceção apenas dos companheiros de copo.

O trabalho com alcoólatras vem nos mostrando que existe transferência, trata-se porém de uma transferência particular, onde o analista vai ter para ele as características do objeto, necessitando de início uma relação mais amigável, mais próxima, onde o profissional precisa ser mais falante e presente, pois o silêncio e a ausência são percebidos como uma ameaça. A relação com o outro é ameaçadora, pois ela evoca a imagem daquele Outro devorador, o Outro vampiro. A exemplo disso, os finais de semana e as férias do analista muitas vezes desencadeiam crises de angústia e eles voltam a beber. A ausência do analista é vivida como insuportável, evocando a sensação de desaparecimento do objeto.

Através do trabalho de análise esta posição tende a se modificar, a confrontação com a falta pode passar a ser uma possibilidade, a partir das suas construções.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S.1930. Vol. XXI. O Mal Estar na Civilização. Pág. 97. E.S.B. Imago Editora. 1a edição. 1974. RJ        [ Links ]

_________1895. Vol. I. Projeto para uma Psicologia Científica. E.S.B. Imago Editora. 1a edição. 1974. Rio de Janeiro.         [ Links ]

_________1920. Vol. XVIII. Além do Princípio do Prazer. E.S.B. Imago Editora. 1a edição. 1974. Rio de Janeiro.         [ Links ]

MELMAN, Charles. Alcoolismo, Delinqüência, e Toxicomania, uma outra forma de gozar. Ed. Escuta. 2a edição. 2000. São Paulo.         [ Links ]

ANDRADE, Luís F. G. – A Clínica Cem Anos Depois: novas figuras de gozo. Agosto de 2000. – Publicado nesta edição        [ Links ]

DOR, Joel. O Pai e sua Função em Psicanálise. Jorge Zahar Editores. 1996. Rio de Janeiro.         [ Links ]

 

 

1 Trabalho apresentado na XII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia – novembro de 2000
2 Psicóloga.Membro Associado do Círculo Psicanalítico da Bahia
3 Mascarenhas, Eduardo. Alcoolismo, Drogas e Grupos anônimos de mútua ajuda. Rio de Janeiro. Edições Siciliano. 1990. São Paulo. Pág. 18.

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